Revista Taturana

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Londrina completará 75 anos no próximo dia 10 de dezembro. Entre tantos episódios curiosos relacionados à cidade, pode-se dizer que o cinema londrinense nasceu antes mesmo da fundação oficial de Londrina. O Sr. Hikoma Udihara teria registrado em uma câmera 16mm uma colheita de algodão no sítio de Massaji Ohara e Massahiko Tomita a 27 de abril de 1934. Nascia dessa forma o primeiro registro da cidade a partir de imagens em movimento: filme realizado um pouco antes dos relatos antropológicos de Claude Lévi-Strauss (que esteve em Londrina por volta de 1935). Toda essa trajetória do cinema londrinense foi pesquisada e detalhada em 1995 no trabalho de conclusão de curso do jornalista e pesquisador Caio Júlio Cesaro, Memória: Produção Cinematográfica em Londrina. Em sua pesquisa, Cesaro relaciona todos os registros em película ocorridos em Londrina e região até os anos 1990. O nascimento do cinema em Londrina partiu da vontade de registrar tudo que acontecia na região em que estava instalada a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP). Era o distante ano de 1932, quando um cinegrafista de 50 anos passou a registrar em um filme reversível (com cópia única) 16mm as terras e a mata que hoje conhecemos por Londrina. O cinegrafista era o

japonês Hikoma Udihara (1882-1972), o primeiro cineasta londrinense, considerado pelo crítico de cinema Carlos Eduardo Lourenço Jorge “o ponto de chegada e partida imagística de Londrina”. Apesar de indícios de filmes realizados já em 1932, o filme mais antigo de Udihara, com data comprovada, é o já citado de 1934. Nascido a 7 de novembro de 1882, na província de Kochi, no Japão, Udihara só chegaria ao Brasil em 28 de junho de 1910, no porto de Santos (SP). Por volta de 1920, dedica-se ao ramo de corretagem e colonização, fundando colônias e núcleos de imigrantes japoneses. Em 1922, ingressa na CTNP a convite do gerente geral da Companhia, sr. Arthur Thomas. Torna-se o agente exclusivo da CTNP para negociações com japoneses. O leitor deve estar concluindo: então Udihara passou a filmar para convencer colonos japoneses de outras regiões brasileiras a vir para Londrina? Exato. A nora de Hikoma, Kasue Udihara, em entrevista ao pesquisador Cesaro, 5


contribui decisivamente para essa conclusão, definindo Udihara como um cinegrafista que não entendia de cinema e nem de arte: “Filmava tudo o que via. Era um curioso que gostava de fotografar e filmar”. O cineasta prosseguiu com seus filmes e suas vendas até 1969. Morreu em 1972, em São Paulo, após sofrer um derrame cerebral e ficar paralítico. Em 37 anos, fez cerca de 124 filmes curtos, que, segundo Cesaro, totalizam 10 horas de filme. Todos foram documentários, sem montagem, e com impressionante equilíbrio nos enquadramentos. Hoje parte desses filmes se encontra disponível em VHS no acervo do Museu Histórico de Londrina. Outra parte está conservada na Cinemateca Brasileira em São Paulo. Em 1999, a I Mostra Londrina de Cinema homenageou o pioneiro cineasta atribuindo seu nome ao troféu entregue pelo festival. Entre 2004 e 2006, Cesaro coordenou o projeto LondrinaCinema70, que sob o patrocínio da Prefeitura de Londrina realizou a restauração de 13 filmes curtos de Udihara. O segundo registro feito nessa ‘’terra roxa de paixão’’, como bem versava Nilson Monteiro, ocorreu entre 1934 e 1935: é o filme “Brasil: Moradores Alemães do Norte do Paraná”, dirigido pelo alemão Karl Otto Muller. A película 16mm mostra a viagem de trem de Ourinhos até Jataizinho; a Colônia Heimtal; a sede da CTNP em Londrina; além de mata virgem e plantações de café. O documentário foi realizado em preto-ebranco, com duração de 17 minutos. Há apenas uma versão em VHS do filme, realizada há alguns anos por uma emissora de TV local. Após esse documentário, rodado em grande parte em Rolândia, surge o terceiro homem de cinema em Londrina - o paulista Renato Melito.

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Segundo Cesaro, Melito começou a filmar por intuição, vocação mesmo. Nos anos 1940, ele cria na cidade a Rilton Filmes, sua empresa cinematográfica. O pesquisador o considera o único profissional do cinema a atuar em Londrina e também o único a exercer o chamado “cinema de cavação”: “Ele pagava os custos dos seus filmes com o dinheiro que arrecadava do merchandising inserido nos filmes”, diz Cesaro, em seu trabalho. Em 30 anos de Londrina, Renato Melito rodou mais de 100 quilômetros de filmes em 35mm. Filmou até 1971, produzindo sempre registros ou documentários, entre os quais: a posse do Arcebispo D. Geraldo Fernandes em Londrina, as primeiras Exposições Agropecuárias de Londrina, “Jubileu de Prata de Londrina” (1959), “Londrina: A Capital Mundial do Café” (1962), “Londrina: Terra da Promissão” (1969). Segundo Cesaro, o paradeiro desses filmes é desconhecido. Depois dos três primeiros documentaristas do norte do Paraná, surge um homem disposto a fazer ficção cinematográfica, o médico Orlando Vicentini. Seu primeiro filme é de 1948, mas foi em 1949 que ele comprou a sua primeira câmera, a Bolex Paillard, 16mm, de origem suíça. A primeira ficção londrinense, possivelmente do Paraná também, foi filmada entre março e abril de 1954, intitulada “Um Dia Qualquer”. Mostra os filhos do médico em sua rotina antes de ir para escola. Em dezembro daquele ano, Vicentini produziria sua segunda incursão dramática, o curta “O Natal de 54”. Ambos os filmes são coloridos e mudos, com cerca de 10 minutos de duração. Apesar das condições precárias de que Vicentini dispunha, percebe-se que ele era profundo conhecedor da linguagem do cinema. Segundo Cesaro, ele assistia a muitos filmes e tinha uma boa noção


de alguns elementos da estética da sétima arte. Em seus filmes, há fusões, contra-planos, bons enquadramentos, e uma razoável direção de atores (seus filhos) que lhes reservam certo tom de espontaneidade. Em 1959 é filmada a obra-prima de Vicentini e talvez o melhor filme da história do cinema londrinense, “Londrina 1959”, uma homenagem aos 25 anos da cidade. Para a produção do filme, segundo Cesaro, Vicentini comprou uma lente Cinemascope e usou filme Kodachrome colorido. Mesmo com o bom resultado, Vicentini sempre achou “Londrina 1959” um filme ruim, conta o pesquisador. “Ele ia tirando imagens do filme ao longo dos anos”. A montagem inicial tinha de 40 a 50 minutos. A versão final, entregue à TV Coroados em 1984, na ocasião do cinqüentenário de Londrina, tinha 20 minutos, que foram mostrados na íntegra pela TV em rede estadual, em um especial sobre a cidade. Nesse mesmo ano de 1984, a cineasta curitibana Berenice Mendes veio a Londrina e realizou um documentário em 16mm, curta-metragem, sobre a cidade, usando imagens do filme “Londrina 1959”. As únicas cópias disponíveis desse filme estão com a família, no formato original e em VHS, e com a Kinoarte, que em 2006 realizou a telecinagem desse filme para o suporte Betacam analógico e para formato DVD. O outro grande ficcionista do cinema pé-vermelho foi o médico especialista em ortopedia e traumatologia, o espanhol Vicente José Lorenzo Izquierdo (1924-2000). Nascido em Madrid, na Espanha, ele veio a Londrina no fim dos anos 1950. Comprou sua primeira câmera em 1957, uma Keystone 16mm, movida a corda. Fez alguns filmes registrando a família, mas logo passou à ficção. O primeiro curta nesse estilo é “O caso do

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Magrini Preto”, de 1961. Depois dessa produção, adquire uma câmera Yashica 8mm, e mais tarde, outra 8mm, uma Paillard Bolex. Nessa fase 8mm, filma bastante: “Chifres Além do Túmulo” (1961), “O Estranho” (1961), “O Homem Invisível” (1961) e “Os Diabólicos” (1962), todos em formato curtametragem, em preto-e-branco, e sem som. Depois dessas primeiras experiências, Lorenzo compra filmes Kodak com banda sonora, produzindo obras mais maduras e atrativas, como “Isótopos” (1968), “A Criatura” (1968), “Fausto” (1976), “Infração: Estacionar na Calçada/O Cego” (1978), “O Primeiro Carro” (1980), “A Argentina e suas Paisagens” (1980), “Macchu Picchu” (1980), “Vanderlei Vai Para a Cidade” (1980) e “Gênesis” (1983), único filme paranaense selecionado para a fase final do XI Festival Nacional de Filmes Super 8 do GRIFE, realizado na capital paulista, em 1983. Outros filmes premiados de Izquierdo são “Fausto”, que recebeu menção honrosa na 3ª Mostra Nacional de Super 8, em Curitiba, em 1977, e “O Cego”, vencedor do I Concurso Nacional de Filmes Super 8 para Educação de Trânsito, em São Paulo, no ano de 1978. Todos esses filmes são coloridos e sonorizados. “Isótopos” e “Gênesis” foram exibidos em 1999 na I Mostra Londrina de Cinema agradando boa parte do público. Hoje os filmes se encontram no acervo pessoal da família. Em entrevista a Cesaro, Izquierdo avaliou que todos os filmes que fez “foi pelo prazer de fazê-los” e disse não creditar aos seus filmes importância cinematográfica. Questionado sobre o gênero dos filmes que rodou, disse que não fez nada sério, “porque o fator comicidade sempre esteve presente em meus trabalhos. Nunca fizemos nada dramático”. Peter Lorenzo (1958), filho de Izquierdo, herdou


de seu pai o gosto pelo cinema, se tornando um diretor de fotografia de renome. Começou a fazer filmes em casa, ao lado do pai. Em 1981, formouse em Comunicação Visual pela UFPR. Seu primeiro filme foi “Engraxando”, de 1977. Ao longo dos anos 1970 participou ativamente do movimento cineclubístico em Curitiba integrando o Grupo Experimental Primeiro Plano. Seu segundo filme, “A luminosa espera do apocalipse”, de 1979, foi realizado em parceria com Ruy Vezzaro e Fernando Severo. O filme recebeu diversos prêmios e é considerado um trabalho emblemático deste grupo - Lorenzo foi o responsável pela fotografia. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, Peter fez câmera e fotografia de vários trabalhos em 16mm, 35mm e vídeo, além de still e fotografia de comerciais. Em 1992, recebeu um Kikito pela fotografia do filme “Desterro”, de Eduardo Paredes. Atualmente vive em Florianópolis (SC). Após esse ciclo de pioneiros, surgem alguns cineastas itinerantes. É o caso de Raul Zanketti, catarinense de Joaçaba (terra de Rogério Sganzerla). Com equipamento Super 8 e 16mm, ele realizou diversos trabalhos para emissoras de TV em Londrina, mas nunca se fixou em nenhuma.

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Filmou também muitos casamentos: cerca de mil. Teve mês em que Zanketti chegou a filmar 19 casamentos, informa Cesaro em sua pesquisa. O cineasta só realizou um filme de ficção, contando a história de uma mulher que se converte à religião. Em 1975 ele assinava uma coluna no extinto caderno “Fotografia” da Folha de Londrina com o título “Super 8”, na qual passava aos leitores dicas de efeitos especiais, sonorização, iluminação, angulação e montagem. Zanketti chega a participar do grupo que cria uma associação para a realização de filmes, a ALCA – Associação Londrinense de Cineastas Amadores. Muito atuante nos anos 1970, não se sabe quantos filmes teriam sido produzidos pela ALCA ou se existe algum acervo relativo a essa produção. Sabe-se, ao certo, que o clima era de efervescência cultural, já que o Cine Teatro Ouro Verde, adquirido pela UEL em 1978, exibia filmes não-comerciais, tornando lendárias algumas sessões iniciadas à meia-noite. Em 1987 foi rodado o primeiro longa-metragem ficcional da história do cinema londrinense, “Legal Paca”, película colorida, sob a direção e roteiro de Antônio Pereira Dias. O filme conta a história de


um fazendeiro que, afundado em dívidas, vende suas terras para pagá-las, desempregando quase trezentas pessoas. A partir daí, o Jeca Tatu passa a interferir na situação. “Legal Paca” teve sua préestréia em Londrina a 23 de março de 1988, no Ouro Verde. As filmagens ocorreram no patrimônio Regina, em Londrina. No elenco, somente atores locais: Antônio Pedro da Costa Filho (Jeca Tatu), Lázaro Câmara, Francisco Salles, Antônio Cardoso, Salete Vick Turi, Matãozinho, José Domingues, Izilda Ferreira, José Carlos Stuani, Lázaro Antônio Filho, Terezinha Ferreira, Benê Costa e Sofia Carvalho. O filme foi exibido apenas na região, e não se sabe certamente se existe alguma cópia disponível em vídeo ou em película. Após esse longa, apenas um curta foi produzido em Londrina e região. Em 1979, o belavistense Lourival Pontidura (mais conhecido pelo apelido Ponti), aos 26 anos, rodou em Cambé o curta em super 8 “Roubar o Próximo”, mostrando a vida dos bóias-frias. Em 1988, ele dirigiu em São Paulo o curta em 35mm “Imagem”, com fotografia de Chico Botelho. O filme conta com música de Neuza Pinheiro e montagem de Milton Bolinha. O roteiro, de autoria de Ponti, mostra um jovem editor de imagens que vai para sua casa e a encontra vazia. No televisor, sua família acena para ele. Uma cópia desse filme integra o acervo do Museu da Imagem e Som de São Paulo. Após o fim da Embrafilme nos anos 1990, a chegada do vídeo digital, da internet e da revalorização do Super 8, instala-se uma nova fase do cinema londrinense. A partir de 1994, o cinema brasileiro passa a ser financiado basicamente por leis de incentivo fiscal à cultura. Em Londrina não foi diferente. As câmeras só voltaram a registrar imagens em 1998, quando Caio Julio Cesaro trouxe profissionais de São Paulo para a realização de uma Oficina em Super 8. A conseqüência foi o curta “De Repente Numa Tarde”, exibido na I Mostra Londrina de Cinema. Em dezembro de 1999, os responsáveis pela Oficina voltaram à cidade e realizaram um curta em 16mm, preto-e-branco, finalizado apenas em

junho de 2003: “Saudade”, dirigido pelos paulistas Sérgio Concílio e Vera Senise. O filme acabou sendo ampliado para 35mm graças a recursos do Programa Municipal de Incentivo à Cultura. Em outubro de 2000, finalmente uma produção em 35mm em Londrina. O curta “Cine-Paixão”, novamente com produção de Cesaro e direção de Concílio e Senise, trouxe à cidade a atriz Ingra Liberato. O filme teve sua pré-estréia no começo de 2001 no Espaço Unibanco, em São Paulo, e foi exibido no Cine Catuaí 5 durante o projeto Sessão Brasil. Tanto “Saudade” como “Cine-Paixão” integraram a seleção de curtas da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Em 2002, com um orçamento de aproximadamente R$ 9 milhões, Tizuka Yamazaki rodou em Londrina e região o filme “Gaijin 2”. Mesmo com um apoio da Prefeitura local (que à época fez um repasse de R$ 440 mil à produção), não se pode considerar “Gaijin 2” um filme autenticamente londrinense, pois a maior parte das pessoas que ocupavam as posições centrais deste filme estavam em Londrina apenas de passagem. Dessa forma, “Gaijin 2” seria mais um filme rodado parcialmente em Londrina do que um filme autenticamente londrinense. Em julho de 2003, após uma Oficina de Realização em Cinema em Super 8, foi criada a Kinoarte – Instituto de Cinema e Vídeo de Londrina, uma associação cultural sem fins lucrativos, de utilidade pública municipal, e interessada em atuar em quatro áreas: produção, exibição e preservação de filmes, além da realização de projetos de formação audiovisual. Com a criação da Kinoarte pode-se dizer que entramos na fase contemporânea do cinema londrinense. Ainda não houve tempo para analisar a produção recente com um mínimo distanciamento histórico. O que podemos afirmar, no entanto, é que um dos principais objetivos da Kinoarte para os próximos anos é a preservação de todo esse material filmado em Londrina – um registro de importância história e afetiva para todos os londrinenses.

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“Um filme como uma carta de amor” arte: Felipe Augusto fotos: divulgação


Andrea Tonacci e seu filho, Daniel Tonacci, conversam sobre a realização do curta “Pão dos Anjos”

O cinema brasileiro contemporâneo tem poucos mestres. Andrea Tonacci, no entanto, certamente é um deles. Uma dessas raras figuras que admiramos não somente pela sua obra, mas também pela forma como se relaciona com o mundo, sempre educado e elegante a cada intervenção. Seu filho, Daniel Tonacci, inicialmente produtor, fez sua estréia como diretor em agosto desse ano, ao apresentar o curta “Pão dos Anjos” no 20o Curta Kinoforum, em São Paulo. O filme, inspirado no universo poético de Manoel de Barros, traz a mesma afetividade que encontramos na obra e na figura de seu pai, Andrea. A pedido da Revista Taturana, pai e filho conversaram sobre a realização desse filme, que além de ser uma obra singela e essencialmente sutil, pode ser entendida como “uma carta de amor”.

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Andrea Tonacci: Bem, aí vão algumas observações que tentei resumir em perguntas. Perguntas que constantemente também me faço. Surpreende-me a sinceridade confessional explícita, simples e direta, das tuas imagens. O olhar que mostrando fala mais de si do que do que vê, que se representa no como nos exibe o mundo, que descobrindo revela. A subjetividade “pintando” a realidade. Um precoce domínio do intuitivo sobre o racional. Uma subjetividade “à flor da imagem (pele)”, que “salta aos olhos”. Um trabalho delicado, na contramão do gênero, sobre o desejo de conhecimento, do corpo, da mente, desta consciência ainda humana e não funcional. Como foi o encontro Manoel de Barros-Daniel? É Daniel que conhecendo-se identifica-se nas palavras de MdeB ou MdeB que revela uma identidade desconhecida para Daniel? Daniel Tonacci: Um pouco de cada, acho. Encontrei nos textos de Manoel de Barros coisas que vivi e que sonhei viver. Acho até que se voltar a lê-lo daqui a alguns anos, é capaz que eu encontre outras coisas que vivi ou viverei, diferentes, e outros sonhos novos nas mesmas palavras. Quem sabe um novo filme até. Enfim, foi uma sintonia. Ao ler suas poesias tive surpresas, revelações e muita satisfação por encontrar outras pegadas além das minhas no caminho pelo qual eu seguia naquele momento. Com certeza, aprendi muito sobre mim mesmo e, pelo menos, senti-me mais seguro quanto a algumas impressões que eu apenas intuía. Foi estimulante. Quando troquei correspondências com Manoel de Barros, o aprendizado foi então mais

explícito, sua pequena carta em resposta foi uma aula magna sobre o ato da expressão e descoberta. Arte e conhecimento. “Dá pra saber que ninguém ensina coisa nenhuma em arte. Arte é todo dia uma descoberta, uma percepção e um trabalho de montar as percepções”. Foi essencial para o filme e para meu amadurecimento. Andrea: Como foi roteirizar este ponto de encontro quando a osmose entre uma coisa e outra faz parte do processo constante de reflexão e identificação pelo desejo e vontade? Daniel: Agora, tentando olhar de fora, acho que foi como uma criança concentrada em sua brincadeira, tão empolgada que não consegue parar. Mas é claro que existiram momentos árduos, irritantes, que provocavam a vontade de desistir. Não sou roteirista. E não tinha clareza acerca da trama, nem do perfil dos personagens, nem sequer do final do curta. O que eu tinha era uma intenção clara, mas sem forma. Uma bússola. Segui dando um passo por vez sem saber onde ia chegar, mas garantindo o movimento naquela direção. Ao final, foi um processo de depuração de toda a pesquisa de imagens e textos que realizei ao longo do projeto (por conta e junto com a equipe), e depuração de mim mesmo. Foi um processo longo e bem tortuoso. Levei quase um ano para chegar à versão da filmagem, e só o consegui porque não era possível prorrogar mais a filmagem, nem sustentar o ímpeto espontâneo do filme para sempre. Mesmo assim, cada início de diária era uma surpresa pois eu continuava a trabalhar e modificar o filme até mesmo enquanto dormia. Andrea: Que aspecto tinham as imagens de Manoel de Barros que te motivou? Ou, como MdeB interferiu nas tuas imagens? Daniel: Foi um poema em especial que me


Andrea: Como surge esta transposição do literário para o cinematográfico, ou da contaminação do olhar/imagem pela subjetividade do observador? Daniel: “Pão dos Anjos” não é apenas a transposição de alguns textos para a linguagem cinematográfica, mas a transposição também de fotografias, de pinturas, de música, de transas, de dores, de amores, da cidade, do campo e de toda uma gama de sensações que compõe o recorte da vida sobre o qual se trata o filme. É uma tentativa de transposição da vida para a tela, de uma fatia da vida, pelo menos. É um grande amálgama que resulta de diferentes vetores da vida. Pesquisei textos,

imagens, músicas, coreografias, cartas e experiências pessoais. Como num quebracabeça, fui experimentando combinações desses elementos até alcançar uma forma que expressasse o que eu sentia. Um processo bem caótico, mas, ao mesmo tempo, claro sobre quando funcionava ou não a transposição. Andrea: O que leva a uma definição/ escolha estética do olhar na busca/ representação de um sentimento, de um fato? Daniel: A razão que não é. Ela até que tenta. A razão busca fundamentar, explicar os porquês e pré-definir o rumo estético através de argumentos, mas, no final, é a intuição que dá segurança. Na verdade, a escolha de seguir a cabeça ou o coração depende de cada um, e também depende do tipo de processo de cada um. No caso desse filme, a intuição era quem dava a palavra final. Outra coisa importante (e aqui se seguirá uma dessas afirmações que devem depois ser descartadas, pois são arbitrárias e sem fundamentos fora do âmbito pessoal) é que a intuição tem boas relações com o acaso, a razão não. Para a intuição, o acaso é, como dizia Cartier-Bresson, uma oportunidade de unir mente, olho e coração num mesmo foco. Enquanto para a razão, o acaso é, na maioria das vezes, um contratempo. Tivemos muita ajuda do acaso no filme. Pesquisamos e racionalizamos muito antes de filmar. Abandonamos tudo na hora da filmagem. E o acaso juntou as duas pontas permitindo à intuição utilizar toda a bagagem acumulada durante a pesquisa. É difícil de explicar, mais duro ainda de justificar para uma equipe inteira no meio do set de filmagem, mas lembrei agora uma música do Raul Seixas que diz

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provocou, “Estreante”. Apresentava-me todas as cores, texturas, sons e ritmos necessários para desencadear um sentimento muito amplo e específico sobre o qual senti necessidade de debruçar-me. Decidi, inicialmente, tentar adaptá-lo para imagens e nas primeiras tentativas consegui imagens interessantes, mas que não diziam nada. As tentativas seguintes foram frustrantes também. Comecei a modificar algumas palavras, algumas vírgulas. Algumas cores, algumas texturas, sons. Fui modificando aos poucos as imagens e ao cabo de oito meses (entre trabalhos e filmagens), eu começava a recuperar aquele sentimento amplo. Quando finalmente consegui percebêlo no roteiro, somente uma imagem ainda se assemelhava às sugeridas pelo poema. No filme, essa cena transformou-se tanto que não mais possui relações diretas com o texto do Manoel. Ao mesmo tempo, se pego hoje os poemas dos quais me servi e que tanto li durante aquele período, consigo identificálos em cada imagem do curta, múltiplos em sentido e forma, presentes em cada fotograma. Como isso aconteceu? “Não sei, só sei que foi assim”, como diz aquele personagem do “Auto da Compadecida”.


“não sei pra aonde eu tô indo, mas sei que eu tô no meu caminho”. A escolha estética do filme foi tão insegura e sem dúvidas quanto isso. Andrea: Como o desejo de conhecimento e a vivência do desconhecimento encontram-se no Cinema, essa recentíssima técnica (100 anos) de visualização do imaginário? Daniel: Na época do vestibular eu estava indeciso, sentia-me atraído por várias áreas distintas, e o cinema oferecia a possibilidade de debruçar-me sobre qualquer tema de acordo com o projeto. Como eu gostava de biologia, eu poderia fazer um documentário sobre pingüins; ou uma animação, pois eu gostava de desenhar; e nada me impediria de tentar também uma ficção medieval, já que me interessava essa parte da História. Enfim, a escolha de cursar cinema teve por base a vontade de conhecer. Mas, até então, eu compreendia o cinema apenas como “meio” para conhecer, e não como conhecimento em si, ou seja, como experiência de vida muito intensa e apaixonante, com um potencial enorme para o desenvolvimento. Essa dimensão, embora eu já a tivesse escutado outras vezes antes, só se tornou presente com a experiência. Uma vez você mesmo me disse que cada filme não era apenas um projeto a mais na sua vida, mas uma nova etapa dela e uma forma determinada de vivê-la, de modo que ao olhar para trás era possível “recapitular” sua vivência pelos filmes realizados. Em uma outra vez, li a seguinte frase de Duane Michaels: “I use photography to help me explain my experiences to myself”. Acho

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que fiz isso com “Pão dos Anjos”. E aprendi muito. Andrea: No desfoque, um sentimento se dilui, deleta, esquece, lembra, imagina, sonha, indefine, expande-se no tempo, tantas possibilidades que o foco esfria, anula, esvazia, vulgariza, define, prende ao momento imediato, limita no tempo... Como você trabalha este potencial técnico na expressão de tua subjetividade? É algo que se revela ao encenar ou, a priori, determina a encenação? Isto é, como você trabalha a sinceridade subjetiva do teu desejo em relação ao aspecto do que vai filmar? Como a imagem se relaciona com o tempo na expressão da subjetividade do personagem, do olhar do autor, do narrador? Daniel: Não me preocupei em ser criativo ou original na expressão da história, nem fiquei maquinando muito sobre como inovar tecnicamente (que é uma obsessão na cabeça dos estudantes – revolucionar). Fui beber em várias fontes, sem vergonha nenhuma. Abria livros de fotografia e pintura e folheava, folheava... até que, de repente, uma página chamava-me a atenção. E isso era porque ela deveria ter alguma coisa a ver com o que eu queria dizer. Se não para esse filme, talvez para outro, então eu as separava. Juntei muitos recortes assim. Fiz o mesmo com clipes de dança, artes visuais e filmes. Busquei em fontes alternativas, isso sim e conscientemente. Tinha clareza de que se tratava de poesia, de que não me interessavam métodos conectivos de romance, tempos mortos. Enfim, aí eu juntava um ângulo de


uma foto com as cores de uma pintura e achava que se juntasse, ainda, com determinado som, aquilo poderia funcionar. Nem tudo deu certo, mas uma parte dessas combinações está no filme. Tudo isso obviamente era preparação, ensaio. Na hora de filmar, tivemos limitações técnicas, frustrações com idéias que achávamos geniais e revelações com planos que não tínhamos percebido o valor antes ou sequer planejado. É o caso da cena do banho, que representa uma grande incapacidade de seguir o plano de filmagem, mas é um êxito tremendo para a sinceridade e delicadeza do filme. Esse plano foi improvisado, porque a cena do banho tal como era idealizada foi por água abaixo.

mas fui cortando seus elementos à medida que me aproximava de um resultado satisfatório até o ponto em que de base haviam sobrado apenas as minhas próprias sensações e experiências. Os textos continuavam no filme, mas deslocados de seu contexto original. Mesclei diferentes poemas, inverti ordens e até troquei palavras. Senti-me um açougueiro. Foi como criar uma verdadeira colcha de retalhos, aliás, não apenas com os poemas, mas também com as referências imagéticas e sonoras que surgiram durante a pesquisa. Encaixei-me direitinho numa analogia feita por Mario Vargas Llosa sobre a experiência criativa. Ele fala sobre o romance, mas acho que vale também para filmes: “ (...) tentei explicar esse mecanismo como um striptease às avessas. Escrever romances equivaleria ao que fazem as strippers profissionais que, diante de uma platéia, tiram a roupa e exibem seus corpos nus. O escritor executa a ação no sentido inverso. Durante a elaboração do romance, ele vai vestindo a sua nudez – ponto de partida do espetáculo -, escondendo-a sob roupas grossas e multicores fabricadas pela sua imaginação. O processo é tão complexo e minucioso que muitas vezes nem o próprio autor é capaz de identificar no produto acabado [...] as imagens escondidas em sua memória que ativaram sua fantasia [...] e o induziram a traçar aquela história”. Por certo, meu processo não foi tão complexo nem tão minucioso, o filme é claramente bastante pessoal, mas acho que consegui pelo menos ampliá-lo para além da minha esfera individual, seguindo o conselho de Leonardo da Vinci: “para estar junto não é preciso estar perto, e sim do lado de dentro”. O filme é também uma carta de amor, que não foi entregue pessoalmente, mas que está na tela.

Andrea: O som do silêncio, a atenta presença interior ficam sempre presentes, o passado ficou nos objetos, nas paredes. O observador/ narrador homem/mulher faz-se presente por esta ausência de um mundo exterior, que é só como o som de um carro passando, um reflexo de luz percorrendo o forro do meu “ser”. A volta ao foco, ao vazio, após a separação dos corpos, após o desfoque do prazer, do foco da carne, do ser no/com o outro, do orgasmo, devolve-nos à condição humana de individualidade e algum estranhamento se instala no retorno ao mundo dos sentidos e do questionamento. A música que tudo permeia e conduz parece-me uma carta de amor sendo escrita no tempo e, afinal, nunca enviada. O filme fala deste desencontro além dos sentidos. Quanto de vida e representação você fundiu esteticamente nesta primeira experiência pessoal profissional? Daniel: Eu até que tentei utilizar os textos de Manoel de Barros como solo para expressar-me, 15


A explosão que vem do muro O diretor pernambucano Bruno Bezerra (mais conhecido como Tião) comenta a realização do curta “Muro”, vencedor da Quinzena dos Realizadores em 2008 por Rodrigo Grota arte: guilherme gerais e Isadora Rara


Trata-se de um fato raro no cinema brasileiro contemporâneo: um curta-metragem explosivo, visceral, repleto de mistério e ao mesmo tempo tão próximo da nossa realidade. É o que ocorre aos espectadores após assistirem ao filme “Muro”, do jovem pernambucano Bruno Bezerra (mais conhecido como Tião). Desde sua estréia em Cannes no ano passado, quando foi agraciado com o prêmio de Melhor Curta na Quinzena dos Realizadores, “Muro” tem circulado por festivais e provocado reações entusiasmadas. Com certa freqüência sente-se que tanto o público como o realizador preferem não discutir o filme sob um aspecto predominantemente racional – há a sensação de que no decorrer da projeção algo foi efetivamente comunicado ali, uma substância tão própria ao cinema que dificilmente seria traduzida em palavras. Respeitando essa singularidade, conversamos com Tião em busca daquele sentido que André Bazin defendia como a essência da crítica cinematográfica: uma espécie de prolongamento do prazer que tivemos ao assistir ao filme. Confira trechos da conversa: Revista Taturana: Desde a primeira vez que vi o filme, achei que “Muro” fosse um daqueles poemas cinematográficos do qual seria mais prudente não emitir nenhuma consideração racional. No entanto, seria talvez interessante discutir algumas coisas que o filme nos passa durante a projeção. A minha primeira impressão foi a de ter visto um filme sobre muitos assuntos e ao mesmo tempo um filme em que o tema principal é a sua linguagem. Queria que você comentasse como essas idéias foram se reunindo em sua mente. Você chegou a escrever um roteiro ou foi unindo imagens, idéias, concepções etc?

amadurece mais com uma revisão do filme, mas não é uma regra. Quanto à linguagem, acho que ela acaba tendo o mesmo peso de todos os outros elementos, não acho que ela esteja acima dos outros assuntos e idéias. Pra mim, as duas coisas se puxaram muito e precisam uma da outra, até virar uma coisa só mesmo. Sempre fui anotando as idéias que tinha em um caderno. Acho importante que esse processo seja selvagem, sem muita regra ou pré-censura, para as coisas fluírem mais livres. De repente uma coisa que você não gostou muito se conecta perfeitamente com outra e o produto delas nunca existiria se você já tivesse jogado a primeira fora. Desde que comecei a pensar em me expressar pelo cinema, queria muito falar sobre um sentimento que tá bem presente no “Muro”. Quando lia todas as anotações, eu via que algumas tinham esse sentimento. E que, apesar de algumas idéias terem nascido para fotos, instalações, palavras escritas ou filmes diferentes, elas começavam a falar umas sobre as outras. Depois de um tempo, pareciam que tinham nascido, de fato, assim e não podiam mais se separar. Com essas idéias, passei para o roteiro, que tem uma estrutura bem parecida com a do filme. Para chegar no primeiro tratamento, escrevi durante três pequenas sessões com seis meses de diferença entre cada uma. Ao mesmo tempo, estava escrevendo e filmando “Eisenstein”, com Leonardo Lacca e Raul Luna. Pouco antes de filmar, fiz um segundo tratamento, que deve ter uma

Tião: Gosto muito do que algumas pessoas vêm me falar quando assistem ao filme pela primeira vez. É uma relação menos racional, mais instintiva. Também me sinto assim quando começo a ter as idéias para os filmes, mas acho que o processo racional, que vem a seguir, também é muito importante. O que eu ouço às vezes é que isso

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ou duas frases diferentes do primeiro.

estranha.

O filme, logo no início, homenageia o curta de Méliès ao mesmo tempo em que mostra as imagens (que seriam reais!) da chegada do homem à Lua. Esse contraponto entre ficção e realidade seria também uma forma de mostrar como nos tornamos cada vez menos tolerantes? Pois o mesmo grupo de pessoas que está vendo as imagens no telão também disputa uma corrida em busca do apedrejamento, não?

“Muro” é notadamente um filme para ser visto no cinema: tela grande, sala escura, formato 2.35 (Cinemascope). Percebe-se também que no seu filme muita coisa é resolvida na construção do plano, na associação que uma imagem tem com a outra depois, na montagem. Seria legal que você comentasse como é o seu trabalho no set, sua conversa com o diretor de fotografia, com o montador. Você ensaia muito antes? Vai com os planos já decupados para o set? E na montagem? Há lendas de que esse processo teria sido realizado ao longo de quatro anos.

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Tião: Acho que ver pessoas assistindo a algo sugere uma reflexão da imagem. Achava que provocar isso e colocar o espectador como ator social era importante para o filme. Isso tá presente desde o primeiro frame, que é justamente outro plano dessas pessoas que assistem. Um plano espelhado. Outra coisa é a distância entre o que acontece na tela e fora da tela, e onde isso tudo se toca. Isso de realidade e ficção, acho que também é interessante sair da realidade e ir para um outro lugar pra falar da realidade. Não como fuga, mas como forma de ressaltar o absurdo no real. A cor do filme e o rosto das crianças protagonistas me lembraram muito alguns velhos filmes do leste europeu, nos quais se pode observar um certo tom amargo diante da vida, muita coisa ressecada, desgastada mesmo. O seu curta anterior se chama “Eisenstein”. Você poderia falar um pouco dessa sua relação com o cinema russo e do leste europeu? Tião: Eu gosto muito da cultura do leste europeu ou da idéia que eu tenho de lá. A forma de falar, a cor e os enquadramentos, a aspereza, a delicadeza e o humor cruel. Infelizmente, vi poucos filmes. Li um pouco. Mais que Eisenstein, gosto muito de Dziga Vertov e vi algumas animações. Acho que em Svankmajer existe muito dessas características de que falei acima. No leste europeu, eles têm uma força muito particular. Em “Eisenstein”, a melhor coisa do mundo foi falar em russo, vestido com aquela roupa, com toda essa camada interpretativa

Tião: Para as interpretações das crianças e do homem no chão, eu tive a ajuda de Amanda Gabriel, na preparação. Quanto às crianças, encontramos algumas lá na vila de Conceição de Cima, onde filmamos e fizemos uma seleção. Trabalhamos durante alguns dias e, no meio do processo, tive que vir pra Recife pra ver o teste de fotografia do 2.35. Voltei um pouco antes de começar as filmagens. Com José Humberto, foi durante mais tempo, mas mais espaçado. Foi um processo bem bonito. Nas outras cenas, não teve ensaio, só na hora mesmo. Todos os atores são não-profissionais, menos Inaê Veríssimo, a mulher enterrada, e todos eles são muito talentosos. Com Pedro (Pedro Urano, diretor de fotografia do filme - NR), tive uma relação de muito companheirismo. Desde o começo, ele encampou todas as idéias do filme com muita garra. Acho que tive muita sorte já que a gente não se conhecia antes do filme. Ele compreendeu bem o que eu queria falar e sempre sugeria coisas muito pertinentes. Fui para o set com todos os planos decupados. Não podia ser diferente com os seis dias que a gente tinha para filmar. Um ou outro plano não deu pra fazer e um ou outro surgiu no set. Foi um processo muito corrido e, até hoje, me sinto feliz em ter conseguido realizar o filme nisso tudo. É muito fácil o filme se perder nessa correria. João Maria, o montador do filme, é um cara muito paciente, mas a montagem não durou quatro anos! O filme todo, da primeira idéia até ficar pronto, demorou cinco anos. A montagem durou pouco mais de um ano. A gente tava montando na Universidade Católica, onde eu estudava e João trabalha. A gente só podia montar das 7h às 13h e se não tivesse demanda no laboratório. O problema é que muitas vezes eu chegava às 11h. Às vezes a gente montava um ou dois


O cinema pernambucano tem se destacado muito não só no cenário brasileiro, mas em um determinado contexto internacional. Há um diálogo entre o cinema que você e o pessoal da Trincheira Filmes vêm fazendo com os demais realizadores de Recife, como Daniel Aragão, Kléber Mendonça Filho, Camilo Cavalcante etc? E em relação ao cinema brasileiro contemporâneo produzido em outros estados? Você se sente próximo de algum grupo ou de alguns cineastas da sua geração? Tião: Sinto que o que a gente vem fazendo, mesmo dentro da Trincheira, é bem diferente um do outro e, ao mesmo tempo, dialoga bastante. Acho que existe uma ligação entre o que a Trincheira tá fazendo com o que Kléber, Pedroso fazem. Mas pra mim é mais fácil

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cortes. Mas uma coisa essencial nesse processo foi que, depois de montar por um tempo, a gente viajava para os festivais (eu com “Eisenstein”; ele, representando outro filme) ou chegava a época de mais tráfego no laboratório e a gente tinha que se distanciar do material por um tempo. Quando a gente voltava e assistia, tudo aparecia pra nós. O que funcionava, o que não funcionava. Era tudo tão óbvio que nem parecia que estávamos trabalhando. Muito da montagem era reencontrar a força do filme no material bruto, que eu não achava tão bom. Achar o ritmo certo, frame pra lá, frame pra cá, além de algumas coisas de estrutura e algumas soluções muito bonitas que partiram de João. Em um momento, a gente tava montando há quase um ano e vimos uma palestra de Vânia Debs. Ela falou que na época da moviola o pessoal montava um longa em oito meses e que, hoje em dia, era quatro meses correndo. Tinha um certo saudosismo. Foi irônico pra gente. Eu me senti um pouco mal nesse dia.


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falar dos projetos de que eu gosto e de pessoas que admiro do que dos que eu acho que têm uma ligação direta com o que eu faço. Eu e Léo voltamos agora do Ceará e ali eu me senti muito tocado e transformado pelas pessoas e pelos filmes. Foi impressionante. Também tive relação semelhante com Gustavo e Melissa – que fizeram “Eternau” e “Triangulum” –, as pessoas que encontramos pelos festivais, Gregório, o pessoal da Legato, André Lavaquial, Gustavo Beck, Ricardo Alves, enfim... não vou continuar senão vai virar uma lista e ficar chato. Mas me sinto muito inspirado por eles e pelos filmes deles. Não sei qual a ligação dos meus filmes com os deles. Não penso tanto nisso. Todos são projetos bem diferentes e isso é muito bom. Para terminar, parece que você já está em meio a um novo projeto. Poderia adiantar algo sobre esse novo filme? Tião: O nome dele é “Animal Político”. Estou no fim de um processo de compressão passando para a explosão. O filme é a jornada de busca de uma personagem por iluminação intelectual e espiritual. Por fim, eu queria mandar um abraço pra todo mundo nesse Brasilzão que pensa em um filme curto como uma obra com menor duração que um longo, da mesma forma que um quadro de 80 centímetros é uma obra com menor tamanho que um de 3 metros, e não uma dimensão espaço-temporal paralela a ser menos considerada.


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Green, Denis, Wajda, Gomes e Aînouz - lmes da 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo evocam Bresson por Rodrigo Grota arte: Fábio Augusto, Felipe Augusto e Guilherme Gerais

O cineasta francês Robert Bresson (1901-1999) costumava dizer que um filme é constituído de imagem, sons e silêncio. A julgar por algumas produções exibidas na 33ª Mostra Internacional de Cinema (realizada em São Paulo entre 23 de outubro e 5 de novembro) pode-se dizer que nunca Bresson foi tão assimilado pelos cineastas. Isso porque a maior parte dos filmes que deixaram uma impressão mais profunda se apóia nessa possibilidade de expressão tão específica do cinema: o silêncio. O filme mais célebre, sob essa perspectiva, foi uma espécie de comédia ensaística: “A Religiosa Portuguesa” (2009), do diretor norte-americano (radicado na França) Eugène Green. Trata-se de uma obra metalingüística: Julie de Hauranne (Leonor Baldaque) é uma jovem atriz francesa que viaja a Lisboa pela primeira vez. Ela irá atuar em um filme baseado nas Cartas Portuguesas, obra escrita pelo francês Guilleragues no século XVII. Ao longo dessa permanência em Portugal, Julie terá uma série de encontros fortuitos, inesperados, o que vai aos poucos despertando uma angústia doce na personagem. O ápice desse sentimento ocorre quando ela encontra uma freira, absolutamente devota, que reza todas as noites na Nossa Senhora do Monte, na colina da Graça. Surge então um diálogo antológico, daqueles em que você até se reposiciona no cinema – uma espécie de profecia e debate sobre o sentido da vida.


A narrativa é toda construída a partir de sutilezas. A primeira qualidade evidente é a leveza com que os personagens são apresentados: a câmera passeia lentamente pelas locações, tudo é muito suave e eterno. A beleza de Leonor Baldaque nos conquista de uma forma estranha: seu rosto preserva um misto de inocência e melancolia. Ela parece viver em uma outra época, pertencer a uma outra ordem de sentimentos. A cada olhar para a câmera, a cada conversa, seu corpo e sua voz nos chegam não como elementos de uma personagem ficcional, e sim como dados diretos de uma verdade poética. Não se pode dizer, no entanto, que a atriz não está interpretando um papel (em “A Religiosa Portuguesa” a coisa se complica, pois Leonor Baldaque interpreta uma atriz). Mas esse filme parece ficar em uma zona intermediária entre o registro de ficção e a abordagem documental, pois há a impressão de que Eugène Green, mais do que realizar uma obra sobre aquilo que lhe interessa na cultura portuguesa, está elaborando um certo comentário, produzindo um ensaio às avessas – um pensamento que nunca se leva a sério. Dessa forma, há diversos momentos realmente muito engraçados, em que os personagens nos conduzem para um universo irreal sob a mais absoluta retidão. Seria arriscado, no entanto, afirmar que “A Religiosa Portuguesa” trata-se apenas de uma comédia. O filme possui diversas camadas, todas relacionadas entre si e distribuídas de uma forma na qual dificilmente compreendemos aquela situação isolada, mas conseguimos atingir uma idéia clara do todo. Algo que diretamente reafirma um aforismo de Bresson: “Tudo foge e se dispersa.

Continuamente trazer o todo em um”. Outro filme a se apoiar em uma narrativa misteriosa, na qual às vezes acompanhamos os personagens como se estivéssemos vivenciando o fato narrado, é “35 Doses de Rum” (35 Shots of Rum, 2008), penúltimo longa da realizadora francesa Claire Denis. Alguns críticos chegaram a comentar que nesse filme havia uma clara homenagem a Ozu, outra referência constante no cinema contemporâneo. O que se pode observar, de fato, é que Denis domina completamente o universo dos seus personagens. Ela filma pessoas vivas, reais, anulando o viés psicológico para favorecer o concreto, o corpo, o gesto. É claro que ainda existe uma trama, um conflito dramático, mecanismos que poderiam conduzir o filme para outro caminho. Mas o rigor de Denis, aliado à perfeição de seus intérpretes, nos deixa diante de uma obra serena, sóbria – um cinema que não precisa provar a quê veio. Para ilustrar esse ponto de vista, podemos citar uma seqüência magistral em que os protagonistas são surpreendidos por uma forte chuva e se vêem presos em uma espelunca à espera de um carro. Lionel, pai de Josephine, começa a flertar com uma das garçonetes. Sua filha acaba cedendo aos acessos de um vizinho e finalmente iniciam um romance. Um antigo affair de Lionel fica observando a tudo em meio a uma angústia cada vez mais crescente. Denis constrói essa seqüência praticamente sem diálogos: os personagens se observam, a música ambiente constrói um clima. Há todo um universo ali: sentimentos, desejos, ilusões – tudo expresso de uma forma elegante, concisa, silenciosa. Trata-se de um cinema que privilegia a presença dos atores, 23


suas expressões, sua fisicalidade em detrimento de um possível esquema dramático no qual cada um atuaria como peça de uma engrenagem. É um cinema incomum, que exige atenção e paciência do público, mas que, no fim, o brinda como uma relação sem mediações conclusivas com a vida. Se Claire Denis se afirma no gesto contido, no diálogo oculto, no silêncio de um olhar, um filme entre as produções nacionais seguiu um caminho oposto, mas com êxito similar: “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, de Marcelo Gomes e Karim Aînouz. O filme é uma espécie de sobra, de acúmulo de takes e fotos produzido em meio a outras realizações da dupla. No entanto, o que poderia ser apenas um exercício de estilo, um experimento de linguagem, revela-se um filme de uma maturidade plena, sem gestos apelativos. A história é a de um geólogo: José Renato, que atravessa o sertão para avaliar a viabilidade da construção de um canal a partir do desvio das águas de um rio. O personagem, interpretado por Irandhir Santos, narra o filme ao longo de seus 75 minutos: o que temos é apenas a sua voz, nunca o seu rosto, seu corpo. Conhecemos as suas angústias basicamente a partir de seus relatos. Em alguns momentos, a narrativa visual se complementa ao que está sendo dito pelo personagem. A partir desse encontro (entre imagem e som), o filme ganha peso. O que surpreende em “Viajo porque preciso...” não é tanto a abordagem escolhida para conduzir

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a narrativa, mas o sentimento que a dupla de diretores e roteiristas conseguiu imprimir, uma condução sem excessos, livre, que assume riscos e que foge explicitamente da tentação de construir um universo imagético perfeito. Trata-se de um filme que não busca, nem pretende, a imagem idealizada e demonstra muito mais interesse na jornada, no processo, naquilo que está em curso, em desenvolvimento. Aînouz e Gomes não partem do pressuposto de encontrar a imagem tecnicamente impecável. Eles estão interessados naquilo que está incompleto, por se realizar. Essa busca ampara toda a estética do filme – não se trata mais de criar um universo visual a partir de um sentimento ou uma história. O que ocorre aqui é uma espécie de humildade semelhante àquela que era defendida por Rosselini no auge do neorealismo italiano. O objetivo não era criar uma representação da realidade – e sim, oferecer a realidade de forma direta, sem mediações. Aceitar essa incapacidade talvez seja o grande mérito do filme: um ato de humildade e, ao mesmo tempo, uma busca de autoconhecimento. Mesmo não sendo um filme com foco centrado no social, “Viajo porque preciso...” consegue oferecer um drama subjetivo (o do geólogo) e apresentar um certo contexto social-econômico sem pretensões de denúncia, tornando o espectador uma espécie de testemunha dessa jornada de um homem em busca de si mesmo. A sensação que temos ao longo da projeção é a de que estamos acompanhando


um filme vivo, um organismo dinâmico que ainda não está emoldurado em uma forma finita. Esse filme tem uma rara capacidade de ao mesmo tempo existir fora e dentro da gente. Uma obra de vanguarda que não pretende trazer algo novo, justamente porque o traz. Essa despretensão também pode ser encontrada no mais recente filme do polonês Andrzej Wajda: “Alga Doce” (Tatarak, 2008), estrelado por Krystyna Janda. A história é baseada em um conto de um dos escritores mais respeitados na Polônia: Jaroslaw Iwaszkiewicz. O filme começa com um monólogo arrepiante: Krystyna relata como vivenciou a morte prematura de seu marido na vida real, o diretor de fotografia Edward Klosinski. O filme se inicia a partir de um elemento extracampo – para além do universo ficcional que será narrado. A personalidade da personagem interpretada por Janda se confunde com a da personagem Marta, uma mulher de meiaidade que se apaixona por um rapaz mais jovem. O que temos, nesse caso, é uma diluição radical do que está sendo representado e daquilo que foi vivenciado. O filme adquire um novo status, criando um pacto diferente com o espectador. Quando olhamos para o rosto de Krystyna, esteja ela chorando ou se entregando a uma paixão tardia, não conseguimos mais diferenciar a personagem da atriz. Existe apenas o drama daquela mulher que perdeu o marido precocemente e que uma vez ou outra nos é apresentada sob uma certa máscara. Mesmo com o filme sendo em sua maior parte ficcional, o que prevalece na mente

e na compreensão do espectador é a sua esfera de realidade, a dor relatada sob a voz clara e expressiva de Krystyna Janda. Outros filmes nessa 33ª Mostra Internacional de Cinema apresentaram propostas estéticas relevantes e que merecem ser discutidas. Filmes como “A 40ª Porta”, longa de estréia de Elchin Musaoglu, do Azerbaijão; o radical “Independência”, do jovem filipino Raya Martin; os brasileiros “Hotel Atlântico”, de Suzana Amaral, “Insolação”, de Felipe Hirsch e Daniela Thomas, “Os Famosos e os Duendes da Morte”, de Esmir Filho, “Belair”, de Bruno Safadi e Noa Bressane, e “A Casa de Sandro”, de Gustavo Beck; o documentário francês “O Inferno de Clouzot”, de Serge Bromberg e Ruxandra Medrea; “Mother”, do sul-coreano Bong Joon-Ho; “Singularidades de uma Rapariga Loura”, do mestre português Manoel de Oliveira; “A Ressureição de Adam”, de Paul Schrader; e “Vício Frenético”, nova incursão de Herzog por Hollywood. O balanço aqui apresentado corresponde tão somente a uma análise parcial, já que dos 424 filmes apresentados, pude ver pouco mais de 30 obras. A impressão é que as fitas mais instigantes - aquelas que ficam em nossa mente, foram os filmes que tornam o espectador um elemento mais ativo, quase um ser diante da presença real de um outro. Uma experiência vivenciada por meio de imagens, sons que não poderia ser transmitida por meio de outra linguagem. Algo que apenas o cinema expressa: o silêncio. 25





Rogério Ghomes Série Olhai, 2003 cortesia Ybakatu espaço de arte




A estética do óxido

o cinema de

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por Anderson Craveiro

arte Fábio Augusto, Fernando Henrique e Felipe Augusto


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Roteiros, storyboard, key frames. Foi durante uma aula de animação, ministrada em Londrina, Paraná, o primeiro contato com Jan Svankmajer. Com seu curta, “Darkness – Light – Darkness” de 1989, a descoberta de uma técnica impecável de stop motion e uma linguagem sombria tendendo ao bizarro. O estranhamento e também o interesse surgiram daí. Sua filmografia, composta por mais de 20 curtas e seis longas metragens, renderam-lhe um lugar de destaque entre os criadores e disseminadores da arte surrealista. Svankmajer, inclusive, integrou o Grupo de Surrealismo Tcheco dos anos 1960. A abordagem surrealista, presente em quase toda sua obra, beneficiou como temática o cotidiano transformado em bizarro e propiciou a mistura de várias linguagens como teatro de bonecos, liveaction e o stop-motion. Svankmajer é o mestre da animação de coisas inanimadas. O universo recriado em suas animações é sombrio, penumbroso, de tonalidades escuras – o que potencializa a sensação claustrofóbica, úmida, mórbida, de solidão. Como compositor da decomposição, utiliza o desgaste, a deterioração, a ferrugem, o oxidado. Seus personagens, inclusive, sempre apresentam esses sinais de deterioração ou tomam vida a partir da (de)composição de objetos como pregos e parafusos, rochas,


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eletrodomésticos; e os objetos de cena parecem ter parado nos anos 1940 e 1950, mesmo em seus filmes atuais. Do gosto pelo óxido, surge também um rico universo orgânico que oscila entre alimentos que ganham vida até o próprio processo de putrefação. Vegetais, legumes e principalmente a carne recriam situações humanas, dialogam, brigam, dançam, são destruídas e transformam-se em novos seres. Com essa miscelânea de formas e composições, o diretor tcheco foge de uma certa tendência a um psicologismo que invariavelmente deixa tudo muito óbvio e didático, dirigindo-se muito mais aos sentidos, à percepção. A utilização de animais – estejam eles vivos, mortos ou em estado de decomposição – convergem para as mais variadas e inusitadas cenas surreais que possamos imaginar. Destaque para a língua (órgão), que sempre aparece em vários filmes do diretor. Entre o óxido e orgânico o diretor busca o caos, a desordem, o insano, a catástrofe, o medo, o humor negro, o terror e a morbidez, e parece querer liberar o espectador da conformidade cultural e social vigente. Assim, muitos de seus filmes foram

censurados nos anos 1960 e 1970 devido a esse caráter subversivo e crítico. Porém, já no início da década de 1980, seus filmes retornam com força tornando conhecida sua vasta obra. Entre os longas metragens, destaca-se “Lunacy” de 2005, que segundo o próprio diretor seria “um filme de terror filosófico”. Aqui, especificamente, cabe destacar a influência livremente baseada no romantismo negro de Allan Poe - principalmente no que se refere às obras The Premature Burial e The System of Dr. Tarr and Professor Fether quanto à construção da psique dos personagens e nas situações que lidam com questões da morte, os efeitos da decomposição e a extravagância do ridículo. A amoralidade, libertinagem e a perversão sexual do Marquês de Sade também são referências nos filmes de Svankmajer. A história é uma fantasia transgressora, que combina imagens reais e animação. Uma “epopéia terapêutica” que se passa num manicômio, onde se hospeda o personagem Jean Berlot (Pavel Liska), rapaz assombrado por terríveis pesadelos. “O filme propõe, em essência, o debate ideológico sobre a gestão de um manicômio. Em princípio, existem duas maneiras de fazê-lo. Ambas são igualmente extremas. Uma encoraja a liberdade absoluta; a outra, o método obsoleto e comprovado de vigiar e castigar. Mas há um terceiro método que combina e reúne os piores aspectos dos dois primeiros. É o manicômio em que todos vivemos hoje!”, afirmou Svankmajer. Já no curta “Dimensions of Dialogue”, de 1982, o diretor tcheco nos apresenta um diálogo estético seu com o pintor italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que utilizava frutas e


verduras para compor fisionomias humanas. Além da estética e da estrutura do surrealismo, Svankmajer busca referências e realiza adaptações de clássicos da literatura como “Alice”, de 1988, baseado na obra de Lewis Carroll, e “Fausto”, de 1994, adaptado da obra homônima de Goethe. Svankmajer pode ser considerado, assim, um animador original, tanto na técnica quanto na linguagem ao utilizar o humor negro blasfemo e expor pontos de vista divertidos. Suas obras serviram de inspiração para outros cineastas renomados como Terry Gilliam, os irmãos Timothy & Stephen Quay e Tim Burton. Ultimamente ele tem se dedicado à pré-produção do seu próximo filme: “Surviving Life (Theory and Practice)”. 35


Um breve perfil do cineasta polonês que após 17 anos sem filmar realiza “Quatro Noites com Anna” por Filipe Furtado arte: Felipe Augusto


O grande evento mais discreto do cinema ano passado foi o retorno às telas de Jerzy Skolimowski, após 17 anos sem filmar. “Quatro Noites com Anna” (Cztery Noce z Anna, 2008) abriu a Quinzena dos Realizadores em Cannes com boas críticas, mas sem chamar muita atenção pelo circuito de festivais internacionais. Durante anos, surgiram notícias de uma adaptação do livro Na América, de Susan Sontag, com Isabelle Huppert no papel central. O retorno hipotético (o projeto segue em pré-produção) garantiria alguns holofotes sobre Skolimowski, mas “Quatro Noites com Anna” não deixa de ser o retorno ideal para seu diretor: um filme que passa mais da metade de sua duração num quarto com a câmera voltada para os movimentos de um só ator. Um filme orgulhosamente menor, e em que o único grande evento é o próprio retorno do cineasta. De quebra, trata-se de seu primeiro filme polonês desde 1967. Assim como seu conterrâneo Roman Polanski (para quem escreveu “Faca na Água”), Jerzy Skolimowski é um desses cineastas exilados cuja obra é, à primeira vista, transnacional, com filmes na França, Inglaterra e EUA, variando da adaptação literária de prestígio (filmou Nabokov, Graves e Turgueniev) ao pulp, e indo de filmes rigorosamente construídos a outros completamente fragmentados. Apesar disso, há uma grande unidade na maior parte da sua obra, mesmo quando consideramos boa parte dos seus filmes ocidentais. De todos os cineastas do bloco comunista que emigraram ao ocidente no fim dos anos 1960, como os tchecos Ivan Passer e Milos Forman, Jerzy Skolimowski é o único que jamais abandonou sua terra natal, ainda que, de seus filmes ocidentais, só “A Classe Operária” (Moonlighting, 1982), e “O Sucesso é a Melhor Vingança” (Success is the Best Revenge, 1984), lidem diretamente com a sua Polônia. Seus filmes expressam essa sensação de confusão e perda em que é relativamente fácil localizar um discurso sobre o exílio. Em “Ato Final” (Deep End, 1971), talvez seu melhor filme, um adolescente inglês arranja trabalho numa sauna e lá se apaixona pela garota mais velha que trabalha com ele e que se aproveita da situação ao máximo. A força de “Ato Final” deriva da forma como o filme consegue apresentar uma experiência de adolescência muito reconhecível e preenchê-la com situações muito específicas. Numa das melhores seqüências do filme, por exemplo, o rapaz leva um cano (ou o que ele acredita ser um) e fica esperando junto a um carro de cachorro quente. Para matar o tempo, ele começa a consumir um sanduíche atrás do outro, mesmo muito depois de ficar claro que ele vai

permanecer ali sozinho. É como se a história mais horrorosa de rejeição adolescente fosse revivida ali com cores bem fortes. Já os dois primeiros longas de Skolimowski, “Rysopsis”, de 1964, e “Walkower”, de 1965, centram-se em torno de Andrzej, vivido pelo próprio cineasta. O mesmo personagem e os mesmos sentimentos centrais (deslocamento, o pânico da vida adulta) em filmes radicalmente diferentes. “Rysopis” é um filme todo drenado. O ator Skolimowski expressa uma neutralidade que domina a ação. Dentro do dito cinema moderno dos anos 1960, poucos filmes parecem se esforçar tanto para anular a euforia do cinema. Andrzej é informado logo no começo que precisa se apresentar ao serviço militar às três horas do dia seguinte. A tensão é trabalhada através de muitos planos-seqüências cuidadosamente coreografados, mas o filme segue dedicado a ser um retrato duro quase sem concessões. Apesar da secura, não se trata de um filme realista (o cineasta emprega a mesma atriz para os três principais papéis femininos). “Rysopsis” se parece mais com alguns filmes japoneses da década de 1960 do que com o que vinha sendo produzido na Europa, seja na sua crueldade, seja nas suas operações preferidas para desestabilizar o naturalismo. O filme simpatiza com a posição anti-social de Andrzej, 37


38 mas não mostra mais do que curiosidade por ele. “Rysopsis” termina com Andrzej pegando um trem e “Walkower” começa com ele descendo de um. A quase gag interna, mais do que conectar os dois projetos, diz muito sobre a mudança de tom aqui. “Walkower” é ainda mais rigorosamente construído, mas respira com uma leveza bem distante de “Rysopsis”. O deadline aqui é muito mais abstrato e ao mesmo tempo real: Andrzej está próximo dos 30 anos, tem menos raízes e se desespera mais com a idéia de fincá-las. “Walkower” se distancia de “Rysopsis”, sobretudo, por ter uma empatia que a secura do estudo de caso do filme anterior impedia: Andrzej é lutador de boxe como Skolimowski, e o filme o associa a poemas escritos pelo diretor. Boa parte do longa se constrói entre elaborados planos-seqüências nos quais Andrzej corteja uma ex-colega que encontra no seu retorno a Varsóvia. “Walkower” e “Rysopsis” são filmes impulsionados pela ação: os longos planos vão aos poucos sugerindo um completo desarranjo entre Andrzej e o mundo do qual ele desesperadamente tenta se afastar. Filme e personagem finalmente encontram seu habitat natural quando Andrzej sobe ao ringue. Skolimowski está ali, ele próprio, disparando socos e sendo castigado em retorno. O cineasta filma o ringue de dentro, sem nenhum interesse no tipo de tour-de-force hustoniano que Scorsese eternizaria mais tarde em “Touro Indomável” (Raging Bull, 1980). Não é a câmera que projeta energia, mas o próprio corpo do seu autor/ator que sai da posição defensiva e se libera junto ao espectador. “Walkower”, assim, é ainda mais fatalista que “Rysopsis” e caminha de forma estreita até duas escolhas igualmente inúteis. O filme nos nega seu

retorno ao ringue e entrega só os rituais esvaziados do boxe amador. Até a recusa da responsabilidade leva à mediocridade. “Walkower” encontra seu palco e depois o esvazia. Se em “Walkower” e “Rysopsis” qualquer sugestão de realismo se dissolvia e os filmes aos poucos se estabeleciam como um duelo entre seu protagonista e o mundo, “Bariera”, de 1966, intensifica esse processo. Jan Nowicki não tem nada da presença do ator Skolimowski e quase desaparece em meio ao mundo à sua volta, que ganha tons de cinema fantástico. A atmosfera sobrenatural que ocasionalmente ecoava nos planos-seqüências de Andrzej caminhando torna-se predominante aqui. A paisagem que Nowicki transpassa tem um inegável valor simbólico, mas “Bariera” nunca sugere abstração: seus sentimentos de inadequação são muito diretos para uma alegoria. O filme se abre num elaborado jogo entre um grupo de universitários que tem como prêmio a oportunidade de largar a faculdade. Como o próprio Skolimovski já afirmara, sua mente sempre fora treinada por associações poéticas, evitando a narrativa direta. Em “Bariera” seu principal colaborador é o compositor Krzystof Komeda, cuja música vai aos poucos se estabelecendo como verdadeiro texto do filme. Enquanto progride, “Bariera” vai criando uma fissura dentro deste universo. Nunca temos certeza se o que vemos faz parte da narrativa ou se é uma alucinação. O desarranjo de Andrzej é retomado de forma ainda mais cristalina enquanto a tal barreira do título vai acumulando sentidos. “Bariera” acrescentou um peso histórico sugerido somente à distância nos filmes protagonizados por Andrzej. A II Grande Guerra era uma assombração ainda muito viva


a despeito de ser uma memória distante para os jovens personagens do diretor. Skolimowski realizou um último filme na Polônia, “Hands Up!” (Rece do Góry, 1981), que acabou interditado pelos censores e permaneceu inédito por 13 anos até que o governo polonês permitiu finalmente lançá-lo. Mas, o que fazer com um filme que representa um momento muito específico da Polônia e de seu cineasta perdido 13 anos no tempo? Skolimowski reeditou o material e acrescentou um prólogo de 25 minutos em forma de filme-diário. O curioso é que as duas partes do filme não dialogam diretamente, elas assombram uma a outra. “Hands Up!” estabelece uma ponte entre 1967 e 1981. Um filme que termina sendo, ele próprio, uma fissura no tempo. O “Hands Up!” original é um happening teatral, sendo que muito do seu sentido é quase indecifrável sem um conhecimento razoável sobre a Polônia. O filme avança em direção a meia dúzia de minutos finais de espetáculo físico impressionante, mas parece mais completo e focado neste seu estado eternamente transitório entre dois momentos, o fim dos anos 1960 e o surgimento de Lech Walessa. O resto da produção de Skolimowski durante os anos 80 foi voltada para um diálogo com o seu país do ponto de vista de um artista expatriado. “A Classe Operária”, de 1982, e “O Sucesso é a Melhor Vingança”, de 1984, são estudos em contrastes. O primeiro – único a alcançar alguma popularidade fora do círculo dos seus cultores – equilibra uma construção clássica com a improvisação diária no set. Já o segundo – uma produção bem maior - é fragmentado e descentralizado. Curiosamente, o clássico “A Classe Operária” é de um frescor maior que o jogo de espelhos ultramoderno de “O

Sucesso é a Melhor Vingança”. “A Classe Operária” é quase um filme de ação. Tudo nele se resolve em atividades concretas, enquanto “O Sucesso...” é um filme todo construído sobre possíveis discursos sobre a Polônia. No primeiro, temos um grupo de operários poloneses lançados ilegalmente em Londres para reformar uma casa de algum figurão em quatro semanas. O elenco de apoio polonês é a melhor companhia de comediantes mudos de todo o cinema e Jeremy Irons, isolado na maior parte do tempo, faz um solo quase silencioso num trabalho de cinema físico impressionante. Como tradução do exílio, do isolamento, de ter de viver no tempo presente sem nenhuma margem de segurança, há poucos paralelos para essa bela e triste comédia. Depois do sucesso de “A Classe Operária” e do fascinante e caótico “O Sucesso é a Melhor Vingança”, Skolimowski filmou uma série de adaptações literárias, sendo a melhor delas o filme “Ataque em Alto-Mar” (The Lightship, 1986), antes de entrar num longo período sabático em que se dedicou à sua carreira paralela de pintor. O que nos traz de volta a “Quatro Noites com Anna”. Um filme bastante simples sobre o desajeitado e desagradável voyeur que passa seus dias e noites obcecado por uma enfermeira. É um filme de mestre, impecavelmente controlado em seus poucos elementos de cena, como a secura da paleta de cores da fotografia e as poucas locações e atores. Estamos muito distantes dos jovens desorientados de seus primeiros longas e da necessidade de tentar dialogar com seu país distante de “A Classe Operária” e da versão 2.0 de “Hands Up!”, mas continuam lá o mesmo absurdo, a mesma confusão perante o mundo. 39


as imagens como reflexo do caos Por Roberta Takamatsu arte: Felipe Augusto e Guilherme Gerais


Desde o início, Vera Chytilová optou por desconstruir e desorientar. De uma cena para outra, e não somente de um filme para outro, ela rompeu, desestruturou, redefiniu. Transpôs em imagens seus questionamentos pessoais, suas verdades íntimas, sem quaisquer tipos de amarras, com mesma liberdade com a qual conduziu sua trajetória pessoal. Dessa forma, todos os adjetivos associados a ela – inovadora, controversa, feminista, transgressora – se não justos, compõem um quadro bastante próximo daquilo que ela apresentou ao longo de sua filmografia. Ainda na ativa aos 80 anos, Chytilová foi figura de destaque na chamada Czech New Wave, algo como a Nouvelle Vague francesa. Eram os anos de 1963 e 1964, e um grupo de jovens cineastas da FAMU (Escola de Cinema e Televisão da República Tcheca) – dentre eles, Vera e também Milos Forman, Jan Nemec, Jaromil Jires começou a questionar a estética do Realismo Socialista que vigorava em diversos países do Leste Europeu. Trilhando um caminho próprio, Chytilová foi definindo sua identidade estética com base em experimentos cinematográficos surrealistas e dadaístas que, mesmo hoje, surpreendem pelo seu apuro técnico, em meio a uma realização basicamente artesanal. Nos primeiros minutos de “Ovoce stromu rajských jíme” (Fruto do Paraíso, co-produção de 1969 com a Bélgica), por exemplo, a harmoniosa e quase matemática justaposição de fotogramas recria a versão de Chytilová para a expulsão de Adão e Eva do paraíso. As imagens, semelhantes a pinturas vivas e pulsantes, são o máximo da criação de seu marido e diretor de fotografia Jaroslav Kucera – que trabalhou, inclusive, com outros expoentes dessa geração New Wave como Milos Forman e Jan Nemec. “Eu gostaria de conduzir um experimento em filme no nível atingido anos atrás pela pintura moderna, pela poesia e a música”, afirmou Kucera. Mas não é apenas de belas imagens, texturas e cores vibrantes que é feito o cinema de Chytilová. Inseridos no contexto político-social de sua época, os filmes são carregados de simbologias críticas. Diante do marasmo, caretice e apatia social, ela nos oferece personagens lúdicos e polêmicos que questionam a ordem imposta. “Se tudo vai mal no mundo, também seremos más”, afirmam as irmãs Maria de “Sedmikrásky” (As Pequenas Margaridas, de 1966). O passeio por essas imagens, porém, não é fácil ou conclusivo: somos

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forçados a participar, explorar os significados, buscar as verdades, tentar dar alguma ordem à anarquia que se apresenta diante de nossos olhos. “As pessoas que mais respeito são aquelas que se permitem ter dúvidas, que as têm, e que, mesmo assim, entendem que as portas têm que ser abertas”. Libertar-se não era apenas um discurso. Era a premissa básica defendida por Chytilová. Na vida: dos conceitos impostos, dos seus próprios preconceitos, das certezas absolutas. No cinema: através dos diálogos improvisados, da utilização de não-atores, das alegorias, da edição recortada e veloz, das imagens em ângulos incomuns, das licenças poéticas permeadas de simbologias corrosivas. Assim, a cineasta tcheca acreditava que, ao mostrar o elemento trágico e apático, reflexo do mundo contemporâneo, fazia sua contribuição para alterá-lo. E nesse sentido, seja pela sua obra, seja pela sua atitude pessoal, Chytilová buscou explorar e ampliar as possibilidades de suas criações. Essa ação concreta foi a mais importante. Foi a que a diferenciou e também o que caracterizou sua natureza humana, irradiando sua força avassaladora em todas as direções. Isso trouxe conseqüências. Chegava o ano de 1968 e a invasão das tropas soviéticas, no episódio histórico que ficou conhecido como a Primavera de Praga, fez com que muitos artistas se refugiassem em outros países. “Sedmikrásky” recebeu críticas severas e, logo na época de seu lançamento, foi banido da Tchecoslováquia. Vera recebeu a alcunha de cineasta maldita, mas permaneceu no país, tornando-se símbolo de resistência. O final da Czech New Wave foi, portanto, um fato político. O novo cinema tcheco fora esmagado pela Primavera de Praga, a liberdade acabara soterrada pela censura soviética. No entanto, o mesmo filme pelo qual Vera fora mais criticada e condenada em seu país, “Daises”, trouxe a ela reconhecimento internacional, ganhando o Grande Prêmio no Festival Internacional de Cinema de Bergamo, na Itália. Os anos 1980 e início dos anos 1990 trouxeram a abertura ao Leste Europeu. A indústria de cinema tcheco acabou se moldando a uma economia de mercado. A censura não existia mais, porém, a produção cinematográfica despencou drasticamente com o fim dos subsídios governamentais. Aquilo que restou, tornou-se dependente do estímulo das nações ocidentais – o que se refletiu no fazer cinematográfico: a identidade New Wave se perdia. A cineasta tcheca voltou ao seu início, passando a lecionar em um dos departamentos da FAMU. Obstinada e polêmica, continuou sua produção concentrando seus esforços no sentido de desmascarar mitos e ilusões. A resistência, seja revolucionária ou não, não destrói o homem. Pelo contrário, ela o revela a si mesmo. Eis o mérito dos filmes de Vera Chytilová.


(ele ainda n達o sorriu)

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maravilhas

de um mundo nĂŁo visto: erotismo que vem do leste por Edu Reginato arte: FĂĄbio Augusto, Felipe Augusto e Fernando Henrique


30.000 A.C. Por aí já vemos que o homem primitivo do Leste Europeu já tinha um tipo de predileção, um entendimento do que é desejável. Mas, vejam só, nos muros de Pompéia, arqueólogos encontraram grafites com frases obscenas e desenhos de transas. Nas paredes do templo ao deus Príapo, em Roma, os fiéis deixavam textos pornográficos. E também haviam as badaladas festas de sexo em banhos públicos. Além, Ovídio foi o primeiro a elaborar um guia de sexo em Roma. Resumindo, Roma era bacana, um bacanal. Na Índia do século II d.C., o nobre Mallanaga Vatsyayana selecionou textos milenares sobre sexo e fez uma defesa da liberdade sexual na cultuada coletânea Kama Sutra, em que, entre outras coisas, há descrições de mais de 500 posições sexuais. Enquanto na Itália, o florentino Giovanni Boccaccio finaliza, em 1351, o extraordinário Decameron, no qual descreve peripécias sexuais com sátiras à Igreja.

Levante a mão quem nunca esperou os pais dormirem para furtivamente colocar um VHS pornô no vídeo da sala. A curiosidade pelo não permitido faz parte da natureza humana. O sexo ainda é tabu e o buraco da fechadura é a arte pornográfica. Quem acha o tema banal ou obsceno, por favor, pule para o próximo artigo sobre algum premiadíssimo e emocionante filme qualquer, pois essa matéria trata de escarafunchar a produção pornográfica do Leste Europeu. O desejo pelo proibido tem seu registro mais antigo na “Vênus de Willendorf”, um objeto representando o nu feminino, com aparência pouco sensual para os padrões atuais e que foi encontrado em 1908 na cidade austríaca da qual emprestou seu nome. Esculpida em calcário, data por volta do ano 45


Já em meados do século XIX, o explorador inglês Richard Francis Burton escandaliza a Inglaterra vitoriana com a publicação de suas traduções do Kama Sutra, o Jardim Perfumado (manual árabe), Ananga Ranga (coletânea hindu de obras eróticas) e poemas de Catulo (poeta latino), além do livro As mil e uma noites (reunião de contos árabes, muitos eróticos), que é o mais citado. Burton escreveu livros sobre hábitos tribais de nascimento, casamento, cópula e morte, além de ter discorrido sobre fetichismo e práticas sexuais bizarras. Ele era obcecado pela manifestação sexual e, mesmo depois do matrimônio, perambulava pelos bordéis indianos com seus “dicionários ambulantes” (como ele chamava suas amantes). Dessa forma continuou aprendendo sobre costumes sexuais depois de casado. Nisso já existia a fotografia com suas roliças prostitutas nuas que eram vendidas em cafés e bordéis. Daí foi um passo e vieram os irmãos Lumière para encher de magia um mundo de imagens estáticas. Mal acabaram de filmar a “Saída dos Operários da Fábrica”, já havia alguém filmando bobagem. Os filmes tinham nomes como “Wonders of the Unseen World” (Maravilhas de um mundo não visto) e mostravam prostitutas tirando a roupa. O premiado documentário “Blue Movie” (1971), de Alex de Renzy, traz filmes de um valor histórico incalculável como o curta “Free Ride” (1915), sobre um homem que dá carona a duas moças e transa com elas debaixo de uma árvore. Chamadas de stag films (filmes para rapazes), as produções tinham no máximo 15 minutos e eram filmadas, sob encomenda, na França, Estados Unidos e Argentina (!), um dos primeiros pólos de produção

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cinematográfica erótica do mundo. A pornografia, sob esse aspecto, não está dissociada da arte; pelo contrário, é parte intrínseca de uma manifestação por liberdade, beleza, humor, prazer e subversão. No entanto, o início da difusão mundial do cinema pornográfico se deu num triste contexto. Após o término da II Guerra Mundial, a Europa Ocidental e a Europa Oriental estavam devastadas. A pobreza, a fome e a miséria forçaram muitas mulheres a se prostituírem para sobreviver. Clandestinamente, começaram a ser produzidos na França, Alemanha e Suécia filmes de sexo explícito com mulheres do povo e que eram projetados em bordéis para um público formado, principalmente, por soldados. Esses filmes foram contrabandeados para os Estados Unidos, e lá, com os já famosos peep shows de filmes suecos, tornaram-se um sucesso na clandestinidade. Os filmes produzidos no Leste Europeu sempre tiveram uma fama especial. O público cativo encontrava mulheres mais desinibidas, mais carnudas e roliças, seios fartos, escatologia, bondage, hardcore. Com o tempo, as produções melhoraram e as atrizes estavam mais dispostas e transavam com voracidade. As mulheres do Leste Europeu possuem traços nórdicos, eslavos e orientais. Filmes com essas protagonistas exóticas eram o sonho de consumo de qualquer onanista durante os anos 1950, mas na década seguinte, com a Guerra Fria, esse tipo de produção quase acabou. Na América do Norte, durante os anos 1970, o cinema pornô deixava as salas privês e chegava às grandes salas comerciais com as obras-primas “Garganta Profunda” (Deep Throat) e “O Diabo na Carne de Miss Jones” (The


Devil in Miss Jones), ambos de Gerard Damiano, e “Atrás da Porta Verde” (Behind the Green Door), dos irmãos Artie e Jim Mitchell. Durante os anos 1970 e início dos anos 1980, foram produzidas verdadeiras pérolas do erotismo. Até no Brasil, surgiram obrasprimas como “Oh! Rebuceteio” (1984), de Cláudio Cunha, e “Os Anos Dourados da Sacanagem” (1986), de Paulo Antonione. A queda do Muro de Berlim e o fim do comunismo aceleraram o consumismo e o capitalismo selvagem, alavancando a produção de filmes em película no Leste Europeu com um público ávido para consumir sacanagem às claras com a Cortina de Ferro escancarada. Com essa nova produção chegando aos Betamax e, depois, videocassetes VHS, tomamos conhecimento da primeira rainha do pornô europeu: Cicciolina. Ela nasceu em Budapeste, na Hungria, em 1951. Em 1964 se casou e se naturalizou italiana. Nos anos 1970 conheceu o produtor de filmes pornôs Ricardo Schicchi e adotou o nome artístico, mundialmente conhecido, num programa de rádio chamado Voulez-vous coucher avec moi? Cicciolina tornouse a representação física do mito da mulher liberal da Europa Oriental. Era a filha célebre da cidade de Budapeste, que, hoje, é conhecida como a capital da produção pornográfica do Leste Europeu, senão da Europa toda. E é na Budapeste de 1997 que encontramos outro revolucionário da indústria pornográfica, junto com um pupilo que se tornaria o ator pornô mais conhecido do planeta. São eles, respectivamente,

John Stagliano e Rocco Siffredi. Stagliano há sete anos revolucionara o gênero pornô com um filme chamado “As Aventuras de Buttman” (Adventures of Buttman). Era uma idéia simples: homem obcecado por bundas sai pelas ruas de Los Angeles abordando mulheres lindas com a proposta de filmá-las transando. O diferencial do filme era a perspectiva da câmera que assumia a posição de personagem/narrador e atuava em primeira pessoa nas cenas, sendo o diretor muitas vezes o protagonista: o personagem principal não é observado por uma câmera, mas observa através dela. Esse estilo ficou conhecido como Gonzo Porn, numa referência ao jornalismo gonzo, no qual o repórter faz parte do evento. O pornô Gonzo tem como trunfo a sensação do espectador estar olhando através dos olhos de quem está fazendo parte da ação. Foi um momento revigorante no gênero e perfeito para aproveitar a liberdade das HandyCams de VHS que se popularizavam. Era uma câmera na mão e muita sacanagem na cabeça. Os filmes de Buttman viraram uma franquia de sucesso e seu personagem-câmera começou a sair dos arredores de Los Angeles e foi tomando 47


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o mundo. Stagliano que, mais que um pornô-artista, é um empresário antenado, resolveu levar Buttman à capital da sacanagem do Leste Europeu. “Buttman em Budapeste” (Buttman in Budapest) segue a mesma linha dos filmes-gonzo anteriores. Vemos em primeira pessoa o personagem abordando lindas mulheres na rua, apalpando-as e filmando suas transas com desinibição e bom humor. As atrizes são o que havia de melhor no Leste Europeu da época, praticamente todas nascidas na Hungria: Amanda Steel, Judith Grant, Nicolette, Niki Anderson, Reinhart, Reka Gabor e, com destaque, Szilvia que faz sua primeira dupla penetração anal em uma das cenas. E temos o fantástico Rocco Siffredi, o ator pornô mais famoso do mundo, protagonizando hilária cena de transa numa pracinha do centro de Budapeste. A partir desse filme, as atrizes do Leste Europeu tiveram visibilidade e começaram a migrar para os Estados Unidos e estrelar produções americanas. O mercado se firmou e o Leste Europeu se tornou uma mina de atrizes pornôs. Produtoras multinacionais como a Private, sediada em Barcelona, começaram a investir pesado em produções caras e luxuosas com, exclusivamente, cenários e atrizes européias. O destaque da nova safra de atrizes pornôs é a platinum blonde tcheca Silvia Saint e a espetacular atriz húngara Sophie Evans. Temos, também, em Budapeste uma das maiores produtoras de filmes pornôs da Europa, a Luxx Vídeo. Empresa dirigida

pela “mão de ferro” do temido Kovi, que no alvorecer do capitalismo húngaro, sozinho com uma câmera de vídeo, começou a contatar modelos amadores, a alugar pequenos estúdios e a vender seus primeiros filmes. Kovi tem contrato vitalício com a Private, o que garante uma enorme qualidade para o que filma. Uma das características desse diretor e produtor é criar um pornô com muita sacanagem, mas também com enredo, produção classe A e um elenco composto pelas melhores estrelas do pornô europeu. Para Kovi, a tirania do conteúdo sobre a forma importa muito no resultado final do filme. Em suas próprias palavras: “Nunca filmei uma história tipo: rapaz entra no quarto; a moça está deitada; rapaz diz: ‘vamos foder!’. E pimba-pimba-pimba!”. O Leste Europeu é o paraíso da sacanagem? Talvez. Mas, com certeza, é de lá que são geradas as fantasias que povoam os sonhos da molecada. Mas ninguém é santo. Todos sabem que por trás dessa indústria do sexo existe um lado negro envolto em drogas, crimes e sofrimento. O enfoque desse artigo é o imaginário popular e como a manifestação sexual está impregnada nele. Sexo sempre será um mistério. A aventura maior de toda humanidade é tentar desvendá-lo. Sexo pode ser poesia como uma extensão do amor ou não-amor, mas também é um estado bruto, uma manifestação de poder em que ambas as partes sentem prazer


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em dominar e ser dominado. A primeira impressão do sexo é descobrir o próprio corpo e depois, geralmente, o corpo do sexo oposto. É uma invasão concedida da intimidade de outro ou da própria intimidade. O corpo busca o sexo. O sexo valoriza o agora, o físico, o imperfeito. Diferente da arte erótica que manipula o espectador através de elementos que tentam reproduzir o desejo humano, a pornografia não busca argumentos, é uma arte direta; ela reproduz, simplesmente, o ato sexual. Dessa forma, o Leste Europeu, em particular Budapeste, é apaixonante. Não são, apenas, as belas e elegantes mulheres que frequentam o Café Gerbeaud, as conversas animadas na Praça Vorosmarty ou caminhar ao longo do Danúbio. É, também o inusitado, o misterioso e excitante desejo pelas coisas belas e sujas.


Imagens por Roberta Takamatsu arte: felipe augusto

heco:

de um novo cinema


t Veio da República Tcheca o prêmio concedido esse ano pela Cinéfondation, categoria do Festival de Cannes voltada para escolas de cinema e realizadores jovens. Com “Baba”, a jovem Zuzana Špidlová se junta a seus conterrâneos que fizeram história em Cannes – como Vojtech Jasný, que no período de 1959-1969 ganhou três prêmios em diversas categorias – e também na própria história do cinema tcheco, que teve grande relevância na época da New Wave Tcheca com figuras de destaque como Milos Forman e Vera Chytilová. Para se ter uma idéia, o último filme dessa nacionalidade a ser nomeado para a sessão principal em Cannes foi “Faust”, de Jan Svankmajer, em 1994. Na época, a animação de Svankmajer concorria na seleção da mostra Un Certain Regard. Quinze anos se passaram até que “Baba”, criado como projeto de graduação pelos estudantes da FAMU (Escola de Cinema e Televisão da República Tcheca) surgisse. O filme de 21 minutos conta a história de Veronika, adolescente que anseia por uma liberdade que não pode ter por se sentir presa à obrigação de cuidar de sua avó enferma, a “Baba” do título. Foi com essa narrativa que traz o frescor e os anseios da adolescência contrastando com um clima tenso beirando a crueldade, que Zuzana ganhou o prêmio máximo da Cinéfondation, além de ter garantido recursos e estréia oficial de seu próximo filme em Cannes no ano que vem. Abaixo segue a conversa que a Taturana teve por email com a diretora de “Baba”, Zuzana Špidlová: Revista Taturana: “Baba” é um filme maduro por lidar com questões como a culpa e o egoísmo de forma muito intensa, e com a peculiaridade desses sentimentos estarem inseridos no universo jovem, adolescente. Li em um artigo que você aprecia literatura, em especial a literatura russa. Essa literatura te influenciou de alguma forma nesse projeto em especial? Zuzana Špidlová: Em “Baba” eu busquei falar 51

sobre uma adolescente, que não está madura o suficiente (e, no fundo, quem está?) para lidar com uma grande responsabilidade (cuidar de sua avó enferma). Ela tem apenas um desejo: adoraria ser como qualquer outro adolescente – livre e irresponsável – mas, devido à sua situação familiar, isso não é possível. Sim, há a culpa e o egoísmo... Eu não diria que haja um livro específico que tenha me influenciado enquanto escrevia o roteiro de “Baba”, mas eu admiro muito o trabalho de Dostoievski, principalmente Crime e Castigo, que, de alguma maneira, trata dos mesmos assuntos. A última vez que um representante tcheco foi para Cannes concorrendo na competição oficial foi em 1994 com Jan Svankmajer. Mas a República Tcheca viveu momentos sublimes na cinematografia mundial - por exemplo, com cineastas como Milos Forman e o experimentalismo da geração New Wave da década de 60. Chytilová, por exemplo, foi considerada uma cineasta à frente de seu tempo. A espera foi longa, e então veio “Baba”. Há algum diálogo entre o seu filme e essa geração? Zuzana: Eu realmente amo e admiro os filmes de Milos Forman (especialmente aqueles que ele fez na antiga Tchecoslováquia) por suas motivações e métodos, pelos filmes memoráveis que fez. No que diz respeito a Vera Chytilová, ela dirige um dos departamentos da FAMU, onde eu estou estudando, e embora eu não possa dizer que sou influenciada diretamente pelos filmes de Chytilová, posso afirmar que reconheço seu espírito livre e jovem, e a coragem que tem ao tratar de temas difíceis no cinema. Tenho que dizer que aprecio também os filmes dos irmãos Dardenne, sua abordagem em relação aos atores, os temas fortes que buscam retratar. Por essas mesmas razões, também sou muito inspirada por Michael Haneke e pelos trabalhos do diretor Nuri Bilge Ceylan.


52 Há atualmente no Brasil, principalmente entre os novos diretores de curta-metragem, a tendência pela busca de uma identidade, que é, muitas vezes, entendida como experimentação de linguagens. “Baba”, por sua vez, possui uma narrativa forte, permeada por um clima de tensão. De que maneira você buscou trabalhar a linguagem em “Baba”? Houve a preocupação especificamente com a linguagem mesmo num filme que prioriza tanto a narrativa? Zuzana: Eu apenas queria fazer um filme com uma linguagem cinematográfica tão simples quanto fosse possível, mas no final, admito que pra mim foi muito difícil manter essa “simplicidade”. Acredito que o que mais me impressionou em “Baba” foi o quanto você conseguiu tornar a personagem adolescente tão próxima do público – com as contradições típicas desse período – e também inserir elementos que a tornam cruel, desumana. Você poderia comentar um pouco sobre a construção dessa personagem? Você também trabalhou com não-atores, correto? Poderia comentar também essa escolha? Zuzana: Para criar essa personagem, eu busquei o meu passado, as minhas experiências pessoais. Tentei recorrer, da maneira mais sincera possível, às lembranças, sensações e sentimentos da minha própria adolescência. Ou melhor dizendo, de como ela seria, como poderia ter sido. As pesquisas que fiz em asilos e hospitais enquanto escrevia o roteiro de “Baba” se restringiram a detalhes práticos que eram necessários para tornar o filme o mais real e verdadeiro quanto fosse possível. Quanto ao trabalho com não-atores, honestamente, eu não o planejei. Precisava de uma mulher em torno de 85 anos e um garoto de 14 anos e não encontrei atores profissionais que se encaixassem nesses perfis. Acabei recorrendo a não-atores. No final, foi uma experiência muito positiva para mim, havia uma autenticidade única. Isso me encorajou a continuar trabalhando com atores que não fossem profissionais. Para uma diretora iniciante que acabou de ganhar Cannes e que teve seu filme apresentado em países tão distantes quanto o Brasil, como você avalia esse primeiro trabalho? Zuzana: É complicado para mim fazer essa avaliação sobre meu trabalho, mas posso afirmar que vejo muitos erros e falhas em “Baba” que não gostaria que se repetissem no meu próximo filme. Por outro lado, estou contente e orgulhosa por este filme ter atingido o alcance que atingiu, por ter tocado, de alguma forma, pessoas de diferentes partes do mundo – esse é o melhor prêmio para uma cineasta iniciante.




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