Revista Subversa Volume 6, nº3 - março 2017

Page 1

SUBVERSA

ISSN 239-5817 Vol. 6 | n.º 03 MARÇO de 2017

Ilustração KAROLINA WHOO LILIAN ALMEIDA | EDSON AMARO | GLAUBER COSTA RÂNDYNA DA CUNHA | RODRIGO DO PRADO BITTENCOURT GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS | RONALDO CAMPELLO SABRINA DALBELO | LOECY ROSA DAMÁSIO | BRENO S. AMORIM


WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA @CANALSUBVERSA CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

Subversa | literatura luso-brasileira | V. 6 | n.º 03

© originalmente publicado em 15 de março de 2017 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações KAROLINA WHOO

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME seis | NÚMERO 03 BRENO S. AMORIM | O RUMOR DE UM AUSENTE | 06 EDSON AMARO | CARTA PARA MEU AMOR DISTANTE | 12 GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS| INVOCAÇÃO | 14 GLAUBER COSTA | DESPOSSUÍDO | 16 LILIAN ALMEIDA | AVÓ | 19 LOECY ROSA DAMÁSIO | INÊS | 23 RÂNDYNA DA CUNHA | O PORTAL DAS ÁGUAS | 26 RODRIGO DO PRADO BITTENCOURT| PROVÉRBIOS | 32 RONALDO CAMPELLO| ESCURIDÃO| 40 SABRINA DALBELO | AFRO-DITE | 42 [CONTEÚDO EXTRA] Notícias | 44

3


EDITORIAL

Passar a voz ao papel, Ou do ladrar à rosácea, Trova, é escrever. Estava Ele, atônito, não vislumbrando Como ia tanta palavra Caber na rosácea. Era óbvio que uma delas Serviria de estaca, E as restantes de rosas No caule ainda por vir. Quando a frase rosna, Não há outro remédio. Maria Gabriela Llansol

Para a Karolina Whoo, autora das ilustrações deste número, a mandala representa uma busca pessoal pelo equilíbrio, “como uma ponte entre os mundos interno e externo” ou “um quebra-cabeças de uma alma em constante construção”. Como toda a obra, os pedaços são fragmentários (tijolo por tijolo), mas transmitem uma essência no conjunto final, “às vezes caótico”, bem lembra Karolina. Assim como a mandala, o texto literário vive buscando este ponto de interferência, capaz de fertilizar solos de ideias e fundar novas possibilidades de mundos no mundo. A partir de pedaços de pensamento, a realidade externa e a interna se encontram num espaço irrepetível, totalmente autêntico. Mesmo a literatura sendo uma continuidade de cópias, a realidade nova, o momento presente, é o sempre desconhecido e que merece ainda uma nova versão. A literatura é sempre um conhecimento inédito. Com os trabalhos já em bom andamento, damos as boas vindas ao número três do volume 6. Desejamos uma boa leitura a todos. As editoras.

4


A Guerra não Tem Rosto de Mulher, de Svetlana Aleksiévitch.

| Indicação das

“É difícil descrever o impacto que sofri ao ler a obra de Svetlana. É um texto cruel, mas cheio de delicadezas”. TÂNIA ARDITO

editoras | A violência do sexual e o impacto da pulsão de morte, do Ney Klier Padilha Netto

“É uma dissertação de mestrado muito bem escrita, de forma clara e simples. Conta, em boa narrativa, a história da teoria das pulsões, dando uma boa e fácil ideia das principais questões de todo o pensamento freudiano”. MORGANA RECH

5


RUMOR DE UM AUSENTE BRENO S. AMORIM | Petrolina, PE.

6


Ao meu avô Geuid.

Cá, a mesma parede ferida por um prego. Um espelho retangular, o Charlie Chaplin ao centro, sustinha-se no prego deslembrado por vórtices e rodamoinhos. Argamassa, matéria bruta, cobre o rasgo. A parede, aplanada, alumbrando tonalidade distinta, outra - o buraco, apesar, diante dos meus olhos, próximo ao primeiro quarto, espaço da sala de entrada. Não o alcançávamos, eu e meus irmãos. Meu vô saía do quarto - a camisa por dentro da calça de brim azulada; obliquamente, uma pasta de pano rijo -, caminhava em direção à sala frontispícia, a mão, no bolso, retirava um pente oval, mirando-se no espelho: fiapos de cabelos lançados para trás. Imagens eidéticas me povoam. Há muito não retornava. Pais, familiares, amigos - ao final de uma ligação

ou

em

palavras

derradeiras

de

e-mail

qualquer,

a

desconcertante pergunta: Por que não vem nos visitar? A promessa de ir tão logo pudesse repetia-se, mas os anos se passavam sem que eu julgasse pertinente retornar ao lugar de origem. Exilado de minha terra, dos meus, do dialeto provinciano, exilado dos amores passados, de lembranças turvas e límpidas - exilado de tudo, sem fuga de mim. Talvez fosse medo - e já agora ainda não o é? -, apreensão em querer sufocar vozes de tempos longínquos, inabilidade ante a dor de uma ausência. Alguém dissera ser a escrita, em sua origem, a linguagem de um ausente. Os fantasmas esvoaçando ao derredor dos móveis, espremidos nas brechas da estante, entre um livro e um porta-retrato. Disfarçado, como num haicai, pela emergência ilusória do imediato absoluto, escrevo para redesenhar continuamente rostos perdidos na rigidez das horas, tentando, aqui e ali, repetir um movimento apreendido pelos olhos e que não mais é, senão nos próprios olhos, volvidos para dentro.

7


Espectros que não me abandonam, como uma cidade que fosse obrigada a cultuar os próprios mortos, sempre presentes, mais vívidos do que os que constroem casas em torno e acendem velas, diariamente. Silhuetas, carícias, estalos de ferrete, reflexos de látego, os primeiros passos, o chão duro arranhando o joelho de pele frágil, delgada miúda, esta cidade é um fardo imagético. Da cozinha, o odor do café se espalhava pela casa, através do grande corredor. Dona Letícia, minha vó, repetia, com seu pé direito, o movimento ondulante no retângulo de ferro da máquina de costura. Bordava. A recendência perfumada do líquido escuro representava um chamado a seu Lourenço, que, sempre às cinco da tarde, empurrava a porta e jogava a pasta em cima do sofá. Muita correspondência, pai? perguntava meu tio. Todos os dias. Sorvia o café, retirando, da bolsa, os livros ansiosamente esperados. Capas variadas, cheias de cores, títulos com letras garrafais. Distinguíamos pouco a pouco a amarração das letras, espantados ante o fascínio de nosso avô. Lia em francês, italiano, espanhol, inglês e, por imposição, em português. Em casa, todos sabíamos do rumor que cercava o velho. Cidade pequena, a privacidade

era

um

direito

extorquido.

Até

hoje.

Preguiçoso,

amalucado, o vetusto carteiro que, ao invés de entregar cartas, visitava as

árvores

sombrosas

e

esquecia-se,

abismado

em

palavras.

Algarobeiras, juazeiros, quaresmeiras, umbuzeiros, cássias, diziam, onde quer que houvesse sombra e vento, Lourenço agachava-se, abria um livro e todo o dia transcorria. Este retorno, sem avós e tios, o vazio na sala desta mesma casa, renovada, um profundo mau gosto, almofadas de croché, tamboretes, vasos cerâmicos... entulhados, cobertos de bosta de mosca, no quarto do muro. Um modo de fazer pretérito perfeito a dor do vazio? Meus pais riscam as paredes, dão-lhes novos contornos, retiram o balcão da cozinha outrora pequena, despejam em caixas lacradas os portaretratos antigos - e, no entanto, o silêncio da casa não dura muito.

8


Vozes além, batidas de portas, o mesmo número de xícaras à mesa - os mortos não morrem.

- Ande, vê isto! - aponta-me meu avô. Um livro pequeno, capa dura, folhas um tanto amarelecidas. Vidas secas. Inicio, logo soube, num caminho sem volta. Descerro-lhe, folheio sentindo o cheiro do pó envelhecido, a tristura das traças premidas. Precisava chegar, não sabia onde, sublinho a frase da página dez. Até hoje, perseguido por ela, confrontado pelo revérbero de suas palavras. Meu pai arreliava, deixa o menino longe dessas tolices, daqui a pouco estará bestando como o senhor. Lourenço dava de ombros, comentava comigo sobre livros vários, ajudava-me a prosseguir diante do esbarrão em alguma palavra e, vez ou outra, acendia o cigarro e me narrava estórias confusas, deliciosas. Mais que em meus irmãos, notou que eu tomava gosto pela coisa, vivia a perguntar em que página eu estava, anunciava o próximo título, e eu seguia, azafamado, impaciente para ter capa de outra cor nas mãos. Este quarto de paredes comidas pelo sal da terra, no extremo da casa, desenha o traçado de um mausoléu falto de corpo, impenetrável pelos moradores da casa, couraçado, suportando os ventos cálidos e frios, raios de sol, chuvas, abalos sísmicos, traças e cupins - roedores do tempo. A porta, emperrada, lança um gemido arranhado, preguiçoso, acostumada nessa posição oclusa desde a mudança da vida dos mortos. Primeiro meu vô, seus livros, discos enormes e suas folhas preenchidas por anotações confusas. Depois dona Letícia, cansada da resignação em manter-se viva quando todos os seus contemporâneos, os que ouviam as canções da era áurea do rádio já haviam transcendido, orou a Deus, lembrou-lhe o esquecimento e rogou fosse desfeito esse grande disparate. Máquinas de costura, rolos de linha,

9


bordados inacabados, óculos arredondados - desdobramentos do que foi, reunidos com as palavras emprestadas e próprias do velho Lourenço. O interruptor aciona, inflama uma luz amarela. Teias de aranha pousam sobre objetos, dividem espaço com os mortos da casa, suas vidas de falecidos. Círculos de madeiras, os quais nos serviam de volantes de carros imaginativos, um prego ao meio, triunfam ante térmites contumazes. Com estes fiapos orbiculares, viajávamos, eu e meus irmãos, engendrando países desconhecidos, dando-lhes nomes fantásticos, rompendo limites e barreiras; pelo retrovisor, a mãe nos chamava, devolvia-nos ao terreiro da casa, ao chão esburacado - o som do cacarejar das galinhas retornava como prenúncio de vidas impossibilitadas, ladeadas por quintal pequeno, destituídas de pés alforriados: nossos voos, asas tosquiadas, todos rasantes. Inalo o pó do móvel - meu corpo dele repleto, modelado por ele , avisto resíduos de Lourenço, a sujidade desenhando os contornos de seu rosto mordaz, sarcástico. Ouço a sua voz grave, alentadora. - O que te tornaras, meu rapaz? Tartamudeio. Não há palavra a devolver, relutando ante a possibilidade de fantasiar outra vida que não esta, medíocre, pequena, inexpressiva. - Dos livros que eu te dei, todas aquelas brochuras de capa dura, as palavras, frases, parágrafos, o que é feito de tudo isso em ti? Um espelho miúdo, moldura alaranjada, reverbera o meu rosto pálido. De meus braços escorre suor lodoso, as mãos tiritam, um frio particular se assoma num único ponto deste Sertão, esquecido por todos e por mim carregado. - Teu pai triunfara? Os bestas da família, suas insignificâncias ornando as casas, te fizeram doutor, arco de bacharel no dedo? A voz se oculta, vai sem resposta. Um apelo, penso, à reflexão vagarosa, ao propósito alcançado e à bravura de desertar do que não é vida. Mesmo ele, pondero, a matéria esvaecida, vive e desafia os que

10


vivem. Mesmo ele. Não fora ele que, servindo-se da boca de Débora, dissera-me aquelas palavras, aquela frase cortada por vírgula que me constrangera e, no entanto, enlevara-me? Tresvario? - indago a mim mesmo. Sei que a resposta, dentre as duas possibilidades, representará fuga deliberada, consentida. Caligem: os olhos selados pelo negrume movediço. Longe, retine um choro de criança que, abrupto, silencia - a morte, assim tão cedo?

BRENO S. AMORIM (Petrolina, 1992). É piauiense, igualmente. Tem algo de Kafka, Graciliano, Beckett e Osman. O talento, não. Algo. Lê muito mais do que escreve. Sabe que a palavra confunde, desarranja o silêncio. Tudo o mais carece importância. | BRENO23_@HOTMAIL.COM

11


CARTA PARA MEU AMOR DISTANTE EDSON AMARO | São Gonçalo, RJ.

12


Como Penélope amou Ulisses, Aquele desejo que transpunha os mares Em noites de gulosa saudade e solidão pontiaguda, Amo-te com afeto que atravessa A minguante Mata Atlântica e o deserto crescente no sertão: Meu amor pisa o território do semiárido – Fronteira móvel da caatinga que esperneia para não ser Saara – E vagueia pelas ruas e praças de João Pessoa Como a Sulamita nos becos de Jerusalém E pergunta aos repentistas e aos estudantes: – Viram meu amado? (Não repetirá o erro da Sulamita e passará longe dos guardas: Para quê perguntar pelo amor A quem aluga seu braço à violência do Estado?) Meu amor chove versos – às vezes com metro Mas em dias de urgência corre livre. Quando quando quando Nosso umbigos e lábios, Nossas barbas e hálitos, Nossos dedos e línguas Entrelaçados e livres? Quando, meu amor, nossos rostos juntos Sobre o mesmo livro de Mia Couto?

EDSON AMARO publicou pela editora Buriti sua tradução do romance “Valperga”, de Mary Shelley. | PLANTEARVORES2@GMAIL.COM

13


INVOCAÇÃO

GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS | Oliveira, MG.

14


Quede meu clamor às tágides? O poeta subiu na pedra-beira-mar e começou a fisgar palavras: ó peixes, são poucos os ouvintes; ó peixes, são poucos os leitores; ó peixes, são poucos os versos. Veio de Arimino o ensino, mas ando tão cético que nem por estilo clamo. Aba, aba... chega a mim, ó vocábulo sai do mar e tempera este silêncio fingido.

GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS é de Morro do Ferro (Oliveira, Minas Gerais). Aluno de graduação em Direito na Universidade Federal de Lavras- UFLA. Em 2014, por escrever o poema "Saudade sem métrica", foi premiado no Concurso Literário promovido pela Academia Madureirense de Letras. Desde criança Giovane demonstrou gosto pela leitura e escrita. | GIOVANESANTOS@GMAIL.COM

15


DESPOSSUÍDO

GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.

16


Não se sabia ao certo se isso era dos procedimentos, mas, certamente, era por obediência a alguma norma geral, que se viu deixando sempre o rosto na entrada do prédio. Por pudor, pelo corredor, ia também abandonando o nome. O corpo só não saía todo de si porque era impossível. Mas até chegar ao seu posto abstraía-o de algum modo. Vivia, dentro do dia, por outro organismo, que não era desprovido de olhos, apesar dos movimentos cegos. E os tais olhos, uns dos outros, geravam olhares direcionados a algo que nunca eram eles mesmos, embora fossem sempre flagrados. Lá dentro, e dentro do tempo, esburacavam-se transpassados por esses olhares. Assim, encarnados como fantasmas, toda a vontade, mesmo a fome, era saciada por uma boca e um estômago alheios, era saciada por dentro de alguma coisa além, esmaecendo o gosto, como se saciando organismo outrem. Embora o espaço encolhesse por alguma força de gravidade, o tempo se alargava, e o rosto, deixado na portaria, evanescia, pelo relaxar dos movimentos, a cada saída, de cada dia; quase ficando transparente pela rua. E o nome, que caía, aos pedacinhos, já ficava sem lugar a salvo. Foi por isso que, certo dia, a caminho de casa, tomou um susto quando alguém, trazendo-lhe o seu nome na boca, pediu-lhe uma opinião. Espantou-se de se lembrar que existia ali no corpo que ocupava. E sentiu medo de surgir, assim, não se sabe de onde. No prédio, depois de não ter bem certeza se o pássaro que havia pousado na janela o enxergava lá dentro, ou

se

era algo,

independente dele, que dialogava com aquele pássaro, passou alguns dias olhando para fora, absorto, sem a intenção daquela subversão, que no fim, após se recompor prontamente, não soube se fora notada.

17


Policiou-se,

então,

pelos

dias

que

iam

se

acumulando,

desassossegadamente, confundindo-se uns nos outros, até que, não se sabe em qual deles, diante do olhar fixo de alguém, calou-se em um espanto maior. Mais do que não ser um espaço ocupado por si, tentou, ele mesmo, se sentir ali, diante daquele olhar, e não conseguia. Era esquisito não poder saber sequer de onde estava olhando aquilo acontecer. E mesmo olhando, simplesmente não saber o que ocupava aquele espaço onde deveria estar o seu corpo. Mesmo assim, sem si, ainda lhe preenchia, de onde não estava e de

onde

deveria

estar,

um

medo,

no

último

segundo,

um

pressentimento súbito, quando, de si mesmo, de uma vez por todas, escapuliu. Sumiu. E não sentiu mais nada além desse susto, o coração aos pulos, atônito, por infinitos segundos, até que de novo emergiu para o lugar em que, como há pouco temia, e agora tremia, quase se perdia.

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou os contos “Meu velho” e “O homem com cabeça de urubu”, na Revista Subversa, textos que fazem parte, respectivamente, do primeiro e segundo volumes impressos. Escreve na Fanpage: Manuscritos. | GLAUBER.COSTA@HOTMAIL.COM

18


AVÓ LILIAN ALMEIDA | Salvador, BA.

19


Graça, tenha cuidado ao limpar essa cadeira. Ela tem muito tempo, não sei se consigo repor as tiras caso alguma delas se rompa, falou, parada na porta da cozinha. A senhora gosta mesmo dela, é? Não combina muito com os móveis da sala, é velha. A senhora não acha? Não. Minha casa tem espaços vivos e a sala só tem vida por causa dessa cadeira de balanço. Desculpe, dona Maembi, não quis ofender não. Ela foi de sua avó, né? Exatamente por isso. No canto da sala, ao lado da porta de vidro que separava a varanda, a cadeira de ferro e tiras plásticas da avó Dejanira balançava. O abajur em pedestal iluminava a memória das linhas do crochê da avó, quando ela estava lá para contar histórias como quem acrescentava novos pontos no bordado que fazia. Maembi costumava sentar-se ao lado da avó, no sofá em frente à televisão. A cadeira ficava ali, como se mantivesse a avó a fazer crochê e ponto cruz. Voltou para o escritório, irritada com a impertinência da diarista. Esse povo não tem o menor tato ou bom senso, alinhavava ruminações. Onde já se viu, dizer que um objeto da patroa é velho? O texto aberto na tela do computador. Preciso fechar logo essa matéria para o jornal. A postura da mulher me deixa indignada. Acreditar que o seu crime foi nascer mulher pra fulaninho chegar, assediar, estuprar e tudo o mais. É um absurdo! Saiu novamente do escritório. Esqueceu de beber água depois da irritação com a diarista por causa da cadeira. Cruzou o corredor que ligava o escritório à sala. Chegou à cozinha remoendo a sujeição da vítima.

Isso é culpa desse sistema filho de um puto, que faz as

mulheres se sentirem culpadas por existir, para se desonerar da responsabilidade de apurar os atos contra a vida e a integridade física da mulher. É uma porra mesmo essa sociedade em que a gente vive, Graça. Dizia, indignada, para a diarista. Não entendi direito, dona Maembi, o que é mesmo desonerando? E por que a senhora tá assim, transtornada? Sentou-se no sofá como se retomasse o fôlego e a

20


calma. Desonerando é o mesmo que desobrigar, dispensar, Graça. O jornal entrevistou a moça que foi estuprada no estacionamento da faculdade, se lembra? Sim, me lembro. Pois então, ela diz que a culpa foi dela por ter nascido mulher. Vê se pode? Isso desonera o estuprador, tira a responsabilidade dele. Mas é, dona Maembi, eu mesma já disse pra Deus que na outra encarnação quero ser homem. Mas será o Benedito? Benedito ou não eu quero é ser homem, dona Maembi. Ela olhou desolada para a diarista. Não sabia o que estava dizendo, embora soubesse. Graça, tudo isso é responsabilidade da sociedade machista em que a gente vive. Ela faz a gente se sentir culpada por tudo, até por existir. A responsabilidade do estupro é do estuprador, ele é o criminoso, deve responder pelo seu crime. A moça não deve sentir culpa, não tem responsabilidade nisso, é vítima. É, dona Maembi, pode até ser, mas o certo é que mulher sofre e não é pouco. E mais, a gente é um ser acanhado, se encolhe por um tudo, e numa situação dessas só quer sumir. Olhou atentamente para a diarista, aquela fala era familiar. Mirou a cadeira de balanço. Era assim que a avó dizia: “a vida, minha filha, diz que é pra gente viver encolhida, mas eu acho que não”. Lá, onde a avó se criou, faltava quase tudo. O regime, como ela dizia, era de guerra. Guerra por sobrevivência. Acordar de manhã era vitória adiada pra de novo lutar. Não faltava pescado e farinha, mandioca dava e a maré não desampara filho seu. O resto, raridade. Seca no chão, sol na pele. Menina, lidava com a mãe na plantação em volta da casa, na maré, quando iam buscar o de comer, e nas coisas de casa. Da casa pra maré, da maré pra casa. E escola, vó, não tinha? Tinha. Não pra menina-mulher, era só pra menino-homem. Os meninos botavam água do poço pra casa, cuidavam dos animais do patrão, galinha, porco, boi, o que tivesse na sobrevivência. De tarde, iam pra escola. Eu ficava com mãe, cosia as roupas furadas no trabalho da roça, se tinha mandioca trabalhava na casa de farinha de seu Tonho, se não, era na maré ou em casa mesmo. Às vezes fazia roupa pras

21


bonecas de milhoo e brincava de fazenda com os ossinhos de galinha. Ah, filha, eu era uma fazendeira bem rica, tinha um rebanho de boi, grande e gordo, ou então era dona de uma terra que tinha um rio no fundo da casa. Era uma fartura o meu sonho de menina. De noite, eu via os meninos fazerem a lição da escola. Eu ficava de junto, olhando e querendo entender aquilo que eles botavam no papel. Meu pai dizia que não, escola não era pra menina. Escola era pra estufar o peito dos meninos e eles saberem lidar no comércio. Pra quê menina ia precisar disso? Tinha que ficar como era, pequena, minguada. Queria se estender pra quê? Mulher era pra ser miúda, homem pra ser grande. Aquilo me cortava por dentro. Eu calava, mas no fundo de mim eu sentia que queria ser grande. Essa correntinha em cima da mesa, coloco onde? Maembi sobressaltou-se com a voz de Graça. Desculpe, não queria assustar a senhora. Tudo bem. É a correntinha de minha vó Deja. Diala me deu depois de anos guardando a corrente de vó. Agora ela ficará comigo. Parece que a senhora gosta muito dessa avó, né? É. Lembrou-se da impertinência da diarista. Coloque em cima da minha cama. Gosto muito, gosto tanto que acabei de conversar com ela. Vixe, dona Maembi. Ela não é morta? É sim. E você duvida? Deus é mais. Eu, hein.

LILIAN ALMEIDA publicou seu primeiro livro em 2014, Todas as cartas de amor (Quarteto, 2014, ficção). Participa do livro Além dos quartos: coletânea erótica negra Louva Deusas (2015). Publica poemas, contos e crônicas no blog lirioalmeida.wordpress.com

22


Raimundo. É artísta plástico e teve sua apresentação de pinturas publicadas pela Revista Germina.

LOECY ROSA DAMÁSIO | Porto Alegre, RS.

23

INÊS


Claro que morava ali. 221b, Baker Street, revisou o endereço inúmeras vezes, ainda ontem estivera em Adventure’s Kingdom Amusement Park, deixara Inês ali, na calçada, era quase meia-noite, a torre do clock, não, a torre do relógio, isso mesmo, a torre do relógio anunciara, era quase meia-noite, deixara Inês ali, encontraram-se no Café Royal, na 68 Regent Street, bebera cappuccino, ela, chocolate quente, discutiram sobre The lost world, riram, atravessaram Hall of lights, Inês adorava aquele túnel, não, Inês adora aquele túnel. Claro que morava ali. 221b, Baker Street, como assim não?, revisou o endereço inúmeras vezes, ainda ontem estivera ali, Inês também, deixara Inês ali, bem ali, claro que morava ali, foram ao The Majestic , assistira ao Show de Trumam, comentara

com

Inês

sobre

a

verossimilhança...

Oh,

sim,

a

verossimilhança... Inês e o velho Trumam... (Pensou um pouco). “Senhor, acompanhe-me, please”. O que? Mas deixara Inês ali, era quase meianoite, the tower relógio anunciara, os números não se embaralhavam como as letras, sabia contar o tempo, foi ainda ontem, deixara Inês ali, estiveram em Adventure’s Reino Amusement Park, dera-lhe um beijo, oh, o primeiro beijo!, atravessaram House of lights, combinaram de se encontrar na, não, wait!, atravessaram Hall of lights, combinaram de se encontrar em Somewhen Avenue para visitar a Gallery of the Wizards, até cancelou o trem das 9:00 a.m., o ticket ainda estava no bolso, não, wait!, onde está o ticket?, “Senhor, please”, mas estava bem ali, pusera no bolso, logo depois de combinar com Inês, visitariam Gallery of the Wizards, na Somewhen Street, passara o dia inteiro no Adventure’s Kingdom Amusement Park, estavam fechados hoje, na primeira vez em que voltara, errara o endereço, ficara estagnado, surpreendido, em frente ao Boulevard, como pudera confundir um shopping com o parque?!, pareceu engraçado agora, “Senhor, estou perdendo a paciência”, (transeuntes curiosos na saída do museu, olham-no de esguelha), “Senhor”, só um minuto, deixara Inês ali, combinaram de visitar Gallery of the Wizards amanhã, até cancelou o trem das 9:00

24


a.m., hoje? Oh, sim, o ticket!, pusera no bolso, wait! No bolso de Inês?! Oh, sim!, no bolso de... Oh... (olhar escuro anoitecendo as pupilas pretas), esquecera no bolso de Inês, ela atravessara a calçada, foi ainda ontem, aqueles bondes fora dos trilhos, que romântico!, diria Inês, aqueles bondes... Deixara Inês ali, bem ali, na calçada, “Senhor, vamos”, (mãos nos ombros guiando à força seus passos, a cabeça voltada para trás), foi ainda ontem, morava ali, claro que morava ali, 221b, Baker Street, nunca mais vira bondes, Adventure’s Kingdom Amusement Park passara a ser chamado de Boulevard, mas ainda dera o primeiro beijo em Inês lá, então why? Inês atravessou a calçada, mas não entregara-lhe o ticket, mas why?, nem precisaria dele mais, cancelara o trem das 9:00 a.m., combinaram de visitar Gallery of the Wizards, na Somewhen Street,

ainda ontem, quando a deixara ali,

tower do relógio, não.. ah, confusão!, os ponteiros embaralharam também os números?, foi ainda ontem, antes de Inês atravessar a calçada por um trem que não partira, “encontrei-o lá, again”, (jovem aturdida na porta), agora atravessava Hall of lights

sem trilhos, era

quase meia-noite, deixara Inês ali, claro que morava lá. 221b, Baker Street. Deixara Inês lá, revisou inúmeras... Claro que mora ali.

LOECY ROSA DAMÁSIO é formada em Letras [Licenciatura em Língua Portuguesa e respectivas Literaturas] pela PUCRS [Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul]. Pesquisadora em Teoria Literária e Escrita Criativa. Ex-integrante do grupo musical RimaQ’Age, em Campinas-SP. Administra o site: loecydamasio.wixsite.com/libreto

25


O PORTAL DAS ÁGUAS RÂNDYNA DA CUNHA| Brasília, DF.

26


“Se Deus quiser.”, a irmã dizia. “Se Deus quiser é uma conversa. Há de ser e é logo!”, ela pensava. Se encafifava com uma coisa, nem Deus tirava. Quando criança, ouvia com atenção a avó contando histórias de alma penada e visagens. Sentia medo, acreditava em tudo, afinal avó não mente, é mulher sábia que já viveu mais que toda gente. Juntava aquela ruma de gente em volta da avó e ela ia desalinhavando o bordado dos mistérios sertanejos. A vó era tão certeira que até adulto estremecia com suas narrações. De toda a coletânea de histórias, havia uma que foi guardada para sempre: Mãe d’Água. A vó contava que essa era má com os homens, estropiando o coração e pinto deles. Principalmente, cabra safado, jovem e galanteador, desses que ficam por aí mexendo com as moças e envergonhando as famílias, do tipo que faz mal às moças, tirando sua honra e virando as costas. Mãe d’Água ficava à espera, na beira do rio, quando sentia a aproximação do rapaz, começava a cantar e ele vinha, pouco a pouco. Ela se mostrava uma linda índia, viçosa e de riso doce, puro encantamento mágico. Na verdade, ela era uma entidade de outro mundo, feia de doer. Aliás, feia seria injustiça, sua pele era feita de escamas e placas, meio cobra, meio jacaré. Os dentes eram afiados, como os de uma onça. Nas mãos, longas garras que enfiava nas suas vítimas. Sua voz era o próprio silvo da serpente. A cara ninguém conseguia descrever, diziam ser o demo em forma de gente. Enquanto caminhava mata a dentro, em busca do lugar em que a avó dizia que a besta-fera aparecia, mesclava seus pensamentos, ia matutando, entre as memórias antigas e as falas da irmã: “Se Deus quiser.”. A avó contava que Mãe d’Água era generosa com as mulheres honradas, que com uma pequena troca poderia dar o céu a quem se aventurasse a procurá-la. Não era do céu que Maraléia precisava. Queria um filho, precisava de um, ou o marido arribaria no mundo, em busca de mulher que prestasse. Ela já havia feito de tudo, rezou para

27


todos os santos que conhecia, firmou promessa, fez doação pro menino Jesus, foi à benzedeira, tomou garrafada, se mergulhou em banhos de ervas ao luar, ficou de ponta à cabeça e nada. O médico dizia que estava tudo normal nos resultados dos exames, a mãe dizia que era pisada por cima de rastro de cobra velha. Mulher que pisa em cima de rastro de cobra velha fica seca, perde o uso do ventre. Então, a mulher se enveredou pelo mato. Queria saber de nada, não se importava com gente ruim ou visagem. Queria era falar com Mãe d’Água e fazer uma troca. Após longa caminhada, chegou à beira do rio, já passava das dez horas da noite, os únicos sons ali presentes eram os sons da mata e somente estes eram suficientes para lhe pôr medo até a alma, mas queria saber de medo não, queria um filho. A avó dizia que ela aparecia por entre a queda da pequena cachoeira, a cortina de água se abria como um portal, no momento em que ela saía, e por isso, aquele lugar era chamado Portal das águas. Maraléia não sabia se ela vinha, mas precisava ser firme, esperou por horas a fio e nada de Mãe d’Água. Estava prestes a ir embora, quando lembrou que na história que sua vó contava, a entidade cantava para atrair suas vítimas e se fosse ela a cantar para atrair a bicha? Começou a cantar, cantigas de roda, que ouvia cantarem para niná-la, nos tempos de criança. Cantou uma e nada. Não desistiu. Cantou outra. Começou a sentir um vento gelado cortando pelas suas costas. Cantou a terceira. A água da cachoeira começou a parar de correr, ficou inerte, como se fosse uma pintura, fez uma cortina de água. De repente, a cortina se abriu, bem no meio e uma coisa saiu. A marmota colocou para fora primeiro a cabeça, olhou para os dois lados, espreitando com um olhar cortante, caçando quem é que lhe atraía. Depois puxou o resto do corpo, cheio de escamas e viscosidade. Fustigou Maraléia com os olhos vermelhos, arreganhou os dentes escurecidos e posicionou as garras, foi chegando perto assim, em jeito de luta. Bufava e silvava. Pronto. Ia matá-la. “Antes morrer que viver de

28


ventre seco”, a mulher pensava. A coisa fedia. Era o diacho mesmo! Só poderia ser, em carne e osso, vivinho e em posição de ataque. - Quem é você? – a coisa falava bem pertinho do rosto de Maraléia.. A resposta saiu, quase inaudível, porque faltava força para encarar aquele bicho. - Sou Mara. – respondeu sem encarar o bicho, olhando para o chão. - E o que você quer? – perguntava interessada. - Vim pedir uma troca. – a voz saía baixa, mas era firme. Mãe d’Água gargalhou, levantou o queixo da mulher, olhou bem no fundo dos seus olhos e perguntou: - E como você tem coragem de vir me procurar para uma troca sem trazer nada para trocar? Terá que pagar com a vida. – a entidade disse preparando-se para o golpe certeiro. Maraléia levantou os braços em súplica. - Espera! Por favor! Lhe dou o que me pedir. Basta pedir. Neste momento, a coisa refreou sua investida e interessada perguntou: - E o que é que você quer, minha criança? - Eu quero um filho. – ela implorou com a voz embargada. Mãe d’Água olhou para a barriga da miúda mulher. Pôs suas mãos sobre o abdômen dela, como que em busca de algo. Ficou assim por uns minutos, então, disse: - Este problema não é seu. É seu marido quem não pode. Você quer assim mesmo? Maraléia assentiu com a cabeça, cheia de esperança em seus olhos e emocionada por saber que não era o ventre dela o problema. - Tudo tem um preço. – a entidade se afastou e fez pose de quem ia discursar – Posso fazer seu marido te dar um filho. Aliás, um não, vários! E pelo que vejo, isso te anima muito, há brilho em seu olhar, minha

29


criança. Mas para isso é necessário curá-lo e só há uma forma de fazer isso. - E qual é? – a mulher perguntou esperançosa. - Tenho que me deitar com ele. Assim ele se cura e depois de nove meses ele estará pronto para te dar um filho. - Mas, senhora, como poderá deitar com ele, sem matá-lo? Eu o amo. Quero que ele morra não. – agora suas palavras eram de súplica comedida. - Eu mato conforme quero. Alguns eu já deixei ir. Como vocês saberiam sobre mim se eu matasse todos? Os que me agradam e têm bom coração eu deixo ir. Seu marido é desses de bom coração. E eu tenho que pensar em mim também. Ando só, não vejo mais ninguém. As pessoas não passam mais por aqui. Te dou o que você quer, mas você tem que me dar também o que quero. E ela sibilava, olhando para Maraléia, como que aguardando o aval. Seu olhar era malicioso. Naquele momento, a mulher não pensou nas intenções, era seu sonho, carregar um filho nos braços. Estava em dúvida, mas seguia tentada. - É o preço. Tudo tem seu preço. Eu me deito com ele e ele te dá um filho. Após nove meses será um homem pronto para engravidar qualquer uma. Quanto você quer ter um filho? - Muito. Muito. - Quanto pagaria? - Daria todas as terras que herdei de meu pai. – ela disse com empolgação. - Este é o preço. Nem barato, nem caro, justo. Maraléia fechou o acordo. Ficou combinado que na noite seguinte deixaria um copo com água no sereno. De manhã cedo, sem que o marido visse, guardaria esta água. Na terceira lua nova, dali em diante, daria dessa água para o marido beber e iria dormir na casa da irmã. Mãe d’Água se enfiaria pelas cobertas quando o homem

30


dormisse, ele acharia que era a esposa e ali ela o curaria. E assim foi feito. O homem nada percebeu. De manhã cedo, a esposa chegou e ele ainda dormia, ela se enfiou pelas cobertas e, quando ele acordou, achou que tivesse dormido com ela a noite toda. Mãe d’Água mandou que Mara esperasse nove meses para ver sua primeira gravidez. E assim foi. Completos os nove meses, suas regras sumiram. Estava grávida. Teve festa, o marido mandou matar um boi, convidou a cidade toda, tomou pinga até rir mole. Dormiram felizes e satisfeitos, após a festança. O marido sonhando com um filho macho, a mulher sonhando com vários filhos. No outro dia, Maraléia caminhava pela casa, limpando ali, ajeitando aqui. Ouviu um barulho na porta, barulho de gato novo. Ao abrir a porta, deparou-se com um bebê, deitadinho, no chão, em cima de um cueiro. Era recém-nascido. Tratou de aninhá-lo nos braços. Apaixonou-se. Todos se apaixonaram. E foi este o primeiro filho do casal, enquanto o outro crescia no ventre. Dizem as pessoas que, quando Mara não está vendo, os olhos do menino ficam vermelhos e maldosos como do bicho ruim e ele sibila como cobra cascavel acuada, deixando arrepiado dos pés à cabeça, quem estiver por perto.

RÂNDYNA DA CUNHA (Brasília, 1983) é graduada em Letras e Direito pela Universidade Católica de Brasília. Colunista na página “A Soma de Todos os Afetos” e na Revista Eletrônica "A Empreendedora". Tem contos publicados em revistas literárias brasileiras, como Philos, Avessa e Subversa. Foi selecionada no IX Concurso Literário de Presidente Prudente. Participou da antologia Folclore Nacional: Contos Regionalistas da Editora Illuminare e das coletâneas literárias Vendetta e Tratado Oculto do Horror, da Andross Editora. | RANDYNAPAULA@GMAIL.COM

31


PROVÉRBIOS RODRIGO DO PRADO BITTENCOURT

| Coimbra, Portugal.

32


Rafael Lopes dos Santos é jovem, tem vinte e quatro anos, operário, paulista, negro, morador de Paraisópolis, casado, pai de três filhos, sem posicionamento político definido, católico não praticante e corintiano. Todo dia, Rafael se levanta às quatro da manhã para ir trabalhar numa fábrica de papelão, em Santo Amaro. Ele trabalha há seis anos nesta fábrica, sempre na produção. Ganha pouco, mas sua esposa também contribui com algo para pagar as despesas e com a ajuda dela, que trabalha como operadora de telemarketing, os dois vão vivendo. Rafael cresceu em Paraisópolis e todos seus amigos são ou de lá ou da fábrica. Sua esposa é de lá. Ele vê muitos amigos da comunidade com uma vida semelhante à sua. Muitos reclamam. Ele não. Está sempre satisfeito; seu lema é “o que vier é três palitos”, indicando que aceita tudo de bom-humor, sem se agastar ou angustiar com coisa alguma. Os amigos mais ambiciosos acham Rafael um acomodado, que nunca vai vencer na vida. Com efeito, alguns de seus amigos de infância ou mesmo da fábrica estudaram e agora estão em empregos melhores. Outros abriram negócios próprios (um abriu uma oficina e outro uma pequena lanchonete), depois de trabalharem um tempo como empregados e agora estão ralando, mas pelo menos investiram em algo que é seu. O pessoal da fábrica que é do sindicato acha Rafael um alienado, alguém submisso que aceita ser explorado sem nunca questionar e que é prejudica a si, sua família e sua classe por esta atitude acomodada e passiva. Alguns dentre os amigos de Paraisópolis que fizeram faculdade pensam o mesmo de Rafael e gostariam de vêlo mais bem informado e mais questionador. Tantos os ambiciosos quanto estes mais críticos, embora por motivos completamente diferentes, gostariam que Rafael tivesse estudado mais. Ele nunca gostou de estudar, porém, e só o fez

33


enquanto foi obrigado. Quando adolescente, seu pai o pôs para trabalhar como empacotador num supermercado. Depois que ele fez dezoito anos, apareceu a oportunidade – ou maldição? – de ingressar no Exército. Rafael foi convocado a servir e quando seu pai lhe perguntou se ele gostaria de servir, Rafael disse que não sabia o que queria e emendou com a já referida frase que se tornaria, dali pra frente, seu mantra: “o que vier é três palitos”. Ainda no quartel, ele começou a namorar sua esposa, Jaqueline, que na época tinha quinze anos. No mesmo ano, ela engravidou. Ele a conhecia de vista de Paraisópolis, mas tudo começou numa festa: Rafael estava com um amigo que estava interessado na amiga de Jaqueline e o chamou para juntos se aproximarem das meninas e puxar conversa. O amigo, apelidado de Tota, perguntou-lhe se ele estaria disposto a ficar com alguma menina e Rafael disse que, para ele, qualquer uma estava bom. “O que não mata, engorda”, disse ele brincando. Foi com este entusiasmo que começou o grande amor da vida de Rafael e foi com este mesmo entusiasmo que ele deixou a cargo de Jaqueline a decisão entre abortar ou não: “Você quem sabe”, disse ele. Ela ficou morrendo de raiva diante do que ela interpretou como o mais absurdo descaso e irresponsabilidade e mesmo rompeu com ele por uns três meses. Só voltaram porque o pai de Rafael, Sr. Oswaldo, homem muito bravo, obrigou o filho a “resolver a situação e assumir a cagada”. Foi um casamento forçado também pelos pais dela, mas Rafael não se importou: se ela não era linda, também não era feia e tinha lá suas qualidades. Assim, Rafael e Jaqueline foram morar juntos num barraco em Paraisópolis mesmo e assim começou a vida a dois. Precisando de emprego urgentemente para sustentar a nova família, Rafael aceitou o cargo com mais baixo salário numa fábrica em Santo Amaro, uma das que oferecem o pior salário da Grande São Paulo. Quando lhe

34


perguntam do emprego, porém, e se ele pensa em trabalhar em outra empresa ou mesmo mudar de profissão, Rafael sempre responde: “Tanto faz. Trabalho onde der. O importante é trabalhar” e logo emenda com o provérbio “mais vale pingar que secar.” O tempo foi passando e alguns colegas que começaram junto com ele chegaram a “supervisor”, Rafael nunca conseguiu ascender. Ao contrário, quando os chefes precisaram transferir alguns funcionários de um setor mais tranquilo para o pior da fábrica – mais barulhento, perigoso e estafante – escolheram justamente os mais passivos, aqueles que não reclamariam. Rafael era, dentre os transferidos, o com mais tempo de firma. O pior é que teve gente com menos tempo que ele e que conseguiu se manter no setor desejado, enquanto ele foi transferido. Os colegas, ao verem isso, caíram matando: chamaram-no dos mais diversos apelidos, como “cagão”, “bundão”, “cabaço”, “mulher de malandro”... Rafael só sorria. Não guardava raiva de ninguém. Quanto mais o humilhavam e perseguiam, mais ele sorria. Até que alguns começaram a ficar com dó e pararam de zoar; o que não impediu outros de continuarem com a gozação. Ainda assim, sua postura sempre pacata e amigável sempre lhe trouxe mais amigos que inimigos e garantiu uma boa convivência mesmo com as pessoas mais difíceis. Os encarregados gostavam disso, pois sabiam que poderiam colocar qualquer um para trabalhar com ele, sem ouvir reclamações. Um dos melhores amigos de Rafael na fábrica um dia, no refeitório, lhe chamou a atenção por ser tão passivo e bonzinho. Rafael ouviu tudo, sem se perturbar, e disse que tentaria prestar mais atenção nas coisas para não deixar isso acontecer de novo. O amigo, porém, percebeu que ele falava da boca pra fora, pra agradá-lo, e que nunca faria nada que desafiasse os chefes. Rafael era incapaz mesmo de pedir, submisso e humilde. Não tinha coragem: deixava tudo acontecer e seguir o curso natural das coisas. “Pra que nadar contra a corrente?”, dizia.

35


Fato é que, estivesse ele certo ou não, quando veio um período de crise forte, muitos foram demitidos e Rafael fiou. Seja pela dificuldade de encontrar alguém que aceitasse trabalhar naquele setor tão ruim por um salário tão baixo ou pelo fato de que o tempo de serviço que ele tinha significaria um custo alto de demissão, ele permaneceu. É verdade que a demissão até que fez bem para alguns, como o amigo que montou a lanchonete e outros que continuaram como empregados, mas em empresas que pagam melhor. De todo jeito, Rafael optou por deixar o rio seguir seu curso natural e, mais uma vez, não fez nada. Nada além do que sempre fazia. Os outros filhos vieram. As despesas aumentaram e Jaqueline teve que colocar os filhos na creche mais e procurar emprego. Sem escolaridade e sem experiência, só conseguiu o de operadora de telemarketing: um emprego com pouca possibilidade de ascensão, desgastante e com péssimo salário. Para ela, isso foi uma derrota. Sentiu-se abalada e triste. Rafael não se importou. Poderia ele fazer algo? Não. Então... Rafael se lembrava do que dizia sua mãe: “o que não tem remédio, remediado está.” Nos anos de eleição, em meio às discussões políticas, Rafael nunca se metia. Nunca dizia em quem ia votar, respondendo sempre que estava ainda decidindo. Também nunca brigava por futebol ou religião. Dizia-se corintiano e católico, mas apenas para ser alguma coisa, apenas porque tinha que escolher alguma opção. Então escolheu as opções da maioria e de sua própria família. Não lhe perguntassem, porém, a escalação do Corinthians ou os dogmas da fé. Nem se lembrava de quando tinha ido à igreja pela última vez e nunca fora a um estádio. Jaqueline às vezes se zangava com esta atitude sempre calma do marido, mas deixava de brigar com ele quando percebia que ele se esforçava muito para fazer tudo direito e nunca dera motivos para ela reclamar: não era de beber, não saía com outras mulheres, ajudava

36


com os afazeres domésticos, dava a ela todo o dinheiro que recebia... Só não se podia contar com ele para dar bronca nos filhos. Rafael nunca soube repreendê-los com seriedade. Ainda assim, Jaqueline o considerava um bom marido e carinhoso. Na crise que alguns dos colegas de fábrica perderam emprego, Jaqueline também perdeu. As coisas ficaram difíceis, financeiramente, para o casal e isso acabou deixando-a frustrada e perdida. Sem saber o que fazer, a ela descontava tudo em Rafael, que calado ouvia suas reclamações, sem retrucar. Até que um dia, ela gritou com ele, pedindo para que ele reagisse, que brigasse com ela, que fosse “homem, uma vez na vida”. As crianças choraram; Jaqueline chorou. Rafael ficou sem reação. Esperou que ela se acalmasse, atônito: mais surpreso que magoado. Ela veio abraçá-lo e pedir desculpas e tudo ficou bem. O stress era grande, porém, e os dois estavam mesmo num grande aperto e nenhum deles sabia como fazer para sair das dívidas. Rafael sempre foi de fazer o máximo de horas-extras possível, mas neste período a fábrica já não estava chamando ninguém para fazer hora-extra. O que fazer? Jaqueline começou a trabalhar de manicure e faxineira sempre que podia, mas nem sempre aparecia serviço. O pai dela emprestoulhes um dinheiro e as coisas melhoraram um pouco. Ainda assim, não conseguiam passar o mês sem dever. Então, Rafael vendeu seu único bem, seu único luxo: a moto que eles tinham. Na verdade, ela servia mais à Jaqueline, que a usava quando trabalhava na empresa de telemarketing. Rafael sempre foi e voltou da fábrica de condução. Ainda assim, a moto era o xodó e o luxo de Rafael, que a pegava nos finais de semana para ir visitar os pais ou buscar pão. Ela pensava em manter a casa fora de dívidas por um bom tempo, consumindo aos poucos o dinheiro da moto. Rafael, porém, tinha outros planos: queria comprar um carrinho de cachorro-quente e trabalhar com isso após o expediente. O comedido e pacato Rafael,

37


pela primeira vez, queria ousar. Seguindo os conselhos de um amigo da fábrica, arriscaram, então: com parte do dinheiro compraram o carrinho e com outra parte compararam o material (salsicha, pão...). De dia, uma irmã de Jaqueline, mais nova que ela, cuidava das crianças enquanto ela vendia cachorro-quente. Quando Rafael chegava da fábrica, era ele que tomava o posto. No começo, não dava muito lucro. Aliás, nos primeiros dois meses deu mesmo é prejuízo. Rafael escolheu um ponto que tinha tudo para dar errado: não era perto de escola, faculdade... de nada! Mas justamente por isso é que não havia concorrente. Sendo o único, ele passou a vender relativamente bem. Afinal, podia não ser próximo de nenhum local para o qual as pessoas vão, mas era um local por onde elas passavam. O jeito pacato e calmo de Rafael ajudou a conquistar os fregueses: quem não gosta de ser atendido por alguém com um sorriso no rosto, sempre feliz? Com o tempo, valia mais a pena deixar a fábrica e ficar só com o carrinho e foi o que Rafael fez. Jaqueline estava grávida do quarto filho e não podia mais ajudar no carrinho como antes. Já que estava dando certo, ele pediu para ser mandado embora. Apesar de tanto tempo como um funcionário exemplar, a fábrica não aceitou demiti-lo. Ele teve que pedir conta, mas mesmo assim estava feliz. Afinal, o negócio ia bem. Assim, Rafael foi trabalhando com o carrinho de cachorroquente; mais uma vez Jaqueline engravidou e assim ficou a família, com cinco filhos (duas meninas e três meninos). Os anos se passaram e Rafael permaneceu sempre tranquilo, vendendo cachorro-quente e levando a vida. Perdoe-me, você esperava a história de um “self-made man”, que ficou rico vindo de baixo. Nem todos conseguem fazer isso. Aliás, nem todos o desejam. Rafael nunca se preocupou com isso. Também não é esta a história de um grande herói, que lutou e morreu por uma

38


causa. Rafael é alguém que simplesmente não quis ter grandes ambições na vida; quis apenas viver em paz consigo e com os outros. Sua história merece ser contada? Rafael quis apenas ser ele mesmo; por isso viveu fora de seu tempo. Viveu? Rafael soube sempre viver pequenininho. O certo é que ele nunca quis muito e nunca esperou muito da vida: “Quando a esmola é demais, o santo desconfia”.

RODRIGO DO PRADO BITTENCOURT cursou Ciências Sociais na USP, não conseguiu deixar a paixão pela Literatura de lado e acabou fazendo mestrado em Teoria e História Literária pela Unicamp; estudando Guimarães Rosa. Agora, estudo Eça de Queirós no doutoramento; na Universidade de Coimbra. Tem um conto publicado na Revista Crioula, da USP. Há outro, a sair, na Germina. | RODRIGOPBITTENCOURT@GMAIL.COM

39


ESCURIDÃO RONALDO CAMPELLO | Pelotas, RS.

40


O maldizer do verbo dos homens que irrompe a aurora que surge Ecos do passado que reverberam suas mentiras enfraquecendo seu deus A peste que na carne faz brotar o sangue o pus e a dor O corpo enfraquecido que fenece... A escuridão preenche sua alma Escondendo seus segredos, seus medos e sua dor. Em catedrais escuras onde os sinos dobram em silêncio Em teus lábios frios as palavras confortam o moribundo que sofre Entoando palavras vis com garra e vigor Em teus olhos vejo a paz que procuro Em tuas mãos repletas de sangue meu coração falece Vagueando triste e calma observa a queima dos corpos O mal se espalha nos véus da noite que lhe cobrem A escuridão serena que protege... A fé doentia eclipsada na estrela nova dos sóis

RONALDO CAMPELLO é pai, poeta, professor no magistério municipal e estadual no município de Pelotas – RS, mestrando em educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia IFSUL nesta mesma cidade, e graduando em Licenciatura em Geografia pela Universidade Federal de Pelotas – UFPEL. | RONALDO.CAMPELLO@HOTMAIL.COM

41


AFRO-DITE SABRINA DALBELO| Bento Gonçalves, RS.

42


afro-descendente acre-dite

SABRINA DALBELO é escritora de tudo um pouco. Mantém as páginas do Facebook “Se Tem Nome Existe” e “Pensamento Sem Moldura”, onde posta comumente on-line, sem revisão, logo que vem aquela coisa, tipo inspiração.

43


[CONTEÚDO EXTRA] NOTÍCIAS Festival Literário da Madeira Funchal, 14 a 19 de março. O Festival Literário da Madeira tem em 2017 o tema: Literatura e Webentre o medo e a liberdade. Para o festival, estão programados debates, concertos e sessões de autógrafos. A Conferência de Abertura “Haverá algo mais assustador do que o homem?” será realizada por Svetlana Alexievich, prêmio Nobel de 2015. Programa http://www.festivalliterariodamadeira.pt/pt

Encontro Iberoamericano de Poesia Inicia a 21 de março, o Encontro Iberoamericano de Poesia. O primeiro encontro que abre o programa do encontro conta com o escritores Rafael Courtoisie (Uruguai),

Jorge Reis Sá e Nuno Júdice (Portugal) e

Ozias Filho (Brasil) que ilustrou com fotografias do ensaio Quasinvisível o número de janeiro (2016) da Subversa. O evento ocorre no âmbito de Lisboa, Capital Iberomanerica da Cultura 2017. Programa http://casamericalatina.pt

44


Prêmio Oceanos O Oceano- Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em sua terceira edição amplia a abrangência, incluindo livros que foram publicados em versão impressa ou digital. O prêmio contempla 5 categorias: Poesia, Romance, Conto, Crônica e Dramaturgia. As inscrições decorrem de 3 de março a 30 de abril e todos os livros deverão ser inscritos em formato digital. Mais informações http://www.itaucultural.org.br/oceanos/2017/apresentacao

Prêmio Branquinho da Fonseca O Prêmio Branquinho da Fonseca é destinado a jovens escritores entre os (15 e os 30 anos) de literatura infantil e juvenil. As candidaturas devem ser apresentadas de 1 de março a 31 de maio. O prêmio será atribuído em duas modalidades: 

Obras de literatura para a infância

Obras de literatura para a juventude

Mais informações https://gulbenkian.pt/iniciativas/premios

45


Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

46


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.