Revista subversa vol 5 n9 dez2016

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SUBVERSA

Vol. 5 | n.º 09|dezembro de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração MARILIA MOSER

DOUGLAS SIQUEIRA FABIO NAVARRO LUCIANA TISCOSKI JESSYCA SANTIAGO OTACÍLIO MOTA SAMUEL DIAS GUILHERME SCALZILLI RAPHAEL PAIVA VAGNER SILVA NORBERTO DO VALE CARDOSO


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 5 | n.º 09

© originalmente publicado em 01 de dezembro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações MARILIA MOSER

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME cinco | NÚMERO 9 DOUGLAS SIQUEIRA | ABISMO | 05 FABIO NAVARRO | JABUTICABEIRA| 07 GUILHERME SCALZILLI| MARIENPLATZ | 10 JESSYCA SANTIAGO | CATAVENTO| 14 LUCIANA TISCOSKI | UMBO | 17 NORBERTO DO VALE CARDOSO | FESTINA LENTE | 22 OTACÍLIO MOTA| JOGO E CENA| 27 RAPHAEL PAIVA | POEDURA | 29 SAMUEL DIAS | LENÇOL VERMELHO | 31 VAGNER SILVA | ANALFABETISMO SENTIMENTAL| 33

Marilia Moser e os novelos de dar nome às coisas| 35

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EDITORIAL “em todo enunciado, contanto que o examinemos com apuro, levando em conta as condições concretas da comunicação verbal, descobriremos as palavras do outro ocultas, ou semi-ocultas e com graus diferentes de alteridade”. Mikhail Bakhtin. Estética da Criação Verbal.

Já que nos identificamos imensamente com esta ilustração da Marilia Moser que leva a capa do número, pensamos em escrever um editorial contando sobre como as coisas se passam entre nós, editoras, no sentido da nossa comunicação no processo de formação da identidade da Subversa. Porém, algumas linhas abaixo, logo vimos o quanto isso seria redutor, porque a nossa comunicação acaba por ser atravessada por uma estrutura maior de diálogos, das quais somos apenas uma parte. Quando começamos a trabalhar, falávamos basicamente entre nós, alguns autores conhecidos e outras pessoas que considerávamos referência no caminho que queríamos fazer. Porém, foi só depois que o ritmo de leituras se estabeleceu e que o texto realmente chegou, que a identidade da Subversa foi se consolidando – e assim acontece até hoje. Vimos que é esse reconhecimento de variados registros de escrita e contextos de onde o texto chega, que vai nos aperfeiçoando como pessoas, como editoras, como projeto. O que podemos dizer então é simplesmente que, por mais fechado que algo seja em sua própria identidade, a leitura e a entrada do texto mantêm sempre um espaço aberto para o alargamento das fronteiras. É interessante como essa distância que mantivemos entre nós (e que continuamos a manter, pelo menos geograficamente) acabou sendo ocupado pelo Outro de forma decisiva, para nós, para a Subversa e para o texto em si. A literatura tem isso, de colocar em choque uma necessidade urgente de ouvir a si próprio e de que o outro entre e ouça o que está sendo dito. E parece que é assim que a obra vai tomando forma, e parece que é assim que uma identidade nasce. Desejamos a todos mais uma boa leitura, ilustrada pelos elegantes novelos da Marilia Moser. As editoras.

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ABISMO DOUGLAS SIQUEIRA | São Paulo, SP.

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o abismo entre dois seres descontínuos faz-se espaço infinito de dor

DOUGLAS SIQUEIRA é bacharel em Comunicação Social com habilitação em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É idealizador e escritor da página (autor ensandecido) desde 2013 e, além de escrever poemas, atua na área de Produção Audiovisual como professor e realizador. | DOUGLASOSSIQUEIRA@GMAIL.COM

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JABUTICABEIRA FABIO NAVARRO | São Paulo, SP.

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senta-se no interior do túmulo à frente apenas uma jabuticabeira sempre ela... a mesma árvore dum quintal inclinado o tamanho? um Crocodilo do Nilo! [àquele que não cabe na sala em éle a forma do encontro entre Parede X Encosto pequeno cadafalso sem jardim posterior ali é onde apazigua-se a cinza do cigarro nos pulmões! no alto a forquilha cravada ao tronco a lembrar outrora galhos hastes de equilíbrio no quintal do avô, um quase desconhecido ali onde se percebe tudo isso & O Mundo perpendicular ao nariz estirado na importância de imagens misérias residuais formadas na retina as explosões nas distantes Terras refletem em livros deixados nas prateleiras ali onde a sombra desta árvore destrava memórias em lufadas de ar ao redor dos galhos no encontro entre O Quintal e O Pátio

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agarra se ao respirar da vida entre um trago e outro de aflição.

FABIO NAVARRO, escritor de supostos poemas, já teve trabalhos publicados nas revistas Mallarmargens, Literária Br., Jamé-Vu, Ensaios Sobre a Loucura e Altnewspaper. Também poemas musicados por nomes como Música de Ruiz. Classificado entre os dez melhores poetas paulistas de 2015, o primeiro livro sai em breve pela Editora Benfazeja. | GANGRENADIARIO@GMAIL.COM

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MARIENPLATZ GUILHERME SCALZILLI| Campinas, SP.

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Um cachorro de pulôver. Babás com bebês insones. O hábito de ganhar tempo só faz aumentar a espera no bairro de casas velhas. Galanteio vão sobre cenho intenso: ela abre a cerveja, colhe as moedas do balcão, perde a conta (corrige) e ri: diz que precisa de umas férias. Faltam-lhe, porém, quaisquer somas (ou, em vernáculo: erra ela algo)? Muito ar a entorna. Toda sua, pouco ou nada de outrem. Enigmas demais? Não é da nossa conta. Impossível tangê-la, imersa na miragem do que parece ver

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este seu ser por si. Mas será que é, de fato, feliz? Quem nela sorri? Que vazio ali deseja? Como reter esse vácuo que por nossos anseios funde, choca e afugenta (se é que há desejo algures)? Eis o que me reconforta: a dor de já ter amado toda bávara do mundo; essa alegria molesta, espécie boa de angústia que as cicatrizes (e ela) afloram. Feito nos bares, a sós, ou na praça a esmo. Ótica simples: no espelho, o que te vê, vês – procuras, nativa? Tenho piores. Mesmo falto de buscas, sigo tentando perdê-las, como essas contas tuas.

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És, a teu modo, perfeita? Continuo, ao meu, mártir.

GUILHERME SCALZILLI é historiador e escritor, mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp. Autor do romance “Crisálida” (Casa Amarela, 2007) e de outros volumes de contos e poemas. Colabora regularmente com diversos veículos de comunicação. http://www.guilherme.scalzilli.nom.br/

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CATAVENTO JESSYCA SANTIAGO | Rio de Janeiro, RJ.

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Catavento Conta o tempo, O momento Que passou. Foi o riso, Foi a lágrima, Me pergunto, “O que restou?”. Conta o tempo Catavento, Mesmo esse Tão nublado! Tanto amor, Quanto amor! Escondido, Bem guardado. Canto triste Triste Encanto Tão perdido E renegado. Canta o tempo Catavento! Vem lembrando O que se foi. Foi o sonho,

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Foi o pranto, O amor Nem sei se foi‌

JESSYCA SANTIAGO (Pernambuco, 1988) vive desde a infância no Rio de Janeiro, onde se formou em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e trabalha como professora.

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UMBO LUCIANA TISCOSKI | Florianรณpolis, SC.

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Mulher de sombras. Sempre o preto e o branco e o cinza, matizes dessa Berlim de espaços vazios em mim. Palhaço, busco sua sede. Eu só quero retratar sua sede, Mirtza, sua sede de viver, era o que eu repetia nesse dia enquanto ela, impassível, fumava seu cigarro e olhava com atenção perscrutante as sombras que a fumaça fazia na parede esburacada e suja. Eu ali de braços pendidos, a câmera na mão esquerda, à espera, inerte e desejoso da sede de Mirtza. Eu, o palhaço fotógrafo, esquecia no decorrer das horas o que fui antes de ser esse que perseguia a mulher de sombras. E no instante presente, tudo o que sei é Mirtza. Sei que torço para que o cigarro se demore, para que cada tragada leve alguns longos minutos no trajeto da fumaça desde a passagem em seu batom escuro até os pulmões e atravesse queimando seu pesco tão branco, tão liso, e que depois retorne pela garganta dela, já nutrida e transformada em formas dançantes na parede. Mirtza é imagem, é toda uma Berlim que morre, uma Berlim que exala fúnebres poeiras, Mirtza é toda vida em meio à morte, ela teima em seguir de perto o caos que se instaura desde agora, ela insiste na contaminação, quer estar em todos os momentos desse início fim de século, a guerra, a fome, a sede de Mirtza não cessa. Se ao menos eu pudesse retratá-la e então na imagem revelada eu pudesse demorar meus dedos no trajeto dessa fumaça e percorrer seus dedos, lábios, as paredes de dentro da cavidade bucal, dentes e língua, garganta e peito... talvez assim apaziguasse minha vontade dessas sombras em Mirtza, era só o que me nutria agora que todo o resto estava incerto e à volta só se via desespero e morte. Acabou o cigarro, última baforada, ela já não olha a parede e a fumaça nela. Joga a guimba no chão, apaga a brasa com o verniz negro e opaco de seu sapato de muitas caminhadas nas ruas de Berlim. Essa cidade é Mirtza na medida em que pode a qualquer momento se transformar em outra coisa, é potência, é vazia e crua, sombra em ruínas. Mas ela, em sombras, vencerá a morte dessas ruínas, Mirtza vence todos os tempos e desastres porque chega

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antes da morte em qualquer lugar. Agora seus sapatos já caminham acelerados pisando a calçada e iniciando o traçado de seus passos negros em movimentos felinos, quase fera, quase mulher, ela fere com o salto os ouvidos que passam desajustados pelos barulhos de uma guerra finda e outra anunciada, a mesma, sempre a mesma última guerra. Eu palhaço, sigo atrás e miro além de Mirtza, os olhos agressivos que atravessam a bela figura em preto e branco de Mirtza e param em mim, o palhaço de colorido cinzento e triste. Kurfürstendamm, minha rua espelho, prisma solarizado de cinza, luz cinza dessa rua que em mim explode em alegria contida. Eu Mirtza, que aprisiono cores... o palhaço ainda no meu encalço. Segue meus passos com a câmera na mão. Lindo e triste, colorido desbotado, boca pra baixo, que palhaço tem serventia aqui na minha Kurfürstendamm? Esse palhaço tem sua razão de viver, quer captar minhas cores, quer colorirse do meu feminino, mas preciso em algum momento lhe dizer que não há canais abertos para que as cores saiam, não há canais abertos para o meu feminino, tudo espraia-se apenas dos muros pra dentro, os muros em mim são ainda mais fortificados e vigiados que esses que nos separam de outros seres, outros lugares, outras memórias, outros... Palhaço, triste figura. Esbarro em pessoas que tem nos olhos umas perdas irreparáveis... perderam os próprios olhos, nutrem-se dessa neblina de sons, de medos, plantam em frestas das calçadas mortas umas flores do mal, talvez sem cheiro, não chego nunca muito perto delas, porque meu nariz está sempre cheirando alturas onde a podridão é ainda mais intensa. E nessa noite, eu Mirtza, por gratidão à vida, deitarei meu corpo todo branco violeta ao lado do corpo de um grande rato branco pardo, alemão por acidente, como por acidente ter nascido assim tão de papel, tão de nada revestido, tão de nada preenchida a farda que esconde o corpo gordo branco pardo. E algo se dará da união de uns pedaços de seu corpo aos meus pedaços, umas peles roçarão, uns líquidos se misturarão e deve haver alguma

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espécie de fusão que do nada e da explosão de cores faça com que o canal verta por outras vias alguma coisa que se chame amor? Sei que o palhaço da triste figura estará rondando e tentando me proteger desse encontro com o risco do abismo, esse palhaço que não sabe ser, no fundo, muito maior que eu... e como eu suportaria, se ele capturasse minha alma, deitar novamente com o corpo abjeto do homem de farda? Ele será testemunha hoje à noite uma vez mais dessa minha grande tentativa de fé nos fétidos canais carnais, e que a minha sombra ressurja em arco-íris junto aos fogos noturnos e aos vagalumes e às mil rajadas de morte que cairão dos céus em breve anunciando pesadelos de alguns muitos séculos por vir. Mas eu permanecerei, porque tenho sede de ser pervivente apesar de tudo que pra fora não se realiza. Hoje ela será resgatada para sempre, terei Mirtza inteira em minha mão esquerda, em minhas retinas tensas, ainda que muda, ainda que em sombras, captarei sua alma, seu sumo, seu imo. E revestirei todas as ruínas dessa cidade e todos os monumentos e as demais barbáries em cimento e ferro edificadas com a imagem em sombra e luz de Mirtza, todos saberão que apesar da guerra, há uma intensa, indizível, infinita outra explosão de coisas muito mais vida por acontecer bem diante de seus olhos mortos. O rum está queimando em minha garganta, agora já queima o estômago, queima meu corpo inteiro. O café está vazio de cores, mas há uns rostos esfaimados de qualquer tom, qualquer mínima euforia, qualquer mínima calmaria. No rádio toca Marion Harris cantando a melancolia de St Louis Blues e alguns ciganos de New York dançam dentro de mim, ciganos negros saem em fumaças densas da garganta americana e loura de Marion Harris. Aqui no café da Kurfürstendamm meu corpo já todo se prepara para o sacrifício. O corpo fardado já se aproxima, lento e pesado. No canto, às escuras, por detrás de fumaças e notas de St Louis Blues, o palhaço me lança todos os olhares de uma

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coleção de desejos, quer captar minha sede de rum, de blues, de ciganos negros em New York, mas algo corta o fio de seu sonho em mim, o corpo gordo branco de papel atravessa nosso canal de imagens, rompe nossa harmonia melodiosa. Hoje num café em Berlim, ainda pode ser lida a prosaica notícia de um acontecido ali naquele mesmo café há exatos 86 anos. Conta-se na folha amarelada do jornal antigo emoldurado na parede, que um fotógrafo palhaço investiu como louco contra um oficial da polícia nazista munido apenas de uma garrafa de rum quebrada. O palhaço, munido também de uma câmera, registrou por acidente alguns instantes desse infortúnio. As fotos amareladas e emolduradas no café de Berlim, da rua Kurfürstendamm, revelam cenas em que o próprio palhaço jaz quase morto, ensanguentado e algo feliz nos braços magros e brancos de uma moça em trajes negros e ar doente. Pela notícia, esta moça, sem documentos nem voz, muda e pálida, talvez demente, teria sido o estopim causador da discórdia. A câmera teria disparado desde o chão, o que acarreta nas imagens uma surreal impressão de algumas sombras esbranquiçadas como se fossem fumaças fantasmas saindo dos corpos do palhaço e da moça cinzenta. A notícia jocosa conta ainda que uma das fotos do casal inusitado formado pelo palhaço e a suposta prostituta teria por muito tempo estampado ruínas e demais paredes daquela cidade, com certeza coladas pelas mãos de revoltosos que tomaram o palhaço morto por herói por ter se rebelado contra o poder totalitário de um representante da milícia nazista.

LUCIANA TISCOSKI é professora, jornalista e escritora. Mestre em Literatura Brasileira e Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Tem diversos artigos, ensaios acadêmicos e resenhas publicados em periódicos especializados na área de Literatura. Dedica-se atualmente às aulas de Filosofia e Sociologia que ministra no ensino médio e à pesquisa de Pós-Doutorado em Filosofia. | LUTIS02@GMAIL.COM

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FESTINA LENTE NORBERTO DO VALE CARDOSO | Chaves, Portugal.

Procuro o lugar onde não há trevas, mas encontro sempre um revólver sobre a mesa-de-cabeceira, no lugar onde deveria constar o dicionário de aramaico ou o de sânscrito. O meu corpo está a ser rodeado de areia, submerso numa cova em frente ao mar. A minha cabeça é um labirinto: como to explicar, se nem eu mesmo o consigo percorrer, sempre nele me perdendo e continuamente nele tentando voltar ao princípio, sabendo que tal não é possível. Como te dizer

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sequer quem eu sou, se não sabes mais que o meu nome, mesmo que o nome seja uma casa com um rosto sem que apreendamos os seus compartimentos interiores. Como te explicar que a minha vida é como a de um candeeiro pendurado num tecto a julgar-se alguém enquanto emite uma espécie de luz. Como to explicar sem contornar as coisas essenciais, sem que olhes o relógio de pulso para averiguar se tens ainda tempo de me escutar. Se eu fosse capaz, far-te-ia ouvir como quem esquece as coisas, as flores que murcham, o tempo que passa e o tempo que vem, magoando-te tão fundo quanto me magoa sentir a polifonia de Bach. Além disso, não pretendo ser em ti um lugar que doa, procuro apenas esse lugar onde não haja trevas para que delas saia ileso para ti e para o mundo. Um lugar onde o meu corpo se mova. Onde a cabeça tenha um rumo certo. Onde o candelabro seja um braço para nele pousares a cabeça. Mas sou como uma faca sem lâmina à qual falta o cabo; uma vontade aprisionada que só a loucura pode libertar. A esta hora deves estar a perguntar-se por onde ando, o que faço, que terá sido feito de mim, mas não é isso que espero: que te perguntes por mim como um sinal de que ainda tens esperança que eu viva, que faças de cada dia um lázaro passível de voltar para os teus braços depois de desvelar os seus membros. Não quererás, por certo, esperar por mim tanto quanto Penélope aguardou por Ulisses, como se eu regressasse de entre aqueles que devem estar mortos. Espero, sim, que vás caminhando, como te pedi, não esperando por mim, ou esperando sem que eu seja em ti uma contracção, antes encontrando, numa fuga silenciosa, um lugar onde ninguém te encontre para, depois, poderes viver sem relutâncias e animosidades para comigo. (E, quem sabe, eu te possa encontrar depois da vida.)

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Porque me engano todos os dias, porque me falseio para todos a toda a hora, sinto ainda que é tempo de começar a correr, a correr devagar como quem tenta mover-se numa cova feita no meio da praia deserta, entrevendo, entretanto, a maré que sobe. Correr. Devagar. Não há outro modo de chegar a esse lugar que sempre procurei desde que me não lembro ou me lembro e não quero lembrar. Há-de existir uma luz algures, num qualquer mês, num qualquer tempo, num momento que ainda não sou capaz de precisar. Há-de existir. E então corro. Corro através de uma rua interminável. Corro através dos campos. Das ladeiras das cidades. Das cidadelas abandonadas. Das pontes. Dos caminhos. Dos cardais. Corro, sim: mas não sei se fujo, se regresso, se parto, se não saio inclusive do mesmo lugar. (Esta é a minha maior preocupação.) Não sei. Sei apenas que corro incansavelmente, mesmo sabendo que esta é uma corrida perdida antes de começar. Corro. Corro devagar. Por vezes, a lâmina do sol incide nos meus olhos, o dia finda, a terra gira, outra parte do dia há-de chegar, outro lugar, outro cabo de outra parte da terra, mas, independentemente disso, não pretendo baquear. Por mais que as árvores se esfolhem, por mais que o mundo se mova, não quero alquebrar, mesmo que sinta que sim, que sou intermitente, que quase me vergo, que a sede e a fome condenam o corpo, que as emoções saqueiam a mente e – o que mais me custa - a própria memória. A caneta fumega algures. O cálice apresenta-se a alguém. A estrada gretada dificulta os passos de quem corre. O lugar onde não haja trevas pode ficar para trás – nunca tinha pensado -, mas agora que reflicto sobre isso o cenho dói-me um pouco mais no que quero ser: um homem que corre incansavelmente cansado; um homem que ninguém veja, que se encontre oculto entre os outros, obnubilado pela sombra das ruas por onde passa. É que eu quero continuar sozinho, observando, neste correr devagar, a vida das formigas, como se todo o

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tempo estivesse ainda à minha frente no formigueiro das palavras que construo por dentro. A verdade é esta: quero que a exaustão me obrigue a engalfinhar em posição fetal, a partir da qual não procure recuperar (com horas de atraso) a desvantagem em relação aos outros corredores. E deixar de falsear, e deixar-me deste logro que sou, desta representação maquinal que, em dia, me corrompe. Sim,

talvez

haja

outras

ruas

e,

nelas,

outros

corredores

compenetrados nas suas corridas. Talvez de entre eles haja um outro corredor a correr, coetaneamente, mas, por paradoxo, num outro tempo, como eu, quem sabe. Talvez não nos vejamos, ladeados pelos edifícios, mediados pelo público que passa - sem ver - enquanto se encaminha para as suas vidas difíceis, que são quase como um objecto que não se entende para que serve nem como funciona. Talvez não nos conheçamos, nunca nos tenhamos visto e nunca nos encontremos. Quem sabe corramos na mesma rua, que parece multiplicar-se em várias ruas de todas as cidades do mundo, como se a corrida fosse uma maratona interminável. Talvez entremos no ventre da cidade, em que os

dois

percursos

se

possam

encontrar,

mas

talvez

não

nos

apercebamos da presença um do outro, prosseguindo cada um a sua corrida como se estivéssemos sozinhos nela, únicos corredores da corrida mais absurda. Nada importa. Ninguém regressará seja onde for depois desta corrida, tenha ela a distância que tiver. Tudo o que é perdido é definitivamente perdido. Nada é resgatável. O que se dá hoje não se dá ontem. Sabe-se e era preferível que não se soubesse e não se soubesse que se sabe. Tudo se encontra à nossa frente. Tudo ficou para trás. Tudo se move. Tudo escapa. O mar sobe. O corpo está enterrado na areia da praia. O labirinto nasce dentro do labirinto. Os lábios cerram-se. Os leprosos escondem-se. Os candelabros agitam-se com o vento que escorre por uma porta entreaberta que não esqueço. (Como poderia?)

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Quem sabe sum poeta, compenetrado na leitura, veja o seu trabalho lento pontualmente interrompido, marcando a passagem, «Só havia/ o caminho do monte./ A ele fui, carregando nos ombros pai Anquises», para se tornar no observador único da corrida inexistente dos corredores invisíveis. Quem sabe o poeta seja capaz de ver ou de ter a sensação (da qual duvide entretanto, tendo em conta a negaça popular) de que um homem (ou dois) passara por aquele lugar sem parar, ou se pergunte para onde ou para quem correria o corredor (ou a sombra do corredor) que lhe parecia ter vislumbrado, de onde ou de quem fugia (se corria, se fugia, se existia). Quem sabe a sua conjectura o perturbe como um fardo que carregue para todos os lados, sem que haja meta que cortar, numa corrida lenta, lembrando o decreto de Virgílio para a destruição da Eneida - como um atleta que abandona a corrida após muitas léguas de esforço. (Sim: abandonar no último fôlego ao avistar a praia.) Quem sabe o poeta regresse ao seu trabalho e crie inúmeras versões desta corrida inexistente: pedras amovíveis, olhadas da prisão onde se encontra em consequência de um voto - e cada folha branca das mil que enfrenta seja um ex-voto. Se isso acontecer, podes ter a certeza de que na minha mesa-decabeceira encontrarei, não o revólver, mas o teu anel, o fio com que adornas o pescoço, as fitas com que apanhas o cabelo, e então é certo que a luz da manhã incidirá nos meus olhos sem me magoar, traduzindo para a minha língua, mesmo que em catacreses, as trevas que jamais me voltarão a encobrir.

NORBERTO DO VALE CARDOSO é doutorado em Ciências da Literatura pela Universidade do Minho. Professor e investigador. Publicou, na Texto, o ensaio António Lobo Antunes: As Formas Mudadas (2016). É autor de várias publicações, estando integrado em várias antologias de poesia e conto. | NORCARDO@GMAIL.COM

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JOGO E CENA OTACÍLIO MOTA| Belém, PA.

Peso as palavras, para saber quantas letras tem uma angústia e se o sonho acorda o meu sangue. Que entranhas cobrem o meu leito, esvaziam os meus versos e decoram as minhas feridas. Teço as falas e entrelaço as lágrimas. Pés de fuga caminham a minha praça, esburacam a minha direção e transmudam o meu rumo.

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Dois olhos formam forças ocultas. Cada um olha os opostos. Enquanto o sim do marasmo toca a música que atropela. As águas curvas dos rios, alagam a minha escapada e me perco na confusão dos caminhos. Os sonhos secretos confundem a minha personalidade e me deixam tonto. Tanto lazer solitário e gozos inúteis. Uma colcha de retalhos forma a minha bandeira e a minha história são cláusulas perdidas. Caço solitário a minha ceia, e meu destino obscuro faz de mim jogo e cena.

OTACÍLIO MOTA (1934, Belém do Pará) é delegado aposentado da Polícia Civil. Hoje escreve poesias baseadas em sua rica vivência. Elas retratam, em sua maioria, a busca de um amor feliz que ficou para trás, e tem como espaço a Ilha do Mosqueiro, onde cresceu e hoje dá vazão às dores do coração. | OSLMOTA@HOTMAIL.COM

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POEDURA RAPHAEL PAIVA

| Rio de Janeiro, RJ.

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Oh, poema, que descanse sobre vossa tristeza a voz cansada do exaltar-se só... que vocalize a sombra espessa do sentir-se... que não seja teu corpo somente a carnadura do que fez-se o pó... que não estejas só... Oh, poema, descanse em paz, é só.

RAPHAEL PAIVA. “Um dia, indagaram-me o que sou: Um só, de corpo e alma, frente e verso”

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LENÇOL VERMELHO SAMUEL DIAS | Muzambinho, MG.

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Todo dia eu sofro e mergulho em um vazio insincero Ao saber que estarei longe de você meu peito emana uma luz frívola O respingo de sangue em seu lençol Um coração bate artificialmente Acolhedor silencioso Existe algum sentido ao estar ao seu lado com um sorriso vazio? Amargas feridas se provam fúteis... Deixe-me morder seus lábios até sangrarem Amando uma curva de desejos Se guiando por palavras errôneas Por caminhos tortos e um sentimento vazio O chá com sabor do amanhã hoje está sem sabor Não deixe se enganar A quem provar os próprios erros? Nesta vida subterrânea não precisamos de luz Ignore-me, reflita-me e insulte-me

SAMUEL H. DIAS | SAMUELHENDIA@GMAIL.COM

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ANALFABETISMO SENTIMENTAL VAGNER SILVA | Lavras, MG.

Desculpem-me, mas não sei jogar o jogo da sedução. Não sei lidar com a sorte dos dados bailando loucamente sobre a mesa. Nessa onda da conquista, vejo-me sem lugar. Ou melhor, sou surfista amador, em um

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período em que o salva-vidas está de férias. Por isso, se eu gosto, sem muita firula, eu me entrego e ponto. Avisem ao autor que não quero ser o protagonista cujo dizer se torna totalidade, ante a pequenez do agir. Que ele me dê o papel de um coadjuvante ou, até mesmo, de um figurante qualquer. Eu não me importaria, contanto que o meu dizer e agir estivessem em sintonia; sem verdades meias, por favor. A lógica do fazer-se ausente querendo um carinho ou do jurar-se presente estando em outro ninho tem dilacerado a nossa ideia de união. Vocês ainda não perceberam? Estamos, todos, padecendo do analfabetismo sentimental. Não conseguimos ler o coração um dos outros. E se atentem que, para essa leitura, não é exigido um grau de instrução específico. Nesse ato, reinam a democracia e a pluralidade, mesmo que alguns doutos, infantilmente, advirtam que não. Precisamos enxergar que na escola do amor, fomos, todos, reprovados, alguns com notas mais próximas da média. Por carecermos de sensibilidade, somos frios, somos pedras, somos crus. Conseguimos entender, perfeitamente, a geografia do corpo, mas não queremos ouvir nem um pouco da história. Estabelecemos contatos de forma matemática, e temos até certa consciência do que significa somar. Porém, na redação, escrevemos a palavra amar como se significasse armar, e tramamos artimanhas várias, numa conquista vale tudo. Ao contrário do que possa parecer, não prego o culto ao amor puro e inocente, longe disso. Apenas me indigno, como vítima e algoz, ante o amor fantasia, o amor manipulador, o amor lábia - aquele amor que diz ser amor.

VAGNER SILVA é graduando em Direito e bolsista do Programa de Educação Tutorial Institucional (PETI) pela UFLA. Publicou, em 2015, o poema “Mudo (n)o mundo” no livro “15º Concurso de Poesias”, organizado pela CNEC de Capivari/SP. E, no 1º semestre de 2016, os textos poéticos “Costura amorosa” e “Rosa de 12 de Junho” na Revista Subversa e “Desamor” na Revista Philos. | VAGNERSB94@GMAIL.COM

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MARILIA MOSER e os novelos de dar nome às coisas. Numa

entrevista

que

publicamos com a Marillia Moser aqui na Subversa, ela disse que, quando pequena, achava que tudo tinha que ter cor. Da minha parte, eu diria que, além da cor, o que mais me chama

atenção

no trabalho da

Marilia são os fios, essa linha única que a gente vai percorrendo até os mínimos detalhes dos personagens. Quando

eu

era

pequena,

me

disseram que o que caracterizava uma assinatura bem feita era a permanência do traço no papel, que para construir a minha assinatura não podia hesitar com a caneta, tinha que ser uma linha só, desde o M até o H final. Hoje assino documentos levantando duas ou três vezes a ponta da caneta. Nunca consegui isso de dizer quem eu sou num risco só. Além de ser desobediente e não ter acreditado nessa regra, sempre achei melhor deixar umas lacunas pela vida, ou espaço livre para os nomes e as coisas entrarem. Para mim, as obras da Marilia mostram pessoas que, como eu, ainda não sabem exatamente quem são, embora assinem com tranquilidade seus nomes sem tirar por um segundo a tinta da superfície. E aí aparecem esses novelos maravilhosos, que ultrapassam a questão da identidade e parecem derreter um pouco esse problema da assinatura em forma de cabelos, curiosidade, entrelaçamentos e distâncias. São novelos que confirmam a história: pouco importa quantas vezes eu levanto a caneta da assinatura, assim como pouco importa como eu me chamo. Pra mim, a arte da Marilia é isso: um novelo de dar outro nome às coisas. Morgana Rech

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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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