Revista Taturana 5º corte

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“Visão é recurso da imaginação para dar às palavras novas liberdades?” Manoel de Barros in Menino do Mato, 2010 Meu primeiro contato com a obra do Sr. Haruo Ohara (19091999) ocorreu em 2003 em meio à pré-produção do nosso primeiro filme: o curta Londrina em Três Movimentos. O diretor de produção, Francelino França, sempre me falava do rigor que Haruo empregara em toda sua obra – acrescentando que o grande segredo para registrar a natureza era saber o tempo certo de atingir a cena, “ter paciência”, esperar que ela se realizasse diante dos seus olhos. Nessa mesma época, perguntei ao França: “Por que você não faz um filme sobre o Haruo? Você gosta tanto dele!”. E ele me respondeu, num tom misterioso (como era típico do França, aliás): “Acho que você é quem deve fazer um filme sobre ele”. Passados alguns anos, mais precisamente em 2005, estávamos discutindo o roteiro do filme Satori Uso e assistindo a breves filmes do pioneiro do cinema londrinense, o sr. Hikoma Udihara. Durante uma dessas sessões, eis que o poeta Rodrigo Garcia Lopes (criador do personagem Satori) me mostra um encarte com cerca de 60 fotos de Haruo que ele havia preparado em 1998 para uma exposição realizada no Filo (Festival Internacional de Londrina). Ocorreu ali uma espécie de revelação: pois até aquele momento eu só havia visto poucas fotos do Haruo na biografia Lavrador de Imagens, lançada em 2003 pela dupla Rogério Ivano e Marcos Losnak. As fotos, dispostas em uma certa ordem narrativa, revelavam uma outra dimensão de Londrina: a possibilidade de uma abordagem grandiosa a partir das paisagens e tempos mortos de uma pequena cidade do interior. Era como se Haruo tivesse esculpido uma outra cidade: não a Londrina que conhecíamos dos filmes de Udihara e Orlando Vicentini, das fotos do Sr. José Juliani, das reproduções que constam em arquivos de jornais. Não!! Era realmente a criação de um universo singular, único – repleto de ordem, simetrias, equilíbrio, com uma pequena abertura para a leveza, o espontâneo. Haruo registrava a cidade como um escultor – havia uma sintonia quase invisível entre as fotos e um projeto maior, uma espécie de solidez tão própria


de narrativas épicas, e, ao mesmo tempo, uma dimensão silenciosa tão cara a pintores do século XX (como o americano Edward Hopper). Enfim, estava ali um mestre e uma estética, originando a idéia de fazer um filme. Filme que seria essencial não somente por homenagear o nosso maior artista, mas também porque encerraria uma série de três filmes que realizamos sobre a mítica Londrina dos anos 50: a Trilogia do Esquecimento. O título Esquecimento se refere ao fato de que os três personagens não eram (e até hoje não são) conhecidos do grande público. Satori Uso, personagem central do primeiro filme, nem poderia ser conhecido – pois, afinal, ele não existe (e nunca existiu!), muito menos o seu biógrafo, o cineasta americano Jim Kleist. Booker Pittman (1909-1969), saxofonista norte-americano que passou por Londrina em 1950 (e esteve no Paraná entre 1949 e 1957), sim, realmente existiu – mas apenas poucos amantes do jazz conhecem sua obra e trajetória. Já no caso do Haruo, apenas a partir de 2008, quando o Instituto Moreira Salles (IMS) realizou a exposição Japão – Mundos Flutuantes no eixo Rio-São Paulo, iniciou-se um processo de reconhecimento nacional. Antes, em 2003, algumas fotos haviam integrado a 12ª Mostra da Coleção Pirelli Masp, em São Paulo. Apesar de ser tema apenas do último filme da Trilogia, Haruo estava presente desde o início da série. Em março de 2006, quando rodamos o curta Satori Uso, muito da abordagem visual que indicamos ao diretor de fotografia Carlos Ebert e ao diretor de arte José de Aguiar vinha da estética do Haruo. O próprio Rodrigo Garcia Lopes, um dos primeiros a realizar uma curadoria a partir da obra do fotógrafo japonês, havia se inspirado na figura do artista recluso, isolado, criando sua obra a partir de uma pequena colônia japonesa quando em 1985 criara o poeta Satori Uso. O contato direto e mais amplo com a obra de Haruo, no entanto, se iniciou apenas em dezembro de 2007, pouco antes de todo o acervo relativo ao fotógrafo ser doado ao IMS. Nessa época, tive alguns encontros com o neto de Haruo, o também fotógrafo Saulo Haruo Ohara – hoje radicado na Suíça, e que já havia trabalhado com a Kinoarte como still no curta Londrina em Três Movimentos. As conversas com


Saulo ocorriam na própria casa em que Haruo morou por quase 50 anos: o sobrado da Rua São Jerônimo, número 81, na região central de Londrina. Durante esses encontros (alguns acompanhados pelo produtor Bruno Gehring), Saulo me mostrou cerca de mil fotos que haviam sido selecionadas por ele e pelo fotógrafo Orlando Azevedo para a 3ª Bienal Internacional de Curitiba em 2000. Era uma seleção de peso: ali estavam os principais temas de uma obra que compreende cerca de oito mil negativos em preto-ebranco e dez mil negativos coloridos: a vida na chácara Arara, os auto-retratos, a família Ohara, a Londrina urbana e rural dos anos 50 e 60, além das fotos abstratas, vertente que se consolidara a partir do momento em que Haruo travou contato com revistas especializadas em fotografia e passou a freqüentar o Foto-Cine Clube de Londrina, que ajudara a fundar em 1951. Desde o início do projeto sabíamos que o filme Haruo Ohara não teria um caráter biográfico: o livro lançado por Losnak e Ivano já havia cumprido esse papel. Assim como nos curtas anteriores (Satori e Booker), a proposta seria evitar qualquer tipo de dramaturgia no sentido clássico: quando o roteiro se estrutura a partir de personagens centrais e um conflito dramático claro. Haruo Ohara seria um filme sem conflitos, no qual a harmonia do artista com seu universo particular é o grande tema a ser desenvolvido. Não queríamos contar uma história, e sim, promover uma espécie de diálogohomenagem com a obra de um mestre da composição visual. O filme, sob esse aspecto, seria uma releitura da obra de Haruo, privilegiando sua face agricultor, sua vida em família, e, mais notadamente, seu processo criativo. Essa relação do fotógrafo com a natureza, esses “momentos de silêncio”, repletos de mistério e de uma dimensão quase mágica, justificariam o subtítulo do filme: Pausa para a Neblina (uma menção direta a duas fotos de Haruo – Pausa para um Cigarro e Manhã, Neblina). A estratégia, na verdade, era simples: caminhar em direção àquilo que não conhecíamos. O que nos interessava, sob esse ponto de vista, tanto no Satori, no Booker, e agora, no filme Haruo Ohara, era essa zona abstrata, espécie de camada irreal na qual se pode especular como um artista criara sua obra, encontrara seu mundo, dialogara consigo mesmo. Mais do que fornecer informações, mais do que descrever fatos de uma vida, queríamos apresentar um universo restrito e único, como se estivéssemos realizando peças documentais sobre aquilo que necessariamente não existe, mas que podemos imaginar.


O objetivo seria, portanto, dialogar com esses três artistas por meio da forma do filme, de sua narrativa, e não apenas por meio de informações. A linguagem de cada filme não representaria uma verdade sobre aquele tema, uma expressão afirmativa ou uma síntese objetiva – a linguagem de cada filme seria antes de tudo um sentimento, uma vontade de encontrar, a possibilidade de esculpir um imaginário sobre um determinado artista. O cinema, dessa forma, não corresponderia apenas a uma atividade formal, um empreendimento pragmático no qual nos lançaríamos como em algum outro trabalho – tratava-se, no caso da Trilogia, de uma espécie de aventura pessoal, autodescoberta de todos nós da equipe, pois registrar Londrina, os anos 50, a vida de um poeta, de um músico e de um fotógrafo seria como registrar algo que está em nós e nos permanece oculto – seguindo a velha (e sábia) lógica de Giacometti de que não é o artista que esculpe a escultura, e sim, a escultura que esculpe o artista.

Enfim, não fomos nós que produzimos a Trilogia – e sim, esses três filmes que produziram o que somos hoje. Essa proposta estética, e que também não deixa de ser uma postura ética, tem também o seu contrapeso negativo – o fato de que em alguns momentos pode-se frustrar a expectativa do público, já que tradicionalmente o cinema que se tornou mais popular e hegemônico foi o cinema narrativo, que constrói sua linguagem a partir de uma trama recheada de conflitos dramáticos e estruturada por uma lógica causal muito clara, em que um acontecimento se liga a outro. No caso da Trilogia, queríamos produzir os filmes a partir de uma narrativa mais livre, próxima talvez daquilo que Pasolini reconhecera como “cinema de poesia”, em que o personagem principal do filme é a linguagem, o seu estilo; o tema, como diria Leminski, “vem depois do poema”. O processo criativo da Trilogia, dessa forma, permanece um mistério até mesmo para nós que produzimos os três filmes, pois tentar explicar por quê a poesia do Satori (e do Garcia Lopes) nos fascinou, por quê fomos guiados pela música (e trajetória) do Booker, por quê o universo visual do Haruo nos causou tanto impacto seria apenas uma atitude reducionista, um complemento lógico inadequado aos três filmes. No caso do Haruo, creio que o que se pode afirmar é que em um primeiro momento, quando somos apresentados à sua obra, há um contato com o mistério – aquilo que não pode ser descrito em palavras, que não pode ser compreendido, mas que surge como uma espécie de desvelamento de si mesmo (quase uma intuição primitiva, original). Suas fotos apontam para uma rara simbiose entre o universo interior e o exterior, o sujeito e o objeto, o um e o múltiplo, anulando qualquer possibilidade de se discutir o objetivo do artista – Haruo não se vê como elemento externo à sua foto: ele está intimamente ligado ao ambiente que retrata e, por isso mesmo, sua linguagem é aquilo que Haruo é no nível mais profundo. Isso não ocorre apenas nos auto-retratos, em que podemos encontrar até mesmo uma certa tendência ficcional: suas fotos, ao mesmo tempo em que apresentam uma paisagem, uma situação histórica, detalhes de uma cidade que vivia seu apogeu econômico (a Londrina dos anos 50), nos revelam um ato de compaixão para tudo aquilo que é retratado: Haruo ama o universo rural em que vive, entrega-se incondicionalmente à sua família e ao ambiente restrito de Londrina. O Sr. Ohara parece dar continuidade a uma lição que Van Gogh aprendera com os



artistas japoneses do século 19: para se retratar uma floresta, não é necessário compor uma grande paisagem (ou um grande plano geral), e sim, se ater a um detalhe mínimo: “Se estudarmos a arte japonesa, veremos um homem que é indubitavelmente sábio, filósofo e inteligente, que passa seu tempo fazendo o quê? (...) Estudando uma única folha de grama” (Carta a Theo, 1888). Em outros trechos dessa mesma carta, há a impressão de que Van Gogh está comentando a estética de Haruo: “Não é quase uma verdadeira religião o que nos ensinam esses japoneses simples, que vivem na natureza como se eles próprios fossem flores? (...)E não podemos estudar a arte japonesa, parece-me, sem ficarmos mais alegres e mais felizes; ela nos faz voltar à natureza apesar de nossa educação e de nosso trabalho num mundo de convenções. (...) Invejo aos japoneses a extrema clareza que tudo tem em seu trabalho. Ela não é nunca tediosa, nunca parece feita às pressas. Seu trabalho é tão simples quanto a respiração, e eles fazem um rosto com uns poucos traços seguros, com a mesma facilidade como se estivesse abotoando uma roupa” (Carta a Theo, 1888). Não é sobre a obra de Haruo que Van Gogh está falando? Apesar de nunca ter sido religioso, o sr. Ohara parece ter demonstrado, em toda a sua vida, uma forte ligação com o cosmos, com o universo – uma relação silenciosa, ritualística e que se expressava por meio da fotografia – uma moldura do tempo. Haruo, que escrevia em seu diário “Hoje você vê a flor. Agradeça a semente de ontem”, tinha essa intuição privilegiada de lavrador, homem da terra que chega ao mundo não pela mediação indireta da razão e sim pelo contato visceral da pele, do toque, do corpo presente. Sua atitude é ao mesmo tempo a do sábio que contempla e do herói trágico que assume seu devir. Ele age e não age, está presente e não está. Sua lógica contradiz qualquer percepção mais edulcorada do mundo – seu universo é vivo, celebrativo e respeitosamente épico. Sua vida é cotidiana, restrita a uma pequena cidade e ao mesmo tempo do tamanho do mundo. Esse homem, que nos motivou a última peça da Trilogia, que fascina curadores e fotógrafos, foi um senhor muito querido e respeitado pela sua família e pela comunidade londrinense em geral; era enfim, um mestre na vida e em sua obra, e parece ter compreendido e sentido aquilo que nas palavras de Drummond movia a “máquina do mundo”. A um só tempo não há nada que Haruo compreenda e que não esteja em seu universo: ele é a síntese amorosa que expressa a inevitável solidão. Solidão de um homem que amou a todos em sua volta, foi amado, e que a la Alberto Caeiro sabia que o rio da sua aldeia era o melhor rio do mundo simplesmente porque era o rio da sua aldeia. Obrigado, Haruo. Muito do que somos devemos a você.



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Rodrigo Grota certamente tem um prazer especial em propor desafios. Tanto de ordem estética quanto técnica. Já no primeiro encontro, ao me convidar para cinematografar Satori Uso (2007), percebi seu conhecimento cinematográfico, raro num jovem da sua idade, e o gosto apurado por uma cinematografia que pesquisa e busca novas imagens paradigmáticas. Para o Satori, as referências, mais do que cinematográficas, eram fotográficas (Haruo Ohara) e pictóricas (Edward Hopper). De Hopper eu já admirava e até copiara as sombras longas das horas iniciais e finais do dia e os enquadramentos com um ou dois personagens "soltos no espaço". Haruo eu não conhecia, e Rodrigo me municiou com farto material, avisando que algum dia iríamos nos aventurar pelo artista e pela obra do grande fotógrafo nipo-londrinense.


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eliminei totalmente a saturação cromática e gravei tudo em P&B. Não haveria Eu passara por Londrina lá pelos anos 70, filmando volta possível. Num segundo momento, me preocupei com a latitude do HD. um documentário. Encantara-me com a bruma densa que só se dissipava lá pelas 8, 9 horas. Voltar As fotos de Ohara, que eram a referência, tinham 12 ou mais stops de latitude e a minha Sony Z1 tinha 7 e 1/2... Cheguei à conclusão que o que tinha a fazer àquela terra vermelha para um registro em P&B era simultaneamente um desafio e um encantamento. O era "trabalhar à antiga", como fazia quando filmava em Ektachrome 64: iluminar mais para fazer a cena caber na latitude do suporte. Levei meu fiel escudeiro de fato do orçamento nos levar para a captação digital mais de 20 anos, o gaffer Cicero "Padim" Barbosa, com todos os seus rebatedores, em alta definição não me assustou nem um pouco. espelhos, butterflies etc. Alugamos um HMI PAR de 1200W, com aquele desconto Minha experiência na área era positiva (com o curta de 2003, Carolina, de Jefferson De), mas o da D. Edina (diretora geral da Quanta), alguns fresnéis e fomos à luta. fato de ser P&B mudava muita coisa e exigia uma Trabalhar com um diretor que sabe o que quer, mas que deixa a cargo do fotógrafo outra aproximação. De cara, dei uma de Hernán o como fazer é muito bom. Os resultados, para mim, se fazem sentir. Mexi um pouco Cortez, que ao chegar ao México mandou queimar toda a frota para que ninguém no recorte da imagem com um filtrinho fog 1/2, fiz um set-up que aproveitava toda a latitude da câmera e parti para experimentar com segurança, o que pode parecer uma pensasse em voltar para a Espanha. Assim, contradição em termos, mas é o que os grandes cinematógrafos – ao menos os que eu considero e respeito como tal, fazem.

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A estratégia no digital, diferentemente do fotoquímico, é captar o máximo de informação que o equipamento permite, e deixar o descarte e os ajustes para a finalização. Quem não faz isso corre o risco de jogar fora a criança com a água do banho...No meio do filme existia uma seqüência em cores. Aí fui para um “technicolor à brasileira”, com bastante saturação, polarização dos céus e da vegetação, além de um aumento moderado no detalhe. O resultado contrastou com o resto de filme em P&B e proporcionou impacto para os hai-kais do Satori. O filme é uma alegoria fake sobre alguém que só existiu na cabeça de seu criador. Isso me abriu portas para a invenção, mas pedia uma coerência que, sem o balizamento da realidade era, trabalhoso encontrar. Qualquer deslize, e a “suspension of disbelief” iria por água abaixo. Para me amarrar mais em referências cinematográficas, fiz a movimentação de câmera ser lenta, quase pesada, como se

estivéssemos filmando com uma Mitchell de 70 Kg numa cabeça Moy. Explorei ao máximo o foco seletivo que uma câmera com sensores de 1/3 de polegada poderia me proporcionar. O que não era muito, mas que com os truques renascentistas de colocar objetos em primeiro plano para que, desfocados, aumentassem impressão subjetiva. Satori Uso me proporcionou um segundo Kikito em Gramado em 2007, e o Prêmio ABC de Cinematografia, outorgado pelos colegas de profissão, o que é muito gratificante. Houve quem achasse seriamente que o filme havia sido rodado em 35mm. O fetiche da técnica... Com a parceria afinada, veio o convite para fazer Booker Pittman (2008). Aí as referências eram as fotos do Robert Frank e os fotógrafos de jazz William Claxton e Herman Leonard. O talento do Zé Nietzsche (José de Aguiar, diretor de arte)


Olhamos tudo como quem faz da retina um CCD; gravando na mídia dos nossos neurônios corticais aquela beleza toda, para a futura tentativa de transcriá-la. Se deu certo ou não, ainda é cedo para dizer. A poesia visual surge mimetizando as fotos de Ohara. Novamente um insert colorido, dessa vez monocromático, potencializa o P&B. A captação é agora num formato melhor (XDCAM EX 35 Mb/s). Agnóstico empedernido, faço um esforço para ser tomado e possuído pelo olhar do Mestre. Preto, branco e todos os cinzas que conseguir gravar. Fomos por experiências ousadas com reflexos, retro-projeção, câmera vibratória etc. Buscamos todo o tempo vislumbrar a inspiração que ele imprimiu em seus negativos e cópias. Será que conseguimos? Passo a palavra ao público. 5

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presenteou-nos com um cabaret da Londrina dos anos 50, em que o espírito do músico do Alabama podia transitar “free as a Bird... “. Novamente a nossa recriação causou perplexidade e confusão. Organizadores de uma mostra queriam que assinalássemos o que era filmado por nós e o que era “arquivo”. Existe maior elogio em se fazendo um filme de época?!? Em Booker, ainda que preservando ao máximo a latitude do suporte, na finalização deixei a mão pesar um pouco mais no contraste. Existia uma névoa difusa, não só no cabaret (fumaça), mas em muitas externas (bruma), o que permitiu aumentar o contraste preservando um layer de cinza alto sobre toda a imagem. O filme tinha também um elenco feminino deslumbrante, nos inspirando a criar imagens de grande charme, beleza e sedução. O terceiro filme da trilogia, Haruo Ohara (2010), era também, no entender de todos da equipe, o mais difícil. Agora a referência eram as fotografias de um mestre que havia captado a região com sensibilidade e técnica apuradíssimas. Fomos juntos visitar uma mostra dele na Avenida Paulista.

1 - Meg Yamagute - Still ‘Satori Uso’ 2 - Haruo Ohara - Bosque Vazio,1950 3 - Edward Hopper - Nighthawks 4 - Guilherme Gerais - Still ‘Haruo Ohara’ 5 - Felipe Augusto - Still ‘Booker Pittman’ 6 - Robert Frank - Motorama,Los Angeles/ The Americans


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Em 1996, quando ainda estava no 3º colegial, cometi uma contravenção plenamente justificável: matei aula e fui assistir a Amarcord no Clube de Cinema de Marília. Naquela época, o CCM contava com sessões às terças, quartas e sábados. O coordenador era o lendário cineclubista Benedito André, mais conhecido como Seu Dito. A entrada custava algo próximo a dois reais - enfim, muito pouco pelo que se pode sentir diante de um filme do Fellini. O público, em sua maior parte espectadores mais velhos, freqüentava as sessões como um ritual religioso. De poucas falas, calmo e generoso, Seu Dito sempre estava lá, acompanhado de sua esposa (e, em alguns casos, com um dos seus filhos), nos orientando em relação à programação e ao acervo do CCM. Ele vivia o Clube de Cinema – sua dia-a-dia era exibir filmes, discuti-los, relembrá-los. Tudo o que havia ocorrido em sua vida parecia estar ligado de uma forma direta a um universo repleto de filmes. Essa foi a minha primeira experiência mais concreta com o cinema: ver filmes ao lado de um mestre como o Seu Dito. Ele nunca comentava um filme de forma explícita ou didática – sempre havia uma observação enigmática, que exigia um complemento. Uma vez perguntei a ele se um filme de suspense que iríamos ver era bom – Seu Dito me disse: “É filme de um tiro só – igual a Hitchcock”. Um pouco constrangido, perguntei: “O que significa filme de um tiro só?”. Ele explicou: “É filme que só dá pra assistir uma vez. Depois não dá mais”. Não que Seu Dito não gostasse dos filmes do mestre inglês – mas ele sabia como era raro encontrar um filme que cresce muito quando é revisto. Nessa época, entre 1995 e 1996, nos dois anos que pude freqüentar o CCM pra valer, o cinema vivia uma fase de transição. Por um lado, o mercado de VHS estava no auge, com muitos clássicos lançados. Por outro, as salas de cinema começavam a migrar para shoppings ou simplesmente desaparecer. Marília contava apenas com uma sala de exibição em 35mm: o Cine Peduti. O Clube de Cinema, apesar de contar com um público fiel, já não vivia sua melhor fase.


Criado a 12 de outubro de 1952 por um grupo liderado por Roberto Caetano Cimino e Alfeu Afonso, o Clube de Cinema de Marília tem uma das trajetórias mais significativas no contexto dos cineclubes no Brasil. Em quase 60 anos de atividades, o CCM sempre manteve uma programação relevante, similar aos ciclos, retrospectivas e programas dos principais centros de exibição do País. Consta que o primeiro filme a ser exibido foi A Dama de Shangai, de Orson Welles, clássico dos anos 40 em que o realizador americano renova o gênero policial com uma história explicitamente inverossímil. Preocupados em inserir o CCM em um contexto nacional relacionado a

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Breve Histórico

cinema, foi realizado em 1960 o 1º Festival de Cinema de Marília, uma das primeiras mostras de filmes a serem realizadas no País. Esse festival, promovido pelo CCM, teve outras duas continuações: em 1967 e 1969. Em meio às três edições, o público local pôde ver de perto nomes consagrados do cinema brasileiro como Anselmo Duarte, Eva Wilma, Hugo Carvana, John Hebert, Reginaldo Farias, Sérgio Hingst, Luís Sérgio Person, Paulo César Saraceni, Walter Hugo Khouri, Ruth de Souza, Marilda Moreira, Roberto Farias, Aurora Duarte, Odete Lara, Maurício do Valle, Roberto Santos, entre outros. Uma das histórias mais curiosas desse período se refere à passagem da atriz Leila Diniz por Marília. A estrela do filme Todas as Mulheres do Mundo teve uma manhã de sol no Clube Bancários – as fotos de Leila, descontraída e de biquíni, impregnaram o imaginário local tornando-se símbolo de uma era que não existe mais. Nem o despojamento, a politização, a sensualidade dos anos 60, muito menos a efervescência cultural que vivia Marília podem ser reconhecidas hoje na cidade.


A principal preocupação dos coordenadores do CCM sempre foi a formação do público. Além de exibir filmes, o CCM promoveu Cursos de Cinema nas décadas de 1960 e 1980, trazendo à cidade críticos como Pe. Guido Logger e Máximo Barro. Esses cursos eram muito procurados pelo público – Seu Dito me disse uma vez que um desses cursos lotou o Salão Nobre do Colégio Sagrado Coração de Jesus (que devia contar nessa época com capacidade para aproximadamente 200 pessoas). Todo mês de outubro o CCM hospedava o Encontro Paulista de Cine Clubes, reuniões em que se discutiam problemas relacionados à difusão do cinema brasileiro. Pude participar de algumas dessas reuniões do CCM em 1996. As conversas, no entanto, eram mais informais – Seu Dito e Seu Roberto Cimino se encontravam no CCM aos domingos pela manhã: o assunto sempre girava em torno de cinema, mas se falava de tudo. Com pouco mais de 16 anos, ficava vendo esses dois senhores

Robin Hood local Naquela época, paralelamente a essas reuniões, estava iniciando o meu primeiro contato com um set de filmagem: em julho de 1996, a convite de Eduardo Reginato, fui assistente de direção do curta Pé de Veludo, filme produzido com baixíssimo orçamento sobre a figura mais célebre da crônica local: Guaraci Marques Pinto (19431964). Pé de Veludo ganhou essa alcunha pois era uma espécie de ladrão silencioso: ninguém percebia sua presença quando realizava um assalto. Morto a 9 de dezembro de 1964 em um confronto com a polícia, ele se tornara uma lenda na cidade. Um pouco porque era um ladrão muito querido pelo povo – diz a lenda que freqüentemente dava presentes a pessoas pobres do seu bairro. Um pouco também pelo fato de que nos últimos anos seu túmulo passou a ser muito visitado, tornando Pé de Veludo uma espécie de santo local – é comum encontrar alguém que relate um milagre provisionado pelo Pé (como as pessoas mais íntimas o chamam).

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Em 1966, o CCM cria um prêmio que se tornara muito conhecido até os anos 1980: o Prêmio Curumim. A idéia era reunir os jornalistas da cidade, premiar o melhor filme brasileiro do ano, e trazer o cineasta para a entrega do troféu e uma conversa com o público local. Entre os premiados estão realizadores importantes como Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Santos e Domingos de Oliveira. Em recente entrevista, a diretora Tizuka Yamasaki disse que ainda guarda o seu Curumim com orgulho, conquista relacionada ao seu primeiro longa: Gaijin (Caminhos da Liberdade), de 1980.

falando sobre filmes com uma paixão autêntica, algo que nunca havia visto antes. Movido pela vontade de mergulhar nesse ambiente, pensava que essa seria a melhor maneira de viver: passar a vida falando de filmes, de como eles nos marcam, formam nossa personalidade.


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fotografia Dib Lutfi.

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Sérgio nasceu a 18 de junho de 1932 sendo batizado como João Lutfi. Sua família, no entanto, se mudou para a capital paulista nos anos 1940. Seu irmão mais novo, Dib Lutfi, o maior cameraman da história do cinema brasileiro, também saiu muito cedo de Marília. Tanto a obra de Sérgio como a de Dib só iria se consolidar a partir dos anos 1960 já no Rio de Janeiro. Além de dirigir filmes com passagens por Cannes e Veneza, Sérgio Ricardo está imortalizado na história do cinema brasileiro por ter composto a trilha sonora do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha. Foi com o cineasta baiano também que Dib realizaria o seu melhor trabalho: a câmera na mão de Terra em Transe (1967). Anos 1980, 90 e 2000

Como promovia assaltos junto a alguns irmãos, os fatos atribuídos a Pé de Veludo também sempre trazem a figura de uma quadrilha, que ficou batizada como Os Irmãos Pé de Veludo. Atuando em outra área, uma dupla de irmãos de Marília iria conquistar renome nacional maior que a gangue dos anos 1950 – essa dupla, no entanto, apesar de muito conhecida nacionalmente, não é muito íntima dos marilienses. Os irmãos Lutfi Essa dupla é formada pelo cineasta e músico Sérgio Ricardo e seu irmão, o diretor

Muito influente nos anos 50, 60 e 70, o CCM começou a constatar a queda de público em suas sessões a partir dos anos 1980. Inicialmente exibindo filmes em 16mm, o que incluiu sessões históricas como a de Encouraçado Potemkin nos anos 1970 (época em que esse clássico de Eisenstein não podia ser exibido no Brasil), nos anos 1980 a projeção passou a ser em vídeo. As exibições, que por alguns anos ocorriam no Peduti, foram transferidas para uma sala da Prefeitura Municipal, mesmo prédio que abriga a Biblioteca Pública de Marília. Com um acervo composto por mais de 22 mil críticas, filmes em 16mm, cartazes, fotos de divulgação, almanaques, livros sobre cinema e literatura, filmes, em VHS e em DVD, o CCM passa hoje por uma transição. Além da reforma que está sendo realizada no prédio em que se encontra o seu acervo, o CCM passou a ser sede desde 2008 da Mostra Marília de Cinema, evento que tem como objetivo estimular a produção local de filmes e resgatar o clima que havia na cidade nos anos 1960. Com o acesso aos meios de produção facilitados pelo avanço tecnológico, talvez Marília possa finalmente ver se tornar concreto os sonhos de idealistas como Roberto Cimino, arquiteto que em 1952 já tinha consciência da importância do cinema como linguagem universal e renovadora do espírito. A figura do Seu Dito, cineclubista de origem humilde, que por anos realizou um trabalho imensurável pela difusão e preservação de filmes justificou a criação em 2009 do Troféu Seu Dito, uma homenagem que a Kinoarte realiza ao premiar os melhores filmes da Competitiva Nacional de Curtas da Mostra Marília de Cinema.


Quando me lembro como era o dia-a-dia de uma figura tão especial como o Seu Dito, que, por anos e anos, todas as tardes recortava os jornais guardando as críticas de cinema, penso que esse trabalho, lento e silencioso, deve ter continuidade o mais breve possível em Marília. Que os exemplos do Seu Dito e Seu Roberto Cimino nos ensinem esse caminho.

Filmes ganhadores do Prêmio Curumim 1966 – A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos 1967 – Esse mundo é meu, de Sérgio Ricardo 1968 – O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person 1969 – Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira 1970 – Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade 1971 – O Profeta da Fome, de Maurice Capovilla 1972 – O Pornógrafo, de João Calegaro 1973 – Como era Gostoso o Meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos 1974 – Toda nudez será Castigada, de Arnaldo Jabor 1975 – Vai Trabalhar, Vagabundo, de Hugo Carvana 1976 – A Estrela Sobe, de Bruno Barreto 1977 – O Rei da Noite, de Hector Babenco 1978 – Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, de Hector Babenco 1979 – Chuvas de Verão, de Cacá Diegues 1980 – Gaijin (Caminhos da Liberdade), de Tizuka Yamasaki 1981 – Pixote – A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco 1982 – Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman 1983 – Amor, Estranho Amor, de Walter Hugo Khouri 1984 – Sargento Getúlio, de Hermano Pena 1985 – Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos

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A existência de artistas importantes hoje nascidos na cidade - querendo produzir filmes, livros, histórias em quadrinhos, música, teatro, enfim, criar a partir de várias linguagens - só fortalece a idéia de que é possível consolidar Marília novamente como uma cidade ligada a cinema. Um grupo formado por representantes de várias áreas - como os escritores Ramon Franco e Rodolfo Arruda Leite de Barros, o músico Valdir Batone, os cineastas Eduardo Reginato e Guilherme Nasraui, a jornalista Lídia Basoli, o ilustrador Guilherme Modesto, o fotógrafo Fausto Roim, a diretora de arte Thalita Rubio, a editora de som Guta Roim - conhece a trajetória do CCM e sabe que seria essencial para a cidade retomar a importância que um dia Marília teve para o cinema. Ao lado de Regina Morales, que desde 1998 trabalha com afinco para que o CCM não deixe de exibir filmes, esse pode ser o começo de uma nova fase para a cultura mariliense, estimulando a produção local, mas sem ignorar a importância de realizar um intercâmbio de idéias, projetos, com realizadores de outras cidades. Esse é o objetivo da Mostra Marília de Cinema e motivo pelo qual cada vez mais a Kinoarte deve realizar projetos na cidade.

Fotos Acervo do Clube de Cinema de Marília


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especialmente com um livro escrito por Bibhutibhushan Bandyopadhyay chamado Pather Panchali.

A Índia dificilmente chega a ser algo além de uma nota de rodapé para a maioria dos cinéfilos. Em tempos de internet, o dado curioso de que Bollywood (a indústria cinematográfica indiana, em Bombaim) é o lugar onde se produz a maior quantidade de filmes no planeta – mais inclusive que sua contraparte californiana – se espalhou, ainda que o cinema indiano não tenha se popularizado no Ocidente. Em um país com uma indústria cinematográfica tão proeminente e popular, era questão de tempo até propostas mais autorais e independentes começarem a dar as caras, e mesmo sendo muito mais conhecido e respeitado fora da Índia do que em seu país natal, o diretor, roteirista, diretor de arte, designer de seqüências de créditos, operador de câmera, editor, compositor, figurinista, desenhista de cartazes e escritor Satyajit Ray (1921-1992) conquistou espaço suficiente nas terras de Ghandi para construir uma carreira cinematográfica de mais de 35 filmes. A capacidade de desempenhar variadas funções parecia correr na veia artística da família Ray. Upendra Kishore Rai-Chowdhury, avô de Satyajit, é figura seminal na literatura infantil de West Bengal. Ele foi o primeiro da região a escrever somente para crianças. Upendra Kishore também era pintor, músico e tipógrafo. Um de seus livros mais populares Gupi Gayeen Bagha Bayin (As Aventuras de Gupi e Bagha) foi adaptado para as telas e dirigido pelo neto em 1968. Sukumar Ray, pai de Satyajit, era um sátiro proeminente e um dos primeiros escritores da Índia a trabalhar com o nonsense em suas rimas. Após estudar arte na Rabindranath Tagore’s University em Shantiniketan, o futuro cineasta trabalhou durante 13 anos em uma agência de propaganda, além de ilustrar uma infinidade de livros para uma editora chamada Signet Press, fundada por D. K. Gupta, colega de Ray na publicidade. Foi na Signet Press que o versado na literatura inglesa Satyajit teve contato com a literatura Bengali, mais

A Trilogia de Apu Qualquer pessoa que já tenha assistido a Canção da Estrada sabe o quão flagrantes são as semelhanças que o primeiro filme de Ray guarda com o neo-realismo italiano. Alguns sites dedicados à Calcutta Film Society (fundada por Ray em 1947 junto com o também diretor Chidananda das Gupta) defendem que, em 1950, durante uma viagem de seis meses à Europa, Satyajit Ray teria visto mais de 100 filmes. Entre eles, Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sicca (1948). Mais do que uma inspiração, o filme italiano seria a prova de que o tipo de cinema pensado por Satyajit Ray (com atores não-profissionais e privilegiando as filmagens em ambientes externos) estava sendo feito na Europa, logo, podia ser feito também na Índia. Após um ano de frustradas tentativas de comercialização do roteiro, a equipe começou a rodar às custas de apólices de seguro e empréstimos de amigos e parentes do diretor; que, em suas próprias palavras: “(...) queria algum material para provar que éramos capazes de fazer cinema”. O dinheiro acabou logo e a produção ficou parada por quase um ano. O salário recebido por Ray como diretor de arte, junto com a venda de livros, discos e a penhora de uma parte das jóias da esposa, garantiu o financiamento do resto das filmagens. Mesmo tendo a palavra “independente” impressa em cada frame, seu Pather Panchali tem uma clara estrutura de cinema de gênero. É um melodrama formal no qual um problema é apresentado no começo do filme e os personagens vão percorrer a narrativa de modo a aprender a triunfar sobre esse problema no final. Na maior parte do tempo, quem ocupa o quadro são as mulheres da família de Apu. Sua mãe Sarbojaya, sua agitada irmã Durga, sua tia idosa (interpretada por uma atriz de teatro aposentada de 80 anos) e a vizinha. Tendo em vista que os chefes de família precisam se ausentar em busca do sustento, as mulheres são obrigadas a encarar a aldeia como lar. A convivência forçada, a falta de privacidade e a escassez de notícias, de dinheiro, de comida e de abrigo – além de uma genuína inquietação de espírito presente tanto na anciã Indir quanto na jovem Durga – fazem crescer a tensão na comunidade.


Depois de cerca de vinte minutos de história entra em cena o protagonista. A primeira imagem que temos dele é o abrir de seus olhos. É assim que Apu nasce para o filme. Seu nascimento fílmico já o predispõe à captação. Apu precisa ver, precisa presenciar. Seguindo os passos do herói herdado do melodrama clássico, o garoto vai absorver tudo o que aquele lugar pode lhe proporcionar em termos de formação e através dos percalços vai extrair o aprendizado para poder enxergar mais longe intelectual e territorialmente. Por mais que o talento artístico do pai e a curiosidade da irmã deixem transparecer uma noção de que o mundo longe dali tem vários atrativos, a saída da família do vilarejo se dá por uma obrigatoriedade. Ainda não é aqui que Apu pode se tornar senhor de seu destino. Aparajito Menos à mercê da lentidão particular do tempo e da turbulência das monções, a família de Apu parte para tentar uma nova vida às margens do Ganges. O amadurecimento de Apu torna-se perceptível através de seu contato com uma sociedade mais fragmentada e heterogênea. Diferente do primeiro filme, Harihar – o pai de Apu – não é mais um mero portador de novidades e instigador de mudanças. O conflito de gerações começa a se fazer sentir. Mais uma vez, as circunstâncias que ocasionam a fuga da cidade estão fora do alcance do protagonista. Ele só conta com o que viu e presenciou desde o filme anterior, e todos os esforços do que restou da família são empregados em uma tentativa de continuar o desenvolvimento do agora adolescente Apu. O êxodo aparece pela primeira vez não como inescapável e provocado por influências hostis, e sim como um prêmio. A bolsa para estudar em

Calcutá atesta que a vontade de aprender é o que faz possível que a história da família de Apu não morra em um vilarejo da Índia rural no começo do século XX. Nargis, uma atriz muito popular na Bollywood dos anos 1950 e que depois se tornou membro do Parlamento indiano, criticou publicamente os filmes de Satyajit Ray por retratarem a Índia sob um prisma dos não mais favoráveis. Um exemplo contundente de que não era a dicotomia “cinema de autor x cinema da indústria” que destacava Ray de seus conterrâneos, mas a recusa deste em privilegiar a forma em detrimento do conteúdo. Na praxe do cinema comercial e do star-system Bollywoodiano, locações exóticas serviam para emoldurar tramas que uniam ação e comédia, além de longos números musicais coreografados. A narrativa é mais do que a matéria-prima do cinema de Satyajit Ray. É também seu maior foco de atenção (comprovada por sua herança literária). O dinheiro, tempo e energia gastos em cenários, figurinos e toda espécie de refinamento da forma resultavam, para Ray, em um cinema desumanizado. Antes de retornar à trilogia, Satyajit Ray dirigiu dois filmes em 1958. Parash Pathar (A Pedra Filosofal) e Jalsaghar (A Sala de Música). Nos dois longas, Ray retrata a fratura social que estava se formando na sociedade indiana. Primeiro, através dos olhos da classe média emergente: em Parash Pathar um funcionário de banco encontra o lendário artefato capaz de transformar ferro em ouro, rendendo uma comédia de situações.


Correspondendo-se com a crítica de cinema Marie Seton, Ray definiu a obra como “um tipo de combinação de comédia, fantasia, sátira, farsa e um toque de Pathos”. A face da classe superior agonizante também ganha uma versão fílmica pelas mãos de Satyajit Ray: Jalsaghar narra a queda dos últimos resquícios do sistema feudal vivenciado por um senhor de terras apaixonado por música. Os últimos trocados de seu patrimônio são empregados na realização de um apoteótico concerto, que serve de elegia e réquiem. Apur Sansar O Mundo de Apu (Apur Sansar, 1959), como o próprio título denota, trata da relação do agora recém-formado Apu, personagem interpretado por Soumitra Chaterjee, que voltaria a trabalhar com Ray em outros 15 filmes, tornando-se também o ator mais famoso do cinema Bengali. Apu mora perto de uma movimentada estação de trens e vende seus livros para pagar o aluguel enquanto procura por um emprego e escreve um romance baseado em sua vida. Em uma visita ao campo, casa-se com Aparna, prima de um amigo, e ela vem morar com ele no subúrbio da cidade. A tragédia novamente se apresenta para o protagonista, pondo à prova todo o aprimoramento intelectual, espiritual e filosófico que Apu havia experimentado nos outros dois filmes. Contando mais uma vez com uma estrutura de roteiro bastante formal, o avanço de Ray na encenação se faz sentir tornando Apur Sansar o mais maduro dos três filmes. A seqüência do casal Apu/Aparna no apartamento de Calcutá constrói a partir de ações completamente banais – como Apu deitado sobre as roupas da esposa, um grampo de cabelo entre os travesseiros de sua cama, as cortinas na janela e outros pequenos objetos de cena – um clima de intimidade e afinidade entre o casal sem mostrar sequer um abraço. A narrativa flui por meio de planos que se comunicam e adquirem significado com o acúmulo de informações. Um olhar menos detido às nuances que vão povoando as pequenas ações dos personagens pode render

à obra de Ray, especialmente aos melodramas familiares, a incômoda pecha de “filmes com mensagem”. Certamente existem o branco e o preto no cinema moral exercido por Satyajit, e foi opondo modernidade e tradição, racionalidade e sobrenatural, ciência e fé, que o cineasta documentou – ainda que através majoritariamente de ficções – a trajetória da modernização forçada e acelerada de sua terra natal. As experimentações na forma também marcaram presença na carreira cinematográfica de Ray, sempre subordinadas à narrativa. Aparecem movimentos complicados de câmera, reenquadramentos milimétricos e tentativas de realismo fantástico via uso das cores, mas a porta de entrada para uma visão de mundo que está se cristalizando ou para gigantescos travellings é sempre a história. Outro traço flagrante dos filmes de Ray é o cuidado na construção dos personagens – especialmente os secundários – e as mulheres têm destaque na trilogia de Apu. A irmã é dona do primeiro filme, a mãe do segundo e a esposa do terceiro. O talento de roteirista e encenador de Satyajit Ray fica evidente ao notar que esses personagens femininos contam com pouco tempo de cena – Aparna, em Apur Sansar, aparece em quadro por pouco mais de 30 minutos – e Durga, Sarbojaya e Aparna são das personagens mais carismáticas de toda a extensa obra do diretor indiano. Transformando em filmes um humanismo bem diferente do que era conhecido no Ocidente como “oriental” ou “hindu”, as crises de consciência e os dilemas morais dão pistas sobre o porquê da opção de Satyajit Ray em fugir da forma rebuscada tão em voga no seu país. Para ele, todas as virtudes conquistadas a partir de um desenvolvimento individual só podem ser consideradas virtudes quando postas à prova. A morte, os erros de julgamento e outras adversidades não são tratadas como o fim do mundo ou aceitas


como simples contingência. A narrativa da História não pára, e Apu, Charulata, Huzur Roy, Mazumdar, Ananda Majumdar e outros protagonistas e coadjuvantes dos filmes de Ray precisam lidar com as conseqüências de suas ações ou omissões. A partir desses aspectos, o cinema de Satyajit Ray se aproxima bastante do cinema clássico americano, especialmente do Western, demonstrando que não era só no neo-realismo italiano que o indiano encontrava suas influências. O Ocidente também sempre teve suas portas para Ray. Em uma viagem à África em busca de locações, John Huston assistiu a pouco mais de 15 minutos de Canção da Estrada. Foi o suficiente para recomendá-lo ao diretor do MoMA (Musem of Modern Art) à época, Monroe Wheeler. Wheeler havia se interessado muito pelas fotos de still mostradas a ele por Satyajit Ray seis meses antes. Pather Panchali podia não fazer muito barulho dentro do próprio país, mas sua première em Nova York estava assegurada. Pesquisas de locação já haviam, antes disso, proporcionado o encontro de Ray com Jean Renoir, antes das filmagens de O Rio Sagrado, em 1949, na Índia. Este filme, aliás, foi fundamental no lançamento das carreiras de Ray - um assistente no filme - e Subrata Mitra, que passou a se tornar diretor de fotografia de Ray. Pather Panchali teve no festival de Cannes de 1956 um efeito muito parecido com Rashomon de Akira Kurosawa anos antes em Veneza. Colocou no mapa para o Ocidente a cinematografia de um país até então muito pouco conhecido do lado de cá do meridiano. Foi do próprio Kurosawa uma das melhores definições sobre o cinema do diretor indiano. Para Akira, não assistir aos filmes de Ray equivaleria a existir no mundo sem ver o sol ou a lua. Satyajit Ray faleceu em 1992, aos 71 anos. Um ano antes, o diretor havia completado seu último longa – O Estrangeiro (Agantuk, 1991) – e escrito vários roteiros. Seis desses roteiros se transformaram em filmes pelas mãos de Sandip Ray, seu filho, que prorroga em mais uma geração a linhagem artística da família Ray em West Bengal.

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A idéia de fazer um texto comparando o rei da música brasileira, Roberto Carlos, com o maior cineasta de todos os tempos, Kenji Mizoguchi (1898-1956), surgiu repentinamente em minha cabeça durante uma oficina de crítica em Aracaju. Estava andando pela praia, cantarolando algumas de minhas preferidas do Roberto e lembrando de cenas do mestre japonês passadas para os alunos na noite anterior quando tive o imprudente estalo. A idéia, como suspeitava, caiu por terra pela impossibilidade de dar conta dessas duas almas tão diferentes. Talvez esse mote encontre agora o seu destino, como introdução – não mais que isso – a este texto encomendado pela Taturana sobre o grande Mizoguchi. O emaranhado de coisas que trafegou com desimpedimento em meus pensamentos naqueles dias em Aracaju consistia basicamente na operação que os dois artistas, únicos em sua arte e por motivos bem diferentes, realizam na direção da mais profunda e transformadora emoção. Ambos atravessam o preconceito, do popular em relação ao erudito e vice-versa, antes de atingirem os corações das pessoas. Emoção é a palavra. Roberto faz o caminho de um lado, com suas composições e interpretações, sobretudo durante os anos 1970, permeadas de signos que seu público conhece muito bem e consegue, com eles, atingir-nos. Mizoguchi vem do caminho oposto. Sua arte é rica; seus artifícios, incrivelmente sofisticados; sua estética, esplendorosa, mas sem excessos; fulgurante, mas sem brilharecos; elegante, mas completamente funcional. Seus longos planos, que acompanham a movimentação dos atores por cenários construídos com esmero, revelam precisamente o campo de ação, possibilitando e preservando ao mesmo tempo a melhor interpretação possível do ator. Um ator que não fosse extraordinário não encontrava muito espaço para trabalhar com Mizoguchi ou era por ele desprezado, impiedosamente, prejudicando ainda mais o ambiente durante as filmagens. A oportunidade dada à técnica era herança do teatro. Não permitia falhas, não sustentava estrelismos. Tudo devia estar no seu lugar, servir ao propósito maior, à arte em questão – e poucas vezes esta palavra "arte" fez tanto sentido quanto nos filmes de Mizoguchi. Assim é com Roberto Carlos, para quem a divisão das sílabas musicais respondia pelo tom exato na maneira de passar a emoção das letras que cantava. É o domínio da técnica que está em foco nos dois artistas aparentemente incomparáveis. Mas o assunto aqui é Mizoguchi.


A contextualização da genialidade (ou quando superlativos nunca são demais) Nunca vi nada que Mizoguchi fez antes do magnífico A Feiticeira das Águas (Taki no Shiraito, 1933), mas acredito em Noel Sïmsolo, que diz estar neste filme o começo da maturidade do diretor. O próprio Mizoguchi discorda e aponta 1936 como o ano em que atingiu tal maturidade, ainda que tenha tido sempre uma postura extremamente autocrítica diante de seus filmes, mesmo os mais celebrados. A parceria com Hiroshi Mizutani, diretor de arte, foi fundamental para desenvolver um estilo baseado em planos-seqüências e movimentos muito elaborados de câmera. A parceria começou ainda em 1933, no filme Festival de Gion (Gion Matsuri, 1933). Um outro dado importante é sua parceria com o roteirista Yoshikata Yoda, com quem realizou todos os filmes a partir de Elegia de Osaka (Naniwa Erejii, 1936). Independente do fator mais marcante para sua maturidade artística, A Feiticeira das Águas (Taki no Shiraito, 1933), realizado sem Mizutani e Yoda, é poderoso o suficiente para impressionar.

A Decadência de Osen (Orizuru Osen, 1934), realizado no ano seguinte, é a primeira de várias obras-primas absolutas que realizaria até o fim da vida. É nele que se percebe de maneira inequívoca a perfeição dos movimentos de câmera, sobretudo no travelling de 1/4 de círculo na estação de trem, cartão de visitas emblemático de seu estilo e que acontece logo na abertura. Seria esse o primeiro traço autoral inconfundível em sua carreira? Seria a primeira centelha de genialidade reencontrada em filmes posteriores, confirmando uma maneira ideal - melhor dizendo, essencial - de se fazer cinema? Impossível dizer, já que várias de suas obras desapareceram, incluindo algumas dos anos 1930 e suas incursões teatrais do início dos anos 1940. Mas A Decadência de Osen, não só por essa abertura notável, é filme de mestre, que merece estudo, inclusão em currículo de qualquer escola de cinema, e é fortemente identificável por diversos estudiosos como seu primeiro grande marco. Para muitos, a confirmação de sua genialidade (palavra nunca gratuita ou exagerada em se tratando de Mizoguchi) reside nos filmes irmãos, Elegia de Osaka (Naniwa Erejii, 1936) e As Irmãs de Gion (Gion no Shimai, 1936). São dois filmes que até parecem pálidos em comparação a Osen, mas neles estão a consolidação de Mizoguchi como um cineasta das mulheres, graças à força com que as atrizes desempenham papéis marcantes nos dois filmes. Contudo, a confirmação de fato vem com uma obra marcante do final dos anos 1930, que viria a ser um


divisor de águas em sua carreira: Conto dos Crisântemos Tardios (Zangiku Monogatari, 1939). O filme narra a relação de um ator de teatro medíocre com a empregada de sua família, moça espirituosa que o ensina muito mais sobre a vida e a profissão do que a empáfia de seu pai, mestre do kabuki. A partir desse filme, um dos poucos que não se passa em tempos remotos e que traz um homem como protagonista (ainda que, como bem observou Noel Sïmsolo, "a sensibilidade artística o feminiza"), Mizoguchi voltaria seu cinema para o teatro, em obras imediatamente posteriores que, como já dito, desapareceram. A partir da possibilidade de observar essa evolução, Conto dos Crisântemos Tardios passa como uma obra-prima errática, daquelas que os grandes mestres fazem para se arriscar e alargar seus conceitos cinematográficos, voltando em seguida a território seguro - o drama da mulher, normalmente no Japão feudal. O acaso fortalece as aparências e perdemos de vista alguns passos importantes da maior carreira cinematográfica de todos os tempos.

A emoção que se desprende do sublime Uma pergunta que ouvi no fim de 2009 ainda ecoa na minha cabeça: “Qual seria, hoje, o cinema a ser defendido?” Depois de alguma hesitação, respondi: “o cinema que apresentasse alguns ou todos os preceitos de Mizoguchi, ou, se não fosse possível apresentar tais preceitos, que pelo menos não os negasse”. Em alguma medida, a maior parte do que interessa no cinema contemporâneo responde por algum princípio que Mizoguchi defendia - e como ele, de maneira ligeiramente diferente, defendiam Raoul Walsh, Otto Preminger, Fritz Lang, Joseph Losey, Ida Lupino, Shohei Imamura, Manoel de Oliveira, Jean-Marie Straub & Danielle Huillet, Abbas Kiarostami, Andrei Tarkovsky e alguns outros, todos diretores com um ou mais pontos de contato com a estética de Mizoguchi. Essa estética é baseada na câmera

persecutória e na discrição no registro das emoções do ator, para que essas mesmas emoções se transfiram diretamente ao espectador, sem chantagens nem manipulações. Walsh e Preminger, por exemplo, acreditavam no plano-seqüência como respeito ao trabalho do ator e como possibilidade maior de conseguir o máximo de sua interpretação e assim pensava, também, Samuel Fuller, Joseph Losey, Max Ophuls e Shohei Imamura. Lupino e Lang ainda respeitavam a inevitabilidade do confronto com o espaço, assim como o registro que preservasse a intimidade do ator. Straub e Oliveira convergem pela preocupação com o texto, com as diferentes entonações que esse texto pode proporcionar, e pela maneira como essas entonações dirigem a performance do ator dentro do espaço cênico. Na impossibilidade de se fazer algo à sua altura num tamanho bem menor que o de um livro, podemos dividir, sem ignorar a possibilidade de desencontros nessa divisão, a obra de Mizoguchi por sintonias com a de outros diretores, contemporâneos a ele ou não, sem que suas crenças sobre cinema fossem abaladas. Nos anos 1930, há aproximações óbvias com o que Ford, Walsh e Vidor estavam fazendo ou fizeram na década anterior. O próprio Mizoguchi já se declarou muito influenciado pelo cinema americano


mizoguchiano. A força do cinema do mestre está presente, mesmo que não saibam, como a marca de alguém que aprendeu e aperfeiçoou com paciência as descobertas de pioneiros, ou mesmo como a matéria esculpida e retrabalhada com exatidão por outros diretores. Sua influência pode não ser perceptível, mas existe, como sinal inescapável de um cinema que atingiu a perfeição durante o ápice de sua carreira.

que chegava ao Japão até a Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1940, Mizoguchi estava fazendo o que fariam depois Straub e Oliveira, mas também Kiarostami: basta vermos com atenção a primeira e monumental parte de Os 47 Ronin (Genroku Chushingura, 1941-1942), em que a palavra gerencia os complicados movimentos da câmera. No imediato pós-guerra, com As Cinco Mulheres de Utamaro (Utamaro o Meguro Gonin no Onna, 1946) e Mulheres da Noite (Yoru no Onnatachi, 1948), foi a fonte para Lupino e Losey além de evidenciar uma sintonia estética com Lang nos anos 1930 e 1940. Nos anos 1950, o apogeu de sua arte, Walsh novamente, mas também, de maneira bem forte, Preminger, Ophüls, Astruc e Fuller. É por isso que alguns diretores atuais, que assumem mais a influência de um desses cineastas citados do que a de Mizoguchi, não se livra automaticamente do estilo

Woody Allen, por exemplo, cujo cinema feito neste século remete ao que Claude Chabrol realizou nos anos 1980 e 1990, deveria acender uma vela para Mizoguchi, principalmente por Vicky Cristina Barcelona, que usa a câmera persecutória para extrair o máximo de emoção de suas atrizes. Estão ali os preceitos que permitiam o brilho da representação, a sujeição às movimentações pelo espaço cênico, o respeito aos gestos e expressões corporais. Vicky Cristina Barcelona é um legítimo herdeiro de Mizoguchi. Que tenha sido realizado por um diretor norte-americano faz um pouco de justiça e ajuda a clarificar o caminho de duas vias entre o cinema americano e alguns mestres japoneses. Além de Mizoguchi, outros grandes diretores declararam influência do cinema clássico americano em seus filmes: Ozu, Naruse, Kobayashi e Akira Kurosawa entre eles. Há ainda o caso de Béla Tarr, cineasta húngaro que se apropria dos ensinamentos de Tarkovsky para radicalizar o uso do plano-seqüência, atingindo uma temperatura emocional forte, mas com aparência de frieza – mais ou menos o que Mizoguchi conseguia atingir em seus filmes maiores do fim da carreira, período que se iniciaria com Oharu – A Vida de uma Cortesã (Saikaku ichidai onna, 1952). Fase que o crítico Jean Douchet, ao contrário, afirma ter tido início com Mulheres da Noite,


quatro anos antes. E prosseguiria com obras-primas como Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari, 1953), Os Amantes Crucificados (Chikamatsu Monogatari, 1954), O Intendente Sansho (Sanshô Dayû, 1954), A Imperatriz Yang Kwei-fei (Yokihi, 1955) e A Nova Saga do Clã Taira (Shin Heike Monogatari, 1955). Existe, ainda, o caso de seu conterrâneo Kiyoshi Kurosawa, que alia planos-seqüência godardianos a uma atmosfera criada pela discrição e pela distância entre a lente da câmera e o ator. Exemplos perfeitos de filmes mizoguchianos dentro de sua carreira são Cure (1997) e Charisma (Karisuma, 1999), ainda que o gênero – seja comédia ou horror – apareça de modo marcante, camuflando as influências. Outros exemplos possíveis são Eugène Green, por meio de uma conexão com Straub e Oliveira; Michael Mann, passando obrigatoriamente por Raoul Walsh; Alain Guiraudie, pela câmera persecutória; Werner Herzog, pela submissão à potência do ator; e tantos outros, de forma enviesada ou natural, que ajudam a manter um cinema possível e livre de viroses.

Epílogo Talvez a melhor forma de explicar o fascínio de Mizoguchi seja mostrar onde e como podemos ver sua influência, sentir que sua maestria está viva, pulsante, e ainda pode modificar para melhor o cinema contemporâneo. Propagar seus ensinamentos com paixão é algo que deriva dessa explicação. Mizoguchi foi o diretor que melhor emulou o mundo reconhecido por espectadores de diferentes credos e valores - um mundo universal e particular, revoltante e injusto, poético e contraditório, o mundo real. A não aceitação de seus preceitos pode nos levar a atrocidades como Brillante Mendoza, Tony Scott e Lars Von Trier (pós-Dogma), diretores que não souberam buscar uma

outra via, assinalar um outro caminho; assim como o mau entendimento desses preceitos pode causar degenerações como Lisandro Alonso ou Albert Serra, diretores que podem até ser chamados de demiurgos, como os primeiros, mas que são incapazes de interagir com um mundo a que todos possam combater ou se envolver em alguma medida, um mundo reconhecível, e, por isso mesmo, perfeitamente representável. Muitos podem argumentar, com certa razão, que meu mundo é diferente do mundo de outro espectador, e por aí vai. Ao mesmo tempo, o mundo de Fellini, para ficarmos apenas com o exemplo mais óbvio de cineasta/demiurgo, não se parece com nada palpável e reconhecível. Mas no cinema, penso, o mundo é um só, invólucro de emoções e reações que respondem a processos diversos, e recebem diferentes roupagens. Ainda que os filmes mais alucinados de Fellini nos transportem para um novo mundo, há claras conexões com o mundo que conhecemos, daí a facilidade com que nos envolvemos com seus sonhos e delírios. A essência é sempre a mesma, e obedece a um tipo de verossimilhança difícil de ser explicitada, bem diferente daquela que Hitchcock pregava como desnecessária em cinema. Uma verossimilhança que nos faz ver e manter contato com o que é mais sagrado na representação - com algo que existe. Pode haver bom cinema que não leve isso em conta, mas como é difícil encontrá-lo.



arte Anderson Craveiro, Fรกbio Augusto, Felipe Augusto e Guilherme Gerais






texto Sérgio Fantini arte Fábio Augusto, Felipe Augusto e Guilherme Gerais


Os que Fazem churrasco na casa das namoradas aos domingos Não ficam amarrotados de madrugada

os 16 am a ília Trans m fam e s o t s fli tuguê m con e por tivera e ia a d g c a n lo Nu bio cilid mica om fa a quí dos c ic a s b í f ê b tica cabelo icam temá e de t a r o m Não f c m o ons e anter ram b aem o b f r a e r b a r Semp fazer itubea e em s anos m sem t a o p c u li de 3 c b o ú is e p a r P rm em falar go po uem mpre g e e a o s n esm Co erceb no m ém p u m g e c in en ane m qu Perm es se t n a am Têm garfo e pais ns de o b o ridos a a Sã m m a c s o e a os filh ons d a-troc nheir São b a p m o troc o n c vado s s o n d o sse le e gana iv t n São b e uem oram am q Não f hecer n o c Nem orrada p


Os que Pagam aluguel mas se sentem proprietários Completam bodas de qualquer coisa Terminam uma pelad a sem brigar com o goleiro Fazem palavras cruza das indiretas Serviram no exército e contam casos de ca serna Passaram por um na moro longo sem abort o Passaram sem recup eração Fumam maconha co m suas esposas Têm amigos na vizinh ança no trabalho na escola e de infância Não precisam de am igos Fizeram festa de for

matura Escrevem cartas em papel de carta Não dependem da fam ília Não pertencem a nin

guém

São arrimo de família

Os que das Se preocupam em combinar a corroupas Ouvem rock na juventude jazz na

maturidade e clássico na velhice

Conseguem ser pais e avós is sico e jazz antes dos 40 e rock depo

Ouvem clás

Nun

Sabem andar de motocicleta Sabem dirigir automóveis ca se machucaram seriamente Não fumam muito Não falam muito

Fazem rir com piadas quando estão Não telefonam para ex-mulheres solitários Nunca estão totalmente solitários Guardam lembranças


que e Os fum eiro per m dinh a s o u c pou Não com cial m nos ada spe a vive e e 4 r blic o 1 b u v i o s t p o S o ao er m sua fot cia notí alqu m u m ê q t a For sem ndo so cia qua í t o or is m n p e c o m e r Sã ulpa vaid ar le se c e en ecis s o r ã p o n Nã sem to e em mui m r m a Do nem fum aca rte a me pas ess r a u l e u o i e a d r s d F lme mp uas am ria m fi aze ms ada f balh u l a p a a s o r t m s a d T n vira ta n uan e pa o de con te q não am m fi n e o a e r r a d v Lav a i li in us sorr um squ pre am çom r na e r e r l a Sem a g b nca elo um e nu os p o u d ã i Têm q ç d r la ize aten acu smo ao d a ej vio ioni São e s d m s pré a a e t pr iso trol von m v n i a o à e C -se mo o de tem ubis estã c o e Senem d entr uan sab nça es q e õ r ç e f a st a di pre ba em z erce a p F l s a ci ho poli adil que eo as troc u d q a m Os r sa sem amo pen s mn ado Dis a e ado z s ba nhia ssin pre a a s o reu s p e s m D mor om sa ea c t o n n e d e i e d r p Dis que atar larm dem e ém tacu se m u scin e g e aias l lass r p m P s oa s pr mc a r es d gue i a ê e n e t d d s s a é u sim eias Con trag uem lo q o as s ar seg nda a e de m l n â s g e o c e n ical C es m e sp m lo mus am ee dad elto rios i r s o b á v t e t i o s t Vive n z n fi e e mp cria os e rum com Não faze corp com inst am s o s r m u i n Não u se pe inhe car Dis filam ham d m to e Des b n Sa Ga


Conseguem terminar um poema sequer iniciado.


contra capa 2


capa 2


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