Revista subversa vol 5 n7 nov 2016

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SUBVERSA Vol. 5 | n.º 07|novembro de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração RETY RAGAZZO

EBER S. CHAVES BIANCA CAMARGO DE LIMA MATHEUS BORGES EVANDRO DO CARMO CAMARGO RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA GABRIEL DE ATAIDE LIMA CAROLINE POLICARPO FLÁVIO SANSO SAT AM JOEDYR GONÇALVES BELLAS


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 5 | n.º 07

© originalmente publicado em 01 de novembro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações RETY RAGAZZO

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME cinco | NÚMERO 6 BIANCA CAMARGO DE LIMA | SONETO SEM TEMPERO | 05 CAROLINE POLICARPO | VAZIOS| 07 EBER S. CHAVES| ALTAR FAMIGERADO | 09 EVANDRO DO CARMO CAMARGO | DERRADEIRA| 12 FLÁVIO SANSO | REIS DO CONDOMÍNIO | 14 GABRIEL DE ATAIDE LIMA | CAUDA DE BALEIA OU POEMA DE UMA SEGUNDA-FEIRA FRIA | 18 JOEDYR GONÇALVES BELLAS| SINA| 22 MATHEUS BORGES | AS NUVENS | 24 RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA | O AQUÁRIO | 29 SAT AM | APOPHIS | 32

SOBRE RETY RAGAZZO| 34

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EDITORIAL

'Gosto da literatura ganhando as ruas. A prima esquecida e pobre das artes agradece' (Marcelino Freire, em carta aberta ao então secretário da Cultura João Sayad no Jornal Estadão, 31 de maio de 2008). “Escrever sobre o escrever é o futuro do escrever” (Haroldo de Campos, Galáxias)

Viver de literatura continua sendo uma das coisas mais difíceis que existem. Não chega a ser novidade a ideia de que a arte literária é a prima pobre da arte, e isso, diga-se, quando consegue real e dignamente ser tratada como Arte. Existe arte rica ou pobre, ou vivemos todos numa mendicância? Aquele que pretende viver da arte literária, na maioria das vezes, se empenha noutro ofício, que além de pagar as contas do fim do mês, serve também para responder à insistente pergunta: “Além de escrever, você trabalha com o quê?”. É comum esse mal-estar se instalar dentro dos próprios departamentos acadêmicos, nos quais a entrada da literatura tão pouco frequentemente é vista com bons olhos. Discutir literatura para quê? Qual a função de se discutir uma função, quando fazer literatura não é suficiente? O que vemos hoje por aí são estruturas muito bem montadas para pouca realização. O escritor, do fundo do seu otimismo natural, acredita na oferta que recebe, acredita na benevolência dos leitores, na boa intenção dos meios, no mundo novo. Porque no dia em que o escritor deixar de acreditar no mundo novo, meus amigos, estaremos encurralados. Aqui, mais um número da Subversa, onde a literatura sai um pouco do confinamento, numa tentativa de se sacolejar, porque é se sacolejando que as coisas vão tomando um pouco de lugar, assim como é no andar da carruagem que as melancias se ajeitam. =)

Desejamos uma boa leitura a todos. As editoras.

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SONETO SEM TEMPERO BIANCA CAMARGO DE LIMA | São Paulo, SP.

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Tenho uma cidade como meu lar Vi as mentiras, todos os seus esquemas Pinóquio avisou-me desses problemas Perigos mal me deixam respirar Grandes olhos, mas que não veem o próximo Próximo ônibus para o próximo negócio Olhos que veem, no máximo, um sócio Viver no urbano como ponto-ótimo Rimas apagadas pela fumaça Minha cidade não tem sabiá Prédios e estátuas a cobrir a praça Poesia, aqui, não resistirá Felicidade é uma ameaça Minha cidade é tudo que há.

BIANCA DE CAMARGO LIMA (1997) é paulistana e estudante de Letras: Tradução na PUC-SP. | BILIMACAMARGO@GMAIL.COM

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VAZIOS CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.

há coisas essenciais para este poema que não estão aqui são aquelas que escrevi nas beiradas da página enquanto procurava palavras

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que não as dissessem navio, por exemplo, pode tranquilamente aparecer no poema e não vai dizer

uma porta também pode aparece no poema assim, bem escancarada, sem nenhum problema e não vai dizer

também gostaria de colocar um ouriço neste poema um misterioso e incompreensível ouriço só para incomodar e dificilmente entenderão que ouriço, neste poema, quer dizer

vida é outra das palavras excelentes para poemas: abrangente, vasta, ou vazia, e neste poema, especificamente, eu acho que o significado dela não é óbvio

CAROLINE POLICARPO VELOSO é uma estudante de Letras fascinada por astronomia e aspirante a desbravadora de universos. Tem textos publicados nas revistas Trasgo e Raimundo, e em algumas coletâneas de contos. É inventora da Inventada, robô de conversação desenvolvido no projeto Autômatos Poéticos. | CAROL_POLICARPO1@HOTMAIL.COM

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ALTAR FAMIGERADO EBER S. CHAVES| Vitória da Conquista, BA.

Ó Deus, regozijo e aflição do meu espírito, lembra-te da dor que suportastes quando me vistes ainda crescendo no útero, preste a

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nascer. Tu mesmo não querias que minhas aberrações voassem pelos quatro cantos do mundo. Quando submergi na aflição, injuriado e humilhado pela humanidade, e senti aproximar-se de mim a morte, julguei haver sido abandonado pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo. Tu tens uma dívida comigo e, por isso, eu te suplico, ó meu Redentor e Destruidor, que te digneis estimular os desejos que pulsam em meu coração e que o sono faça de meu espírito um selo inviolável; que eu pareça com algo que não possa sentir o toque de anos mundanos; que eu esteja sempre em movimento, girando em torno do curso noturno da terra; que meus olhos tornem visível e corpórea a prata dissolvida em água-forte, a qual de outra forma é invisível; e que meus pensamentos sejam dissolvidos e desapareçam afogados nas fontes de águas vitrioladas – e que essas próprias fontes sejam testemunhas das incoerências que pairam em minha mente. Eu andava pensativo, a olhar para o alto. Não falava nada. Obedecia ao demônio, e era justo que também experimentasse sua tirania e malícia. Senhor, não me condene ao fogo perpétuo por causa dos meus delírios. Tu bem sabes que tenho grande simpatia pela beleza e pela imperfeição, elas fluem para mim, e se insinuam através de meus poros. Não entendo bem o motivo de o Senhor ter me dado uma alma insana, mas, nesse momento, sucintos átomos de felicidade preenchem o lugar que foi consumido pela tristeza, lugar onde a nebulosa em forma de rosto orvalha o campo dentro do crânio acidentado. Nesse lugar, no alto da escarpada,

edifiquei

um

altar;

altar

famigerado

pela

minha

imoralidade. Deixando de cumprir o propósito divino, edifiquei o meu próprio altar – e agi dessa forma sendo levado pelo inimigo, o qual sabe que o ser humano necessita de algo para cultuar. Fiquei obcecado com a ideia de ter o meu próprio culto; e estabeleci santuários que levarão a humanidade a cultuar um desconhecido. E esse lugar de veneração tornou o coração do ser humano insaciável. Um precipício chama outro, e esses altares se multiplicaram: um para a mentira, outro

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para a sedução; um para os pensamentos impuros, outro para a desonestidade. Nenhum altar é construído com um bom propósito. Errei muito. Permiti que a tentação me induzisse a fazer a minha própria vontade, e não a do Senhor. Sou muito sujo, desmerecedor, iníquo, indigno de ter a luz da revelação divina. Sou uma mentira! Como poderei ser bom o suficiente novamente de forma que Deus possa ouvirme? Você não fica bom e se aproxima de Deus, você se aproxima d’Ele, e Ele o torna bom – foi isso que me disseram: Mentirosos! Como o cão que torna ao seu vômito, assim é o tolo que reitera a sua estultícia. E como um animal irracional, sigo a minha natureza, blasfemando do que não entendo, perecendo em minha corrupção, recebendo o galardão da injustiça. A minha natureza é a humana, tenho os olhos cheios de adultério e não cesso de pecar, engodando minha alma inconstante, tendo o coração exercitado na avareza, filho de maldição. Eu sou a loucura do profeta, uma fonte sem água, nuvem levada pela força do vento, para a qual a escuridão das trevas eternamente se reserva. Eu prometo-lhes liberdade, sendo escravo da corrupção. Os meus lábios destilam favos de mel, e o meu paladar é mais macio do que o azeite; e aqueles que me seguem são como boi que vai ao matadouro; como o louco ao castigo das prisões, até que a flecha lhe atravesse o fígado; como a ave que se apressa para o laço e não sabe que ele está ali contra a sua vida. Aqueles que me seguem, seguem a felicidade passageira, a paz de espírito inalcançável. O meu espírito espreita as noites futuras, quando os ingênuos se entregarão ao calor do amor e ao frio de uma desilusão amorosa.

EBER S. CHAVES nasceu em 1979, em Itaquara/BA. Reside em Vitória da Conquista/BA. Poeta e blogueiro, frequentador assíduo de grupos de estudos em psicanálise e filosofia; e tem grande interesse em poesia, literatura fantástica, história e cosmologia. Amante da natureza. Fã de heavy metal. E apreciador de cervejas especiais e feijoada. EBER.CHAVES79@GMAIL.COM | Blog: http://eber-chaves.blogspot.com.br/

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DERRADEIRA EVANDRO DO CARMO CAMARGO | São Luís, MA.

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A cadeira as caixas a guitarra e o microfone parados, longes, pra nunca mais ninguém. Eu e ela no sofá. Ela veio terminar um não sei o que tivemos. Ainda tento argumentar, patético, mas não. É isso. Me abraça, chora um pouco. Não consigo chorar, estou teso. Ainda outra vez rogo, indago. Por quê? Não sei. Coisa minha. Tá... Tá bom. Silêncio. Olhares desencontrados. Tensão. Incômodo... Posso ir? Sempre pôde. Move a cabeça afirmativamente e, linda, se vai. Me deito na cama de frente pro ventilador com o note no colo e o celular na mão. Entro no Tinder. E apago a conta de novo cinco minutos depois. Lá fora espocam bombas e rojões. É São João. Hoje, 12 de junho de 2016, Dia dos Namorados. Uma música muito alta incomoda sem parar, tem festa grande aqui pertinho. Apuro os ouvidos, alguém toca Lulu, “Pode até parecer fraqueza...”. Cacete. Vou à cozinha beber água. No chão do corredor, meio murcho, um balão vermelho, metálico, de hélio que ela trouxe levitando no primeiro dia que esteve aqui. Mas se você olhar bem, amarrado a ele depois, tem outro balãozinho, de borracha mesmo, mas também em formato de coração e menor. Bem menor. Este está vazio, rasgado, aberto ao meio. Sua presença rota me faz pensar no escuro que me espera.

São Luís, 12 de junho de 2016.

EVANDRO DO CARMO CAMARGO | CAMARGO_E_C@HOTMAIL.COM

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REIS DO CONDOMÍNIO FLÁVIO SANSO | Rio de Janeiro, RJ.

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O condomínio tem formato de “U”, ou melhor, tem formato de ferradura que é pra ficar mais literal. São duas fileiras de casas, as casas de uma fileira estão de frente para as casas da outra fileira. Resultado do projeto arquitetônico que as desenhou todas iguais, cada uma das casas gêmeas tem sala, cozinha e banheiro no andar de baixo, e dois quartos e banheiro no andar de cima, todas são pintadas de jasmimamarelo e o quintalzinho da frente também pode servir como garagem. Mas o condomínio não é completamente padronizado. Ocupando a curva da ferradura, exibe-se a imponência de uma mansão, que em tudo se diferencia das casas enfileiradas: é arrojada, imensa e pintada de roxo-agressivo. Quem adentra o condomínio tem

os olhos

irresistivelmente atraídos para a majestosa construção, a ponto de ignorar a existência das casas enfileiradas às margens da rua, mas houve o tempo em que isso não era nem tanto pela extravagância do estilo de imóvel Beverly Hills ou nem tanto por estar a mansão num posicionamento que era convergência do caminho, o que chamava mesmo a atenção era o que se notava no meio do quintal. Exposta à vista de todos por trás da cerca alta de aço, envolta pelo verde da grama perfeitamente aparada, lá estava a imagem de um leão. O leão era de verdade, passava a maior parte do dia sentado com postura de esfinge. A carne lhe chegava em cubos, sempre pronta para o consumo fácil, e se não tinha obrigação de ir à caça, restavalhe o ócio. Então gastava o tempo olhando o que acontecia na rua do condomínio, com especial contemplação para o jogo de futebol da garotada. Os grandes olhos dourados iam, voltavam, subiam, desciam ao sabor dos movimentos da bola. Desde filhote, mantinha o mesmo hábito de se mostrar em repouso prolongado e por isso os moradores das casas perfiladas foram se acostumando ao vizinho insólito. Só que o bicho, agora de juba farta e rugido grave, agigantou-se a ponto de provocar receios. E se fugisse? E se ferisse a mão de alguma criança curiosa?

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Os moradores das casas perfiladas formaram comissão para ir debater o assunto. Tentaram diversas vezes, mas sempre lhes era dito sobre a indisponibilidade do dono da mansão. Era alguém que sempre entrava e saía pelos fundos, lugar inacessível a estranhos. Para além das especulações, nada se sabia a respeito dele. A comissão teve então ideia de recorrer ao órgão ambiental, afinal de contas haveria de ser proibido fazer do quintal

o habitat de um

animal selvagem.

Uniformizados, os funcionários do órgão ambiental chegaram, foram autorizados a entrar na mansão e depois de algumas horas se foram. Depois disso, contaram-se dias, meses, e o leão permanecia lá onde lhe podiam ver a pose triunfante. A comissão de moradores teve outra ideia. Talvez a vigilância sanitária pudesse identificar risco à saúde pública em relação ao manuseio de tanta carne; se o efeito vai mal, remedia-se a causa. Os funcionários da vigilância sanitária também foram ao condomínio, fizeram inspeção, demoraram dentro da mansão e depois se foram. Dias, meses, não se notou resultado algum. Seguiu-se a visita dos bombeiros. Vistoriaram, demoraram, foram embora. E nada. Enfim, a Comissão dos moradores decidiu lançar mão da última e mais drástica das providências. A sirene escandalosa anunciou a chegada da viatura, que estacionou na rua do condomínio. A polícia chegou, demorou horas no interior da mansão e depois foi embora. Enquanto o tempo seguia seu rumo, o leão envelhecia, e envelheceu até morrer no quintal gramado onde passou a maior parte da vida. O caminhão chegou numa madrugada da semana seguinte, despejando homens bem treinados para dentro do condomínio. Alguma luz se acendeu, algum cachorro latiu, mas não houve quem saísse de casa para ver o que acontecia. De dimensões extravagantes, a mercadoria precisou ser empurrada sobre um piso de rodinhas. Tudo foi feito muito rápido, com muita eficiência. Quando amanheceu, os moradores olhavam incrédulos uns para os outros. Estavam diante de uma grande estátua de bronze, que, chumbada no chão, representava

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o leão em pose de esfinge. De fato era uma grande estátua. Desde que foi instalada no meio da rua do condomínio, a garotada nunca mais conseguiu jogar bola.

FLÁVIO SANSO foi finalista do concurso Off Flip de contos/2015. Recebeu o Prêmio Rubem Braga pelo 2º lugar no concurso de Crônicas promovido pelo SESC/DF. Publicou de maneira independente o romance A base do iceberg. Divulga seus textos no site www.flaviosanso.com | FLAVIO.SANSO@GMAIL.COM

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CAUDA DE BALEIA OU POEMA DE UMA SEGUNDA-FEIRA FRIA GABRIEL DE ATAIDE LIMA | Adamantina, SP.

Aqui sentados à mesa, ouvindo a noite chiar seus chuviscos puros como o mel, tu e eu bebemos separados pelo véu puro da idade e do tempo e da amizade. Faz tempo que não vejo nesse céu escuro o branco puro das nuvens

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percorrendo caminhos tão estranhos. Eu não entendo a vida nem a natureza mais posso dizer que me gusta mucho tomar um gole de coca-cola sentado à luz da lâmpada fluorescente que ilumina a mesa. Enquanto ouço a tagarelice e o cotidiano e a conversa se desenrola infinita como um carretel, não percebes nem eu percebo que meus olhos, pés, braços e mãos estão tão cheios de pranto quanto a nuvem que desabou no meio do campo suas ágüinhas feitas de farinha magnética da terra. Talvez isso sim seja poesia. Afinal, como posso saber se é ou não poesia? E quando um poema me surge de repente (não como um ditado ou como uma inspiração) fico tão contente que quase infarto meu coração.

Por exemplo, notastes que eu criança ainda fui mais além da necessidade de permitir-me amar? amar como amo todas as mulheres que por mim passam sem deixar vestígio algum que me amam que me querem que existo que me... talvez não entendam jamais as raízes desse verso.

Não havia luar, nem luz, nem pensamento,

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porque será que a minha mente se concentra em coisas tão estranhas? coisas tão puramente estúpidas e sem nenhuma traço de conhecimento? porque penso na cauda de uma baleia azul cinzenta enquanto estou ouvindo o som desses cantores gordos que cantam fabulosamente competindo aos meus ouvidos com o cantar chiado do blue do vento?

Me perdoe, eu que escuto mais do que falo ouço tudo para anotar mais tarde, só para ter com o que me ocupar enquanto o tempo passa feito um io-io sem vida por minha vida de carne e osso (ai, meu coração é tão puro, tão amoroso).

E eu ouvi a noite, ouvi o dia, ouvi o ruído ao meu redor pela primeira vez e pela primeira vez tive capacidade e ânsia e desejo de encarar as pessoas e mesmo assim continuo o mesmo pelicano desejoso de voar para o mar e se afogar bêbado de suco de pêssego nas areias das praias do atlântico.

Depois de ouvir tanto sobre o ladrão de casaca os pássaros também desejei ser cineasta um dia, e quem não sabe que saiba que tenho mais de oitenta roteiro feito à máquina de escrever (sim, amada oriental, eu tive uma máquina de escrever para escrever

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poesias, e quem me deu-a foi um little bird que ouviu minhas preces de camaleão iluminado).

Notaste ou não notaste que aquela noite quem precisava de uma companhia era eu? Notaste ou não notaste que tudo o que não existe, a falsidade e a verdade me sufocam nessa cidade?

Mesmo assim eu canto, canto como quem quer cantar. Canto como um cantor recém descoberto que canta sem se importar com quem ouve com quem vê com quem olha. Canto porque só posso existir cantando. Ô noite que se foi para nunca mais voltar: Obrigado.

GABRIEL DE ATAIDE LIMA (Adamantina, 1996), aos quinze anos escreveu o primeiro poema inspirado no mar e nas mariposas do campo. É contista e escreve pequenas peças de teatro.

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SINA JOEDYR GONÇALVES BELLAS| São Gonçalo, RJ.

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Ando pelas ruas. Atento. Olho em todas as direções. Levanto o tapete. Olho também. É a velha mania de ter vários olhos na cabeça e ter de olhar. Os que me olham não sei se são os mesmos olhos com que eu vou me espichando por esta rua. As ramas das árvores balançam. É o meu sopro. Eu andando sem poder parar. Já não tenho mais ar nos meus pulmões. Sou fumante inveterado. Não sei o que isso quer dizer exatamente, mas eu vou colocando o cigarro na boca, um atrás do outro, e riscando o fósforo. Eu risco as calçadas. Com o meu sapato de cromo alemão. Não me importo se me roubam, se me furtam, se me pedem emprestado, se me arrancam à força. Os pulmões e o sapato de cromo alemão. Não me importo. Tenho de andar, mesmo que eu esteja descalço, mesmo que dentro da minha carcaça não tenha mais sequer uma gota de ar. Acho que é assim que se fala. Uma gota de ar, uma gota de água, uma gota de esperança entre os vãos dos dedos dos meus pés. E eles andam. Sem parar, sem me consultar, sem interromper o mecânico movimento de levantar os pés, um de cada vez, e abaixá-los. Girando. Eu giro no eixo dos meus passos na ilusão de que estou indo pra frente. Pura ilusão. Eu giro, eu rodo, eu fico tonto. Alguém me oferece um pedaço de pão. Eu recuso. Alguém tenta colocar os braços sobre o meu ombro, eu evito, desvio, Maria olha pra mim de longe, quase me alcançando, e grita que quer um cigarro. Eu nego. Jogo a binga fora e acendo mais um só para provocar Maria. Ela dá de ombros e não se importa. Eu também não me importo. Não devo me importar. Giro, rodo, o chão me falta. O vácuo. O vazio. A cabeça roda junto com o meu corpo, só que em sentido oposto. Que horas são? Eu ando e sigo andando. Não posso parar. Mesmo que as cordas retesadas do fantoche não suportem a tensão e arrebentem. Que se arrebentem. Eu tenho que seguir andando. JOEDYR GONÇALVES BELLAS é bacharel em Letras pela UFRJ. Aprendiz de escritor. Algumas menções honrosas, alguns prêmios literários. Servidor público concursado. Natural da Dr. Sardinha. Sta. Rosa – Niterói – Rio de Janeiro. | JOEDYRGBELLAS@YAHOO.COM.BR

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AS NUVENS MATHEUS BORGES

| Porto Alegre, RS.

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O último homem acordou ao despontar do sol no horizonte difuso, recoberto de partículas negras. Dormira mais uma vez sob o teto de uma antiga construção, acomodado entre uma mesa de tampo de mármore e uma caixa de energia elétrica que não funcionava há muito tempo. Seus olhos, sensíveis, tremeram quando os raios de luz atravessaram a janela. Ele sentia calor. A umidade escorria pelas paredes do prédio. Ele caminhou em direção à grande avenida tomada por vegetação rasteira, que subia pela calçada e se fundia à ferrugem dos automóveis. Caminhava lentamente, ignorando as portas escancaradas das livrarias e restaurantes fast-food. Estava cansado de correr, de comer e dormir. Estava cansado de carregar nos ombros a responsabilidade, de ser o último de sua espécie, imaginando como seria o mundo dali pra frente e como havia sido milhões de anos atrás. Estava cansado do sol, do calor, do suor — de caminhar nu por lembranças de tempos distantes, a pele cada vez mais ressecada e dura. O primeiro homem abriu a boca, deixou a voz ecoar através da garganta, pelo chão do deserto arenoso e vermelho. Os pés calejados enfrentavam a areia com uma determinação sobrenatural. De longe, avistava uma grande flama no céu. Sentia medo, mas uma imensa vontade de continuar. Trazia consigo um galho comprido. Dividia com ele o peso do próprio corpo e se deixava levar na direção daquele ponto no céu, terrível e majestoso. Parava, de tempos em tempos, sugava a água do chão, mastigava pequenas frutas. Com as unhas compridas catava insetos presos a seus pêlos. No entanto, ele sabia: não poderia parar por tempo demais. Se demorasse demais, a flama se apagaria. Se demorasse demais, o mundo deixaria de existir e retornaria apenas ao amanhecer. Teria de esperar para retomar sua jornada. Se demorasse demais, seu trabalho terá sido em vão. Enquanto isso, o último homem trocava os sapatos. Fazer isso era necessário ao menos uma vez por semana. O calor insuportável do

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asfalto carcomia as solas em questão de dias. Naquele dia específico, o último homem havia encontrado um robusto par de botas de montaria, equipado com um revestimento sólido e espesso. Era como se estivesse equipado para combater o clima hostil e, a cada passo que dava, fazia reverberar o som de um tambor que tocava uma marcha de guerra. Se fosse o primeiro homem, pensava ele, a primeira coisa que faria seria inventar o sapato, talvez recobrindo os pés com as folhas de uma árvore, ou com o couro de um imenso animal. Os dois homens, o primeiro e o último, caminhavam juntos. Nunca cruzaram caminhos. Vez por outra, o último homem se pegava imaginando se não estava errado, se não era ele próprio o primeiro homem de um novo tempo, um segundo primeiro homem. Mas não deixava esse pensamento contaminar seus dias, pois pensar nessa hipótese apenas reforçava a desesperança que habitava todos os lugares por onde passava. Enquanto isso, o primeiro sentia-se anestesiado, tomado pelo espanto de cada nova descoberta. Não entendia o porquê dessa sensação, ou o que isso significava. Agia instintivamente, de acordo com sua própria natureza. Simultaneamente, buscava significados naquilo que encontrava e, desse modo, deixava que a curiosidade guiasse seus passos. Anoitecia e os dois homens se assentavam em abrigos provisórios. O último homem atravessava um corredor largo em direção ao topo de um edifício, carregando apenas uma porção de comida industrializada que encontrara no meio do caminho. Através das janelas, o sol se punha e a sensação era de alívio — outro dia se passara e ele ainda estava vivo. Mas até quando poderia estender essa vida? Não sabia quanto tempo seria capaz de sustentar uma farsa, que não era apenas sua, mas de toda a humanidade. Abrigou-se debaixo de uma mesa, onde havia uma porção de roupas velhas e desgastadas. Foi o suficiente para agüentar o frio que vinha com a noite.

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Para o primeiro homem, o anoitecer era um momento de decepção. Tão logo percebia a esfera dourada desviando para trás das montanhas distantes, começava a lamentar o esforço investido nas últimas horas. Sentia que nunca alcançaria seu destino, ainda que retomasse normalmente o trabalho no momento em que percebesse a claridade tocando seus olhos. Era como se nada tivesse acontecido, como se o antes nunca tivesse existido e o mundo se reconstruísse a cada amanhecer. Para o último homem, tudo o que existia era o próprio antes. Viviam, assim, em comunhão — um habitava o destino do outro e vice-versa. Mas não poderiam estar situações mais diferentes. Para o primeiro homem, era necessário chegar a algum lugar. O último homem havia chegado nesse lugar, no último lugar possível, onde nenhum outro homem havia chegado. Tudo o que restava a ele era refazer seus passos e todos os outros passos dados sobre o chão. Naquele momento, os dois homens adormeceram. Deixaram a vastidão do mundo para trás, as paisagens desertas que tomavam conta de seus olhos quando estavam acordados. Passaram a viver em um mundo comum, onde poderiam se esquecer das regras de sobrevivência. Podiam agora sonhar em paz com as esferas de fogo, podiam visitar um ao outro e tentar entender o que havia de errado — Como o primeiro teria se transformado no último? Tomados por uma sensação estranha, um formigamento que os tomava de corpo inteiro, acordaram no meio da noite. Era algo que o último homem já havia sentido anteriormente, algo que lhe tomava quase todas as noites. O primeiro homem nunca havia sentido aquilo. Não sabia o que fazer. Decidiu ficar acordado, esperar até que o céu se acendesse novamente. Sentou-se sobre uma pedra e coçou a cabeça. Arrastou o galho na terra, descrevendo um rastro no chão. À medida que o galho desenhava essa linha atrás de si, o vento insistia em enfraquecê-la, até que tudo se apagou.

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E foi naquele momento que o último homem encontrou a verdade sobre si mesmo. Era o símbolo de todas as falhas de sua espécie, era o fracasso que a humanidade havia arranjado para si. E se ele era a soma de todas as vidas que o precederam, sua morte era a morte de todas essas vidas. E se todas essas vidas morressem com ele, então a humanidade deixaria de existir. E se ele morresse naquele momento, então o planeta poderia seguir adiante, livre da vergonha da humanidade. Então o planeta poderia encontrar uma maneira de se recuperar dos danos. E foi assim que o último homem aceitou a verdade sobre si mesmo, foi assim que abandonou sua obstinação. Seu destino, ao contrário do que imaginava, também era seguir adiante. Horas depois, o primeiro homem ainda estava sentado naquela pedra. Tudo estava escuro, mas aos poucos conseguia discernir o cenário ao seu redor. Estava acostumado à transição de um momento a outro, o céu apagado gradualmente se acendia até que explodia de tanta luminescência e calor. Mas agora, lentamente, as coisas ganhavam um brilho vazio, uma opacidade de cores que não se igualava a nada que tinha visto anteriormente. O calor que normalmente sentia nessas horas dava lugar ao toque úmido do ar, à suspensão da temperatura a um ponto que seu corpo mal podia percebê-la. E, ao olhar para cima, esperando que a esfera irrompesse por trás das montanhas como em todos os dias, percebeu não apenas sua ausência, como também a presença de vultosos amontoados cinzentos que se acumulavam um ao redor do outro e tomavam conta do céu.

MATHEUS BORGES (Porto Alegre, 1992) é escritor e roteirista, formado no curso de cinema da Unisinos, onde realizou o curta “Sombras na Esfera Celeste” (2013). Em 2016, publicou o conto “Camelo” na antologia “Onisciente Contemporâneo” (Ed. Bestiário). Recentemente, terminou de escrever o primeiro romance, “Mil Placebos”. | MATHEUSMEDEBORG@GMAIL.COM

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O AQUÁRIO RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA | São Paulo, SP.

[paulo henrique vê] aquela gente bem-vestida dentro do aquário, são nove pessoas, a mesa comprida, um homem e uma mulher com computadores à sua frente revezam a fala, é a única mulher presente, alguns fazem notas em blocos, outros olham qualquer coisa no telefone celular, principalmente quando é a mulher quem fala;

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por estarem dentro do aquário, paulo henrique nada consegue ouvir, apenas observa os comportamentos, pequenos gestos fugidios ou não, por ex.; um

homem

de

aproximadamente

quarenta

anos,

sobrepeso

moderado, que não justificaria se preocupar com obesidade mórbida, apenas com um infarto aos quarenta e nove ou diabetes aos sessenta e dois, causa mortis inerentes, corta as unhas usando um pequeno alicate; alguém boceja e passa adiante, enquanto paulo henrique se pergunta que merda de engrenagem é aquela que ele precisa fazer parte, e logo se lembra do adaptável e tinhoso caso-contrário em seu cangote; é o demiurgo que diz para toda a gente que a um estado fodido de privação se resumiria você já nos próximos dias, no mais tardar duas, três semanas, com as contas e as dívidas se acumulando; paulo henrique pensa essas coisas simples, materiais e objetivas, quando um a um vai deixando o aquário com suas cabeças orgulhosas amarradas aos ternos por complicados nós de gravata que ele nunca conseguiu ou realmente quis, e dá no mesmo, fazer; pensa naqueles homens como descendentes de alguma espécime dos equídeos que remonta aos tempos de Temudjin; pensa por fim na eficiência purificadora da consciência autodestrutiva, de saber que ainda pode escolher outro caminho e ignorar;

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o homem e a mulher dos computadores são os últimos a deixar o aquário e vêm na direção de paulo henrique, que se levanta do sofá em que fora deixado por um assistente que agora não reconheceria mais e cumprimenta-os; boa tarde, muito prazer, meu nome é Paulo Henrique Gimonde [porque a fala também admite as iniciais maiúsculas] e tenho entrevista marcada.

RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA tem publicados a ficção A saga de Lucifere (The Trinity Sessions — Cowboy Junkies, Ed. Mojo Books, 2009) e os livros Rapsódias — Primeiras histórias breves (contos, Ed. Multifoco, 2009), A construção da paisagem (crônicas, Ed. Sapere, 2012), e Carnebruta (contos, Ed. Oito e Meio e Ed. Apicuri, 2012). Site: http://www.rodrigonovaesdealmeida.com/|DIGONOVAES@YAHOO.COM.BR

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APOPHIS SAT AM | Curitiba, PR.

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Vento que sopra dos confins do universo A promessa de dias melhores carrega E logo devorado és Por aquilo que de pilares cósmicos é formado A matéria em expansão dentro do nada, no vácuo do caos Quem a mim, ou a ti, poderá explicar Os segredos que o negro vazio esconde? E vagando por imensidões de estrelas mortas No horror de teu nome inominável No horror de contemplar o incontemplável No horror de visualizar o invisível Eu me vi refletido nesse espelho que não reflete E nesses versos o calor de sóis antigos e inóspitos Onde o nada proferiu suas palavras e nada fora criado Uma Gênesis reversa de sentido duvidoso e complexo Há todo um Q de poesia sem o ter Há todo um sentido de magia sem nada evocar Há um som ao fundo sem nada ressoar Havia algo aqui sem nunca perceber SAT AM é estudante de Letras-Japonês da Universidade Federal do Paraná. Desde que se entende por gente, escreve poesia/músicas como válvula de escape. Seus textos sempre estão carregados dos seus pensamentos: Ódio, raiva, terror, luxúria, são temáticas recorrentes nos meus trabalhos. | ANDREY_SAT@HOTMAIL.COM

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sobre RETY RAGAZZO

Nas palavras da própria ilustradora, Tento, por traços e pontos, observar o mundo além de suas formas. Não há necessidade de impor pontos de vista quando se luta pela superação de padrões. Sendo mulher, feminista e gorda, a necessidade de superar a uniformidade de olhares e estética é questão de sobrevivência. Há silêncios no ser mulher que as palavras ainda não nos dão repertório de vocabulário o suficiente para expressar. Encontrei no desenho a melhor maneira de imprimir isso. A abundância de um corpo gordo permite que entre dobras se escondam os segredos da nossa libertação. A mulher gorda com asas é para

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mim a expressão dessa libertação e da contradição gerada pela mente leve em corpo denso. Daí nasce a série de desenhos da Gorda Voadora e parceria com Ana Roxo nos desenhos de Entre Dobras. Gordas em movimentos simples porque a emancipação não se dá somente na complexidade, mas em focos do cotidiano, no deslocar do espaço e tempo. Nessa edição da revista Subversa um novo desafio: ilustrar a partir das óticas desconstruídas e questionadoras de outros corpos, de outras silhuetas que dividem o mesmo espaço e tempo. No entanto, algo que nos une: a inquietação da forma dada do ser no mundo. A não aceitação da mesmice e o questionamento em borbulhas na garganta.

Rety Ragazzo | RE.RATTI@GMAIL.COM

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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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