2 minute read
JOÃO ROCHA| A MULHER DE OUTRO MUNDO
A MULHER DE OUTRO MUNDO
JOÃO ROCHA | Marituba, PA.
Advertisement
44
A evolução científica foi particularmente perturbadora para a senhorinha Travesso. A intenção do esposo – um antigo aficionado por HG Welles e Viagens espaciais - de se alistar – como voluntário – a uma expedição a Marte causou dores de cabeça na família. “Mãe, o papai não tem mais idade para isso, não se preocupe”. Tal conselho foi pouco proveitoso. Mais de meio século de convivência transformou a atitude do engenheiro aposentado em uma grande traição comparada à descoberta de uma amante. A esposa que descobrira, por um acaso, o formulário de inscrição para os testes iniciais que levaria o velho a morar definitivamente naquele lugar, não precisou de mais nenhuma outra conclusão dos fatos. Na casa, um silêncio crescia arranhando os azulejos da sala. Até os cães tinham receios de proferir latidos desnecessários. Pouco tempo depois, o Senhor Travesso realmente partiu deste mundo. Depois da tristeza da morte, as evidentes circunstâncias a serem enfrentadas. Roupas dobradinhas sobre a cama para nunca mais serem usadas. Livros antigos e amarelados com dedicatórias incompreensíveis. Pouco tempo depois, netinhos remexendo pelo quintal a chutar a bola na janela. Isso assustava a triste vozinha e quebrava um pouco os seus lentos pensamentos: “Chega também meu tempo”. “Na profunda insensatez matinal das coisas?”. Chegaram também as dores nossos ossos, os irrelevantes tropeços na pequena elevação na porta do banheiro. O vapor do chá afastando os pássaros para áreas mais floridas e menos cinzentas. A casa aos poucos foi perdendo as cores. Nem a mudança dos filhos com suas noras esforçadas para agradar e fazer companhia. Nem as pequenas crianças, pouco afetivas é verdade, sempre com aparelhos maiores que suas próprias mãos, nem as poucas amigas que ainda se sacrificavam em suas próprias limitações físicas para visitá-la, nada conseguia afastar dela aquele semblante que ao ser investigado, procurava no chão, ou atravessando para o outro lado da janela, o
45
esconder-se. E todas as vezes que o olhar caído e de cristalino já embranquecido da senhorinha procurava na cama, o outro par do travesseiro, quiçá amassado, e no apalpar da mão enrugada; pelos inadiáveis assuntos da vida, redescobria-se aquilo que se evitava sentir com ardor no peito, ela levantava-se e em passinhos curtos até os arredores da casa, observava atentamente os aglomerados estrelares. Então lembrava que o marido de sutil humor e elevado espírito para aventuras espaciais, quase sempre em dias sem nuvens laranjadas. Quando a doçura do café estava na medida exata para fazer cálculos astronômicos, dizia, com voz rouca, sem titubear: “És, a Mulher de outro mundo...” Ela sorria, sem entender. Na sublime astronomia das pessoas simples.
JOÃO ROCHA é escritor paraense. Está na antologia de contos da Fundação Câmara Brasileira dos Jovens Escritores do Rio de Janeiro “A Mulher de Branco e outras Mentiras Verdadeiras”, lançada em 2015. Têm publicações nas revistas ‘Subversa’, ‘Avessa’ e Walking in Briarcliff e nos sites literários: ‘LiteraturaBR’, ‘Revista Pacheco’. Colunista do site Degradê Invisível e Curador da revista literária paraense ‘Jurandir’. | LLLLENO@YAHOO.COM.BR