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GABRIEL CORREIA | CARA, COPO

CARA, COPO

GABRIEL CORREIA | Campinas, SP.

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Cara, copo. Chegando ao sétimo já não lembrava o próprio nome. Aguiar. Aguiar? Passou pelo oitavo e continuou, depois do décimo primeiro perdeu as contas. Pediu a terceira dose. Riram. Eram assim mesmo, adoravam a desgraça de Aguiar. Aguiar? Gostavam mesmo é para poderem esquecer de suas próprias. Imbecis. Aguiar não, Aguiar era autêntico. Aguiar? Pediu mais uma e botou na conta, na verdade colocou todas na conta. Sua conta era de anos e o Bigode respeitava isso. Nada restava, então continuou. Copo, cara. Chegando ao sei lá qual pediu a conta. Aguiar? Não, não, na verdade era mais uma na conta, e não a. Assim tudo bem, na verdade não, mas deixa para lá. Bem longe. Olha os imbecis, continuam por lá porque sabem que Aguiar é a salvação, sem ele seriam nada mais que completos fracassos de seres humanos. Aguiar era sim a salvação. Aguiar? Pede mais uma, é um guerreiro. Chega mesmo a sentir orgulho de sua situação quando alguém de fora se espanta com suas proezas, com sua maestria em foder completamente toda a sua vida. Cara, copo. Mais uma dose, Bigode põe. Ele sempre põe, Bigode é macho, macho de verdade. Não esses aí que se montam nas lojas de músculos torneados. O Bigode é macho de verdade, daqueles que nascem de putas, mijam, comem cebola em conserva, jogam truco porque gostam de gritar, não entendem a porra da palavra sensibilidade e sabem o real valor que há em se chamar uma mulher de gostosa. Gosssssstoooosa, assim demorando no esse e no ó. Puta que o pariu, o cara é macho pracaralho! E como tal, quando reconhece outro, não pensa duas vezes, ajuda mesmo, e se o cara quer beber até morrer, então ele tem o dever de ajudar. Copo, cara. Mais uma, mais uma! E assim vai, mais e mais, mais é mais, é sempre mais. Parar não é uma alternativa. Aguiar só sai daqui caído. Aguiar? Os imbecis não, chega uma hora que não aguentam, fingem que só estavam fingindo e saem como se fossem bons. Mas tudo bem, desce mais uma, e o Bigode ainda está lá. Ele sempre está. Ele e Aguiar. Cara, copo. Aguiar? Mas alguma hora ele vai

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ter que ir embora, sempre tem, o Bigode tem família, Aguiar! Aguiar? Ele não é como você que encara os dias como contagem regressiva. Bem . . . Na verdade ele encara sim, mas de outro jeito, diferente do outro. Diferente do Aguiar. Para esse aí, sim, a vida realmente é uma contagem regressiva, tique-taque tique-taque para a morte. Mas sem drama, sem sentimentalismo, por favor! Não há nada de triste nisso, afinal, um homem não pode escrever o próprio destino? Se um pobre de um infeliz não tem nem esse direito, então a coisa tá feia mesmo. Aguiar? Pede mais uma, pede mais outra, pede mais todas, pede, pede, pede, pede até o Bigode dizer que não dá mais. Infelizmente, com o coração partido, é a família, sabe, se não fosse isso ele ficaria ali fazendo companhia por quanto tempo Aguiar quisesse. Mas não dá, por Deus, não dá! Pede desculpas a Aguiar e se sente um pouco menos macho por isso. Ah, se Aguiar não morrer logo, logo, logo, o Bigode não vai se sentir nem um pouquinho macho. Vai acabar como aquelas, quer dizer, aqueles travestis que passam pelo bar de vez em quando. Isso não pode. Será que é bom dar o cu? Aguiar? Aguiar então, por não ter alternativa, visto que por essa hora todos os bares estão fechados por aqui, volta para casa. Cara, copo, putz, é o último, merda, merda, merda! Cara, agora só cara, e pernas tropeçando pelas ruas vazias. Daqui a pouco clareia, isso é estranho, Aguiar nunca se acostumou a ver o sol raiar, apesar de ver todos os dias. Estranho, é como as mulheres de sua vida, ele nunca se acostumou a vê-las partirem, embora todas tenham. Cambaleia pra cá, volta e meia pra lá, segue, segue, andar, até em casa chegar. Sempre chega, coisa boa, perder-se não é para ele, nunca foi. Aguiar, velho guerreiro! Aguiar? As ruas tortas, para aqui e acolá, olha lá, olha lá, é a casinha de Aguiar! Aguiar vive ali, ali, ó, onde estou apontando com o dedo. É uma casa bonitinha e pequena. Cara, agora só cara, ah, dormir para esquecer e acordar para lembrar, lembrar que amanhã tem mais cara, copo, copo, cara, e se for um dia bom vai ter o dia inteiro, até escurecer, e depois mais e mais. Mas olha

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só a casinha do Aguiar! Aguiar? Não, desculpem-me, mas não é bonitinha não, é um barraco nos fundos da casa da Dona Guiomar. A Dona Guiomar é a mãe de Aguiar, bem velhinha e enrrugadinha e boazinha como ela só, e cuida do Aguiar, do jeito que dá pelo menos. Uma comida quente de vez em quando e uma palavrinha pra tentar animar o filho. Já teve época dela chamar o pastor lá da igreja pra ele conversar com o Aguiar. Aguiar foi um tempo pra igreja, mas cansou, não é igual, é chato, e ele sempre fica lembrando do que não é bom. Pra igreja quase nada é bom. Melhor que cara,copo não há. Dorme Aguiar, talvez vomite, mas é difícil, já está escaldado, muito, muito, muito. Amanhã é outro dia, mas mesmo que não fosse. Cara, copo. Aguiar estará lá, abrindo e fechando o bar. Aguiar?

GABRIEL C. CORREIA é professor, marido e pai de uma menininha chamada Cecília. Escreveu e dirigiu o curta-metragem O Diabo por Dentro em 2010. Atualmente reside em Campinas. | BIELSUED@GMAIL.COM

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