Revista subversa vol 5 n 8 nov 2016

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SUBVERSA Vol. 5 | n.º 08|novembro de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração ANANDA KUHN

EDSON AMARO RONALDO CRUZ EBER S. CHAVES JOÃO VICTOR L. BELLAS ANTONIO DE MEDEIROS FRANCIELI BORGES MANDU HOLANDA RAPHAEL PAIVA PAULO ARCE FERNANDO MAROJA SILVEIRA


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 5 | n.º 08

© originalmente publicado em 15 de novembro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações ANANDA KUHN | SITE | FACEBOOK

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME cinco | NÚMERO 8 ANTONIO DE MEDEIROS | FLORES AZUIS | 05 EBER S. CHAVES | O SOLDADO MORIBUNDO| 10 EDSON AMARO| PETIÇÃO | 13 FERNANDO MAROJA SILVEIRA | PLACEBO| 16 FRANCIELI BORGES | EXOESCULTURAS | 19 JOÃO VICTOR L. BELLAS | CAMINHAR | 21 MANDU HOLANDA| FOTOGRAFIA| 23 PAULO ARCE | TERCETO DAS ONZE E MEIA | 26 RAPHAEL PAIVA | APARECIDA | 28 RONALDO CRUZ | A NOVELA DAS SETE NÃO É TÃO BANAL| 30

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EDITORIAL “Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse tecido – nessa textura – o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se dissolve a si própria nas secreções construtivas da sua teia”. Roland Barthes

Esta é a oitava parte do tecido que tem se constituído como Volume 5 da Subversa. Já falamos diversas vezes no prazer que sentimos em levar adiante esta ideia de um conjunto textual diversificado e experimental. A cada número publicado, não só uma série de elementos relacionados à edição se põe à prova. Como ocorre em toda a produção de literatura, há um entrelaçamento e uma dissolução constante entre os vários operários que fazem o texto, desde o momento do endereçamento até a apresentação do que foi escrito. Só há envio porque há alguém a quem se destina a obra e, nesse sentido, uma cadeia mais complexa se forma quando se publica um número literário com dez formas distintas de entrelaçamento e dissolução. A leitura e a escrita são sempre processos de desvio e retorno, ida e vinda através das quais a teia se forma. A citação foi retirada de O Prazer do Texto, obra ensaística de Barthes, e àqueles que nos acompanham nessa jornada sabem que até agora sempre falamos muito do prazer que temos em tecer a Subversa. Porém, assim como a aranha tem trabalho em tecer a sua teia, nós temos e também todos que colaboram com um fio para formar essa rede. Trabalhar com prazer é sempre um privilégio, mas não podemos esquecer nunca do ofício que é manter todos os nós apertados e valorizar ainda mais cada contribuinte de fios - editoras, autores e ilustradores. Podemos dizer que este coloca-se hoje como o nosso maior desafio. A ilustração é uma extensão da participação e parceria com a artista plástica Ananda Kuhn, que já participou como convidada para ilustrar o número comemorativo de dois anos da Subversa. Desejamos uma boa leitura a todos.

As editoras.

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FLORES AZUIS ANTONIO DE MEDEIROS | Rio de Janeiro, RJ.

Para K

Carina acordou, sem saber ao certo, se completava hoje vinte seis ou vinte sete anos. Tentou calcular mentalmente sua idade,

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subtraindo o ano atual de sua data de nascimento, mas os números lhe escapavam feito baratas fugidias. Ainda deitada, de olhos semicerrados, a luz escapando por entres as frechas da persiana e um pouco tonta, culpa do remédio novo, comprimidos e mais comprimidos azuis, esticou o braço até a cabeceira, a mão tateou, aranha cega, até os dedos envolverem o celular. Como uma daquelas máquinas com garra para pegar bichos de pelúcia, trouxe, aos poucos, o celular até o rosto, os dedos formigavam, mas não permitiu que eles o soltassem. Inúmeras notificações que ela preferiu não ler. Não agora. Depois leria todas, talvez ao fim do dia, talvez todas juntas fizessem-na se sentir amada ou ao menos lembrada. Tinha um jantar com os pais, a esse evento teria que ir. Respondeu ao whatsapp da mãe, não se esqueceria de buscar a torta, prometeu. O resto podia ignorar por mais tempo. Desligou o celular antes que alguém ligasse e ela tivesse que fingir alguma felicidade. Dentro do quarto, tudo repousava a sua espera. Desde o papel de parede rosa claro, a estante abarrotada de livros, revistas e boxes de seriados, a descascada escrivaninha, o armário embutido, as roupas, as meias coloridas, a caixa com cartões-postais e fotos, os discos, os diários, muitos ingressos de cinema e programas de teatro; todo um passado do qual ela não conseguia se desfazer. Tudo aquilo comprovava que ela existia. Carina lembrou-se que era sábado. A coisa mais interessante que fazia aos sábados era comprar o jornal de domingo. Quando soube pelo jornaleiro que as entregas aos sábados do jornal do dia seguinte haviam sido interrompidas, sentiu-se completamente traída. Ficou ainda um momento boquiaberta encarando o jornaleiro. Aquilo já se tornara uma tradição na vida dela e por conta disso, desde aquele dia, parara de comprar jornais.

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Por fim, levantou-se da cama. Enquanto a máquina preparava o café, decidiu tomar um banho quente. Escovando os dentes, o espelho ainda um pouco embaçado pelo vapor deixava transparecer parte do rosto e do cabelo. Duas gotas grossas desceram seguidas uma da outra, atravessando as olheiras e contornando a lateral do nariz e antes que chegassem ao lábio superior, ela passou a mão no espelho e as limpou. Sempre que se sentia triste, Carina gostava de ver vídeos de vencedores do Oscar pelo YouTube. Perdia-se no tempo, um vídeo levava ao outro. Acontecia de Carina chorar vendo a entrega dessas premiações, como se fosse ela mesma que as tivesse recebendo. Não que quisesse ser atriz nem mesmo famosa. Talvez somente almejasse ganhar um prêmio, em quê, não sabia, e mastigava esses pensamentos com torradas e geleia de amora. Voltou para o quarto, tirou o pijama e buscou entre os cabides algo para vestir. Um vestido amarelo se destacava das outras roupas, a grande maioria preta ou cinza. O vestido fora presente da mãe para ser usado no jantar mais tarde. Decidiu prová-lo mais uma vez, agora sozinha. Primeiro se achou mais gorda, lamentou também não ter comprado aquele corretivo caro para olheiras, depois olhou-se novamente de frente e de costas, agora com olhos mais generosos, o cabelo liso rente ao pescoço estava bem cuidado e aquele tom de amarelo até que não lhe caía mal. Talvez a mãe tivesse razão. De súbito, sentiu uma urgente vontade de sair de casa, como se somente agora houvesse se lembrado que tinha um encontro marcado e estivesse terrivelmente atrasada. Sapatos, bolsa, chaves e já estava na rua. Não sabia se virava à esquerda ou à direita. Para quem não sabe para onde ir, qualquer caminho serve, lembrou-se do conselho do gato de Alice. Decidiu seguir a pé mesmo, já que não fazia tanto calor. Ficara um tempo sem sair de casa e caminhando novamente entre as pessoas

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sentia a realidade provida de camadas antes ignoradas. Ela se admirava até mesmo da luz do sol refletida nas copas das árvores e o contraste do verde das folhas que recebiam e daquelas que não recebiam os raios de sol. Passou por um quiosque de flores e decidiu se presentear. Perdida entre a variedade de plantas, cheiros e cores sentiu-se tomada por intensa ansiedade, sempre se sentia assim frente a uma quantidade enorme de atrativos, o mesmo acontecia quando entrava numa livraria, tantos livros lhe interessavam que precisava sentar-se um pouco até se acalmar. Percebeu-se emergindo de dentro de si mesma, quando sua atenção foi fisgada por um buquê de flores com partes pintadas de um azul metálico e pela figura de um homem negro que borrifava nesse ramo de flores um spray dessa mesma

cor.

Mãos rústicas e dedos

grossos como o Mestiço de Portinari. O homem estava concentrado no trabalho, tinha os braços fortes, a pele muito escura e suava. Percebendo, finalmente, que estava sendo observado, o florista finalizou a pintura do pouco que ainda restava em branco e se encaminhou para onde ela parara e lhe ofereceu as flores, como se elas fossem uma encomenda feita por Carina e que ele cuidava dos últimos preparativos. A jovem encantou-se por aquele tom de azul, tão mais vivo e mais forte do que o de todas as outras flores dali e sentia que ao regatear o preço, jogava, na verdade, entre sorrisos e aproximações, um secreto jogo de sedução com o outro, perguntou, apenas para prolongar o momento, o preço de um ramalhete de junquilhos amarelos. Já percebera em si essa mania, de após encontrar o que desejava, fingir que não vira, ignorando o objeto do desejo em busca de outra coisa que o pudesse substituir. Sim, combinava com o vestido. Mas achou caro. Não podia levar os dois. Nem com o desconto. Comprou somente as flores azuis.

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Seguia com o ramalhete nos braços e sentia que as pessoas na rua a olhavam e isso lhe deixava com um certo orgulho e vergonha ao mesmo tempo. No caminho de volta para casa, lembrou-se de buscar a torta, uma obrigação que agora não lhe parecia tão pesada. Confabulava consigo mesma em que local de seu quarto as colocaria. Lembrou-se de que possuía um jarro do tamanho ideal para aquele buquê. De volta a casa, antes de almoçar, foi até à área e recuperou de baixo do tanque o vaso que buscara. Arrumou-o com delicadeza exatamente no meio do parapeito da janela do quarto. Sorriu aliviada, pois parecia ter finalmente encontrado o que estava faltando ali. Tirou selfies com as flores, postou logo em seguida no Instagram. As fotos ficaram ótimas com e sem filtro. Com filtro nem dava para perceber que eram fake. Algumas amigas curtiram em pouco tempo. Sentiu

um

acréscimo

de

estima

por

si

mesma.

Carina

compreendia Luisa e as flores eram como as cartas do primo Basílio. Então, ela voltara a ser como antes? Esquecida do que vira na floricultura, quis sentir o perfume das suas novas flores. Aproximou-se delas e as aspirou profundamente. Subiu pelas suas narinas um forte cheiro de verniz. Seu estômago se revirou. Tocou nas pétalas com delicadeza. Temeu que elas fossem de plástico. Não eram. Mas seus dedos ficaram manchados de azul e onde ela tocou, voltara a ficar branco.

ANTONIO DE MEDEIROS é cearense, mas se radicou no Rio de Janeiro desde os seis anos. É formado em Turismo pela UniRio e tem Especialização em Literatura Brasileira pela UERJ. Participou da antologia de contos “Contágios” organizada pelo jornalista e crítico José Castello. É membro da confraria literária Os Quinze. Colaborou para o portal Blah Cultural como crítico de cinema. Também escreve peças de teatro. Atualmente, finaliza seu primeiro romance: “Cem homens esta noite.” |CONTATOANTONIODEMEDEIROS@GMAIL.COM

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O SOLDADO MORIBUNDO EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

Arrastado pela multidão de berros de sofrimento, o vento sorrateiro traspassa minha pele escarnecida despertando-me do sonho que dorme a fleuma, da morte que descansa em paz corpos mutilados. Em um campo estrangeiro me deitei. Um soldado solitário num túmulo desconhecido. A mesma maldita trincheira, os mesmos cadáveres, o mesmo cheiro da morte, o mesmo inferno. A mesma metralhadora clareando a noite com suas rajadas. Os mesmos projéteis ciando do

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céu como estrelas cadentes. As mesmas balas enferrujadas por minhas lágrimas. A chuva e a terra formaram o barro, e eu ainda estou atolado nesta trincheira. Não cuido que eu já tenha começado a rastejar como um réptil, mas não creio que me tivesse dado conta se caso já houvesse começado. Aqui estou repartindo meu espaço, alimentos e água com os ratos, e eles me retribuindo espalhando doenças. Do orvalho fiz o meu vinho; do lamaçal o meu leito – cobrindo com seu manto negro meu corpo febril e dormente. Meus companheiros descansam, passam os dias se decompondo nas valas, já estão irreconhecíveis. Eu, que nunca me tornei um combatente, transformei-me numa migalha da colossal máquina bélica letífera. Eu, que nunca acreditei na minha própria morte, morri como os Asras, que morrem quando morrem os que amam. E disseram-me que a morte era o desenlace necessário de toda a vida; e fizeram-me fugir de abomináveis canhões que arrasam, com cega cólera, tudo o que lhes aparece pela frente. O campo de batalha era um horrendo quadro de algum artista demoníaco: a fumaça se misturava a névoa; os campos pintados de vermelho e o lamaçal era um depósito de braços, pernas e entranhas. Ali, toda ofensa pedia um castigo, todo dano uma reparação, todo mal um remédio. Era chegada a hora do meu batismo de fogo, de expor a minha falta de experiência a uma grande adversidade. A tempestade de balas caiu sobre mim. Falhas na orientação, distração e a covardia me levaram para uma emboscada. O fogo da metralhadora e as granadas me deram as boas vindas. Mil e duzentos tiros por minutos, e eu jogado no chão dando conta da minha vulnerabilidade. A bala lançada que escapa pela boca da arma vem em minha direção rompendo à distância através da força expansiva dos gases pela combustão da pólvora. Meu corpo sente a velocidade e o peso do chumbo nu. Um grito abafado; e o sangue cai como a chuva. Um pequeno orifício, uma grande destruição. A bala estéril levou para o interior do meu corpo a dor e o derrotismo; e uma sede ardente, uma

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fome devoradora, um vazio medonho, uma espécie de asfixia produzida pela ausência de Deus. Caiu a máscara à prova de bala. Estou desmoronando para o buraco no chão onde me escondo. A minha alma desprendeu-se do meu corpo, e, então, compreendi ser o objeto único de minha felicidade. Quem me dera a guerra fosse apenas um delírio; e o som dos bombardeios, trovões; e o rio que corre sangue, corresse o veleiro; e o calor de campos incendiados, o de um dia ensolarado; e o cheiro de morte, o perfume da amada. Ó fiéis, rogai pelos fiéis defuntos. Os vivos socorrem os mortos, os mortos socorrem os vivos, cada um a seu modo. Eu, agora um morto-vivo, estou voltando para casa, trazendo no rosto um sorriso forçado, pela boca cicatrizada.

EBER S. CHAVES nasceu em 1979, em Itaquara/BA. Reside em Vitória da Conquista/BA. Poeta e blogueiro, frequentador assíduo de grupos de estudos em psicanálise e filosofia; e tem grande interesse em poesia, literatura fantástica, história e cosmologia. Amante da natureza. Fã de heavy metal. E apreciador de cervejas especiais e feijoada. EBER.CHAVES79@GMAIL.COM | Blog: http://eber-chaves.blogspot.com.br/

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PETIÇÃO EDSON AMARO| São Gonçalo, RJ.

Nobres vereadores, eu vos peço Para este meu discurso sua atenção E sabendo que a tenho já começo Pedindo a quem couber restauração De uma placa que lhes deram e não tem preço. Foi em dois mil e nove o tal ano, Dia e mês não afirmo sem engano.

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Era o bicentenário celebrado De Darwin, cientista consagrado Nos dez pés de martelo alagoano. Charles Darwin andou no mundo inteiro Analisando as obras da natura. Também pisou em solo brasileiro, Em diário registrando sua aventura. Esteve na Bahia, Rio de Janeiro, No Império tão rural, tão pouco urbano, Contra os negros viu trato desumano, Estudou fauna e flora do Brasil E ao mundo contou tudo o que viu Nos dez pés de martelo alagoano. Mais uma voz contra a escravidão Foi seu diário em Londres publicado. Por todos que defendiam a abolição Pelo mundo foi livro bem citado. Também nos ensinou a evolução Em outra obra, livro soberano Que a natura nos revela sem engano: "A Origem das Espécies", fundamento De um necessário e novo pensamento Nos dez pés de martelo alagoano. A toda a natureza bem ligados Nós nos vemos nessa obra magistral. À terra eis os seres conectados O equilíbrio fazendo no final -Segredos só aos homens revelados.

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Tal ciência ensinemos ano a ano: Para um Brasil melhor esse é o plano. O clássico maior da Biologia Fundamenta a urgente Ecologia Nos dez pés de martelo alagoano. E na igreja maior do Reino Unido Darwin jaz, qual da pátria sua herói. Que seu nome aqui não seja esquecido; Amor igual lhe mostre Niterói Restaurando esse marco recebido Dos ingleses naquele grato ano. Com Darwin Niterói eu louvo e irmano A Montevidéu, também Cabo Frio, Salvador, Maricá e o próprio Rio Nos dez pés de martelo alagoano.

EDSON AMARO publicou pela editora Buriti sua tradução do romance “Valperga”, de Mary Shelley. | PLANTEARVORES2@GMAIL.COM

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PLACEBO FERNANDO MAROJA SILVEIRA | Belém, PA.

Para Lucas A escuridão é placebo, irmão, tudo está invisível mas continua vivo, no subúrbio da noite. Não há cura, irmão,

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a canção embala a madrugada e penetra na pele, mas ela é apenas uma seringa vazia. Continuaremos vivos, esbarrando nas esculturas que invadiram as ruas. Nada temos da noite, irmão, além da morfina do vento que sopra na pele, mas ela é um remédio que somente escurece as feridas. Segue em frente, irmão, o passado é o espelho da nossa vida e ele te salvará os olhos quando o sol aparecer no céu e olhares para trás, em busca da paz que jaz no leito da morte. Vai pra tua casa, irmão, a noite se esfarela e seus pedaços serão vendidos dentro da seringa, na esquina dos viciados. A luz fracassou, irmão, no céu e na história, mas ela voltará a brilhar e a galopar no cavalo branco de Napoleão,

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para manter os morcegos da alma na caverna do corpo. Raskólnikov, irmão, será para sempre o nosso herói, após saltar do cavalo e se juntar aos culpados no abismo dos homens que sofrem a história. Vai, irmão, nada somos além de almas desintegradas em morcegos que voam pela noite, mas é hora de voltar para a caverna. O sol é a sirene da polícia rompendo o horizonte, e nós voltaremos para trás das grades. Rio de Janeiro, 08 de setembro de 2015.

FERNANDO MAROJA SILVEIRA (1981, Belém do Pará) estreou nas letras EM 2015, com o livro de poemas “Cinzas”. Neste ano, participou da XX Feira Pan-Amazônica do Livro, bem como do livro “Impossível não te ofertar”, com poemas de diversos autores em homenagem ao falecido poeta brasileiro Max Martins. | FERNANDOMS81@HOTMAIL.COM

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EXOESCULTURAS FRANCIELI BORGES | Porto Alegre, RS.

A quantidade de insetos, de aranhas, de crisálidas, às vezes tenho certo que nunca vou conseguir notar mais que quinze de cada. Voam, rodam, curvam na diagonal. Têm cores. Alguns se afogam nas chuvas

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de todo-dia, retorcidos, com as patas quebradas, sepultados na água. É uma rede de caules, raízes, folhas, ramos; uma era esquelética, depósito de criaturas - todos meio tingidos pelo sol forte e pela terra escura, o marrom original. Penso naquele que nunca houvesse visto a própria pele sentindo essa interação, irritada e protetiva. Uma pessoa de inverno, que examinasse as ervas e fizesse inferências mortas na ausência dessa rápida quantidade de vidas. Ser inverno e basear as ideias sobre o mundo nesse equívoco. Criaria narrativas sobre aqueles animais-ponto, animais-casca que avançam devagar entre arbustos, esboçaria palpites bizarros, daria palestras para pessoas sérias em salas opulentas, entendendo tudo mais ou menos ficcional, como, por sinal, não sei se escapa nosso entendimento. E eu nem reconheço se isso na lâmpada noturna é um vaga-lume ou um besouro velho.

FRANCIELI BORGES é curiosa com as letras e as manuseia por ofício e gosto. Licenciada, mestra, outra vez graduanda, no trânsito entre professora e estudante, anda um tanto exausta dos artigos acadêmicos - às vezes extrapola e também articula pensamentos minguados que, sabe-se como, acabam sendo publicados. | FRANCIELIDBORGES@GMAIL.COM

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CAMINHAR JOÃO VICTOR L. BELLAS | São Gonçalo, RJ.

Carrego sempre um par de pernas na mochila Caso a caminhada cause-me fadiga Carrego sempre um par de mãos no bolso esquerdo Me “precavejo” pra se por acaso eu mesmo me aplaudir

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Carrego sempre um par de ouvidos nos sapatos Que é pra saber o que de mim falam os ratos Carrego sempre um par de olhos no meu sutiã Para encarar cada marmanjo que não tem alma Cristã Eu trago sempre uns pensamentos passatempo Umas canetas que sem tinta os lamentam E eu os festejo!- são relâmpagos perdidos pelo tempo Suaves, repentinos, como um beijo

JOÃO VICTOR L. BELLAS é estudante, funcionário público, músico e poeta. Não necessariamente nessa ordem. Seu currículo é, ainda, pouco extenso, mas suas palavras falam por si mesmas, sem precisar de cânones que as sustentem. VICTORLIMAJOAOBELLAS@GMAIL.COM

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FOTOGRAFIA MANDU HOLANDA| Itapipoca, CE.

Eu matei Aylan Kurdi. Matei sua mãe e seu irmão Galip na nefasta travessia. O frio Mediterrâneo o afogou. A minha etnia não lançou a boia, A minha fé não o salvou.

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A minha omissão o condenou A triste foto o imortalizou. Abdullah Kurdi Matamos sua esperança, seus pequenos filhinhos, sua doce mulher. Ó pátrias megeras, destroçadas e perniciosas. Ó apátridas acossados: Sírios, libaneses, curdos. Que não jazam em vão. Temos nossos apátridas na nossa pátria mãe gentil: Kawahiva, Akuntsu, Matis e os dois últimos Piripkuras. Muitos, Incontáveis e anônimos sem os curumins a fazer festa. A motosserra ceifa sua mata, os tiros abatem seu povo. Fé tirana, Crença que mata, Ganancia que trucida. Ceifaram Aylan, Galip, Mande-í, Tucan e tantos outros. Inocentes, puros e espoliados: da terra, da pátria e da vida. Karapiru cadê o teu povo Awá? Abdullah Kurdi que mais podem te tirar?

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Condenado pela etnia, Condenado pela tirania. Graças a mim: Condenado pela apatia.

MANDU HOLANDA (Iguatu/CE,1968) é pedagogo por formação, oficial de Justiça por profissão, músico por diversão e boêmio por vocação. Casado com Lene, pai de Yorrana, Gabriel e Ariadna; Avô de Maria Clara. | MANDUHOLANDA@HOTMAIL.COM

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TERCETO DAS ONZE E MEIA PAULO ARCE

| Campinas, SP.

esse seu olhar estatelado na frente de um computador eu sei bem o que é em quinze minutos

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você já revirou tudo o que podia: email, notícias, putaria, a internet toda mas você não pode sair da frente da tela sob pena de lhe não pagarem o salário no fim do mês, eu sei não se desespere, não se frustre esse tédio que te invade é o meio e o fim é toda a existência que você escolheu são onze e meia e você quer sair correndo atrás da vida se tiver coragem, faça isso senão, faça assim: continue sentado e escreva talvez quando você olhar para o relógio serão já dezoito horas, fim do expediente - whisky?

PAULO ARCE é professor universitário e funcionário público. Escreve poesias e contos para rebater a monotonia sufocante dos dias. Vencedor do "I Concurso Literário Era uma vez" (2015) da IMA (Informática dos Municípios Associados de Campinas), na categoria de contos. | PAULOB.EDUARDO@GMAIL.COM

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APARECIDA RAPHAEL PAIVA | Rio de Janeiro, RJ.

Se antes havia, não mais há, de havia... Há, de havia, não mais apareceu. Aparecida, desapareceu de minhas vistas cansadas dos maus tratos de não haver Há, de havia. Havia no A, algo que não haveria de se mostrar... de querer transar comigo... já que o Há, de havia, não mais A em mim. Lembraria-me como se há pouco... , mas como não Há, de havia, conto-lhes o seguinte: Aparecida, sem saber como, onde, porque, me

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aparecia, deu-se como a uma santa dá-se flores. Encarei-a no âmago dos olhos que mal lhes cabiam na cara, como se aparecesse. Apareci, lembro-me, cego; a enxergar, no teto esbugalhado de seus olhos, o quê, no qual e por que me parecia com quem. Quem: comigo? Há, de havia, de se explicar a quem não entendeu com quem se via. -Me vi contigo, Aparecida. Lembro-me que contigo me vi... Sim, eu me lembro... Encarei; e, antes de se parecer comigo, Aparecida, desapareceu. Sim..., assim..., de mim... Dá-se o mistério de Aparecida...: Como, por que, onde e com quem se parecia quando desapareceu, assim, de mim, do fundo esbugalhado do espelho que havia, de Há...

RAPHAEL PAIVA. "Um dia, indagaram-me o que sou: Um só, de corpo e alma, frente e verso"

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A NOVELA DAS SETE NÃO É TÃO BANAL RONALDO CRUZ | São Paulo, SP.

Então o cara sentou no sofá daquela sala vazia e colocou os pés sujos de poeira das ruas da cidade sobre a mesinha de centro e abriu o jornalzinho do metrô que estava no sofá que ele tinha sentado na

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sessão de esportes para ler sem nenhuma atenção as manchetes daquele dia naquele jornalzinho que não estava nada vazio de notícias resumidas e promoções de supermercado. No sofá da sala vazia o cara sem perceber sentou sobre o controle remoto que ligou a televisão que estava na frente da mesinha de centro que o cara tinha colocado os pés sujos de pó da cidade para ler o jornalzinho do metrô ali na sala vazia e que passava justo aquela hora a novela das sete que naquele barraco ninguém assistia e por isso a sala estava vazia e o cara podia sentar e colocar seus pés sujos de poeira das ruas da cidade na mesinha de centro. A novela das sete que passava na televisão que estava na frente da mesinha de centro daquela sala vazia era vista em muitos outros barracos e salas espalhadas pela cidade de ruas cheias de poeira porque na novela das sete apareciam histórias que não eram tão resumidas como as outras sessões do jornalzinho do metrô e nem mesmo tão banais como a sessão de esportes que o cara estava lendo sentado no sofá da sala vazia com seus pés sujos. O cara viu a televisão ligar e só então percebeu que estava com metade de sua bunda sentada sobre o controle remoto que estava sobre o sofá da sala vazia e que tinha ligado a televisão que agora mostrava promoções de supermercado porque a novela das sete já tinha acabado e começaria o jornal da noite com coisas mais sensacionalistas do que a sessão de esportes que o cara estava lendo sentado no sofá da sala vazia e notícias resumidas e as vezes até parecidas às histórias que se podiam ver na novela das sete. Depois de levantar um lado do corpo para tirar a metade da bunda de cima do controle remoto da televisão que já passava o jornal da noite o cara voltou a sentar sua bunda inteira no sofá que estava na sala vazia e deixou de lado sobre o sofá a sessão de esportes do jornalzinho do metrô que estava lendo para prestar atenção nas

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notícias sensacionalistas e resumidas que passavam na televisão que estava na frente da mesinha de centro da sala vazia. A televisão que transmitia o jornal da noite não passava as notícias de esportes como as do jornalzinho do metrô que estava sobre o sofá porque dava naquele momento a notícia de um assalto que tinha acontecido na nove de julho aquela tarde e que tinha deixado uma mulher morta e que todos os que haviam assistido a novela da sete e agora assistiam o jornal da noite não prestavam muita atenção porque todos os dias morrem mulheres em assaltos e fazem promoções em supermercados. O cara que estava sozinho na sala vazia com os pés sobre a mesinha de centro e que havia sentado com meia bunda no controle remoto da televisão que ligou e que antes passava a novela da sete parou e ficou olhando atento ao jornal da noite que dava notícia sobre a mulher morta no assalto na nove de julho para ver se em meio a tanto sensacionalismo falavam no resumo alguma coisa sobre o cara que tinha assaltado e matado a mulher. Na televisão que dava o jornal da noite que passava depois da novela das sete e era vista em todos os barracos e salas que não estavam vazias por pessoas que sim gostavam de novela e de promoções de supermercado aparecia a polícia dizendo que não sabia nada sobre o cara que tinha matado a mulher depois de roubar e que aparecia deitada e coberta por um plástico prateado na calçada da nove de julho com os pés que sobressaíam e apareciam na televisão ali naquele barraco e em todas as outras televisões espalhadas por salas cheias ou vazias. Os mesmos policiais que diziam na televisão não saber nada sobre o cara que tinha matado depois de assaltar a mulher que aparecia no jornal da noite depois da novela das sete que era assistida em outros barracos mais não naquele onde a sala estava vazia foram os mesmos que colocaram sobre o corpo deitado na calçada o

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plástico prateado que não cobria direito a mulher que estava morta e deixava aparecer na televisão seus pés sujos de poeira das ruas da cidade.

RONALDO CRUZ (São Paulo, 1976) formado em design pela FAAP. Publicou seus textos em blogs e revistas de literatura. Em 1992, participou da antologia de poetas da Editora Scortecci. Depois de longa hibernação literária, foi finalista do Prêmio Vip de Literatura 2016 na categoria contos. | twitter: @ronaldodacruz

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Edição Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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