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ISABEL CARDOSO| O LOBO
ISABEL CARDOSO| Lisboa, Portugal
O LOBO
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PARTE 1
Este nunca foi de alcateias. Era sempre um solitário que fugia dos seus. Gostava dos seus passeios, das suas caçadas. Explorar o mundo e evitar guerras.
Brincava em charcos e com as folhas, Em noites de lua brilhante uivava! Fosse em tom de lamento ou grito eufórico. Aconchegava-se nas tocas descobertas, em sonos profundos.
De vez a vez lá aparecia outro lobo que queria lutar por território. Ele nunca quis. Não desejava possuir terras, muito menos lutas. Embora algumas fossem inevitáveis. Ganhou e perdeu combates.
Feriu e foi ferido, com e sem gravidade. Mas no final, lambia sempre as suas feridas, Descansava do combate
E voltava a caminhar.
A sua eterna busca, O sítio do local dos seus sonhos. Maravilhosos, calmos e pacíficos. Onde o encontrar?
Caminhava há tantos anos, Certos locais quase se assemelhavam. Mas a sensação não era igual. (Sempre longe, pensava)
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PARTE 2
O alimentar, outrora feito com uma fome de alcateias inteiras! Hoje é apenas uma tarefa. Fixa-se a caça e cerra-se-lhes as presas até a peça se deixar de mexer. Arrancam-se pedaços de carne, que se engolem quase inteiros.
Foi-se o gosto pelo caçar, Pelo gosto do sangue e pelo saciar da fome. Mata-se silenciosamente, E come-se somente o bastante pra aguentar os quilómetros nas patas.
Larga-se o resto da carcaça para outros animais. E segue caminho. Caminho esse muitas vezes sem rota. Caminho esse que se tornou também desapaixonado.
Caminhar, procurar o local dos sonhos. Esse tornou-se o objectivo principal. Ficaram esquecidas todas as outras tarefas. Tudo aquilo que fazia o caminho ser agradável.
Mas o Lobo continua, Esquecido que a caminhada em si É também parte da tarefa de seguir o sonho. Mas ele continua, caminhando, caminhando incansável.
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PARTE 3
Após um ano a caminhar, Praticamente sem parar, o Lobo abrandou. Olhou para trás e verificou, lá do alto do cume O último troço caminhado.
Hei de parar - pensou para si mesmo - mas ainda não é hora. E continuou, subindo, subindo monte a cima, Descendo vales. As mortes eram quase instantâneas. Apenas carne. Só isso. Sem a vertigem da caça.
Apenas carne que vive, Que se mata e que se deixa o restante a apodrecer. Andar, caminhar, esse é o objectivo. Tudo o mais apenas funções de sobrevivência.
Num certo dia de caminhada encontrou
A jovem Loba que teria sido sua companheira. (numa outra vida pensou) Tinha-se tornado numa bela e madura Loba. Olhando para si mesmo sentiu-se um farrapo.
As patas feridas de tantas milhas feitas, olhos vazios, Mandíbulas ainda ferozmente pintadas da última morte que cometera. Sentiu-se envergonhado com o seu aspecto e com o seu coração tão vazio...
Mas ela sorrira-lhe!
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PARTE 4
Naquele sorriso a Loba relembrou-lhe, O quão grande era o seu coração! "Olha para mim" - dissera-lhe o Lobo Para estas mandíbulas ainda tingidas de sangue... Não sou mais que assassino! Não sou mais que um ser que vagueia, À espera da sua hora. Nem o coração ficou. Esse...
Estilhaçou-se em tantos pedaços, Que nem os sei contar. E o tempo... nem sei quanto passou, Demasiado!...
Olha para o meu pêlo, Vê o quão branco está agora. Vê o quanto me gastei nestes anos... Não sou quem outrora fui.
Tornei-me feroz e solitário, De peito tão vazio, Que nem o vento gélido o faz sentir. E estas patas...
Enlameadas, gastas. Não têm conta os milhares e Milhares de quilómetros percorridos. E estes olhos...
Não brilham sonhadores, (como um dia fizeram)
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São baços, mortos e cegos. Já não vêem, só reflectem. Não sou quem antes fui.
Não sou quem conheceste, Não sou quem no passado amaste. Esse partiu há muitos, muitos anos! E eu lamento. Lamento mesmo muito.
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PARTE 5
Era por fim a chegada ao cume. E por baixo de si, estendia-se o vale. Tão verdejante, tão denso, tão rico!
Erguiam-se as árvores de copas tão altas, As suas raízes rompiam a terra E dançavam na vegetação.
Havia o lago também, Límpido, como nos seus sonhos recordava. E a sua toca...
Teria sido ali que nascera, dissera-lhe alguém um dia. Era o local ideal. O Lobo fechara os olhos instantes para encher bem o peito de ar.
No reflexo viu o seu focinho, Tão velho, tão encardido, Os seus dentes cobertos de tártaro e gastos.
Que resta de mim? - Pensou o Lobo. Entrou no lago e limpou-se. Deitou-se ao Sol para secar.
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E, por fim. Foi para a toca onde adormeceu. Adormeceu durante meses!
ISABEL CARDOSO (Lisboa, 1985) descobriu e apaixonou-se pela poesia aos oito anos, com Sophia de Mello Breyner Andresen, quando a escritora foi à sua escola primária e leu alguns dos seus poemas e contos. Começou a escrever poesia e contos aos dez anos mas só em 2015 se aventurou a arriscar a publicação, participando na colectânea “Poema-me” da Editora Lua de Marfim Editora.