REVISTA TERMINAL Número 1 - Outubro de 2013 EDIÇÃO Renan Santos ARTE Renan Santos TRADUTORES Bernardo Campella Carlos Guilherme Silveira Emílio Costaguá Henrique Garcia Hugo de Santa Cruz Marcos Monteiro ESCRITORES Miguel López Ricardo Almeida
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© Revista Terminal 2013
#1
Outubro de 2013
ÍNDICE
FILOSOFIA Da Mitocosmologia Tradicional, Jean Borella...............................................................................................................................................................................6 Adeus a Descartes, Eugen Rosenstock-Huessy..............................................................................................................................................................................11 Copleston sobre a história da filosofia............................................................................................................................................................................................22 Culpeper e os temperamentos..........................................................................................................................................................................................................29 O lugar da lógica no pensamento aristotélico, Éric Weil..........................................................................................................................................................34
LITERATURA Kannitverstan, Hebel.................................................................................................................................................................................................................................47 O indecifrável Mann....................................................................................................................................................................................................................................49 A uma amante pós-tudo ..................................................................................................................................................................................................................52 HISTÓRIA O planeta redondinho, Jeffrey B. Russell..........................................................................................................................................................................................53
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FILOSOFIA
Da Mitocosmologia Tradicional, Jean Borella Artigo 1 do capítulo I do livro “La Crise Du Symbolisme Religieux” (1990)
A
propósito de um rito xamânico realizado por um Índio Cuna, com a intenção de auxiliar uma mulher a dar à luz, C. LéviStrauss observa o seguinte: “Uma vez
que a sociedade e a mulher creem na mitologia do xamã, pouco importa o fato de que ela não corresponda à realidade objetiva”.1 Eis uma observação feita en passant e que parece justificada. Os ocidentais imaginam, de bom grado, que o rito consiste numa espécie de “placebo sócio-cultural”, que funciona como se fosse uma verdadeira autossugestão coletiva. 2 Só loucos pensariam de outra forma. Nesse caso, o que a episteme3 moderna se recusa a aceitar é o que chamaremos de causalidade simbólica ou semântica, isto é, a eficácia do conteúdo inteligível do signo. Tal ou qual signo causa a saúde
Não são apenas os filósofos ateus que participam
porque a significa, direta ou indiretamente, através
da referida neutralização. Os pensadores cristãos
de uma analogia ou de uma semelhança de natureza
fazem o mesmo: “Quem ouve o discurso originário
semântica entre ambos; este axioma é indisso-
do mito, escreve Antoine Vergote, não crê nele em
ciável de uma concepção tradicional da simbólica.
sentido estrito. (…) A época mitológica acabou. (…)
Nos ritos sagrados, na astrologia, nas operações
Não mais podemos nos colocar sob a luz originária
alquímicas, o que age não são tanto as forças
do mito”.4 Todavia, a posição do pensador cristão é
ocultas, mas a potência própria das similitudes
mais delicada que a do filósofo ateu. A rejeição da
inteligíveis, as relações semânticas de expressão
causalidade semântica, para este, não causa, pro-
que unem os signos às coisas — como os sacramen-
priamente, nenhum problema. O crente, porém,
tos cristãos, que produzem o que significam não por
depara-se com o fato de que sua própria religião
força mágica, mas porque a forma simbólica partic-
se apresenta sob uma forma simbólica que parece
ipa realmente do ser de seu referente, que por sua
implicar, justamente, a fé na eficácia dos signos.
vez comunica a ela sua virtude. Voltaremos a tratar,
Poderia ele manter sua fé religiosa, isto é, con-
mais adiante, quando discutirmos Kepler, da noção
tinuar a crer no que diz a Revelação, sem aderir,
de causalidade semântica. Vê-se, entretanto, desde
por essa razão, à maneira como é dita? Não seria
já, que coloca-la em questão é colocar em questão
necessário, justamente, lançar-se mão de uma
todo o simbolismo sagrado bem como a relação
hermenêutica? Não se está arriscando a “jogar
ontológica que ele estabelece entre os signos e as
fora a criança juntamente com a água do banho”,
coisas. Em uma palavra, é proceder a uma neutrali-
como já temia Kepler com relação ao procedimento
zação onto-cosmológica do símbolo.
dos adversários da astrologia?5 Como separar, dos
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1. Anthropologie structurale, Plon, 1958, p. 218, capítulo X: “L’efficacité symbolique”. 2. Ademais, o modo de ação de tal processo não é menos misterioso que o do xamã. 3. Em um sentido semelhante ao de Foucault (Les mots e les choses, p. 13), designamos por episteme a concepção que uma época ou cultura tem do saber verdadeiro. 4. Interprétation du langage religieux, éd. Du Seuil, 1976, p. 85, n.1.
dados revelados, o que pertence à hermenêutica
fenômenos materiais, essa física continua a pre-
– porque de natureza puramente figurativa – do
valecer, na maioria dos espíritos, como o modelo
que pertence à expressão própria e direta? Acaso
geral da realidade 6; modelo esse que contradiz
a fronteira deve ficar à mercê do gosto dos herme-
tão diretamente o cosmos da revelação judaico-
neutas? Como se vê, o acavalamento das questões
-cristã, que ambos não podem coexistir na mesma
é quase inextricável.
inteligência, senão ao custo de uma esquizofrenia cultural.
Começaremos pela pergunta mais simples: por que C. Lévi-Strauss e A. Vergote não creem mais(ou
Resta a primeira questão, concernente à solidarie-
não podem crer) no que o mito afirma? A resposta é
dade entre o discurso religioso e sua ontologia de
evidente: é em virtude de suas próprias ontologias
referência. Haveria, propriamente, vantagem em
de referência que eles recusam aquela que o mito
dissocia-los? E essa dissociação não daria à luz,
lhes parece implicar. Mas esta mesma resposta
precisamente, a verdadeira consciência do “sím-
coloca duas objeções: por um lado, seria exato afir-
bolo”? Apreender a natureza “simbólica” de um
mar que o discurso religioso implica uma ontologia
enunciado religioso não é justamente compreender
de referência inadmissível? Por outro lado, seria
que ele diz algo diferente do que parece afirmar?
verdade que a ontologia do mito é cientificamente
Que, segundo a expressão de Ricoeur, ele visa a um
inaceitável?
sentido segundo através de um sentido primeiro?
Se a ciência moderna permite, sob certos pontos de vista, restaurar um sentido ao cosmos simbólico, a física galilaica, por sua vez, opõe-se absolutamente a isso.
Desde logo, não seria necessário admitir que a consciência “simbólica” deveria se erguer sobre a desaparição da inconsciência mítica? Não se deveria reservar o termo “mito” para qualificar um pensamento incapaz de perceber a natureza “simbólica” dos enunciados escriturais, isto é, no fundo, incapaz de dissociar as palavras das coisas que elas designam? Essa é, seguramente, a convicção de um grande número de exegetas contemporâneos, e em particular de Bultmann: “As concepções mitológicas podem ser usadas como símbolos ou imagens, que talvez sejam necessários para a linguagem
A essa última questão pretendemos responder
religiosa e, consequentemente, também para a fé
numa obra futura. Digamos somente que, se a
cristã. (…) os enunciados que descrevem a ação de
ciência moderna permite, sob certos pontos de
Deus sob a forma de uma atividade cultual onde
vista, restaurar um sentido ao cosmos simbólico, a
Deus aparece, por exemplo, oferecendo seu Filho
física galilaica, por sua vez, opõe-se absolutamente
como vítima sacrificial, não são legítimos a menos
a isso. Ora, embora, atualmente, ela não possa se
que sejam entendidos em um sentido puramente
gabar de fornecer uma representação adequada dos
simbólico”7. Dessa maneira, restitui-se ao mito
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5. “Preocupação de alguns teólogos, médicos e filósofos, e especialmente de Philippe Feselius, de, ao condenar as superstições dos observadores de estrelas, não jogar fora o bebê com a água do banho…”(Réponse de Röslin, citado por Gérard Simon, Kepler, astronome astrologue, Gallimard, p.92). 6. “Quantos desconfiam, hoje, de que as noções de trajetória de um móvel, de rapidez de um corpo no espaço, de distância percorrida por um foguete são noções pré-galilaicas, às quais é impossível dar uma significação precisa a menos que se constitua em dogma o referencial à Terra imóvel”; J.M. Souriau, professor de matemática da Universidade de Aix-Marseille I, “L’évolution des modele mathématiques em mécanique et em physique”, em Revue de l’Enseignement philosophique, 22ª année, nº 3, février-mars 1972, p. 8. Não nos deixemos confundir por menções a noções pré-galilaicas com relação à concepção(newtoniana) de espaço e tempo absolutos. Nesse artigo, o autor sustenta a tese relatividade em Galileu. Mas é duvidoso que o próprio Galileu tenha tirado dele todas as consequências, pois que ele não chega a conceber um espaço absolutamente infinito, e ainda restam nele alguns traços de aristotelismo. (Galilée, Dialogo, I, Opere, vol. VII, p.43; cf. Koyré, Etudes galiléennes, p. 209). 7. Jésus. Mythologie et demythologisation, trad. por Florence Freyss, Samuel Durant-Gasselin et Christine Payot, prefácio de Paul Ricoeur, Seuil, 1968, p. 230 et 232.
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de que, na verdade, o espaço-tempo galilaico é relativo, fato que, segundo ele, teria escapado a Newton. Existe, com efeito, um princípio de
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FILOSOFIA
sua verdadeira significação: “contra seu propósito
ciência galilaica. A noção mesma de alegoria nos dá
verdadeiro,(o pensamento mitológico) representa-
testemunho disso. Mas isso não é tudo. É preciso
-se o Transcendente como uma realidade distante
nos perguntarmos se os próprios textos sagrados
no espaço, e sua potência como uma intensificação
não fazem uma distinção entre o que é mítico e o
qualitativa do poder humano”8. Por conseguinte,
que é histórico, como no caso do Novo Testamento
o verdadeiro cristão deveria ser grato à ciência
(cf. noção de parábola). Também dá testemunho
moderna, capaz de nos conduzir a tal desmitifi-
disso a famosa distinção medieval entre alegoria
cação. É exatamente isso o que afirma um teólogo
nas palavras e alegoria nas palavras e fatos, men-
católico, aliás tomista: “a expansão da cosmologia
cionada por quase todos comentadores10.
só é possível se o céu for ‘desmitificado’, cessando de ser a morada dos deuses. Ora, nada alcança tão
Ora, essa distinção complica singularmente o pro-
plenamente esse efeito de desmitificação quanto
blema do ponto de vista filosófico. Pois se torna
a afirmação monoteísta e o reconhecimento de
necessário nos perguntarmos: por onde passa a
um Deus que não habita nenhuma parte do espaço
linha divisória entre allegoria in verbis e allegoria
cósmico. Nesse sentido, a obra de Galileu é profun-
in factis? Que critério usaremos para traçá-la? Fica
damente cristã…”.
evidente que tal critério não é o mesmo para um
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Agostinho e para um Bultmann, ambos cristãos. A situação do simbolismo sagrado parece, portanto,
Onde está, pois, a diferença? Justamente em suas
estar em ótima forma, sobretudo no Ocidente.
respectivas “ontologias de referência”. Enunciados
Libertada, graças à Ciência, da coisificação e do
factuais para Agostinho são puramente “simbóli-
realismo ingênuo de uma mitologia ignorante de
cos” para Bultmann, porque contrários, desde o
sua verdadeira significação, o simbolismo deve-
seu ponto de vista, àquilo que é fisicamente possível.
ria poder exprimir adequadamente a verdade da revelação religiosa. Contudo, e mesmo sem levar
Somos então obrigados a afirmar que depende-
em conta as refutações evidentes que nos mostram
mos da física galilaica na questão do simbolismo?
a realidade dos fatos, a via da desmitificação está
De certa maneira, sim; mas, no fundo, que pétrea
longe de resolver a questão. Pois agora a ques-
certeza! Há bastante tempo o mundo já o percebeu.
tão seria certificar-nos das verdadeiras intenções
Resta, somente, dir-se-ia, tirar dela as conse-
dos textos sacros e das mitologias tradicionais. A
quências Escriturais, isto é, passar para o regime
problemática ainda persiste. O que nos garante
“simbólico” aquilo que, para Agostinho, pertence ao
que a intenção verdadeira dos mitos não é justa-
regime da história. É bem verdade que subsiste certo
mente alojar o divino dentro do espaço distante?
número de cristãos que acreditam na historicidade
Seríamos, talvez, levados a admiti-lo caso o dis-
da revelação judaico-cristã, sem contar o grande
curso mítico se desdobrasse inteiramente sobre
número daqueles que preferem nem sequer colocar a
o estado de inconsciência simbólica. Ele poderia,
questão. Coisa que não surpreende; é preciso tempo
então, converter-se em “símbolo”. Mas parece
para beber um vinho tão amargo, mesmo já estando
que as coisas não funcionam assim sempre. Seria
bastante envelhecido. Em todo o caso, isso em nada
necessário, de início, e restringindo-nos à cultura
altera a questão do “simbolismo”, que, pelo contrá-
ocidental, levar em consideração as contestações
rio, pode até mesmo adquirir plena consciência de
mais antigas ao discurso mitológico(as do racio-
si. Se bem que a objeção permanece: a física gali-
nalismo grego e as que impõe a fé cristã), como
laica marca, talvez, o desaparecimento do referente
mostra Jean Pépin em seu estudo sobre Mito e
ontológico do “símbolo”; mas, longe de constituir o
Alegoria. O nascimento da consciência simbólica
primeiro estágio da crítica (isto é, da desconstrução)
seria, portanto, bem anterior ao aparecimento da
do “símbolo”, ele antes a torna possível.
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8. Foi et compréhension, t. II: Eschatologie et démythologisation, trad. por André Malet, Seuil, 1969, p. 390. 9. Jean-Michel Maldamé, o.p., “Cosmologie et théologie. Réflexion théologique sur la Science cosmologique moderne”, na Revue thomiste, janvier-mars 1978, LXXXVIº Année, t. LXXVIII, nº 1, p. 83. 10. Expusemos essa distinção no livro Le mystère du signe, cap. 1, art. 4, sec. 2: Jean Scot. Mas já a encontramos, evidentemente, nos Padres,(Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, Tertuliano etc.); cf. Cal. de Lubac, Exégese Médievale, t. II, pp. 493-498, et t. IV, pp. 131-149.
O sentido histórico e o simbólico não se justapõem segundo uma bipartição horizontal, mas eles se superpõem segundo uma hierarquia vertical.
e a fixar. Seguramente, pode-se considera-los somente do ponto de vista de sua manifestação espaço-temporal, mas, enquanto fatos sacros, eles permanecem, neles próprios e por ele próprios, abertos em possibilidade a uma significação simbólica. A hermenêutica que a desvela não acrescenta essa significação desde o exterior, mas atualiza a realidade do fato e da história12. Do mesmo modo, não há, nas Escrituras sacras, nenhum sentido puramente simbólico, isto é, um sentido que não implique possivelmente a realidade efetiva do sig-
Há um ponto que nossa análise deixou de lado, por-
nificante que ele exprime. Em última análise, toda
que tendemos a afastar sua possibilidade a priori,
expressão simbólica se apoia sobre a relação onto-
como que inconscientemente, mas que é, todavia,
lógica que o significante corpóreo estabelece com
a questão essencial. A “compatibilidade” herme-
a realidade exprimida.
nêutica de um texto sacro não se faz apenas com duas colunas, colocando-se na coluna da direita as
Ora, são precisamente esses dois tipos de rela-
passagens “factuais” e, na da esquerda, as pas-
ções que a física galilaica torna impossíveis. O
sagens alegóricas. É preciso acrescentar-se uma
símbolo, como já mostramos mais de uma vez13,
terceira coluna, que tratará das passagens histó-
constitui uma ordem de realidade sui generis e
ricas e simbólicas ao mesmo tempo, isto é, que
autônoma, lugar de comunicação entre o sensível
tratará de fatos sacros. E não é precisamente neste
e o inteligível, onde se dão suas transformações
caso que recai a gesta divina narrada nos livros do
comuns – espécie de atanor universal. Há, por-
Antigo e do Novo Testamento, do sacrifício de Abraão
tanto, correlação entre o símbolo e um cosmos que
à ressurreição e à ascensão do Cristo? É essa, segu-
seja compatível com a referida alquimia. O sím-
ramente, a convicção que anima a hermenêutica
bolo pressupõe um universo corpóreo no qual seja
judaica, cristã e islâmica. O sentido histórico e o
possível introduzir o espiritual(como o fato his-
simbólico não se justapõem segundo uma bipar-
tórico está aberto ao simbólico), do mesmo modo
tição horizontal, mas eles se superpõem segundo
que pressupõe um inteligível no qual se possa
uma hierarquia vertical. É por esta razão, na ver-
introduzir o corpóreo(como o simbólico se rela-
dade, que só a “coluna do meio” é essencial; o que
ciona com a natureza de seu significante). Ora, o
significa que é a ela que se deve relacionar as duas
mundo galilaico recusa ambos: o corpóreo se torna
outras, que não são senão seus aspectos fragmen-
pura espacialidade, e o inteligível pura raciona-
tários. Dito de outro modo, não há, nas Escrituras
lidade matemática. Com Galileu, não é apenas o
sacras, um sentido puramente factual ou histórico, não
mundo aqui de baixo que se transforma e se esva-
importando o que digam os exegetas, mesmo os
zia de toda e qualquer presença qualitativa, mas
mais ilustres e abertos ao simbolismo11. E, longe
também o céu inteligível, restringido então ao
de volatizar a realidade dos fatos históricos, é
pensamento humano. Nada é mais significativo,
somente essa relação simbólica que pode a fundar
a esse respeito, do que o dualismo cartesiano de
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11. Eis o que afirma o Cardeal Daniélou: “A cruz tem grande importância para o cristão não por seu valor simbólico, mas porque Cristo morreu pendurado em um instrumento composto de dois pedaços de madeira. É este dado histórico que tem precedência. Como esse objeto tinha vagamente a forma de uma cruz, a liturgia o carregou, ulteriormente, com o simbolismo natural da cruz, significando as quatro dimensões ou o eixo do mundo. (…) Mas tais simbolismos são secundários se comparados aos fatos históricos”. (Planète Plus, nº especial consagrado a René Guénon, 4ª trim. 1969, p. 130). Tal doutrina é, a nossos olhos, a negação pura e simples da encarnação do Verbo em Jesus. É bem verdade que o ilustre erudito parece exprimir uma opinião diferente quando escreve: “A cruz é, pois, para o judaico-cristianismo, algo diferente da madeira sobre a qual foi crucificado Jesus. Ela comporta uma realidade espiritual, misteriosa, viva, que acompanha o de Cristo” (I Apologie. LV, 2; P.G. t. VI, col. 412). 12. É o simbolismo que confere ao evento histórico realidade e consistência. Nós o mostramos particularmente com relação ao simbolismo das chagas de Cristo: cf. Le sens du surnaturel, Ed. De La Place Royale, 1986, pp. 73-115. 13. Le mystère du signe.
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Cristo ressuscitado”. (Théologie du judéo-christianisme, Desclée, p. 294). Ela é, segundo São Justino, “o grande Símbolo da força e da potência
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FILOSOFIA
alma e corpo(embora o Descartes metafísico leve em conta a presença do céu divino na substância da alma humana), e do que o desenvolvimento “humanista” da filosofia de Locke e de Hume. De fato, a revolução galilaica, mesmo se restringirmos a análise ao mundo corpóreo, não só tornou impossível a produção de certos fenômenos(narrados na Santa Escritura) no interior da estrutura geral do universo, mas também transformou a própria estrutura geral, ou antes ela a fez desaparecer como totalidade finita de existentes corpóreos: a possibilidade de uma cosmologia parece definitivamente descartada. Mas para isso se tornar claro, será preciso esperar por Kant, a dialética da razão pura e a resolução das antinomias cosmológicas, o que Kant chama de Resolução crítica do conflito cosmológico da razão com ela mesma.
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Tradução por Carlos Guilherme Silveira
10
Adeus a Descartes, Eugen Rosenstock-Huessy Tradução do Capítulo I de “I Am an Impure Thinker” (1970)
decadência. Com seu “cogito ergo sum”, ele substituiu os princípios que haviam guiado o pensamento medieval desde o “credo ut intelligam” de Anselmo (“creio para entender’). Entre os pontos de partida possíveis para os nossos poderes da razão, o escolasticismo destacara a fé do homem no poder revelador de Deus; Descartes a colocou atrás da sua fé não menos paradoxal no caráter racional da existência e da natureza. O “cogito ergo sum”, por sua rivalidade com a teologia, era unilateral. Nós, pensadores do pós-guerra, preocupamo-nos menos com o caráter revelado do Deus verdadeiro ou com o caráter verdadeiro da natureza do que com a sobrevivência de uma sociedade verdadeiramente humana.
O
ano do tricentenário de Harvard, 19361937, foi também o tricentenário de um grande acontecimento intelectual. Trezentos anos atrás foram estabeleci-
dos os fundamentos racionais da ciência moderna. Foi então que o “Weltanschauung” que radica em nossas universidades modernas foi pela primeira vez colocado em um livro. Seu autor tinha a inten-
Eu sou um pensador impuro. Eu me machuco, oscilo, abalo-me, exalto-me, desiludo-me, entro em choque, reconforto-me, e tenho de transmitir minhas experiências mentais, senão eu morro.
ção de escrever alguns volumes abrangentes sob Ao pedir por uma sociedade verdadeiramente
René Descartes, foi, por riscos religiosos, dissua-
humana, nós mais uma vez colocamos o problema
dido de publicá-los por completo, e restringiu sua
da verdade; mas nossa empreitada específica é a
tarefa aos famoso Discours de la Methode. Nele foi
realização viva da verdade na humanidade. A ver-
formulado o grande postulado idealista do “cogito
dade é divina e foi divinamente revelada: credo ut
ergo sum” (“penso, logo existo”), e com ele o plano
intelligam. A verdade é pura e pode ser cientifica-
da conquista científica da natureza pelo homem. O
mente enunciada: cogito ergo sum. A verdade é vital
“cogito ergo sum” de Descartes abriu caminho para
e deve ser socialmente representada: respondeo etsi
trezentos anos de incrível progresso científico.
mutabor (respondo, mesmo se serei mudado).
Quando Descartes apresentou-se com o seu
Nosso ataque ao cartesianismo é inevitável, uma
“maravilhosamente estranho” Discourse, a uni-
vez que o pensamento “puro” invade por toda parte
versidade de tipo escolástico há muito já estava em
o campo dos estudos sociais. Os historiadores,
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o orgulhoso título de Le Monde. Mas esse filósofo,
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FILOSOFIA
economistas e psicólogos não podem suportar a
pertencem ao limbo da irrealidade.
idéia de não serem pensadores “puros”, cientistas de verdade. Que frustração!
Nós podemos dispensar os métodos do passado. Os esquemas daquele tempo, quaisquer que fos-
Eu sou um pensador impuro. Eu me machuco,
sem, eram baseados ou na física ou na metafísica.
oscilo, abalo-me, exalto-me, desiludo-me, entro
Alguns eram subjetivos e outros eram objetivos;
em choque, reconforto-me, e tenho de transmitir
alguns eram idealistas e outros materialistas; e
minhas experiências mentais, senão eu morro. E
muitos eram uma mistura de ambos. Mas eles eram
apesar de eu poder morrer. Escrever um livro não
unânimes em assumir que o pensamento cien-
é um luxo. É um meio de sobrevivência. Ao escre-
tífico deveria proceder desde os simples fatos da
ver um livro, um homem liberta sua mente de uma
física ou das idéias gerais. Eles eram unânimes em
impressão esmagadora. O teste para um livro é a
assumir que as leis da gravidade ou da lógica eram
sua falta de arbitrariedade, o fato de que ele tivesse
verdades primárias e centrais sobre as quais se
de ser feito para abrir caminho para ainda mais vida
devia construir o sistema do conhecimento. Todos
e mais trabalho. Eu, por exemplo, fiz tudo em meu
eles acreditavam numa hierarquia, com a física e a
poder para repetidas vezes esquecer o plano do “Out
metafísica na base, como ciências primárias, e uma
of Revolution”.1 E aqui está ele, mais uma vez.
escada subindo até os segundo e terceiro andares do edifício do conhecimento. Assim que percebemos a
Através da própria experiência revolucionária
falácia cardinal dessa suposição, Marx torna-se um
do homem nós conhecemos mais sobre a vida
filho de época passada tanto quanto Descartes, ou
do que mediante qualquer observação exterior.
Hume, ou Hobbes. Todos eles se parecem de uma
Nosso movimento ecodinâmico pela sociedade é a
maneira incrível. Todos eles partiram de gene-
base para todas as nossas ciências da natureza. A
ralidades abstratas sobre a mente do homem e a
natureza distante nos é menos conhecida do que
natureza da matéria.
o renascimento do homem, através da constante seleção do mais forte e através da variação cons-
Nós renunciamos à sua abordagem do conhe-
ciente. As memórias que o homem tem de suas
cimento. O “pensamento” e o “ser”, a mente e
próprias experiências formam o fundo de todo
o corpo, não são os pontos de partida corretos
nosso conhecimento da sociedade e da criação.
para os mistérios da vida e da sociedade. A física,
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interessada no mero ser da matéria abstrata, e
12
A ciência e a história em sua era positivista subes-
a metafísica, que especula sobre as idéias dos
timaram o elemento bio-lógico tanto na natureza
homens, são, na melhor das hipóteses, métodos
quanto na sociedade. Elas tomaram a física e a
marginais para se lidar com a realidade. Elas não
metafísica, a matéria mensurável e pesável, e as
tocam no núcleo, porque começam investigando
idéias lógicas e metafísicas, como os fundamentos
coisas mortas ou noções abstratas. Elas não estão
básicos e elementares sobre os quais construímos
preocupadas com a vida real, seja das criaturas
nosso conhecimento. Ao iniciarem com figuras
naturais, seja da sociedade. É bem verdade que o
abstratas na física, ou idéias gerais na metafísica,
universo está repleto de coisas mortas, e as biblio-
elas nunca fizeram justiça ao ponto central da
tecas dos homenas repletas de conceitos abstratos.
nossa existência. Pois nem a física nem a meta-
Isto pode explicar a presunção anterior de que, ao se
física podem nos oferecer qualquer base prática
estudar uma vasta quantidade de pedras, cascalho
para entrar nos campos da biologia ou sociologia.
e poeira, ou uma série interminável de doutrinas e
Nem a partir das leis da gravidade, nem a partir das
idéias, atacassem-se as substâncias preponderan-
idéias da lógica ou da ética há uma ponte que nos
tes no mundo. Porém, essa presunção segue sendo
leve ao reino da vida, seja a vida das plantas e ani-
um círculo vicioso. Num vale inteiro de pedras e
mais ou da sociedade humana. Coisas mortas estão
lava, uma faixa de grama é o bastante
para sempre separadas das vivas; figuras e idéias
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1. Obra monumental do autor publicada em 1993, em que Rosenstock acabaria por propor um novo tipo de historiografia, mais ou menos conforme as linhas gerais estabelecidas neste presente artigo.
As duas ciências modernas da vida, a biologia e a sociologia, precisam deixar de receber ordens das ciências da morte, a física e a metafísica.
Aliás, como as ciências sob o encanto da velha hierarquia da física e da metafísica são geralmente caracterizadas pela terminação –ologia (p. ex., sociologia, filologia, teologia, zoologia, etc.), seria conveniente um sufixo distinto para as ciências emancipadas. Quando falamos de fisiologia, psicologia, etc., nós geralmente queremos dizer as ciências em sua forma antiga, ainda adulterada pelos erros do físico e do metafísico. Enquanto ao se falar de “teonomia” – como agora comumente fazem os pensadores alemães com “bionomia”
para refutar um sistema que pretende explorar a
– e economia, temos em mente as maduras e
grama pesando e medindo todo o cascalho do vale.
independentes ciências da vida que se tornaram
Da mesma forma, a presença de uma única viva
conscientes de sua não-dependência das ciências
alma entre os três milhões de volumes de uma
da morte. Como estamos nos deparando com a
grande livraria oferece prova suficiente contra a
emancipação dessas bio-ciências com relação às
noção de que o segredo dessa alma será encontrado
“falsas naturezas amalgamadas”, é extremamente
ao se lerem aqueles três milhões de livros. O carvão
recomendável uma mudança no nome para se dis-
pode ser explicado como o cadáver embalsamado
criminar entre suas condições de escravizadas e de
de florestas antigas, mas nenhuma árvore pode
emancipadas.
ser explicada investigando-se apenas o antracito. A física lida somente com cadáveres, e a metafí-
A realidade que confronta os bionomistas e econo-
sica com fórmulas onde não há mais vida. Ambas
mistas não pode ser dividida em sujeito e objeto:
as ciências ocupam-se com formas secundárias de
esta costumeira dicotomia não é capaz de nos
existência, restos de vida. O tratamento científico
transmitir nenhum significado. Na verdade, o Sr.
desses restos pode ser muito útil; porém, ele segue
Uexkuell e a escola moderna de bionomia insistem
sendo uma forma secundária de conhecimento. A
no caráter subjetivo de cada objeto vivo que chega
vida precede a morte; e qualquer conhecimento
ao microscópio. Eles descobriram, em todo alegado
da vida em suas duas formas, a social e a cósmica,
“objeto” de sua pesquisa, a sua qualidade de ser
pode com razão reinvidicar precedência sobre a
um “Ego”. Mas, se somos forçados a concordar que
física e a metafísica. As duas ciências modernas da
cada Coisa (“it”) é também um Ego, e que cada Ego
vida, a biologia e a sociologia, precisam deixar de
contém a Coisa, a nomenclatura inteira de sujeito
receber ordens das ciências da morte, a física e a
e objeto revela-se ambígua e inútil para qualquer
metafísica.
fim prático. Sociológos como MacIver partiram do mesmo ponto de vista nas ciências sociais. A divisão da realidade em sujeito e objeto está se
gia, chamada “Bios” e inaugurada pelos melhores
tornando desprezível – até mesmo enganosa.
biólogos americanos, alemães e ingleses, o pri-
Deveria estar claro que nos campos da bionomia e
meiro volume, escrito por A. Meyer e publicado em
da economia é um ultraje ao senso comum divi-
1934, é dedicado à revolução copernicana. Meyer
dir a realidade em sujeito e objeto, mente e corpo,
mostra que a física lida unicamente com um caso
idéia e matéria. Quem algum dia agiu como um
extremo da natureza, a sua mais remota aparên-
mero sujeito ou um mero corpo? O Ego e a Coisa
cia. Portanto, a física pode ser mais propriamente
estão limitando os conceitos, felizmente difíceis de
descrita como o último capítulo da biologia, ao
se encontrar na realidade vital. A palavra “coisa”
invés de o primeiro capítulo da ciência natural. O
(“it”), que pode não ser ofensiva quando aplicada a
mesmo se dá com as ciências sociais em sua relação
uma pedra ou um cadáver, é uma metáfora impos-
com a metafísica. E os detalhes que interessam às
sível para um cão ou um cavalo, que dirá para um
ciências da morte e da abstração são inúteis para
ser humano. Aplicado aos homens, ela os reduz a
a tarefa que há diante dos exploradores da vida no
“mão-de-obra barata”, “mãos”, engrenagens na
seu caminho entre o céu e a terra, nos campos da
máquina. Assim, uma filosofia errada deve neces-
economia e bionomia.
sariamente levar a uma sociedade errada.
OUTUBRO 2013
Numa série recente de publicações sobre biolo-
13
FILOSOFIA
Os quatrocentos anos de dominação da física ine-
tão completamente auto-centrado, que esteja
vitavelmente prepararam a revolução social das
constantemente se comportando como o Ego sobe-
Coisas, a “quantidade” na qual os trabalhadores
rano, fica louco. O homem de verdade aproveita o
são rebaixados por uma sociedade mecanicista. A
privilégio de ocasionalmente sacrificar a perso-
política e a educação dos últimos séculos se mostra-
nalidade à paixão. Entre a ação como um Ego e a
ram um desastre sempre que tentaram estabelecer
reação como uma coisa, a alma do homem só pode
como normas os extremos anormais e mais desu-
ser encontrada em sua capacidade de se voltar para
manos do Ego e da Coisa. Uma imaginação que
a iniciativa ativa ou para a reação passiva. Errar por
possa dividir o mundo em sujeito e objeto, mente e
entre o Ego e a Coisa é o segredo da alma humana.
matéria, não só aceitará a engrenagem na máquina
E enquanto o homem puder retornar ao seu feliz
com perfeita tranqüilidade, como menos ainda irá
equilíbrio, ele estará são. Nosso conhecimento
se abalar com o frio ceticismo do intelectual. A sua
da sociedade não deve mais ser construído sobre
atitude desinteressada, embora auto-centrada,
abstrações inexistentes, como Egos de deus ou
típica do deraciné, será tratada como normal.
Coisas de pedra, mas baseado em você e eu, “vozes médias” defeituosas e reais, como somos nós em
Ademais, quando a humanidade se aproxima de
nossa interdependência mútua, conversando um
um desenvolvimento pelo qual um dos seus mem-
com o outro, dizendo “você” e “eu”. Uma nova
bros, uma classe, uma nação, ou uma raça, deve ser
gramática social está por trás de todas as tentativas
escravizado e transformado numa Coisa, uma mera
bem sucedidas nas ciências sociais do século XX.
pilha de matéria bruta para o trabalho, ou libertada para se tornar, como grupo ou classe, o mero
Os gramáticos do rei Ptolomeu na Alexandria foram
Ego tirânico – surgirá uma revolução que destruirá
os primeiros a inventar aquela tabela que todos nós
esses extremos, o sujeito idealista, o Ego, e o objeto
tivemos de aprender na escola. “Eu amo, tu amas,
materialista, a Coisa; ambos são folhas mortas na
ele ama, nós amamos, vós amais, eles amam”.
árvore da humanidade. Nossa investigação sobre
Provavelmente essa tabela de tempos verbais colo-
a revolução mostra que esses dois extremos são
cou a pedra angular no arco da psicologia errada.
indefensáveis. As posições do Ego e da Coisa são
Pois, nesse esquema, todas as pessoas e formas de
entorpecentes caricaturas da verdadeira locali-
ação parecem ser intercambiáveis. Esse esquema,
zação do homem na sociedade. A grande família
utilizado como a lógica da filosofia desde Descartes
européia das nações não estava preocupada com a
até Spencer, e como o princípio da política desde
produção ou fomento de ideais ou coisas materiais,
Maquiavel até Marx, é uma gramática de caricatu-
mas com a reprodução de tipos do homem perpé-
ras humanas.
tuo, como a filha, o filho, o pai, a irmã, a mãe, e, é claro, suas combinações.
Até que ponto, de fato, o “Eu” se aplica ao homem?
OUTUBRO 2013
Para responder a essa pergunta, vejamos o impe-
14
As abstrações e generalidades que prevaleceram
rativo. Um homem é comandado desde fora por
na filosofia de Descartes até Spencer, e na polí-
mais tempo em sua vida do que pode dispor do
tica de Maquiavel até Lênin, fizeram caricaturas
“Eu”. Antes que nós possamos falar ou pensar, o
dos homens vivos. As noções de objeto e sujeito,
imperativo está nos visando o tempo todo, através
idéia e matéria, não visam o coração da nossa exis-
da mãe, da babá, das irmãs e dos vizinhos: “Come,
tência humana. Elas descrevem as possibilidades
vem, bebe, fica quieto!” A primeira forma e a forma
trágicas da arrogância ou mesquinhez humana, as
permanente sob a qual um homem pode se reco-
potencialidades do déspota e do escravo, do gênio
nhecer a si mesmo e à unidade da sua existência é
ou do proletário. Elas erram o alvo no qual fin-
o imperativo. Somos chamados de Homem e somos
gem atirar: a natureza humana. Embora o homem
convocados por nossos nome muito antes de estar-
tenda a se tornar um Ego e seja pressionado por
mos cientes de nós mesmos como um Ego. E em
seu ambiente a se comportar como uma Coisa, ele
todas as frágeis e infantis situações posteriores nós
jamais é o que essas tendências tentam fazer dele.
nos vemos na necessidade de ter alguém para nos
Um homem pressionado ao behaviorismo por cir-
falar, chamar-nos pelo nosso nome e dizer-nos o
cunstâncias estranhas, de um modo tal que acaba
que fazer. Nós falamos conoscos mesmos nas horas
reagindo como matéria, está morto. Um homem
de desespero e nos perguntamos: Como você pôde?
Onde você está? O que você fará em seguida? Aí nós
Todos nós somos ambas as coisas, trajetos e preje-
temos o verdadeiro homem, aguardando e espe-
tos. Contanto e enquanto nossa civilização seguir
rando por seu nome e imperativo. Aí nós temos
uma direção clara, todos nós estaremos sentados
o homem sobre o qual construímos a sociedade.
em seu barco de evolução pacífica e seremos con-
Uma nação de Egos filosofantes entra em guerra;
duzidos com segurança pelo trajeto até as margens
uma nação de puras “engrenagens na máquina”
do amanhã, conforme as regras do jogo. Por outro
cai na anarquia. Um homem que possa ouvir ao seu
lado, sempre que a sociedade não mostrar sinal
imperativo é governável, educável, respondível. E
nenhum de direção, quando o velho barco de suas
quando deixamos a idade da infância para trás, nós
instituições não parecer mais boiar, seremos desa-
recebemos nossa personalidade mais uma vez pelo
fiados pela pressão da emergência de assumir uma
amor: “É minha alma que chama pelo meu nome”,
embarcação desconhecida que nós mesmos tere-
diz Romeu. Não pode ser nossa intenção aqui
mos de construir, e em cuja construção poderá ser
seguir as implicações dessa verdade em todos seus
consumida mais de uma geração. Construir um
detalhes. O momento para tal discussão irá surgir
novo barco sem precedentes é uma emergência, é
muito naturalmente depois que os fatos expostos
o imperativo do revolucionário. Então, nossa tra-
neste volume tiverem recebido melhor considera-
jetidade e nossa prejetidade são nossos imperativos
ção do público geral.
sociais. A interação entre eles é o problema das
O homem como um sujeito ou como um objeto é na verdade um caso patológico.
ciências sociais. O trajeto é evolutivo; o prejeto é o predicado revolucionário do homem. Estamos cientes do que acarreta esse ataque à ciência cartesiana, unida como ela é à fórmula de Descartes, “cogito ergo sum”. Nós assumimos completamente o risco de abandonar para sempre essa plataforma. O pensamento não prova a realidade.
Contudo, não podemos esconder um resultado
O homem moderno – e não é preciso voltar-se a
central mesmo nesta fase inicial do “realinha-
exageros como o Ulisses de Joyce – é transformado
mento das ciências sociais” através do estudo da
num monte de nervos pelo pensamento. O homem
revolução humana: que este estudo oferece noções
moderno é invadido por tantas idéias “vindas do
mais realistas para o homem do que o estudo de
estrangeiro” que ele corre o risco da desintegra-
sua mente ou seu corpo. Pois os famosos conceitos
ção pelo pensamento. A mente não é o centro da
derivados da mente ou corpo eram, como dissemos,
personalidade.
“sujeito” e “objeto”; eles não podem ser enconAntes de dar adeus ao “cogito ergo sum”, deve-
O homem como um sujeito ou como um objeto é
ríamos uma vez mais perceber seu poder e
na verdade um caso patológico. O homem perpé-
grandiosidade. Essa fórmula nos convidava a
tuo como um membro da sociedade só pode ser
todos a entrar no exército da investigação em sua
descrito ao revermos as faculdades que ele exibiu
luta contra a natureza irracional. Sempre que um
no devido processo de revolução. Ele mostrou-se
homem era treinado para o Ego abstrato do obser-
como um iniciante e um continuador, um criador e
vador, estava em jogo nosso domínio da natureza.
uma criatura, um produto do ambiente e o seu pro-
Nesse unificador grito de guerra do “penso, logo
dutor, um neto ou um ancestral, um revolucionário
existo” o homem fundou sua gloriosa conquista
ou um evolucionista. Esse dualismo que permeia
técnica das forças e matérias-primas “objeti-
cada perfeito membro do mundo civilizado pode ser
vas” do mundo. A ponte George Washington que
resumido em duas palavras, que adequadamente
atravessa o Hudson é talvez um dos melhores
deveriam suplantar as enganosas “objetividade”
resultados dessa religiosa cooperação entre Egos
e “subjetividade”, tão caras aos cientistas natu-
racionais. Ninguém pode permanecer impassível
rais. Os novos termos são “trajeto”, i.e., aquele
diante de sua forma cristalina. É certamente inspi-
que é levado por caminhos conhecidos do pas-
radora a aliança entre todos os milhares e milhões
sado, e “prejeto”, i.e., aquele que é lançado para
cuja cooperação era necessária antes que o homem
fora desse processo em um futuro desconhecido.
fosse capaz de tal milagre técnico. Ou, como o
OUTUBRO 2013
trados num homem ou numa sociedade saudáveis.
15
FILOSOFIA
presidente Coolidge disse quando recebeu em sua
sociais, para a compreensão da vida humana em
casa Charles A. Lindbergh vindo do seu vôo a Paris:
grupo, é tão curta como o “cogito ergo sum” de
“Foi particularmente agradável ele se referir ao seu
Descartes. Descartes supôs, em sua fórmula, que o
avião como se de algum modo ele possuísse uma
mesmo sujeito que faz uma pergunta e levanta uma
personalidade e fosse, junto com ele, igualmente
dúvida resolve o problema. Isso pode ser verdade
merecedor do crédito, pois nós nos orgulhamos de
na matemática ou na física, embora hoje em dia,
como esse silencioso companheiro representou em
com Einstein, até mesmo essa limitada hipótese
cada detalhe o gênio e a diligência americana. Fui
tenha se tornado indemostrável.
informado de que mais de cem diferentes empresas forneceram materiais, partes ou algum serviço em sua construção.” E o próprio Lindbergh acrescentou: “Além disso, deve-se dar importância às pesquisas científicas que tem ocorrido há incontáveis séculos.” Esse exército do homem alistado contra a natureza sob a senha do “cogito ergo sum” merece nosso apoio perpétuo. Mas, entre os homens na sociedade, a vigorosa identidade a nós exigida pelo “cogito ergo sum” tende a destruir os imperativos orientadores da vida sã. Nós não existimos porque pensamos. O homem é o filho de Deus, e não trazido à existên-
Nosso conhecimento e nossa ciência não são um luxo próprio para um momento de lazer. Eles são nossos instrumentos de sobrevivência, para responder, a qualquer momento da vida, ao problema universal.
cia pelo pensamento. Somos chamados à sociedade por uma poderosa súplica, “Quem és tu, homem,
Em todo problema vital, ele que pergunta e nós que
para que eu me importe por ti”? E, muito antes de
respondemos estamos separados por uma grande
nossa inteligência poder nos ajudar, o indivíduo
distância. O problema nos é colocado por um poder
recém-nascido sobrevive a essa tremenda per-
que transcende em muito nosso livre-arbítrio e por
gunta graças à sua fé ingênua no amor dos seus
situações que transcendem a nossa escolha. A crise,
antecessores. Nós crescemos como sociedade base-
a injustiça, a morte, a depressão, são problemas
ados na fé, ouvindo a todos os tipos de imperativos
que nos são colocados pelo poder que moldou nos-
humanos. Mais adiante, nós, nações e indíviduos,
sas desgraças. Nós só podemos dar uma resposta
balbuciamos e gaguejamos, no esforço de justi-
momentânea, a nossa resposta, à perpétua e prótea
ficar nossa existência respondendo ao chamado.
pergunta. Nosso conhecimento e nossa ciência não
Nós tentamos distinguir entre as muitas ofertas
são um luxo próprio para um momento de lazer.
tentadoras feitas aos nossos sentidos e os apetites
Eles são nossos instrumentos de sobrevivência,
por parte do mundo. Queremos acompanhar a per-
para responder, a qualquer momento da vida, ao
gunta mais profunda, o chamado central que ruma
problema universal. As respostas dadas pela ciên-
direto ao coração e promete à nossa alma a certeza
cia e pela sabedoria são como uma corrente em que
duradoura de estar inscrita no livro da vida.
cada elo se encaixa a uma engrenagem especial na roda do tempo. As maiores e mais universais res-
O homem moderno não acredita mais em nenhuma
postas que o homem tentou dar, como a Reforma,
certeza da existência, devido à razão abstrata.
ou a Grande Revolução, mesmo estas, como vimos,
Porém, ele é dedicado, de coração e alma, à grande
foram respostas temporárias, e tinham de ser suple-
luta do homem contra a decadência da criação. Ele
mentadas depois que um século se passou.
OUTUBRO 2013
sabe que toda sua vida terá de ser uma resposta ao
16
chamado. A pequena fórmula que propomos no
O “penso” tem de ser dividido no divino “Como tu
início deste capítulo pode ser de algum proveito
escaparás desse abismo do vazio?” e na resposta do
para condensar toda nossa empreitada em um tipo
homem ou nação, dada pela devoção de toda sua vida
de quintessência: “respondeo etsi mutabor” –res-
e trabalho: “Seja esta minha resposta!”. “Homem” é
pondo, mesmo se serei mudado. Essa fórmula que
a segunda pessoa na gramática da sociedade.
propomos como o princípio básico das ciências
Tendo descoberto, em cada grave problema, o
nadadores em um meio flutuante e perpétuo. É che-
diálogo entre o poder sobrehumano que o coloca
gada a aurora da criação, e nós aguardamos a nossa
e aqueles entre nós para quem ele apela, o “Eu”
pergunta, o nosso mandato específico, no silêncio
que pergunta nós transferimos para regiões mais
dos princípios do tempo. Quando tivermos apren-
poderosas do que o indivíduo. O ambiente, o des-
dido a ouvir a pergunta e a servir em direção à sua
tino, Deus, é o “Eu” que sempre precede nossa
solução, teremos avançado para um novo dia. Essa
existência e a existência de nossos semelhantes.
é a forma pela qual a humanidade tem batalhado,
Ele se dirige a nós: e, embora nós possamos talvez
século após século, durante os últimos dois mil
dar voz à pergunta, não somos Egos ao servir como
anos, construindo o calendário dos seus re-aniver-
seu porta-voz. Nós nos tornamos pessoas como
sários como um verdadeiro testamento de sua fé.
destinatários, como “você”. Nós somos filhos do tempo, e a urgência do dia está sobre nós antes que
A responsabilidade de inventar perguntas não é
possamos nos erguer para resolvê-la.
própria da alma vivente. Só o diabo se interessa em trazer problemas supérfluos e fúteis. Com razão
Sempre que uma classe governante se esquece de
Tristram Shandy começa com um rompante contra
sua qualidade de destinatários, uma parte reprimida
os “se’s”. Os verdadeiros enigmas são colocados
da humanidade erguerá sua voz por uma resposta.
diante de nós não por nossa própria curiosidade.
De um dualismo indefensável do Ego altivo e da
Eles caem sobre nós vindos do céu azul. Mas
Coisa reprimida, a sociedade passou para o seu
nós somos “respondentes”. Este é o orgulho do
lugar adequado de destinatário de Deus no ponto
homem, isto é o que o faz se encontrar como um
da erupção de toda grande revolução. Um novo tipo
ser humano entre Deus e a natureza.
psíquico assumia parte da resposta à pergunta de então toda vez que uma província da cristandade
Nossa fórmula foi dada em três simples palavras:
tinha sua própria voz negada. Quando a Itália era
respondeo esti mutabor, respondo, mesmo se serei
uma mera ferramenta nas mãos do Sacro Império,
mudado. Isto é, eu darei uma resposta à pergunta
como em 1200, quando a Rússia era uma colônia
porque Tu me fizeste responsável pela reprodução
explorada do capitalismo ocidental, como em 1917,
da vida sobre a terra. Respondeo etsi mutabor: por
um novo suspiro foi exalado pelo aparente cadáver:
uma resposta de auto-esquecimento, a humanidade
e não foi um Ego, mas um novo grupo apelável que
permanece “mutante” em cada um de seus mem-
nasceu. Nenhuma classe governante jamais sobre-
bros responsáveis. O “cogito ergo sum” torna-se
vive como um Ego meramente auto-afirmativo. Ela
então uma versão da nossa fórmula, aquela versão
sempre sobreviverá ao responder à sua reinvidica-
que era a mais útil quando o caminho do homem
ção original de ser o “você” de Deus.
se abriu para a descoberta cooperativa da natureza. Na pessoa de Descartes, a humanidade, segura de
As nações agradecem. Enquanto um retalho do pro-
sua bênção divina, decidiu num esforço comum e
blema original estiver diante da nação e enquanto
generalizado, válido para todos os homens, que
os membros do grupo governante derem a mais
transformaria o caos escuro da natureza em objetos
tênue resposta a isso, as nações irão tolerar as mais
do nosso domínio intelectual. Para o sucesso desse
atrozes excentricidades com perfeita paciência.
esforço, era necessário lançar o feitiço do “cogito
Esta paciência e gratidão pode de fato ser chamada
ergo sum” sobre os homens, para superar suas fra-
de a religião de uma nação. Quando um homem
quezas naturais e afastá-los o suficiente do mundo
– ou uma nação, ou a humanidade – deseja renas-
que tinha de ser objetificado. O “Cogito ergo sum”
cer, seja desde uma solidão excessiva, seja desde
deu ao homem a distância da natureza.
uma multidão, ele precisa deixar para trás tanto o Ora, essa distância é útil para uma fase especial
da sociedade moderna, e se tornar novamente um
dentro do processo de captar as perguntas, pon-
destinatário, livre das perguntas egocêntricas e das
derar as respostas e finalmente dar uma resposta
correntes materiais da Coisa. Em nossa situação
conhecida. Na fase em que duvidamos, não temos
natural, a de ser um destinatário, nós não somos
certeza de nada, senão de nosso pensamento; para
nem ativos, como o Ego super-enérgico, nem
esta fase, então, a fórmula cartesiana era de fato
passivos, como o sofredor explorado. Nós somos
favorável. E como, nas ciências naturais, essa fase
OUTUBRO 2013
estudo do pensador platônico quanto a maquinaria
17
FILOSOFIA
é a mais essencial, os cientistas naturais pensaram
latim (que literalmente significa: “tenho fé para
que a humanidade inteira poderia viver nessa filo-
poder entender”) em nossos termos: preciso ter
sofia. Mas já sabemos que a expressão da verdade
aprendido a ouvir antes de poder distinguir entre a
é um problema social em si mesmo. Enquanto a
verdade válida e a verdade feita pelo homem. Isto,
raça humana tiver de decidir hoje sobre um esforço
novamente, acaba sendo apenas outra versão da
comum de como se expressar ou representar a
nossa fórmula proposta em sua relação triangular.
verdade socialmente, a fórmula cartesiana não
Na afirmativa de Anselmo a ênfase está na escuta
terá nada para dizer. E o mesmo se aplica com
como órgão para inspiração pela verdade. Na
respeito à impressão da verdade em nossa plástica
cartesiana, está no duvidar como órgão para trans-
consciência. Nem os séculos que prepararam e
formação dessa verdade divina em conhecimento
finalmente produziram Descartes, nem nós, povo
humano. Na nossa versão, a ênfase muda mais
do pós-guerra, podemos comungar nossos esfor-
uma vez, para o processo de fazer conhecido, de se
ços inter-nacionais e interdenominacionais sobre
expressar no tempo certo, no lugar certo, conforme
uma fórmula que nada diga a respeito da dignidade
a representação social adequada. Não acreditamos
das impressões e expressões, da aprendizagem e
mais na inocência atemporal dos filósofos, teólo-
do ensinamento, ou do ouvir e falar com nossos
gos e cientistas; nós os vemos escrevendo livros e
semelhantes.
tentando conquistar poder. E todo esse processo de ensinar precisa novamente da mesma auto-crítica
Os séculos das revoluções clericais se ocuparam em
centenária aplicada aos anselmianos e cartesianos
nos dar a boa consciência e a certeza da iluminação
sobre o processo de nosso desligamento de Deus e
na qual Descartes pôde fundar seu apelo à razão
da natureza. Na sociedade, devemos nos desligar
geral em cada um de nós. Eles tinham de estudar
de nossos ouvintes antes de podermos ensiná-los.
o problema da impressão, i.e., como o homem pode aprender sobre o que deve pedir da vida. Por essa razão, eles tinham de estabelecer outro tipo de distância dentro do processo do pensamento. E o estabelecimento desse tipo de distância tinha de anteceder a distância secundária entre sujeitos e objetos conforme estabelecida por Descartes. Se a escolástica não houvesse abolido todos os mitos locais sobre o universo, Descartes não poderia ter feito as perguntas racionais sobre ele. Para que o homem pudesse sequer se tornar capaz de pensar objetivamente, ele tinha de saber primeiro que todo wishful thinking de nossa raça foi logrado por
Acaso essas confissões ingênuas do semideus da ciência moderna, o inventor do dualismo mente-corpo, foram recebidas com o único sucesso que elas mereciam: o das risadas sem fim?
um processo superior, que originou e determinou o papel desempenhado por nós no universo.
Tanto o “credo ut intelligam” quanto o “cogito ergo sum” funcionaram muito bem por um tempo.
O processo real da vida que nos permeia e toma
Porém, no fim, o “credo ut intelligam” nos levou
conta de nós, que nos coloca em perigo e nos utiliza,
à Inquisição, e o “cogito ergo sum” a uma fábrica
transcende nossos objetivos e fins improvisados.
de armamentos. A ciência progressiva dos nos-
Ao reverenciá-lo, nós podemos nos desligar do
sos dias de bombardeios aéreos progrediu apenas
nosso medo da morte, e podemos começar a ouvir.
um pouco demais para as humanas, precisamente
OUTUBRO 2013
como a teologia havia dogmatizado um pouco
18
Como um princípio do raciocínio eficiente, esse
demais quando construiu a sua Inquisição. Quando
desligamento foi transferido para a filosofia
Joana D’Arc foi interrogada sob tortura, seus juí-
pelo maior dos filósofos ingleses, Anselmo da
zes teológicos tinham deixado de crer. Quando
Cantuária, numa sentença que rivaliza em cons-
os vencedores do prêmio Nobel produziram o gás
ciência com a cartesiana: “Credo ut intelligam” é o
venenoso, seu pensamento não se identificava
princípio que distancia os homens, em sua prá-
mais com a existência.
tica intelectual, de Deus. Poderíamos traduzir o
Nossa fórmula “respondeo etsi mutabor” lembra-
sujeito vazio a ser preenchido de objetividade. Isso
-nos que a sociedade humana superou a fase da
significa dizer que a mente humana deveria deci-
mera existência, que prevalece na natureza. Na
frar apenas as impressões feitas naquelas partes
Sociedade, nós devemos responder, e, pelo modo
do mundo que estão fora dela. Consequentemente,
da nossa resposta, testemunhamos que sabemos
os cientistas hoje – pois todos eles representam a
o que nenhuma outra criatura sabe: o segredo
prática do cartesianismo – pensam que eles mes-
da morte e da vida. Nós nos sentimos responsá-
mos não devem ser impressionados, que o seu
veis pelo “Renascimento” da vida. A revolução, o
dever é ficar calmo, desinteressado, neutro e desa-
amor, qualquer obra gloriosa, carrega a estampa
paixonado. E eles se esforçam em desenvolver essa
da eternidade se ela tiver sido chamada à existên-
falta de humor. Suas inibições e repressões são
cia por esse sinal no qual o Criador e a criatura são
tamanhas que eles dão vazão às suas paixões por
um. “Respondeo etsi mutabor”, uma palavra vital
motivos insignificantes, e da forma mais incons-
altera o curso da vida, e a vida ultrapassa a morte
ciente, só porque eles não ousam admiti-las como
já presente.
o maior capital da investigação humana.
O valor de sobrevivência do humor
Quanto mais um homem reprime as impressões feitas sobre si, mais ele depende, em sua orientação
Voltemos uma última vez para o venerável Descartes,
e suas conclusões, dos vestígios e impressões fei-
nosso adversário, o grande sedutor do mundo
tos pela vida em outros homens. Ele suprime parte
moderno. Neste pequeno livro sobre o método, ele
da evidência do mundo que estuda quando ele rei-
seriamente, sem nenhum traço de humor, queixa-
vindica trabalhar com a mente pura. Comparemos
-se de que o homem tenha impressões antes que sua
muito brevemente o físico ou geólogo, o biólogo ou
mente se desenvolva até o poder máximo da lógica.
físico, e nossa própria economia e “metanomia”
Por vinte anos, diz sua queixa, fui impressionado
da sociedade. Ficará claro então que todos eles for-
confusamente por objetos que eu não tinha capaci-
mam uma seqüência lógica.
dade de entender. Ao invés de ter meu cérebro como uma tábula rasa aos vinte anos, eu encontrei inúme-
A geologia depende de impressões feitas por enchen-
ras idéias falsas engravadas nele. Que lástima que o
tes, terremotos, vulcões. As montanhas contam a
homem seja incapaz de pensar claramente desde o
história de suas opressões e rebeliões. Os impres-
dia de seu nascimento, ou que ele possua memórias
sionantes dados dessa ciência da Mãe Natureza são
que antecedam sua maturidade!
aqueles fornecidos pelas mais violentas impressões que marcam uma época em evolução.
Acaso essas confissões ingênuas do semideus da ciência moderna, o inventor do dualismo mente-
Passando à medicina, nós facilmente observamos
-corpo, foram recebidas com o único sucesso que
que um médico não recomendará uma nova droga
elas mereciam: o das risadas sem fim? Isto nos traz
antes que alguns seres vivos não a tiverem experi-
a grave pergunta sobre o que a omissão do riso, ou
mentado. O soro ou antídoto torna-se interessante
de suas aplicações, significa na evolução da ciên-
quando ele deixa uma impressão real sobre ou em
cia. Os cientistas parecem ser incapazes de captar
um organismo vivo.
a tolice da observação de Descartes. No entanto, o senso comum age sobre o princípio de que um
Todas as verdadeiras ciências são baseadas em
homem que falha em aplicar o riso e o pranto na
impressões feitas em partes do mundo, em pedras,
descoberta da verdade vital é simplesmente ima-
metais, plantas, animais, corpos humanos, desde o
turo. Descartes é um adolescente enormemente
átomo até a cobaia.
expandido, cheio de curiosidade, que abomina sua infância mental e frustra sua virilidade mental.
Muito bem, se as impressões feitas sobre pedras
Descartes queria que a idade plástica do homem se
e se as impressões gravadas em corpos constru-
apagasse. Ele queria transformar o homem de um
íram a medicina e a biologia moderna, então as
prejeto plástico atirado na vida e sociedade, onde
impressões poderosas o bastante para abalar nos-
pudesse ser impressionado e educado, para um
sas mentes devem ser as mais cientificamente
OUTUBRO 2013
fizeram surgir uma ciência especial, a das pedras,
19
FILOSOFIA
frutíferas. No entanto, ao macaquear as ciên-
no Guerra e Paz de Tolstói (seus próprios medos,
cias naturais, os brâhmanes do conhecimento do
esperanças, etc), para ele são difíceis de admitir:
homem vangloriam-se de sua própria neutralidade
e, assim, ele busca as impressões de segundo grau
e indiferença impassível ao problema. Não sendo
que são engraçadas demais para pôr em palavras.
possível nenhuma ciência sem impressões, eles se
E, novamente, ninguém ousa rir.
voltam a um laboratório artificial onde produzem efeitos em cobaias e substituem as suas próprias
A partir daí, o progresso científico no campo social
experiências pelas das cobaias.
depende do poder regulador do humor. O humor
Nós diariamente emergimos da morte social por um milagre.
previne os métodos errados simplesmente ao ridicularizá-los. Le ridicule tue. E, assim como os químicos precisam de gás hilariante, nós precisamos, para excluir as pretensões do pensamento impassível, uma forte dose de humor. Se pudéssemos colocar um sorriso no trono da sociedade, a cicatriz de guerra que produziu este volume final-
A verdade é que o grande Cartesius, quando ele liqui-
mente desapareceria.
dou com as impressões do menino René, aleijou-se a si mesmo para qualquer percepção social fora da
A minha geração sobreviveu à decadência anterior
ciência natural. Este é o preço pago por todo método
à guerra, à matança na guerra, à anarquia no pós-
científico natural. Na medida em que ele é aplicado
-guerra, e a revoluções, i.e., à guerra civil. Hoje em
e neutraliza o geólogo, ou o físico, ou o bioquímico,
dia, antes de qualquer pessoa despertar para a vida
ele liquida com suas experiências pessoais sociais e
consciente neste estreito mundo, o desemprego,
políticas. A partir daí, as ciências desenvolvem um
ou o ataque aéreo, ou as revoluções de classe, ou
hábito desastroso para o pensador social.
a falta de vitalidade, ou a falta de integração, pode ter jogado o dado do seu destino e rotulado-o para
Nenhum fato científico pode ser verificado antes
sempre. Nós diariamente emergimos da morte
de ter deixado uma indelével impressão. O terror
social por um milagre. Assim, não nos importamos
das revoluções, guerras, anarquia, deve ter deixado
mais com a metafísica cartesiana que leva a mente
uma impressão indelével antes de nós podermos
do homem para além da sua morte física natural.
estudá-los. “Indelével” é uma qualidade que difere
Nós estamos buscando por uma sabedoria social
bastante de “clara”. Na verdade, quanto mais con-
que leve para além dos fatos “nômicos” brutais da
fusa, complexa e violenta a impressão, mais ela
economia e das monstruosidades do vulcão social.
irá grudar, mais resultados ela irá produzir. Uma revolução, então, é o fato mais importante para
Como um sobrevivente, o homem sorri ao per-
o entendimento, porque ela tira nossas mentes
ceber por quão pouco ele escapou. Esse sorriso,
do eixo. Por definição, uma revolução modifica os
desconhecido para o idealista dogmático ou o
processos mentais do homem. Os cientistas que se
materialista científico, contorce o rosto, porque
sentam para julgar objetivamente, antes de serem
um ser humano sobreviveu ao perigo e, portanto,
simplesmente aturdidos, incapacitam-se para sua
sabe o que é que importa. O humor ilumina o ines-
verdadeira tarefa, que é a de digerir o evento. Eles
sencial. Nossas ciências modernas, por outro lado,
não expõem suas mentes ao choque. Em outros
morrem pelos excessos de carga de coisas ines-
campos da vida, isso se chama covardia.
senciais que são diariamente despejadas sobre o
OUTUBRO 2013
cérebro do aluno. Na sociedade moderna, prevalece
20
A covardia do pensador social que nega que ele é
a idéia de que a ciência está aumentando em gran-
impressionado e pessoalmente colocado em estado
des quantidades. Eles acrescentam, e acrescentam,
de choque por uma revolução ou uma cicatriz de
e acrescentam às montanhas do conhecimento.
guerra, faz com que ele se volte para as estatísticas
O homem que sobrevive começa, e começa, e
que descrevem os botões nos uniformes dos sol-
começa. Pois ele está recuperando seus poderes
dados, ou liste os nomes botânicos das árvores nas
mentais depois de uma catástrofe social. E ele olha
alamedas onde caíram os insurgentes. As impres-
o florescer de uma flor com mais surpresa e pra-
sões que importam, como aparecem, por exemplo,
zer aos setenta do que quando era uma criança.
O sobrevivente em nós, embora possa perder em
vinho tinto da vida tem um sabor melhor do que
curiosidade, ganha em assombro. A “metanômica”
em qualquer outro lugar. E um homem escreve
da sociedade humana são sinais da surpresa que o
um livro, mesmo quando estende a mão, para que
homem sobrevive. Para além, isto é, “meta”, do
possa descobrir que ele não está sozinho na sobre-
“nômico”, as brutalidades mecânicas demais do
vivência da humanidade.
caos social, surge a “metanômica”. Ela constitui o alegre conhecimento que Nietzsche foi o pri-
Tradução por Bernardo Campella
meiro a saudar como “gayza scienza”, a jubilosa ciência. Os resultados da “metanômica” formam o quadro para as exultações de alegria da vida; eles permitem que a vida seja ressuscitada e revitalizada sempre que ela tiver exaurido a si mesma. Os resultados da “jubilosa ciência” não neutralizam a vida, e sim protegem sua exuberância. Eles unem, num mesmo sorriso, os sobreviventes e os recém-nascidos. Assim, a “metanômica” tem seu lugar definitivo na autobiografia da raça. Sempre que os sobreviventes tiverem experimentado a morte, eles serão capazes de insuflar seu humor adquirido com carinho na vigorosa alegria da juventude. Jamais a humanidade adquiriu um conhecimento comum acumulando-o em bibliotecas. Porém, diga-me que você quer experimentar sua vida como uma frase na autobiografia da humanidade, diga-me até onde você divide a responsabilidade com os tolos do passado, e quando você tiver me mostrado em que medida você é capaz da identificação com o resto da humanidade, eu saberei então se o seu conhecimento é um conhecimento de sobrevivência, uma “metanômica” da sociedade como um todo, ou meramente a sua metafísica privada. A minha geração sobreviveu à morte social em todas as suas variantes, e eu sobrevivi a décadas de estudo e ensino nas ciências escolásticas e acadêmicas. Todos os seus veneráveis acadêmicos confundiram-me com o tipo intelectual que eles mais desprezavam. O ateu queria que eu desaparecesse na divindade, os teólogos na sociologia, os sociólogos na história, os historiadores no jornalismo, os jornalistas na metafísica, os filósofos na lei, e – preciso dizer? – os advogados no inferno, o qual, como um membro de nosso mundo presente, eu nunca havia deixado. Pois ninguém deixa o inferno por sua conta própria sem ficar louco. A sociedade é um inferno enquanto o homem ou consumo no inferno da catástrofe social, a menos que ela junte forças com as outras. Na comunidade que o senso comum reconstrói, depois do terremoto, sobre as cinzas na encosta do Vesúvio, o
OUTUBRO 2013
a mulher estiver só. E a alma humana morre por
21
FILOSOFIA
Copleston sobre a história da filosofia Tradução das partes I, II e III da Introdução de “History of Philosophy, Vol. I” (1946), de Frederick Copleston, S.J.
I. Por que estudar a História da Filosofia?
homem culto saberá um pouco a respeito de Dante,
M
Shakespeare e Goethe, a respeito de São Francisco uito dificilmente chamaríamos de
de Assis e Fra Angélico, a respeito de Frederico o
“culto” alguém sem conhecimento
Grande e Napoleão I: por que não se espera que ele
nenhum de história; todos reconhe-
saiba também algo sobre
cemos que um homem deve saber
algo da história de seu próprio país, seu desenvolvimento político, social e econômico, suas realizações literárias e artísticas – de preferência inserido no panorama mais amplo da história européia e, até certo ponto, mundial. Mas, se devemos esperar que um inglês culto e instruído possua
Não foram só os grandes pintores e escultores que nos deixaram um legado e uma riqueza permanentes.
OUTUBRO 2013
algum conhecimento sobre Alfredo o Grande e
22
Elizabeth, sobre Cromwell e Marlborough e Nelson,
Sto. Agostinho e S. Tomás de Aquino, Descartes e
sobre a invasão dos normandos, sobre a Reforma e a
Spinoza, Kant e Hegel? Seria absurdo sugerir que
Revolução Industrial, parece claro que ele também
devemos nos informar a respeito dos grandes
deveria no mínimo saber algo sobre Roger Bacon e
conquistadores e destruidores enquanto permene-
Duns Scotus, sobre Francis Bacon e Hobbes, sobre
cemos ignorantes dos grandes criadores, daqueles
Locke, Berkeley e Hume, sobre J.S. Mill e Herbert
que realmente contribuíram para a nossa cultura
Spencer. Além disso, se esperamos que um homem
européia. Mas não foram só os grandes pintores
culto não seja totalmente ignorante sobre a Grécia
e escultores que nos deixaram um legado e uma
e a Roma, se ele deveria se envergonhar ao ter de
riqueza permanentes: também os grandes pen-
confessar nunca ter ouvido falar de Sófocles ou de
sadores, homens como Platão e Aristóteles, Sto.
Virgílio e não saber nada das origens da cultura
Agostinho e S. Tomás de Aquino, enriqueceram a
européia, da mesma forma deveríamos esperar
Europa e sua cultura. Faz parte, portanto, de uma
que ele soubesse algo de Platão e Aristóteles, dois
educação culta conhecer ao menos algo sobre o
dos maiores pensadores que o mundo já conheceu,
decurso da filosofia européia, pois nossos pensa-
os dois homens à frente da filosofia européia. Um
dores, assim como os nossos artistas e generais, é
que ajudaram a construir a nossa era, para o bem
observados em seu verdadeiro ambiente histórico,
ou para o mal.
enquanto deve-se ter em mente também que a aplicação de princípios verdadeiros a todas as esfe-
Ora, ninguém acharia que é uma perda de tempo
ras da filosofia certamente não foi algo que acabou
ler as obras de Shakespeare ou contemplar as cria-
na Idade Média, e é bem possível que tenhamos
ções de Michelangelo, pois elas possuem um valor
algo a aprender dos pensadores modernos, p. ex.,
intrínseco em si mesmas que não é diminuído
no campo da teoria estética ou da filosofia natural.
pela quantidade de anos que se passou entre suas mortes e o nosso próprio tempo. Mas também não
2. Pode-se objetar que os vários sistemas filosófi-
deveria ser considerado uma perda de tempo estu-
cos do passado sejam meras relíquias antigas; que
dar o pensamento de Platão, ou Aristóteles, ou Sto.
a história da filosofia consista de “sistemas refu-
Agostinho, pois suas criações mentais permane-
tados e espiritualmente mortos, uma vez que cada
cem por si só como incríveis realizações do espírito
um matou e enterrou um ao outro”.1 Não declarou
humano. Outros artistas viveram e pintaram desde
Kant que a Metafísica trata de sempre “manter a
o tempo de Rubens, mas isso não diminui o valor
mente humana em suspensão com esperanças que
do trabalho de Rubens; outros pensadores filosofa-
nunca desaparecem e que, no entanto, nunca são
ram desde o tempo de Platão, mas isso não destrói
cumpridas”, que, “enquanto cada uma das outras
o interesse e a beleza de sua filosofia.
ciências avança continuamente”, na Metafísica os homens “circundam perpetuamente o mesmo
Mas se é desejável que todos os homens cultos
ponto, sem dar um único passo adiante”?2 O pla-
conheçam algo da história do pensamento filo-
tonismo, o aristotelismo, o escolasticismo, o
sófico, até onde permitirem suas ocupações, sua
cartesianismo, o kantismo, o hegelianismo – todos
orientação pessoal e a necessidade de especiali-
tiveram seus períodos de popularidade e todos
zação, quanto mais não seria isso desejável para
foram desafiados: o pensamento europeu pode
todos os que se declaram estudantes de filosofia?
ser “representado como um entulho de sistemas
Refiro-me especialmente aos estudantes da filo-
metafísicos, abandonados e irreconciliados”.3 Por
sofia escolástica, que a estudam como philosophia
que estudar a tralha antiquada do aposento da
perennis. Eu não quero discutir se ela é ou não a phi-
história?
losophia perennis; no entanto, ela não caiu do céu, mas sim cresceu desde o passado; e se realmente
Ora, mesmo que todas as filosofias do pas-
queremos apreciar o trabalho de S. Tomás de
sado tivessem não só desafiado (o que é óbvio)
Aquino, ou S. Boaventura, ou Duns Scotus, deve-
como também refutado (o que de modo algum é
mos conhecer algumas coisas a respeito de Platão e
a mesma coisa), ainda segue verdadeiro o fato de
Aristóteles e S. Agostinho. Novamente, se há uma
que “erros são sempre instrutivos”,4 assumindo,
philosophia perennis, é de se esperar que alguns dos
é claro, que a filosofia seja uma ciência possível e
seus princípios podem operar inclusive nas mentes
não uma enganação em si mesma. Para tomar um
dos filósofos dos tempos modernos, que à pri-
exemplo da filosofia medieval, as conclusões do
meira vista talvez pareçam distantes de S. Tomás
realismo exagerado por um lado e as do nomina-
de Aquino. E mesmo que não fosse assim, seria
lismo por outro indicam que a solução do problema
instrutivo observar quais resultados se seguem
dos universais deve ser buscada num meio-termo
de premissas falsas e princípios falhos. Nem se
entre esses dois extremos. A história do problema
pode negar que deve ser extremamente rechaçada
serve, assim, como uma prova experimental da
a prática de condenar pensadores cuja posição e
tese aprendida nas escolas. Novamente, o fato de
significado não tenham sido compreendidos ou
que o idealismo absoluto tenha se visto incapaz
___________________________________________________
2. Proleg., p. 2 (Mahafty). 3. A. N. Whitehead, Process and Reality, p. 18. Não é preciso dizer que a atitude anti-histórica não é a própria atitude do professor Whitehead. 4. N. Hartmann, Ethics, I, p. 119.
OUTUBRO 2013
1. Hegel, Hist. Phil., I, p. 17.
23
FILOSOFIA
de fornecer qualquer explicação adequada sobre
de qualquer religião de ser a verdadeira, também
os eus finitos deveria ser suficiente para impedir
é absurdo falar como se a sucessão de filosofias
qualquer um de embarcar no caminho monístico.
ipso facto demonstrasse que não há filosofia ver-
A insistência na filosofia moderna sobre a teo-
dadeira e que não pode haver filosofia verdadeira.
ria do conhecimento e da relação sujeito-objeto
(Fazemos esta observação, é claro, sem querer
deveria, malgrado todas as extravagâncias às quais
implicar que não haja verdade ou valor em qualquer
tem levado, esclarecer de alguma maneira que o
outra religião que não seja o cristianismo. Além
sujeito não pode ser reduzido ao objeto mais do
disso, há uma grande diferença entre a religião
que o objeto ao sujeito, enquanto o marxismo,
verdadeira (revelada) e a filosofia verdadeira, pois
apesar dos seus erros fundamentais, nos ensina a
enquanto aquela, na medida em que é revelada, é
não negligenciar a influência das técnicas e da vida
necessariamente verdadeira em sua totalidade, em
econômica do homem sobre as esferas mais altas
tudo o que é revelado, a verdadeira filosofia pode
da cultura humana. Especialmente para quem não
ser verdadeira em suas linhas e princípios gerais
começa aprendendo um determinado sistema de
sem atingir em momento algum a completude. A
filosofia, mas pretende filosofar ab ovo, por assim
filosofia, que é o trabalho do espírito humano e
dizer, o estudo da história da filosofia é indispen-
não a revelação de Deus, cresce e se desenvolve;
sável, ou ele correrá o risco de percorrer becos sem
panoramas inéditos podem ser abertos por novas
saída e repetir os erros de seus predecessores, dos
linhas de abordagem ou aplicação sobre novos pro-
quais um estudo sério do pensamento do passado
blemas, fatos recém descobertos, novas situações,
poderá salvá-lo.
etc. O termo “filosofia verdadeira” ou philosophia
A história da filosofia certamente não é um mero amontoado de opiniões, uma narrativa de itens de pensamento isolados sem conexão entre si.
perennis não deveria ser entendido como denotando um corpo estático e completo de princípios e aplicações, não suscetíveis de desenvolvimento ou modificação.)
II. A natureza da História da Filosofia 1. A história da filosofia certamente não é um mero amontoado de opiniões, uma narrativa de itens de
OUTUBRO 2013
pensamento isolados sem conexão entre si. Se a
24
3. É verdade que um estudo da história da filosofia
história da filosofia for tratada “apenas como a
pode tender a induzir um modo cético de pensar,
enumeração de várias opiniões”, e se todas essas
mas devemos lembrar que o fato de haver uma
opiniões forem consideradas de igual valor ou des-
sucessão de sistemas não prova que qualquer filo-
valor, ela se torna então “inútil curiosidade ou,
sofia esteja errada. Se X desafia a posição de Y e
quando muito, investigação erudita”.5 Há conti-
a abandona, isso não prova por si mesmo que a
nuidade e conexão, ação e reação, tese e antítese,
posição Y seja indefensável, já que X pode tê-la
e nenhuma filosofia pode ser realmente entendida
abandonado sem base suficiente ou ter adotado
na sua totalidade se não for vista em seu lugar
falsas premissas, cujo desenvolvimento envolveu
histórico e à luz de sua conexão com outros sis-
um abandono da filosofia de Y. O mundo viu muitas
temas. Como podemos realmente entender o que
religiões – budismo, hinduísmo, zoroatrismo, cris-
Platão pretendeu ou o que o induziu a dizer o que
tianismo, maometismo, etc., mas isso não prova
ele disse, se não soubermos algo do pensamento
que o cristianismo não seja a verdadeira religião;
de Heráclito, Parmênides, dos pitagóricos? Como
para provar isso, seria necessário uma refutação
podemos entender por que Kant adotou uma posi-
completa da apologética cristã. Mas, assim como
ção aparentemente extraordinária em relação ao
é absurdo falar como se a existência de uma varie-
espaço, tempo e às categorias, a menos que saiba-
dade de religiões ipso facto invalidasse a afirmação
mos algo do empiricismo britânico e percebamos
___________________________________________________
5. Hegel, Hist. Phil., I, p. 12.
o efeito das conclusões céticas de Hume sobre a
em sua mais alta forma que a auto-consciência do
mente de Kant?
espírito adquire de si mesma”.6 Muito depende, é claro, de como você divide os “períodos” e o que
2. Mas se a história da filosofia não é uma mera
você prefere considerar como a filosofia final
coleção de opiniões isoladas, ela não pode ser
de um período qualquer (e aqui há uma grande
tratada como um progresso contínuo ou mesmo
oportunidade para a escolha arbitrária, segundo
uma ascensão em espiral. É verdade que pode-
a opinião e os desejos pré-concebidos); mas que
mos encontrar exemplos plausíveis no decurso da
garantia há (a menos que primeiro adotemos a
especulação filosófica da tríade hegeliana de tese,
posição hegeliana integral) de que a filosofia final
antítese e síntese, mas dificilmente é tarefa de um
de qualquer período represente o mais elevado
historiador científico adotar um esquema a priori
desenvolvimento do pensamento até então atin-
e então encaixar os fatos neste esquema. Hegel
gido? Se por um lado podemos legitimamente falar
supunha que a sucessão de sistemas filosóficos
de um período medieval da filosofia, e se o ockha-
“representa a sucessão necessária de estágios no
mismo pode ser tratado como a principal filosofia
desenvolvimento” da filosofia, mas isso só pode
ao final daquele período, por outro lado a filosofia
ser assim se o pensamento filosófico do homem
de Ockham certamente pode não ser tratada como
for o próprio pensar do “espírito do mundo”.
a realização suprema da filosofia medieval. A filo-
É verdade, sem dúvidas, que, na prática, qual-
sofia medieval, como mostrou o professor Gilson7,
quer pensador está limitado quanto à direção que
representa uma linha curva ao invés de uma linha
tomará o seu pensamento, limitado pelos sistemas
reta. E alguém pode pertinentemente perguntar:
imediatamente precedentes e contemporâneos
que filosofia do presente representa a síntese de
(limitado, também, podemos acrescentar, por seu
todas as filosofias precedentes?
temperamento pessoal, sua educação, pela situação histórica e social, etc.); não obstante, ele não
3. A história da filosofia mostra a busca do homem
é determinado a escolher nenhuma premissa ou
pela Verdade através da razão discursiva. Um neo-
princípio particular, nem a reagir de uma forma
tomista, ao desenvolver as palavras de São Tomás,
particular à filosofia precedente. Fichte acreditava
Omnia cognoscentia cognoscunt implicite Deum in
que o seu sistema seguia logicamente o de Kant,
quolibet cognitio8, sustentava que o juízo sempre
e certamente há uma conexão lógica direta, como
aponta para além de si mesmo, sempre contém
está ciente todo estudante da filosofia moderna;
uma referência implícita à Verdade Absoluta, ao
mas Fichte não estava determinado a desenvolver a
Ser Absoluto9 (lembramos aqui de F. H. Bradley,
filosofia de Kant da forma particular em que o fez.
embora o termo “Absoluto” não tenha, é claro,
O filósofo que sucedeu a Kant poderia ter esco-
o mesmo sentido nos dois casos). De qualquer
lhido reexaminar as premissas de Kant e negar que
forma, podemos dizer que a busca pela verdade é
as conclusões que Kant aceitara de Hume fossem
no fim das contas a busca pela Verdade Absoluta,
conclusões verdadeiras; ele poderia ter-se vol-
Deus, e mesmo os sistemas filosóficos que pare-
tado para outros princípios ou excogitado novos
cem refutar essa afirmação, p. ex. o Materialismo
princípios por si mesmo. Sem dúvida existe uma
Histórico, são exemplos dela, pois estão sempre
seqüência lógica na história da filosofia, mas não
buscando, mesmo que inconscientemente, mesmo
uma seqüência necessária no sentido estrito.
que não reconheçam, o fato, o Fundamento último, o supremo Real. Mesmo que a especulação intelec-
Não podemos, portanto, concordar com Hegel
tual tenha às vezes levado a doutrinas bizarras e
quando ele diz que “a filosofia final de um período
a conclusões monstruosas, não podemos senão
é o resultado do seu desenvolvimento, e é a verdade
ter uma certa simpatia e interesse pelo esforço
___________________________________________________
7. Cf. The Unity of Philosophical Experience. 8. De Verit., 22, 2, ad I. 9. J. Maréchal, S.J., Le Point de Départ de la Metaphysique: Cahier V.
OUTUBRO 2013
6. Hist. Phil., III, p. 552.
25
FILOSOFIA
do intelecto humano em atingir a Verdade. Kant,
na e através da filosofia moderna. Não estou suge-
que negava que a Metafísica no sentido tradicional
rindo que a filosofia de Spinoza ou Hegel, por
fosse ou pudesse ser uma ciência, não obstante,
exemplo, possa ser compreendida sob o termo
concedia que não podemos ficar indiferentes aos
“tomismo”; mas que, quando os filósofos, mesmo
objetos com os quais a Metafísica professa lidar:
que de forma alguma chamassem-se a si mes-
Deus, a alma, a liberdade; e é possível acrescen-
mos de “escolásticos”, chegam, pelo emprego de
tar que não podemos ficar indiferentes à busca do
princípios verdadeiros, a conclusões válidas, estas
intelecto humano pela Verdade e o Bem.
conclusões devem ser vistas como fazendo parte da
10
A filosofia perene após o fim do período medieval não se desenvolve meramente junto ou à parte da filosofia “moderna”, mas se desenvolve também na e através da filosofia moderna.
filosofia perene. Por exemplo, São Tomás de Aquino certamente faz algumas afirmações a respeito do Estado, e não temos tendência alguma a questionar os seus princípios; mas seria absurdo esperar uma filosofia do Estado moderno desenvolvida no século XIII, e do ponto de vista prático é difícil ver como uma filosofia do Estado desenvolvida e articulada sobre princípios escolásticos poderia ser elaborada em concreto até que o Estado moderno tivesse emergido e até que tivessem sido mostradas as atitudes modernas em relação ao Estado. Só quando já tivermos experiência do Estado liberal e do Estado totalitário e das teorias correspondentes do
A facilidade com que se cometem erros, o fato
Estado é que poderemos perceber todas as impli-
de que o temperamento pessoal, a educação e
cações contidas no pouco que São Tomás diz sobre
outras circunstâncias aparentemente “fortuitas”
o Estado e desenvolver uma filosofia política esco-
podem com tanta freqüência levar o pensador a
lástica aplicável ao Estado moderno, que conterá
um beco sem saída intelectual, o fato de que não
expressamente tudo que há de bom contido nas
somos inteligências puras, mas que os processos
outras teorias, enquanto ao mesmo tempo renun-
das nossas mentes podem freqüentemente ser
ciará os erros. Veremos que a filosofia de Estado
influenciados por fatores extrínsecos, sem dúvida
resultante, quando observada no fato concreto, não
mostra a necessidade de Revelação religiosa; mas
é simplesmente um desenvolvimento do princípio
isso não deve nos fazer desesperar por completo da
escolástico em isolamento absoluto da situação
especulação humana nem desprezar as tentativas
histórica real e das teorias intermediárias, mas um
bona-fide dos pensadores do passado em atingir a
desenvolvimento desses princípios à luz da situ-
Verdade.
ação histórica, um desenvolvimento conquistado
OUTUBRO 2013
nas teorias do Estado opostas e por meio delas. Se
26
4. O presente escritor adere ao ponto de vista
esse ponto de vista for adotado, seremos capazes
tomista de que há uma philosophia perennis e de que
de sustentar a idéia de uma filosofia perene sem
esta philosophia perennis é o tomismo em sentido
nos comprometer, por um lado, com uma pers-
amplo. Mas gostaríamos de fazer duas observaçõs
pectiva muito estreita, onde a filosofia perene
sobre o assunto: (a) Dizer que o sistema tomista é
seja confinada a um determinado século, ou, por
a filosofia perene não significa que o sistema esteja
outro lado, com uma visão hegeliana de filosofia,
fechado a qualquer época histórica e incapaz de um
que necessariamente implica (embora o próprio
maior desenvolvimento em qualquer direção. (b) A
Hegel pareça – inconsistentemente – ter pensado
filosofia perene após o fim do período medieval
de outra forma) que a Verdade nunca é atingida em
não se desenvolve meramente junto ou à parte da
um dado momento.
filosofia “moderna”, mas se desenvolve também ___________________________________________________
10. Pref. à 1ª Ed. da Crítica da Razão Pura.
III. Como Estudar a História da Filosofia
Porém, não devemos nos preocupar tanto com a psicologia do filósofo a ponto de descartar a ver-
1. O primeiro ponto a ser destacado é a necessidade
dade ou a falsidade das suas idéias tomadas em si
de ver todo sistema filosófico em seu ambiente e
mesmas, ou a conexão lógica do seu sistema com o
conexões históricas. Isso já foi mencionado e não
pensamento precedente. Um psicologista pode com
exige maior elaboração: deveria ser óbvio que só
justiça limitar-se ao primeiro ponto de vista, mas
podemos captar adequadamente o estado mental
não um historiador da filosofia. Por exemplo, uma
de um determinado filósofo e a raison d’étre de sua
abordagem puramente psicológica pode nos levar
filosofia se tivermos antes apreendido o seu point
a supor que o sistema de Arthur Schopenhauer foi
de départ histórico. Já demos o exemplo de Kant;
a criação de um homem amargo, azedo e desapon-
podemos entender o seu estado mental quando
tado, que ao mesmo tempo possuía poder literário,
ele desenvolveu a sua teoria do a priori somente
imaginação estética e perspicácia, e nada mais;
se o virmos em sua situação histórica vis-à-vis a
como se sua filosofia fosse simplesmente a mani-
filosofia crítica de Hume, a aparente falência do
festação de certos estados psicológicos. Mas esse
racionalismo continental e a aparente certeza da
ponto de vista deixaria de fora da explicação o fato
matemática e da física newtonianas. Da mesma
de que o seu sistema voluntarista pessimista é em
forma, somos mais capazes de entender a filo-
grande parte uma reação ao racionalismo otimista
sofia biológica de Henri Bergson se a virmos, por
hegeliano, e também deixaria de fora o fato de que
exemplo, em sua relação com as teorias mecanicis-
a teoria estética de Schopenhauer pode ter um
tas precedentes e com o “espiritualismo” francês
valor por si própria, independente do tipo de homem
anterior.
que a propunha, e também negligenciaria todo o
Temos de nos esforçar em nos colocar no lugar do filósofo, em tentar ver os seus pensamentos desde dentro.
problema do mal e do sofrimento que é levantado pelo sistema de Schopenhauer, e que é um problema muito real, fosse ou não fosse o próprio Schopenhauer um homem desapontado e desiludido. Da mesma forma, embora seja de grande auxílio para entender o pensamento de Friedrich Nietzsche conhecermos algo da história pessoal do homem, as suas idéias podem ser vistas em si mesmas, à parte do homem que as pensou.
2. Para um estudo aproveitável da história da filo3. Abrir caminho no sistema de qualquer pen-
“simpatia”, quase que uma abordagem psicológica.
sador, buscando exaustivamente entender não
É desejável que o historiador saiba algo do filósofo
só as palavras e frases como elas são em si, mas
enquanto um homem (isto não é possível no caso
também a tonalidade de sentido que o autor pre-
de todos os filósofos, é claro), já que isso irá ajudá-lo
tendeu transmitir (desde que isso seja viável), para
a sentir-se dentro do sistema em questão, a vê-lo,
ver os detalhes do sistema em sua relação com o
por assim dizer, desde dentro, e a captar o seu sabor
todo, captar completamente a sua gênese e as suas
e características peculiares. Temos de nos esforçar
implicações, isto tudo não é obra de pouco fôlego. É
em nos colocar no lugar do filósofo, em tentar ver
simplesmente natural, então, que a especialização
os seus pensamentos desde dentro. Ademais, essa
no campo da história da filosofia deva ser a regra
simpatia ou apreensão imaginativa é essencial para
geral, como é nos campos das várias ciências. Um
o filósofo escolástico que deseja entender a filoso-
conhecimento especialista da filosofia de Platão,
fia moderna. Se um homem, por exemplo, possui a
por exemplo, exige, além de um conhecimento
experiência da fé católica, os sistemas modernos, ou
completo da língua e da história gregas, um conhe-
pelo menos alguns deles, facilmente soam-lhe como
cimento da matemática grega, da religião grega, da
meras monstruosidades bizarras indignas de uma
ciência grega, etc. O especialista, portanto, exige
atenção séria, mas, se ele conseguir, o máximo que
um grande aparato de erudição; mas é essencial, se
puder (sem, é claro, render seus próprios princípios)
ele pretende ser um verdadeiro historiador da filo-
ver os sistemas desde dentro, terá uma chance muito
sofia, que não se deixe sobrecarregar tanto por seus
maior de compreender o que o filósofo quis dizer.
recursos de erudicação e minúcias do estudo, ao
OUTUBRO 2013
sofia há também a necessidade de uma certa
27
FILOSOFIA
ponto de falhar em penetrar no espírito da filosofia em questão e falhar em torná-lo vivo novamente em seus escritos ou palestras. A erudição é indispensável, mas não é de forma alguma suficiente. O fato de que uma vida inteira possa ser devotada ao estudo de um grande pensador e ainda deixe muito para ser feito quer dizer que qualquer um que seja tão ousado em empreender a composição de uma história contínua da filosofia dificilmente pode esperar produzir uma obra que oferecerá qualquer coisa de muito valiosa aos especialistas. O autor da presente obra está bem consciente desse fato, e, como já disse no prefácio, não está escrevendo para especialistas, mas para tornar útil a obra dos especialistas. Não há necessidade de repetir aqui as razões do autor para escrever esta obra. Mas ele gostaria de mencionar mais uma vez que se considerará bem recompensado por seu trabalho se puder contribuir um pouco não só para a instrução do tipo de estudante a quem a obra é dirigida em primeiro lugar, mas também para a expansão do seu panorama, para a aquisição de um melhor entendimento e simpatia para com o esforço intelectual da humanidade, e, é claro, para um domínio mais firme e profundo dos princípios da verdadeira filosofia.
OUTUBRO 2013
Tradução por Renan Santos
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Culpeper e os temperamentos Introdução e tradução do penúltimo trecho de “Astrological Judgement of Diseases from the Decumbiture of the Sick”, (1655)
Nicholas Culpeper foi um astrólogo notável e uma personalidade interessante. Nascido em 18 de outubro de 1616, na Inglaterra, viveu numa época em que astrólogos estavam firmemente envolvidos nos conflitos da sociedade, sem a afetação de superioridade angélica (nem a irrelevância prática) que parece ser a norma entre seus colegas do presente. Ele trabalhou como médico, botânico e herbalista, chegando a atender 40 pacientes em um só dia. Escreveu várias obras de astrologia médica e medicina tradicional, com um objetivo claro: impedir o monopólio da classe médica no tratamento dos doentes; acima de tudo, garantir ao povo – que de forma geral, não lia em latim – acesso ao conhecimento médico em língua inglesa. Seu humor cáustico não poupava nem médicos, nem astrólogos. Suas obras e sua personalidade lhe garantiram uma grande quantidade de inimigos e alguns admiradores, como os astrólogos William Lilly e John Gadbury (desafetos entre si, aliás). Seus adversários incluíam grande parte da classe médica da época, além do clero (suas obras de catalogação de plantas, não as astrológicas, eram condenadas nos sermões dominicais). Um dos seus livros mais influentes é o Astrological Judgement of Diseases from the Decumbiture of the Sick (“Análise Astrológica das Doenças a partir da Decumbitura dos Doentes”1). A abrangência dos autores usados (Ibn Ezra, Noel Duret, Hipócrates, Hermes Trimegisto) não diminui a originalidade da obra, nem a torna menos divertida. No trecho abaixo, no fim do livro, ele descreve a
aquela época. Ele – e muitos outros médicos/astrólogos
aparência e o comportamento das pessoas conforme
do seu tempo, seguindo uma tradição bastante antiga
seu temperamento. Infelizmente, esta não é uma
– tratava clientes com mapas de decumbitura (que hoje
passagem em que se possa perceber seu sarcasmo, mas
são bastante difíceis de serem usados, porque partem
há compensações.
do princípio de que o astrólogo e o médico tratando do paciente, ajustando a medicação, etc., são a mesma pessoa ou estão trabalhando juntos) e mapas horários
(colérico, sanguíneo, melancólico e fleumático) e suas
(que podem ser, e são usados ainda hoje em dia).
misturas era um dos pressupostos básicos da medicina até ___________________________________________________
1. “Decumbitura” é um mapa astrológico aberto para o momento em que o doente cai de cama.
OUTUBRO 2013
A divisão das pessoas em quatro temperamentos
29
FILOSOFIA
As doenças eram consideradas como manifestações
com os sanguíneos no topo), mas mesmo assim vale a
de desequilíbrios humorais (excesso ou falta de
pena prestar atenção no que ele tinha a dizer.
um dos quatro humores relacionados aos quatro temperamentos); o médico-astrólogo determinava o
A parte mais importante do texto não é a descrição em
excesso ou a falta (usando a astrologia e a observação
si (eu poderia dar inúmeros exemplos de exceções com
do paciente, incluindo não só seus sintomas e aparência
relação a relação entre o temperamento e ser gordo
física, mas também suas fezes e, principalmente, sua
ou magro, por exemplo), mas a ênfase em aspectos
urina) e tentava corrigir o desequilíbrio profundo. Se
corporais, físicos. Temperamento não é humor no
possível, tratava também dos sintomas.
sentido corrente da palavra, nem personalidade.
É claro que, escrevendo do ponto de vista médico, e
Vamos, então, ouvir o amigo preferido dos renomados
tendo como base a população da Inglaterra na época,
eruditos ingleses, Dr. Reason (Razão) e Dr. Experience
Culpeper exagera e simplifica algumas coisas (e cai no
(Experiência).
erro comum de atribuir valor moral aos temperamentos,
SINAIS INFALÍVEIS PARA DISCERNIR A COMPLEIÇÃO DE QUALQUER PESSOA2 [Coléricos]
que ele pode digerir mais do seu apetite exige; seu pulso é acelerado e forte, sua urina amarela e rala;
O homem colérico, na maior parte das vezes, é
com relação à sua digestão, eles normalmente
pequeno e de baixa estatura; o que se dá (suponho)
sofrem de prisão de ventre; sonham com fogo, bri-
por motivo da escassez de vapores engendrados, ou
gas e raiva, relâmpagos e aparições terríveis no ar,
porque a umidade radical pela qual é sustentada a
por causa dos vapores quentes e secos que sobem
virtude nutritiva e vegetativa é, pela operação do
do estômago para a cabeça, que perturbam o cére-
calor e da secura fortes, atraída para o centro, onde
bro e a virtude imaginativa.
é parcialmente consumida; da mesma forma que o fogo (que é a natureza da cólera) atrai a umidade
Sinais de um homem colérico/melancólico.
para si e a seca.
OUTUBRO 2013
Homens coléricos/melancólicos possuem esta-
30
As superfícies e as partes extremas não se esten-
tura maior do que os coléricos, porque neles o
dem no comprimento, nem se tornam grandes
calor violento é mais desleixado e preguiçoso, de
ou gordas, por causa da falta de umidade natural
modo que são engendrados mais vapores e a umi-
(assim como em pessoas idosas, nas quais a umi-
dade radical é menos destruída; no entanto, eles
dade radical se degradou), nem crescem mais; sua
têm o corpo pequeno e magro por causa da secura,
pele é áspera e quente ao toque, seu corpo peludo,
com a pele áspera e dura, moderadamente peludo
sua cor está entre amarelo e vermelho, com um
e de temperatura moderada ao toque; sua cor é
certo brilho de fogo; essas pessoas cedo apresentam
pálida, tendendo à cor do enxofre, pois há uma
barba, e seus cabelos são vermelhos ou castanho-
certa amarelidão; não criam barba tão rapidamente
-avermelhados. Com relação às suas condições,
quanto os coléricos, e a cor de seu cabelo é ruiva
eles são naturalmente sagazes, ousados, desa-
ou castanha-clara. Com relação às condições ou
vergonhados, furiosos, apressados, briguentos,
inclinações naturais dessas pessoas, eles não são
irados, fraudulentos, resolutos, arrogantes, cora-
tão sagazes, ousados, furiosos, briguentos, fraudu-
josos, deselegantes, cruéis, astutos e inconstantes;
lentos, pródigos, resolutos e corajosos quanto os
de movimento leve, zombeteiros, escarnecedores,
homens coléricos, nem tão deselegantes, incons-
vivos e bajuladores; seus olhos, pequenos e fundos.
tantes, bajuladores, e desdenhosos quanto eles;
A virtude de cocção neles é muito forte, de modo
no entanto, são desconfiados, irritáveis, avarentos
___________________________________________________
2. [Astrological Judgment from the Decumbiture of the Sick, Enlarged, Livro 2, página 143] Embora “compleição” e “temperamento” não sejam sinônimos, Culpeper não é o primeiro autor a utilizar os termos como se fossem intercambiáveis. Compleição é a aparência; o temperamento influencia a aparência, mas é mais básico e mais abrangente que ela.
e mais solitários, estudiosos e curiosos do que os
ao toque, eles possuem pouco ou nenhum pelo no
coléricos, e retêm durante mais tempo sua raiva.
corpo e são longos, às vezes sem barba; a cor dos
A virtude da digestão nessas pessoas é moderada-
seus cabelos é escura. Com relação às suas condi-
mente forte, e seu pulso é mais fraco e mais rápido
ções, são naturalmente gananciosos, amantes de si,
do que nas pessoas coléricas; sua urina é amarela
amedrontados sem causa aparente, pusilânimes,
e rala, e eles sonham com quedas de lugares altos,
solitários, cuidadosos, grosseiros, dificilmente
roubos, assassinatos, danos vindos do fogo, brigas,
estão alegres ou rindo, são resolutos, teimosos,
raiva e coisas assim.
ambiciosos, invejosos, irritáveis, obstinados em
Homens melancólicos possuem estatura mediana e raramente são muito altos.
suas opiniões, de uma cogitação profunda, desconfiados, acabrunhados com pesares da mente e imaginação aterrorizantes (como se estivessem infestados de espíritos do mal) e são muito rancorosos, curiosos, melindrados, e ao mesmo tempo desleixados, esnobes e de comportamento majestático, e retêm sua raiva durante muito tempo; a virtude da cocção neles é muito fraca; no entanto,
Sinais de um homem melancólico/colérico
eles têm um apetite muito bom para sua carne. Sua urina é pálida e medianamente espessa. Eles
Homens melancólicos/coléricos são altos, porque
sonham com coisas pavorosas, visões terríveis e
o calor natural é fraco e, portanto, são engendra-
escuridão.
dos muitos vapores, mas eles ainda são pequenos e magros de corpo, devido à secura; assim, sua pele é
Sinais de um homem melancólico sanguíneo
áspera e dura, e fria ao toque; eles possuem muito pouca pele no corpo e são imberbes, em razão do
Homens melancólicos/sanguíneos são mais altos
frio que interrompe a passagem pelos poros, que
do que os melancólicos; pois, neles, o calor natural é
não recebem a matéria da qual o pelo é formado
moderado; portanto, os vapores e a umidade radical
antes de sair. Eles também têm muito excesso de
são gerados sem exageros. São, portanto, media-
matéria no nariz; sua cor é pálida, um pouco escu-
namente altos, carnudos e de corpo firme; sua cor é
recida. Com relação às suas condições, são gentis,
um vermelho escuro, sua pele não é nem dura nem
dados à sobriedade, solitários, estudiosos, inde-
áspera, mas moderada tanto no calor quanto na
cisos, avaros, modestos, timoratos, teimosos,
suavidade, nunca muito peludos. Eles desenvolvem
irritáveis, pensativos, constantes e verdadeiros
barba por volta dos 21 anos de idade; com relação
em suas ações, de cogitação profunda e resolu-
à sua condição, são mais liberais, ousados, alegres,
ção lenta, e esquecimento; seu cabelo é marrom e
menos teimosos e não tão pusilânimes, solitários
fino, sua digestão fraca e menor que seu apetite,
e pensativos quanto os melancólicos, nem tão afli-
o pulso fraco e lento, sua urina subcitrina e rala.
gidos com imagens terríveis quanto eles; também
Eles sonham com quedas de lugares altos, sonhos
são gentis, sóbrios, pacientes, verdadeiros, mise-
apavorantes e assuntos variados sem importância.
ricordiosos e afáveis; para concluir, pois, como esta compleição é de qualidade moderada, ela apresenta
Sinais de homens melancólicos
condições benéficas, pois a virtude é a média entre dois extremos. Sua urina é da cor do açafrão, só
Homens melancólicos possuem estatura mediana
que mais claro, e de substância média; seu pulso
e raramente são muito altos, pois o excesso de frio
é de movimento moderado; eles têm sonhos agra-
retém a substância e não permite que ela se alargue
dáveis que muitas vezes correspondem à verdade;
no comprimento; embora a melancolia seja seca,
sua digestão é moderadamente forte.
eles são pequenos e magros de corpo, e a razão é Sinais de um homem sanguíneo/melancólico
drado muito excesso, o que, de alguma forma, acalma a secura, pois os homens melancólicos são
Homens sanguíneos/melancólicos são de estatura
cheios de fleuma e matéria reumática. Sua cor é
média, com corpos bem compactos, com muitas
pálida esmaecida e escura, sua pele é áspera e fria
veias e artérias; carnudos, mas não gordos; sua
OUTUBRO 2013
(imagino eu) o excesso de frio, pelo qual é engen-
31
FILOSOFIA
pele é medianamente suave e quente ao tato; são
Sinais de um homem fleumático/sanguíneo
um tanto peludos, e desenvolvem barba cedo; a cor de seus cabelos é castanho escuro, suas boche-
Homens fleumáticos/sanguíneos são de estatura
chas vermelhas, ensombreadas com uma cor lútea.
mediana e um pouco gordos de corpo, com pele
Suas condições são bastante parecidas com as de
suave e macia e fria ao toque; seus corpos não são
um homem sanguíneo, mas não são tão liberais,
peludos, demoram a ter barba; seu cabelo é ama-
alegres, nem ousados, porque eles têm, por assim
relo claro ou cor de linho, liso e suave. Sua cor
dizer, uma pitada da inclinação das pessoas melan-
não é nem branca nem vermelha, mas na média
cólicas. Seus pulsos são fortes e cheios, a urina
entre ambos. Sua condição: nem muito alegres,
amarela e de substância média; eles sonham com
nem muito tristes; nem liberais nem avaros. Nem
covas fundas, poços e coisas assim; sua digestão é
muito ousados, nem muito medrosos, etc. A vir-
indiferente.
tude da digestão, neles, é um pouco preguiçosa e menor que seu apetite; seu pulso é baixo e fraco;
Sinais de um homem sanguíneo
eles sonham com fábulas variadas.
Homens sanguíneos têm forma mediana, corpos
Homens coléricos/ fleumáticos sonham com batalhas, conflitos, raios e água quente.
bem compostos, com membros maiores e mais carnudos, mas não gordos; veias e artérias grandes, pele suave; quente e úmido ao toque, corpo peludo, com barba precoce; sua cor é branca, misturada com vermelho nas bochechas; seu cabelo, na maioria das vezes, é marrom. Com relação à sua condição, são alegres, liberais, generosos, mise-
Sinais de um homem fleumático
ricordiosos, corteses, ousados na medida certa, verdadeiros, fiéis e de bom comportamento; coi-
Homens fleumáticos são baixos, pois, embora mui-
sas pequenas os fazem chorar; depois do choro,
tos vapores e excessos sejam produzidos em seus
nenhum outro pesar permanece em seus corações,
corpos, no entanto, por causa do frio, a substância
o que é o contrário do que ocorre com os homens
é restringida e impedida de se esticar no compri-
melancólicos, pois estes não conseguem chorar,
mento; no entanto, a umidade se desenvolve na
mesmo que seja em um assunto que os toquem de
largura, tornando-se corpulentos e gordos. Suas
perto, mas a cogitação do assunto fica impressa
veias e artérias são pequenas, seus corpos sem
em seus corações. O homem sanguíneo tem bom
cabelo; suas barbas são ralas e seu cabelo é cor
apetite e digestão rápida; sua urina é amarela e
de linho. Sua cor é branca, a pele é suave e fria
espessa, seu pulso forte; ele sonha com coisas ver-
ao toque. Com relação à sua condição, são len-
melhas e idéias agradáveis.
tos, pesados, preguiçosos, sonolentos, covardes, medrosos, avaros, amantes de si mesmos, lentos,
Sinais de um homem sanguíneo / fleumático
envergonhados e sóbrios. Sua virtude da digestão e seu apetite são bastante fracos (pela falta do calor
Homens sanguíneos/fleumáticos são mais altos
natural), seu pulso fraco e lento e sua urina pálida
que os sanguíneos, porque mais excessos são
e espessa. Sonham com água, etc.
produzidos em seus corpos e porque são, em substância, parecidos com os sanguíneos; seu cabelo é
Sinais de um homem fleumático/colérico
OUTUBRO 2013
da cor do linho ou ruivo claro, sua cor é averme-
32
lhada, mas não misturada como os sanguíneos.
Homens fleumáticos/coléricos são altos, não tão
Com relação à sua condição, são menos liberais,
corpulentos ou gordos quanto os fleumáticos, mais
mais tristes e menos ousados que os sanguíneos,
peludos e com barbas mais precoces. Seu cabelo é de
além de menos peludos. Sua urina é subcitrina e de
um ruivo claro, com alguma presença do amarelo;
substância média, seu pulso moderado, com bom
sua pele é moderada ao toque. Com relação à condi-
apetite e digestão indiferente. Eles sonham com
ção, são mais ágeis, mais ousados e mais gentis que
voar pelo ar e com cair de alguma montanha, ou na
os fleumáticos e não tão sonolentos nem preguiço-
água desde algum local alto, ou algo do tipo.
sos quanto eles, mas mais alegres e de inteligência
mais ágil. Sua face, na maior parte dos casos, é cheia de sardas e sua cor é branca, escurecida por um tom amarelo; seu apetite e sua digestão são indiferentes; seu pulso é moderado e cheio, sua urina é subcitrina e de substância média. Eles sonham com nadar na água, com neve ou com chuva. Sinais de um homem colérico/fleumático Homens coléricos/fleumáticos têm estatura média, são firmes e de corpo forte, nem gordos nem magrelos, com grandes pernas, pele peluda e moderada ao toque. Seu cabelo é amarelado, da mesma forma que sua cor. Sua condição não é muito diferente da dos homens coléricos, mas eles não são tão furiosos nem ousados quanto eles; nem tão pródigos nem tão astutos, porque a fleuma arrefece em alguma medida o calor da cólera. Sua digestão é perfeita, seu pulso rápido e sua urina da cor do açafrão e rala. Sonham com batalhas, conflitos, raios e água quente. Tradução por Marcos Monteiro
OUTUBRO 2013 33
FILOSOFIA
O lugar da lógica no pensamento aristotélico, Éric Weil Tradução do Capítulo II de “Essais et Conférences – Tome I” (1970)
A discussão chega na dialética. “No fundo, disse Hegel, esse não é nada mais que o espírito de contradição submetido a regras e formado pelo método, um espírito que prova sua grandeza na distinção entre o verdadeiro e o falso. — Se ao menos, interveio Goethe, essa capacidade e essas artes do espírito não fossem tão frequentemente mal empregadas e usadas para tornar o verdadeiro falso, e o falso verdadeiro. — Isso com certeza ocorre, respondeu Hegel, mas apenas com os homens que têm o espírito doente.
— ECKERMANN, Conversações com Goethe, 18 de outubro de 1827
E
m toda a obra de Aristóteles, tão rica em dificuldades para o intérprete, parece que os Tópicos levantam problemas particulares e particularmente perturba-
dores. O próprio Aristóteles não diz que a dialética, investigada por esses nove livros, opõem-se à argumentação científica? Por que então se estudou um assunto cujo interesse filosófico parece ser bem inferior ao dos Analíticos? Uma lógica do quase unanimemente ἔνδοξον – , que pode trazer
“provável”, do “plausível” – é assim que se traduz apenas no máximo informações de ordem histórica, indícios sobre os princípios do pensamento aristotélico, o reflexo último de um procedimento que, com Aristóteles e graças ao trabalho de Aristóteles, desaparece para ceder lugar ao ensinamento científico regulado com severidade pelas formas silogísticas e que segue com rigor a cor-
OUTUBRO 2013
rente da demonstração?
34
Além disso, os Tópicos passam facilmente como
caso: não somente o Liceu sempre recusou-se a
uma obra menor. Tal apreciação se justifica? Em
considerar a lógica (que é chamada de “lógica” a
todo caso, ela pressupõe que, do ponto de vista de
partir dos estóicos) como parte integrante da filo-
Aristóteles, há uma diferença incontestável e deci-
sofia; o próprio Aristóteles, tanto nos Analíticos
siva entre a dialética e a analítica. Incontestável de
como em outros lugares de sua obra, não parece
fato é: no entanto, talvez não seja decisiva quanto
prestar-lhe uma particular importância, e vê nela
ao valor das duas disciplinas. Por isso, os Analíticos
uma simples preparação, um método de apresen-
devem conter o verdadeiro método e os fundamen-
tação, ou um meio de verificação.
tos últimos da ciência. Ora, esse não parece ser o
Com efeito, a substância individual é aquilo que
tal questão . Mas, se é assim, como fica a superio-
recebe todas as determinações, mas o silogismo é
ridade da analítica sobre a dialética? A primeira se
incapaz de chegar até ela: e, se o universal é o único
ocupa de teses verdadeiras, enquanto que a segunda
objeto do conhecimento, a lógica é impotente para
estuda todas as afirmações “plausíveis”? Sem
provar a verdade da definição que capta esse uni-
dúvida: mas isso acarretaria uma diferença essen-
versal; ela trata, enfim, dos fundamentos últimos,
cial entre o caráter de uma e de outra? Ambas são
mas do νοῦς, o qual é essencialmente distinto do
igualmente formais, ambas aplicam uma técnica
pensamento discursivo e infinitamente acima
do silogismo como seu instrumento principal: são
dele. Aristóteles também não hesita em decla-
elas, então, separáveis entre si no mesmo sentido
rar que não se devem levantar problemas lógicos
em que a maioria dos comentadores modernos não
quando se trata de uma questão metafísica: são
só as separa, como as opõe?
dos princípios, que não são próprios do discurso,
que não depende do conteúdo, ambas se servem
questões cujo conhecimento deve-se ter adquirido anteriormente . E quando se tem de explicar o
As respostas sugeridas por essas perguntas são tais
que, segundo Aristóteles, é o erro fundamental de
que não será sem proveito invocar o testemunho
Platão, a saber, a teoria das idéias, ele retorna his-
de um comentador antigo, de uma importância
conceito universal (καθολον) e as definições: é por-
dificilmente contestada ou contestável. Eis o que
toricamente à empreitada socrática, que buscava o que Platão atribuiu uma importância exagerada ao
escreve Alexandre de Afrodísias no prefácio de seu comentário aos Tópicos :
que nós podemos chamar de domínio lógico que ele acabou separando os conceitos das coisas sensíveis
“Assim como as técnicas, na medida em que elas
. — Ademais, frequentemente observou-se que a
são técnicas, não se distinguem entre si senão pela
analítica se serve sobretudo de exemplos mate-
diferença da matéria com a qual se ocupam e pela
máticos, e que o ideal de ciência que ela descreve
maneira de seu emprego, do mesmo modo elas rece-
é o das matemáticas: teríamos direito de negli-
bem suas distinções, e como uma é a do carpinteiro,
genciar essa particularidade, a qual, no entanto,
outra a do pedreiro, e assim por diante, assim também
adquire grande peso se quisermos ter bem em
é com os silogismos [...] Os silogismos não se distin-
conta as breves reservas feitas por Aristóteles em
guem segundo sua forma [...] eles se diferem segundo
toda ocasião que diz respeito ao valor cognitivo das
sua matéria”.
matemáticas?
Se é assim, como fica a superioridade da analítica sobre a dialética?
Nada nos textos aristotélicos contradiz essa interpretação, e na verdade todo o primeiro livro dos Tópicos a apóia. É verdade que a filologia moderna vê nos Tópicos uma obra composta: especificamente os livros I e IX, que claramente têm por fim dar à teoria da
mínimo não pode ser tomada como óbvia. É, pelo
dialética um lugar na totalidade dos escritos lógi-
contrário, um segundo postulado que faz com que
cos, são declarados tardios com relação aos outros
se interprete a analítica como uma ciência norma-
livros por um conhecedor tão qualificado quanto H.
tiva? Acaso é evidente que a teoria do silogismo
Maier . É também verdade que o emprego do termo
fornece um código do pensamento correto? Código
“silogismo” é raro no livro II até o VII. Ademais,
da correta apresentação, cânone da lição dogmá-
Alexandre de Afrodísias (ou a nota de um outro
tica, sem dúvida; mas mais um critério do trabalho
autor que foi inserida em seu Comentário) nos
feito do que a receita do trabalho a se fazer, um
transmite uma opinião antiga segundo a qual o pri-
método destinado a descobrir os erros, não um
meiro livro deveria ter por título não “Tópicos”, e
procedimento para descobrir a verdade. A demons-
sim “Introdução aos Topoi” . Mas concordamos com
tração toma seus princípios das ciências concretas,
tudo nessa tese: ela implica apenas que Aristóteles,
e também é delas que extrai seus assuntos e pro-
após ter elaborado a teoria do silogismo e da
blemas, bem como são elas ainda que determinam
demonstração, teria incluído um escrito anterior e
qual o rigor que pode ser exigido no tratamento de
o teria tratado como suficientemente importante
OUTUBRO 2013
Parece, então, que essa primeira pressuposição no
35
FILOSOFIA
para refazê-lo e posicioná-lo relativamente às suas
esses “princípios”? Como encontrar, por exemplo,
descobertas recentes .
a definição que tem um papel tão importante na demonstração e no silogismo? Por silogismo ou por
Mas não há aí implícito no desprezo pelos Tópicos
demonstração? Aristóteles explica detidamente
uma má compreensão de ordem filosófica, e não se
no décimo livro dos Analíticos Posteriores que isso é
distingue a teoria científica em si mesma da teo-
impossível. Como então captar os princípios? Eles
ria não-científica como duas técnicas que, do ponto
não são provados: são eles que fundam as provas ;
de vista de Aristóteles, são igualmente científicas,
também deve-se tomá-los na experiência para as
ainda que o assunto de uma seja a ciência (for-
ciências particulares, ou ainda, quando se tratam
maliter) e o da outra o diálogo, científico ou não?
dos princípios últimos (ou primeiros), remete-se
A teoria analítica trata do raciocínio científico, a
não mais ao discurso, mas à intelecção, à capta-
teoria da dialética volta-se para o raciocínio no
ção imediata . Mas é isso realmente suficiente?
diálogo, o qual, podendo ser ou não ser verdadeiro,
Possuímos, então, uma indicação precisa que nos
não é necessariamente de acordo com as regras que
possibilita a distinçao entre o verdadeiro e o falso?
se toma: mas em que uma diferença entre os obje-
A experiência não tem mais necessidade da legi-
tos das investigações pode fundar uma diferença
timação científica para ser reconhecida em sua
de validade entre as investigações mesmas? Se este
função como fonte de princípios? E como saber se
fosse o caso, como explicar que Aristóteles haja consagrado os tratados que ele mesmo qualifica
a designação de νοῦς é autêntica ou não?
de científicos à moral, que não conhece precisão
Conhece-se a resposta de Aristóteles dada à segunda
absoluta , à retórica, à poesia?
pergunta: a ciência de fato existe, e há então um
***
espirito possa se deter (στῆναι) . Bastará então des-
fim à série recorrente, e o ἐπίστασθαι faz com que o cobrir as verdades cuja negação tornaria o discurso
A verdadeira dificuldade, no entanto, longe de ser
indeterminado, isto é, interminável. Conhecemos
resolvida, não está nem ainda apresentada. Uma
também a resposta à primeira pergunta. Como o
vez admitido o que decorre das reflexões preceden-
trabalho científico pode progredir, basta encontrar
tes, a saber, que os Tópicos devem ser considerados
o assunto próprio à ciência a ser constituída, limitar
como um tratado científico da mesma forma que os
o caráter genérico e designar as diferenças específi-
Analíticos, os quais, mesmo que tivessem sido redi-
cas no interior do campo assim descrito.
gidos cedo na carreira de Aristóteles, formam, para o próprio Aristóteles, parte integrante de sua obra,
Podemos nos contentar com essas indicações? Elas
que o valor desse trabalho não pode então ser posto
bem nos dizem o que se deve fazer, mas permane-
em dúvida se ao menos o apreciarmos do ponto de
cem mudas a respeito de qual o caminho a seguir
vista do seu autor, permanece a questão de saber
e o método a se aplicar. O que muito mais tarde se
qual é concretamente seu valor.
chamará de logica inventionis designa um problema, não somente do aristotelismo , mas também para
Para responder, vejamos a teoria da demonstração
o próprio Aristóteles. Os capítulos 27 a 30 do pri-
científica (a qual, evidentemente, não temos a pre-
meiro livro dos Analíticos Anteriores levantam a
tensão de analisar aqui, nem mesmo de captá-la
dificuldade (43 a 20ss): “Devemos agora descre-
em seu caráter essencial, mas observando que, no
ver como podemos sempre obter silogismos para
caso de nossa interpretação da função dos Tópicos
uma dada questão, e de que forma podemos assu-
não ser falsa, o sentido dos Analíticos em si será
mir os princípios acerca de cada questão, pois
afetado).
talvez não basta só considerar a gênese dos silo-
OUTUBRO 2013
gismos, como também ser capaz de formá-los”.
36
A demonstração parte de princípios conhecidos
Precisamos então buscar os elementos da defini-
por si mesmos, próprios à ciência em questão: há
ção, os atributos essenciais, o gênero e a espécie,
um silogismo quando, de certas coisas afirmadas,
a compossibilidade ou a incompatibilidade de atri-
outras coisas resultam necessariamente .
butos, as consequências e os pressupostos contidos nos termos, o essencial e o inessencial com relação
Mas como encontrar essas “coisas afirmadas”,
ao assunto. Mas isso ainda não é, propriamente
falando, um método, é só a descrição – e Aristóteles
interessantes em vários sentidos, desses livros
o diz: “Mostramos de uma maneira geral como se
II a VII dos Tópicos, que contêm esse arsenal de
devem escolher as premissas. Abordamos isso com
armas dialéticas. O que nos interessa é outra coisa,
precisão e de maneira elaborada em nosso tratado
a saber, o fato de que, visto sob esse ângulo, os
sobre a dialética.”
Tópicos não constituem, como frequentemente
Os Tópicos constituem o complemente essencial dos Analíticos, complemento sem o qual silogismo algum poderia ser formado concretamente.
se disse, uma forma “primitiva” ou “inferior” da lógica aristotélica, mas são, ao contrário, ao mesmo tempo o começo da reflexão analítica e o termo ao qual essa reflexão é obrigada a levar se pretende render seus frutos. Sem a tópica, não há a matéria do silogismo: tomado assim, os Tópicos são – filosoficamente – anteriores aos Analíticos; sem conhecimentos tópicos, não há utilidade alguma no silogismo: e, nesse sentido, os Tópicos constituem o complemente essencial dos Analíticos, complemento sem o qual silogismo algum poderia
O tratado sobre a dialética onde se deve encon-
ser formado concretamente. Em suma, os Tópicos
trar esse método são os Tópicos – disso nunca se
constituem a reflexão sobre o discurso em geral,
duvidou. E, de repente, obtivemos uma informa-
no interior do qual se distingue a reflexão sobre o
ção decisiva sobre a função desse tratado: ele deve
discurso científico no sentido estrito do termo .
conter a logica inventionis que era necessária, e Assim, o que nós adiantamos mais acima agora
Ele deve conter um repertório de lugares nos quais
vemos confirmado. No entanto, essa posição está
encontramos os argumentos pertinentes à desco-
tão distante das posições tradicionais – segundo
berta de premissas úteis para a construção de um
as quais os Tópicos aparecem como a parte menos
silogismo ou para a destruição crítica de um silo-
importante, e não a mais importante de todo o
gismo proposto, os lugares indicados para o ataque
Órganon –, que será útil fornecer algumas provas
ou a defesa, os esquemas completamente gerais e
suplementares, nem que seja para mostrar que
formais, aplicáveis a qualquer questão, sem tomar
nossa concepção dos Tópicos (e da ciência tópica)
em consideração as diferenças genéricas ou espe-
está de acordo com as afirmações e a prática do
cíficas que separam os objetos tratados.
Estagirita.
Os livros II ao VII formam como que um mapa
Sobre a prática, nós podemos passar rapidamente.
detalhado desses lugares. Mas a obra contém,
Pois sempre se notou que os escritos científi-
além disso, reflexões fundamentais sobre o que
cos de Aristóteles são extremamente pobres em
se chamará mais tarde de predicáveis, os pontos de
silogismos formais, tão pobres que muitos dos
vista (topoi) gerais válidos para todo juízo, e que
comentadores montaram em suas paráfrases os
diferem das categorias, que são relativas às subs-
raciocínios formalmente corretos que o mestre
tâncias e ao que é enunciado delas. Nós buscamos
não se preocupara em fornecer. Por outro lado,
do lado da definição, do predicado essencial e pró-
é um traço marcante que, nessas mesmas obras,
prio, da espécie e do gênero, do acidente – eis o
Aristóteles começa por uma história do problema
que ensinam os Tópicos –, asseguramo-nos de que
para o qual ele deseja se voltar. Mas o que é essa
a identidade enunciada permanece uma identidade
doxografia tão característica do Liceu, senão a
após o emprego de todos os critérios tópicos, que
aplicação das regras da crítica às premissas histo-
a expressão empregada está correta e que, sobre-
ricamente propostas? Ela é, propriamente falando,
tudo, ela não esconde um sentido duplo, uma
o emprego da técnica tópica em vista de uma
sinonímia : é assim que, depois de fazer passar a
investigação sobre a verdade das opiniões dos pre-
tese por todos os lugares dialéticos, nós podemos
decessores, sobre a validade das teses correntes.
ir adiante até os problemas do conhecimento real.
Em oposição ao moderno historiador da filosofia, Aristóteles jamais investigava o que essas teses
Não temos a intenção de entrar nos detalhes,
significavam para seus antecessores, e sim se essas
OUTUBRO 2013
contê-la sob uma forma inteiramente elaborada.
37
FILOSOFIA
doutrinas eram ou não verdadeiras. E ele não fazia
Também lhe parece justo pedir aos seus ouvintes
isso para mostrar sua própria superioridade ou o
uma certa indulgência para com os possíveis erros
caráter ultrapassado dessas teorias; ele fazia isso
de seu curso, e uma “enorme gratidão” para com as
porque, segundo ele, não havia outro princípio de
descobertas que ele expôs .
investigação; todo ensinamento, toda ciência discursiva nasce de conhecimentos pré-existentes . O método realmente empregado por Aristóteles é então aquele que descrevem os Tópicos, se tomarmos como método o único sentido que ele pode ter em filosofia, de procedimento da descoberta dos problemas – não, das soluções –, problemas colocados pelo filósofo na e através de sua vida humana. Esta é a prática de Aristóteles, e é o que nos diz seu ensinamento a respeito do método:
Por mais capaz que seja de verificar a coerência de um argumento, a analítica deve renunciar a discutir a verdade de suas premissas; ela é obrigada a pressupô-las.
nada poderia ser mais explícito a esse respeito que o final dos Tópicos.
Se, na esteira de H. Maier, quisermos manter em
OUTUBRO 2013
face desse texto a tese que faz dos Tópicos uma
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O livro IX, citado com o título Das refutações sofís-
obra de juventude, devemos compreender aqui o
ticas, termina por uma lição na qual Aristóteles se
termo silogismo num sentido não técnico (ou num
expressa, com um orgulho e uma arrogância que
sentido restrito, como propõe Solmsen). Mas essa
não se vêem em nenhum outro lugar em suas obras,
solução repousa com toda evidência sobre um cír-
sobre a importância e originalidade de suas investi-
culo vicioso: para sustentar que o termo silogismo
gações no domínio da dialética. “Nós nos havíamos
não possui aqui seu sentido preciso, em primeiro
proposto”, diz ele, indicando com isso que essa
lugar se deveria assegurar que a obra foi redigida
conclusão se refere à totalidade da obra, “inventar
no começo da carreira de Aristóteles – e, para pro-
uma possibilidade e oferecer a capacidade de for-
var que foi o caso, deveria-se, por outro lado, saber
mar silogismos sobre um assunto proposto a partir
que o emprego do termo aqui é mais amplo (ou
de teses aceitas e à nossa disposição”. Aí está essa
mais restrito) do que em outros lugares. Não seria
técnica, completamente desenvolvida em todos
mais simples e mais salutar supor que os Tópicos
seus detalhes e em todas suas partes essenciais.
são verdadeiramente o que Aristóteles disse a seu
Ora, afirma, Aristóteles – e não vemos razão para
respeito: seu trabalho lógico mais original, mais
duvidar –, enquanto todos os outros conhecimen-
útil, mais fundamental, dentro do qual o método
tos são formados pouco a pouco, por um insensível
dos Analíticos se distingue, como método particu-
acréscimo a partir de começos insignificantes,
lar, do método geral, sem o qual aquele seria ao
neste próprio caso presente ele se viu obrigado
mesmo tempo incompreensível e inaplicável? É
a fornecer ao mesmo tempo os fundamentos e a
graças aos tópicos que se aprendem a encontrar
construção: “Sobre essa investigação, não se pode
os silogismos, que se podem prover argumentos,
dizer que ela havia sido em parte preparada, e em
que se aprende o valor das teses pré-existentes de
parte não; não havia nada”. Havia sim os rendi-
onde parte toda investigação, que se distinguem os
mentos dos sofistas que trabalhavam por dinheiro;
riscos que o raciocínio corre, que se vê a impor-
mas eles não transmitiam ao seus discípulos senão
tância do raciocínio corretamente conduzido. É
a arte de enganar, a aprender de cor, e coisas que
verdade que a analítica trata apenas do verdadeiro:
só servem para surpreender. “ Eles imaginavam
mas, sem a ajuda da técnica tópica, ela é incapaz
formar seus alunos fornecendo-lhes os resultados
de encontrá-lo na multidão de teses contraditórias
da técnica, sem lhes transmitir nenhuma ciência
que em sua situação histórica espalham-se à sua
técnica”. Para a retórica, Aristóteles encontrou
frente. Sem dúvida, ela pode verificar a forma do
muitos indícios, mas no que concerne ao raciocí-
raciocínio, ela pode indicar as condições formais
nio silogístico, “não tínhamos nada para contar
exigidas para que uma conclusão seja correta: mas
depois de ter investigado por muito tempo (empi-
é, em última análise, para a tópica que as assinala,
ricamente), com muita dificuldade e aplicação”.
sem a qual ela não pode escolher seus pontos de
partida. Por mais capaz que seja de verificar a coe-
contra Aristóteles substituiu o seu ensinamento
rência de um argumento, a analítica deve renunciar
por uma outra teoria) e contra um aristotelismo
a discutir a verdade de suas premissas; ela é obri-
mais distante do ensinamento daquele que esse
gada a pressupô-las.
mesmo aristotelismo venerava como seu mestre, toda reflexão sobre o pensamento antigo parte de
Não é preciso dizer que a tópica, sobretudo ela, não
Platão. Ora, Aristóteles, mesmo sendo – e perma-
contém como critério último a verdade. Ela tam-
necendo – discípulo de Platão, difere dele sobre
bém é somente formal, no sentido em que aplica
pontos tão fundamentais que há um risco de cair
indistintamente seus processos a qualquer afir-
em graves contra-sensos ao se tomar os mesmos
mativa: a verdade está no conhecimento intuitivo,
termos com o mesmo sentido nos dois auto-
seja na sensação, seja na intelecção. Mas a tópica
res. Provavelmente, para Aristóteles como para
ensina – e este é seu imenso valor – a maneira de reduzir toda tese ao irredutível, colocando face
Platão, a δόξα é um modo inferior e insuficiente
do conhecimento, e quem se funda sobre ele pos-
a face as afirmações historicamente dadas e as
sui grandes chances de se enganar e de se deixar
categorias da ciência que versa sobre aquilo que
enganar. E, ainda mais provavelmente, Platão, no
é enquanto é: substância, gênero, espécie, quali-
curso de sua evolução filosófica, veio a reconhecer
dade característica, acidente, – desmascarando
um certo valor positivo na “opinião verdadeira”.
os mal-entendidos e as confusões com o auxílio
Mas é só no pensamento aristotélico que a opi-
de uma análise das definições fundadas, no fim
nião se separa das opiniões, como a crença vulgar e
das contas, sobre a ontologia – pesando o valor do
vaga, das teses aceitas e plenas de autoridade gra-
atributo dado como característico e averiguando
ças ao consenso de todos os homens qualificados
a distribuição em gêneros e espécies. É ela que
segundo a convicção do vulgo, e que possuem, por
permite formular, a partir do saber que a huma-
isso, um pré-julgamento favorável, porque elas
nidade possui em um dado momento, as questões
condensam a experiência da humanidade . Para
que deve ser feitas à realidade e encontrar as teses
Platão, a visão direta da essência é sempre possí-
verdadeiras a partir das quais a demonstração for-
vel, ainda que veja as dificuldades com uma clareza
malmente coerente pode realizar um trabalho útil
cada vez maior. Para Aristóteles, está excluído o
e duradouro.
recurso às idéias e aos números ideais, e o verdadeiro ser concreto deve ser buscado nos dados do
***
sentido – que o discurso trai, porque ele necessariamente generaliza – e na intuição do intelecto,
Mas, para ter sucesso, não basta sustentar nossa
que, no entanto, oferece sempre apenas certe-
tese conforme os argumentos apropriados; deve-
zas sem conteúdo particular, princípios que não
mos ainda indicar de que modo pôde ganhar crédito
se cumprem senão no curso da observação. Para
a tese oposta e corrente.
adquirir a ciência, no meio-caminho entre ambos, a indução então é mais importante do que a dedu-
Nós já tocamos em uma das razões do desprezo
ção silogística: “A indução convence mais, é mais
que sofrem os Tópicos: uma ciência do raciocínio
evidente, mais cognoscível segundo a sensação e é
científico parece mais científica que uma ciência
mais comum ao conjunto dos homens; o silogismo
do raciocínio em geral. Mas há outras razões, tal-
constrange mais e possui maior força diante dos
vez mais influentes, entre as quais as principais
controversistas .” Ocorre o mesmo na caminhada
do sentido da palavra ἔνδοξον e da função da δόξα
até os princípios primeiros que, uma vez conhe-
em Aristóteles ; a interpretação equivocada da
somente após um longo trabalho de investigação,
relação entre a dialética e a silogística; e um des-
impõem-se irresistivelmente e sem nenhuma
prezo quanto à prática do diálogo nas escolas da
outra mediação: só é preciso dar uma olhada no
Academia e do Liceu. Nós tentaremos detalhar
último capítulo dos Analíticos Posteriores, que, de
esses três pontos.
uma forma magistralmente compacta, expõe a
parecem ser três: um mal-entendido a respeito
cidos, mas, humanamente falando, conhecidos
1. Depois da reação moderna contra a física aris-
tos, primeiro em si, depois para nós e segundo a
totélica (pois é só neste domínio que a revolta
ordem da aquisição – basta considerar esta única
OUTUBRO 2013
caminhada do conhecimento até seus fundamen-
39
FILOSOFIA
frase : “Parece, então, que para nós é necessário
não se engana quando reduz a importância dos
conhecer os primeiros (princípios) por indução;
homens célebres àquela que eles recebem do con-
pois a própria sensação introduz desse modo o uni-
sentimento do grande público: eles não seriam
versal em nós.” O recurso à indução, à observação,
célebres sem esse reconhecimento de seu valor por
às coisas dadas, não à via direta das substâncias por
todo mundo .
detrás das coisas, eis a regra e a lei da ciência – e eis também porque a opinião é, por um lado, como em
A tópica não é uma lógica do provável ou da veros-
Platão, o domínio do erro, mas, por outro lado, ao
similhança: ela é a técnica científica que permite
mesmo tempo se converte no único plano sobre o
examinar as teses propostas, prováveis ou plau-
qual se mostra a verdade, a verdade detectável nas
síveis por sua posição na vida intelectual da
opiniões doutrinais, logo que estas são submetidas
comunidade, mas que precisamente com o auxílio
ao exame desse tópico que é essencialmente (mui-
de tal exame podem acolher a prova científica de
termos) a πειραστική .
sua verdade. A tópica não é uma lógica do veros-
A tópica não é uma lógica do verossimilhante, do plausível, da opinião; ela constitui uma técnica para extrair do discurso a verdade discursiva, mais precisamente para eliminar o falso, a partir dos conhecimentos anteriores sem os quais, para Aristóteles, não se conhece ciência alguma.
cursiva, mais precisamente para eliminar o falso, a
tos são os lugares onde Aristóteles reúne os dois
similhante, do plausível, da opinião; ela constitui uma técnica para extrair do discurso a verdade dispartir dos conhecimentos anteriores sem os quais, para Aristóteles, não se conhece ciência alguma. 2. Como segunda causa de mal-entendidos, mencionamos uma concepção equivocada das relações entre a dialética e a analítica. Várias de nossas observações anteriores já ilustraram esse ponto: se há uma subordinação entre as duas, a dialética deve ser considerada como englobando a analítica; ademais, se uma das duas fosse ciência, a outra o seria igualmente e sob o mesmo aspecto. Nós não iremos voltar a isso. Mas ainda nos resta aprofundar o problema do caráter científico da lógica aristotélica, este último termo tomado em seu sentido mais amplo, compreendendo ao mesmo tempo a analítica e a tópica. E, então, o fato histórico de que Aristóteles e sua
Não devemos, então, introduzir o termo opinião na
escola não consideraram a lógica entre as partes
interpretação das teses tópicas: o leitor e o intér-
do sistema (é verdade que nos próprios Tópicos
prete modernos não podem evitar lhe emprestar
Aristóteles distingue as proposições e os pro-
a nota pejorativa que ele comporta com Platão (e
blemas dialéticos em éticos, físicos e dialéticos
com Aristóteles, quando opõe opinião e ciência); e não devemos falar de teses “prováveis” ou “plauda tópica, e sim traduzir ἔνδοξα por “teses difundideixar a palavra com o sentido que Aristóteles lhe
– porque ela é universal e indistintamente utili-
das”, “teses correntes”. Em suma, é indispensável deu: “Teses difundidas, isto é, aquelas que são reconhecidas por todo mundo, ou pela maioria, ou
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aqui da organização da realidade e do sistema das ciências) , esse fato deve ser levado bastante a
síveis” para significar o termo que designa as teses
40
– λογικαί – mas, com toda evidência, não se trata
pelos sábios, seja por todos, seja pelos mais conhe-
filosofia, esse ὄργανον, não possui verdade própria
sério. Ele mostra que a lógica, essa ferramenta da
dos da ontologia; a lógica é τέχνη, método cienzável – e não possui princípios que se distingam
tífico, não qualquer que seja, mas precisamente
cidos e os de reputação mais difundida ”. Trata-se
porque ela é a projeção da verdade ontológica, da
do saber da humanidade em um dado ponto de sua
verdade imediata e evidente, sobre o plano do dis-
história, no momento em que uma nova investi-
curso, onde essa verdade não é atingida, mas resta
gação é empreendida – e Alexandre de Afrodísias
sempre por atingir. É em razão do seu formalismo
que a lógica aristotélica está excluída da filosofia
Aristóteles especifica. O professor, em primeiro
e ao mesmo tempo está ligada a ela necessaria-
lugar, ignora seu papel se ele lança perguntas:
mente, a tal ponto que toda ciência se constrói
seu papel é fazer ver a verdade, sem ter recurso
pelo intermediário, pela mediação do discurso que,
à colaboração do auditório . A tentativa dialética,
no entanto, não a encerra, e a tal ponto que o Ser,
exercício da mais alta utilidade para a filosofia –
o qual, enquanto tal, não se exibe nela, não pode
aos olhos de Aristóteles, a técnica que consiste
exibir-se senão por sua intervenção.
em formular perguntas, em encontrar os lugares de ataque e em arranjá-los em boa ordem em seu
por outro, se apresentam como duas τέχναι, dois
próprio espaço, é comum ao filósofo e ao dialético
procedimentos humanos servindo à descoberta
com a condição de que ele se desdobre: se não se
do que é, e, para ser mais exato, destinadas a per-
encontra um interlocutor, deve dirigir as objeções
mitir ao que é se revelar numa visão que, para ser
a si próprio . A relação entre filosofia e dialética
realmente verdadeira, deve ser imediata, a dife-
é, então, aquela de uma afinidade técnica essen-
rença entre as duas deve ser determinada sobre o
cial, se ao menos considerarmos as duas não como
plano técnico. Ora, sobre esse plano, sua diferença
entidades existentes à parte, num lugar suprace-
é, segundo Aristóteles, a que há entre o curso do
lestial, mas como atividades de homens viventes .
ensinamento dado pelo professor e a discussão
Não há relações de outro modo entre o diálogo e o
levada em comum. Ou, para dizer de outro modo, a
exame crítico: exigem-se dois homens qualificados
diferença entre o monólogo e o diálogo científicos.
e de boa-fé para levar a cabo o esforço em comum do
Se é assim, se a tópica, por um lado, e a analítica,
—, pode ser levada a cabo pelo pensador sozinho,
diálogo . O que distingue a peirástica do diálogo é Toda prática da ciência pressupõe, na opinião de
que a dialética torna-a uma técnica científica que
Aristóteles, ao menos dois interlocutores. O mes-
encontra no teste o seu emprego. Todos os homens
tre e o discípulo formam uma primeira dupla:
adoram disputar e atacar os que professam uma
aquele, sem ter em conta as convicções deste,
opinião, e mesmo o povo sem formação serve-se
desenvolve sua argumentação a partir dos prin-
de algum modo das técnicas do diálogo e do teste,
cípios específicos da sua ciência, e este escuta o
da dialética e da peirástica: o verdadeiro dialético é
mestre, prestando-lhe confiança; uma segunda
aquele que procede ao teste segundo as regras da
dupla é constituída por dois homens que, em con-
técnica silogística . A técnica analítica, empregada
junto, detectam, a partir das opiniões correntes,
no teste de uma tese comumente aceita, ou cele-
as contradições escondidas no discurso humano
brada por outras razões, um teste empreendido
(e determinam, assim, as aporias que terão de
como esforço comum por dois (ou mais) homens
ser resolvidas); uma terceira é composta daquele
que buscam a verdade, eis aí a definição da dialé-
que sustenta uma tese e pretende possuir a ciên-
tica-tópica-peirástica, da verdadeira dialética.
cia que dá força à sua afirmação, e daquele que o Voltemos às relações das técnicas científicas legi-
sofista e seu interlocutor, onde o primeiro con-
timadas pela sofística (a erística), um processo
clui, corretamente ou com a ajuda de um erro
ilegítimo. O que nos importa aqui é tirar a conclu-
habilmente escondido, a partir de premissas cuja
são dos textos que acabamos de resumir. Nem a
verdade parece ser universalmente reconhecida
silogística (analítica), nem a dialética (peirástica)
sem, contudo, sê-lo, como no caso daquele que
são ciências no sentido antigo, isto é, que levem à
pergunta se não possuímos o que não perdemos –
visão imediata de uma realidade ou de um princípio
o que parece evidente, mas é evidentemente falso
absoluto e específico . É verdade que a ciência, na
–, para concluir que o interlocutor tem chifres,
posse de seu princípio, serve-se do silogismo para
porque ele jamais os perdeu, enquanto o segundo
apresentar suas descobertas numa ordem que não
só deve prestar atenção em se defender para não
dá margem a nenhuma objeção contra sua coerên-
passar ridículo aos olhos da platéia. Quatro duplas,
cia, enquanto que a dialética tem por fim buscar – e
quatro discursos: discurso científico e magisterial,
encontrar – as mesmas verdades, eliminando entre
competição profissional (χρηματιστής) .
as doutrinas pré-existentes (e indispensáveis para
investigação feita em comum, prova de uma tese,
que a investigação possa sequer começar) as teses ambíguas, contraditórias, falsas, a fim de que se
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questiona sobre o assunto; por fim, há a dupla do
41
FILOSOFIA
topo”, visíveis ao νοῦς, e “embaixo” na sensação.
chegue às verdades últimas que se encontram “no
espantar, também, que não se compreenda mais a
Mas os dois corpos de regras constituem as τέχναι,
relação que distingue e une ensinamento e diálogo,
não as ἐπιστῆμαι , e pertencem ao domínio da
exposição e investigação, analítica e tópica.
mesma razão que no sentido aristotélico elas não são
ensão que os Tópicos enfrentam em particular e
mais do que racionais. Elas não fornecem a visão
terceira, uma certa falta de imaginação histó-
imediata do que é, tal como é, necessariamente e
rica, é provavelmente a mais importante – de
eternamente, e, como toda técnica, elas são “hábi-
fato, senão de direito. Como Aristóteles trata ao
racional (λόγος) ”. Elas retiram seu conceito abs-
mesmo tempo a dialética, necessária e legítima,
trato, o universal, da experiência, elas dão o acesso
golpes de prestidigitação de um lutador verbal,
ao limiar do verdadeiro saber: elas não mostram o
conceito presente no ser como εἰδός, como ἐνέργεια
de um profissional astuto em enganar incautos e
e como ἐντελέχεια. As técnicas do discurso não pos-
imprudentes, de truques de homens que querem
suem um objeto específico e, se desejam obtê-lo,
dito a opinião de que os Tópicos, especialmente o
devem sofrer uma transformação radical, uma
σοφιστικών ελέγχων: ao mesmo tempo “das refuta-
ποίησις, não ao da θεωρία. Essas regras são científicas no sentido moderno (positivista) do termo pela
tos práticos adquiridos, acompanhados de discurso
transubstanciação, para se transformar em técnica lógica, investigação ontológica, visando, segundo a
3. Das razões que indicamos para a incomprea função da dialética em Aristóteles em geral, a
e a erística, conjunto de truques de malabaristas,
vencer por quaisquer meios, acabou ganhando créúltimo livro (citado sob o ambíguo título Περί των
ções dos argumentos sofísticos” e “das refutações
dupla tendência do pensamento aristotélico, o Ser
sofísticas”), e a obra inteira, por conseguinte, são
em tudo o que é, e a fonte de todo devir.
consagrados à sofística, opinião (ou mais um senque reforça a tendência a interpretar ἔνδοξον como timento, pois não se expressa muito claramente )
No entanto, uma vez que se admita a identificação (positivista e moderna) entre a técnica e a ciência, uma vez aceito que a existência do método no
“opinião” no sentido platônico e a tópica como uma não-ciência ou uma ciência inferior.
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sentido dado a essa palavra pela metodologia pode
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separar a “forma” do pensamento de seu “conte-
O fato é que Aristóteles não separa a técnica do
údo”, uma vez suposto que a física matemática do
sofista da do dialético. Como é possível? Quanto à
continuum, aquela de Newton, é o modelo de todo
aparência, as duas são idênticas, e a honestidade
saber científico – então, com efeito, a silogística
de um não se exerce alhures nem de outras formas
prevalece sobre a peirástica, e a técnica da apre-
verbais senão com o ardil do outro. A diferença só
sentação sobre aquela da investigação das verdades
se revela para aquele que observa o plano de fundo
a serem apresentadas. Sabemos que o positivismo
– a tese realmente é uma tese aceita em geral? – e
acabou admitindo que ignorava sobre o que é que
a intenção – trata-se do esforço em comum, do
estava falando e que não podia indicar o sentido das
teste de um enunciado, trata-se da investigação da
palavras verdadeiro e falso, aplicadas aos teoremas
verdade, ou trata-se de uma demonstração de habi-
que formam seu “conteúdo”. A analítica – e esta é
lidade, de uma disputa onde se deve vencer custe o
sua eterna glória – levou ao grandioso modelo de
que custar? — Num caso e no outro, a vitória vem
conhecimentos matemáticos por Euclides. A dia-
ou para aquele que faz o interlocutor se contradizer
lética, precisamente porque seu trabalho jamais
ou silenciar, ou para aquele que resiste a todas as
termina, negligenciou que os seus esforços que só
tentativas: vitória daquele que faz as perguntas, ou
eliminam os erros cometidos são todos negativos,
vitória daquele que, depois de ter destacado uma
e que ela não pode, assim, produzir conhecimentos
tese, respondeu a toda pergunta que lhe foi diri-
ditos “úteis”: ou, a utilidade da dialética em si não
gida. Ora, tanto o ataque como a defesa podem se
pode ser definida, menos ainda julgada, pelos que
perder e podem ser conduzidos de forma desleal: é
renunciam ao único meio de questionar o conceito
precisamente o homem honesto que tem a maior
de utilidade, às perguntas racionais e bem feitas.
necessidade de conhecer os obstáculos inerentes
Não é de se espantar que, numa tal situação, fale-se
à sua empreitada – e os segredos do homem de
de crise das ciências, e precisamente das ciências
má-fé.
exatas, ou de uma crise da civilização; não é de se
Aristóteles não hesita em transmitir aos seus ouvintes, tal como um mestre de armas, os melhores golpes
perguntas sejam formuladas de tal maneira que as respostas só possam ser “sim” ou “não” , que não se tenha o direito de responder por um discurso coerente, a menos que se tenha pedido autorização ao interlocutor, e que se ofereça a ele uma troca de papéis, se se quer provar positivamente uma tese diferente daquela que acabou de ser testada.
Tese e silogismo verdadeiramente aceitos, e tese e silogismo aparentes apresentam, então, o mesmo
Em suma, trata-se de um jogo conhecido, difun-
interesse: Aristóteles não busca o ideal de um
dido, e que se joga diante de um público ciente
regras práticas gerais, uma τέχνη da discussão
das convenções e com grande conhecimento dos
como se pratica na sua época, certamente no seio da
(como dos diálogos platônicos) que nos espantam
Academia e, com uma probabilidade próxima da
à primeira vista se explica dessa maneira. Assim, é
certeza, no Liceu. É para se educar e, ao mesmo
um procedimento sofista forçar o adversário a con-
método puro; ele quer fornecer – e fornece – as
tempo, para não ridicularizar a escola e aqueles que lutar com as palavras, “construir” (κατασκευάζειν)
se beneficiaram de seu ensino, que se deve saber e “derrubar” (ἀνασκευάζειν), “pôr as mãos sobre
detalhes: um bom número dos tratados dos Tópicos
cordar com uma tese incrível ou chocante (ἄδοξον) , procedimento contra o qual se devem tomar precauções, como é necessário diante das tentativas
o adversário” (ἐπιχειρεῖν), sustentar a “luta por
de se fazer o interlocutor gaguejar . Também será
esporte” (ἁγών).
melhor não entrar em combate com qualquer um e
É esse lado da competição esportiva da discussão
Esse temor do público constitui, evidentemente,
dialética, presente até nos termos técnicos, que
uma fraqueza do método se a discussão não tiver
parece tão importante quanto negligenciado onde
lugar no interior da escola e entre homens treina-
entra em questão o sentido da dialética aristoté-
dos na busca pela verdade. O adversário, antes de
lica. Certamente a tópica não forma um simples
ser levado à contradição, abandonará ao invés de
manual de treino, e acabamos de ver como é amplo
consentir numa tese escandalosa . Mas, se deve-
filosofia acabada, a visão pura, a θεωρία, no limiar
mos saber nos defender, por todos os meios, se
da qual ela se detém). Mas não compreenderemos
aos seus ouvintes, tal como um mestre de armas,
sua natureza se tivermos esquecido ou suprimido
os melhores golpes –, não é nisso que consiste o
o lado agonístico.
verdadeiro jogo, o nobre exercício: “A lei da con-
Por isso, em Atenas, todo mundo discute, não
pessoas comuns; os sábios (σοφοί) falam e pensam
o seu alcance para a vida do filósofo (exceto para a
somente os filósofos, os homens políticos, os sofistas, como também os indivíduos privados.
sobre qualquer assunto, por medo de desonra.
necessário – Aristóteles não hesita em transmitir
venção ( νομός) constitui a convicção ( δόξα ) das (λέγουσιν) conforme a natureza e a verdade”.
Nós não insistiremos então sobre o papel que cum-
cemos pelo mesmo nome: não se afirmam ambos
pre no diálogo o público e suas reações; mas que
os lados das teses opostas para remeter à decisão de
se nos permita chamar a atenção, en passant, sobre
uma instância superior, como a experiência cien-
o interesse de um estudo exaustivo e aprofundado
tífica, o tribunal, os especialistas, o voto popular;
sobre as indicações fornecidas a respeito desse
não se tem a necessidade de sustentar vitoriosa-
assunto pelos Tópicos, em particular, mas não
mente um outro teorema, um outro ponto de vista,
exclusivamente, pelos livros VIII e IX: podem então
para derrotar o adversário: basta fazê-lo se con-
ser contempladas as interpretações detalhadas dos
tradizer . O fim não é ter razão, mas mostrar que o
diálogos de Platão, revelando até o significado das
outro está errado pelo fato de que as conseqüências
diversas expressões de assentimento , que não se
de suas afirmações contradizem suas declarações
atingiriam por nenhuma outra via.
iniciais. Daí, o regulamento tão notável, tão freqüentemente invocado nos diálogos de Platão,
Dar por completo e analisar o significado pre-
que quer uma resposta para toda pergunta, que as
ciso de todas as regras que Aristóteles fornece
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Ora, essa discussão difere muito do que nós conhe-
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FILOSOFIA
Tópicos.
Exercício que busca o teste das teses existentes ou possíveis, teste que busca a investigação, investigação que busca a verdade: eis aí o sentido da técnica tópica.
Estas exibem uma mistura de conselhos técni-
É por isso que Aristóteles pode distinguir entre três
cos para a vitória com leis sem cujo cumprimento
tipos de infrações: a tese infratora (o que não quer
não se poderia resolver problema algum: mistura
dizer falsa, mas mal escolhida, a tese falsa sendo
bastante surpreendente para o leitor moderno,
tão interessante quanto a verdadeira), a técnica
que se esqueceu de que toda discussão acon-
infratora na condução do diálogo (por exemplo, a
tece entre homens reais e de que ela forma, por
redução de uma tese às premissas menos conhe-
isso, um simulacro da luta sem a violência física.
cidas), e a infração lógica propriamente falando
Esquecemos disso porque estamos dominados
(quando, por exemplo, não houve realmente uma
pela idéia de um método “puro”, isto é, a priori, ao
conclusão) . Ele se interessa tanto pelas condi-
abrigo de toda objeção.
ções psicológicas, aquelas que nos acostumamos a
– ocasionalmente, pois ele as supõe conhecidas por seus ouvintes – para a discussão séria, isso seria empreender uma exegese completa, não só dos Tópicos, como do Organon em sua totalidade e visando à sua unidade filosófica fundamental. Nós só falamos aqui da natureza da discussão real, tal como ela aparece nas ou através das regras dos
designar com um termo característico – como os Mas uma tal “falta da pureza” é inteiramente
princípios morais, o ethos do homem de ciência –,
natural para Aristóteles. Trata-se da dialética, de
quanto se interessa pelos princípios formais, e a
um método universalmente aplicável, e que deve
separação de ambos não se compreende nem por
ser aplicado universalmente: não importa qual seja
quem não quer apenas constituir uma ciência (ou
a conseqüência inadmissível; se ela for tirada cor-
ciências), mas formar homens de ciência, capazes
retamente de uma afirmação, refuta esta. É a tarefa
de pensar por si próprios e de julgar graças a um
da silogística arranjar em seqüências corretas e
longo aprendizado. Também lhe interessa muito
facilmente verificáveis uma ciência determinada,
dizer que apanharemos facilmente as pessoas (e,
de maneira que ela possa ser desenvolvida a partir
inversamente, que seremos facilmente apanha-
de seus princípios: a função da dialética é desve-
dos por elas) se fizermos objeções a nós mesmos,
lar as fraquezas de tudo o que não for princípio
porque assim adquirimos o aspecto de um belo
imediatamente evidente (os os dados últimos dos
jogador, se não parecemos atribuir um grande peso
sentidos). O geômatra não questiona os funda-
ao que propomos, se não propomos a tese mesma,
mentos da sua ciência, e o dialético não se ocupa
mas suas conseqüências necessárias – assim como
com questões puramente técnicas da geometria;
lhe interessa desenvolver as regras formais do
mas o dialético pode questionar e deve questionar o
silogismo e da indução. Se negligenciarmos essa
sentido dos princípios particulares da matemática,
ligação essencial, não poderemos não considerar
seu alcance filosófico, seu emprego generalizado
os Tópicos como um tratado de sofística, interca-
justificado ou não . Um tal método não pode ser
lado pelos destroços de uma “teoria” válida.
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abstrato, como pode ser a apresentação silogís-
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tica dos conhecimentos adquiridos, que de forma
“O objetivo dos que ensinam e aprendem difere fun-
alguma são deduzidos dos princípios dialeticamente
damentalmente daquele dos que se entregam a uma
comprovados, mas postos em ordem a partir des-
competição, como este último difere daquele dos que
tes. São os homens que buscam a contradição. Não
discutem num espírito de investigação, pois o que
podemos buscar somente ela, a não ser que adqui-
aprende deve sempre declarar o que pensa, uma vez
ramos o hábito dessa investigação na colaboração
que ninguém tenciona ensinar-lhe falsidades; ao
com outros homens: o desejo de vencer intervém
passo que numa competição o propósito do inquiridor
em todo teste, e é bom que seja assim; é necessá-
é aparentar por todos os meios que está influenciando
rio apenas que esse desejo se submeta às regras do
o outro, enquanto o do seu antagonista é mostrar
combate leal .
que não se deixa afetar por ele; por outro lado, numa assembléia de disputantes que não discutem num
espírito de competição, mas de exame e pesquisa,
da Metafísica (cf. mais abaixo).
ainda não existem regras articuladas sobre o que o respondente deve ter em vista e que espécie de coisas
2. A dialética, tal como ela é compreendida nos
deve ou não deve conceder para a defesa correta ou
Tópicos, não deve ser confundida com a sofística;
incorreta da sua posição – uma vez, pois, que não nos
as opiniões das quais ela se ocupa não fazem parte
foi transmitida nenhuma tradição por outros, procu-
da opinião no sentido platônico, mas constituem,
remos dizer nós mesmos algo sobre a matéria. (Top.
para a discussão séria, a soma dos conhecimentos
VIII 3, 159 a 25ss)”
adquiridos pela humanidade e formam, assim, o ponto de partida necessário para toda investigação
Exercício que busca o teste das teses existentes ou
científica.
possíveis, teste que busca a investigação, investigação que busca a verdade: eis aí o sentido da
3. Nem a tópica nem a silogística são, para
técnica tópica.
Aristóteles, ciências no sentido estrito, porque elas não dispõem de princípios imediatamente captá-
Se se perguntar, depois disso, onde fica o limite
veis e concretos que lhes pertençam. Ambas são
entre o jogo e a seriedade, entre o esporte e a
técnicas sobre a forma dos raciocínios; elas são,
investigação, responderemos que não há, mas que,
então, universalmente válidas justamente porque
a cada momento, por uma mudança de atitude, o
são universalmente aplicáveis.
jogo pode se tornar sério, o esporte a investigação, o exercício o esforço comum em busca da verdade.
4. A tópica não é inferior em dignidade à silogística:
Porém, ambos não se confundem, e sua diferença
para Aristóteles, a aquisição da ferramenta técnica
é fácil de determinar: para o homem de ciência, a
do silogismo deve preparar o estudo da técnica do
vitória (isto é, entendidas as regras dadas, a der-
exame dialético, que não se poderia empreender
rota do adversário) não basta; ele deve mostrar a
sem ter adquirido a técnica analítica.
origem da infração . Kant não se esquecerá de que há uma dialética objetiva e de que a filosofia deve
5. Não é a analítica, mas a dialética que, servindo-
“dissolver a ilusão dialética”, ainda assim tão real
-se do silogismo, coloca a questão dos princípios
que o homem não se libertará dela jamais; os seus
e desce até os dados dos sentidos. A silogística
sucessores viram nessa dialética o pano de fundo
permite, depois do teste dialético das teses e das
da realidade, criticando Kant por ter cedido demais
induções , apresentar os resultados sob uma forma
à forma da ciência matemático-física, tomando
pura. Nós podemos acrescentar que ela permite
por ilusão o que é a razão mesma de sua realidade:
igualmente constatar a ausência de conceitos
desde então, parecemos ter perdido de vista até
intermediários, mas ela deve deixar para a dialé-
mesmo o problema .
tica o cuidado de situá-las, e para as ciências o de captá-las.
*** 6. A diferença essencial entre analítica e tópica Resumamos brevemente as teses que sustenta-
não é a que há entre ciência e não-ciência, mas
mos para terminar, em seguida, pela indicação de
entre a investigação em comum da verdade e a
alguns problemas cuja solução nos parece neces-
apresentação, sob forma vinculativa, das verdades
sária a fim de elucidar completamente o lugar e a
encontradas.
função dos Tópicos na obra de Aristóteles e obter uma compreensão filosófica dos problemas que
7. Os Tópicos contêm, implicitamente, não apenas
o assunto desse livro ainda coloca para o pensa-
uma descrição das regras lógicas, mas ainda (e,
mento atual.
para o historiador, sobretudo) um código esportivo conforme foi observado na Academia e no Liceu.
juventude, nem um aperitivo do pensamento lógico
O interesse desses resultados só aparece verdadei-
de Aristóteles. Se certas partes podem remontar
ramente sob a condição de que se entre em contato
longe no tempo, ao menos a redação que chegou
com certas outras questões que podem ser coloca-
até nós é contemporânea de partes bem recentes
das a partir daí:
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1. Os Tópicos não constituem nem uma obra de
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FILOSOFIA
1. Uma análise detalhada dos Tópicos deverá seguir
identidade (diferenças “ilustradas” pela equação:
a marcha da evolução de Aristóteles nesse campo .
termo médio = causa) de uma dialética “subje-
Várias redações parecem se sobrepôr. Parece que o
tiva” e de uma dialética “objetiva”, e a uma nova
livro IX pressupõe, muito mais que os outros, mas
concepção da função da contradição em todo o
não exclusivamente, certos resultados essenciais
pensamento aristotélico: sobre o plano “subje-
mais importância à solução (λύσις) dos erros (o IX
tivo” e linguístico, a contradição seria o sinal de
mais que o VIII) do que à simples refutação; con-
ção lógica consciente ou inconsciente); no domínio
tudo, a obra inteira fornece os meios de solução
“objetivo” da ciência concreta, ela seria conciliada
tanto quanto os de refutação. No entanto, convém
sob o auxílio da distinção dos vários planos da rea-
lembrar que o final do livro IX confirma a unidade
lidade: assim, é a distinção dos planos do ato e da
do tratado: não queremos dizer que Aristóteles pre-
potência que justifica uma definição tão “dialé-
parou para a publicação o texto que chegou até nós,
tica” quanto aquela do movimento como “ato do
mas que não se rejeitam os materiais mais anti-
que está em potência enquanto está em potência”.
da Metafísica. Os livros VIII e IX parecem atribuir
uma dificuldade a ser resolvida (ou de uma infra-
gos (se é possível distingui-los com certeza); eles são, pelo contrário, conscientemente empregados
4. Por fim, haveria espaço para tirar dos Tópicos (aos
em uma nova construção. As ateteses biográficas,
quais deveríamos acrescentar certas indicações dos
como as ateteses filológicas atualmente fora de
Analíticos e da Retórica) as regras e as convenções do
moda, tiveram como única vantagem economizar
diálogo. A sua análise histórica e filosófica parece
ao leitor o esforço de pensar junto o que Aristóteles
prometer grandes resultados, aquela por uma
considerou como consistente.
interpretação detalhada dos diálogos de Platão, esta por uma compreensão mais aprofundada da
2. Torna-se desejável uma reinterpretação dos
função da lógica aristotélica na vida da escola.
Analíticos: se consideramos como aceitos os resultados enumerados acima, muito dos pontos surpreendentes dos Analíticos se tornarão perfeitamente naturais, como a introdução das considerações sobre a indução, sobre a possibilidade de obter conclusões verdadeiras a partir de premissas falsas, o apelo à visão direta no lugar de uma dedução lógica mesmo onde esta é possível do ponto de vista de Aristóteles, etc. 3. Haverá interesse em reestudar, por um lado, os procedimentos da aporemática, tão característica dos grandes tratados aristotélicos, e, por outro (o que seria mais importante e ao mesmo tempo mais difícil), as relações entre a tópica e a ontologia. Esta relação se investiga preferencialmente – exclusivamente, na verdade – na equação: causa (ontológica) = termo médio (analítica). Mas essa própria equação deve ser compreendida, e só poderá sê-la ontologicamente. Ora, parece que a tópica e a ontologia são apenas dois aspectos de uma mesma realidade: o próprio Aristóteles o diz
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num capítulo muito curioso (IX 9, 170 a 20ss.), e
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parecem se confirmar os papeis que têm, nas duas disciplinas, os conceitos fundamentais, como a substância, o acidente, a qualidade característica, o gênero, a definição. Chega-se assim, talvez, a resultados precisos a respeito da diferença e da
Traduzido por Hugo de Santa Cruz
Tradução de um conto publicado pela primeira vezno calendário Rheinländischer Hausfreund, em 1808
LITERATURA
Kannitverstan, Hebel
contemplou admirado aquela majestosa construção, com suas seis chaminés no telhado, belas cornijas e janelas que, de tão altas, eram maiores do que a porta da casa de seu pai. Até que, não podendo conter-se, interpelou um pedestre: “Caro amigo, disse-lhe, sabe o senhor dizer-me quem é o dono dessa esplêndida morada com as janelas cheias de tulipas, margaridas e goivos?” O cidadão, porém, que pelo aspecto tinha coisas mais importantes para fazer, e que lamentavelmente entendia tanto da língua alemã quanto o seu interlocutor da holandesa, a saber, nada, respondeu-lhe, seco e breve: “Kannitverstan”; e deu-lhe as costas.
E voltou, sentindo-se deveras triste por ser um pobre diabo no mundo em meio a gente tão rica. Essa é uma palavra holandesa, ou três, para ser mais preciso, que significam simplesmente: “Não entendo”. Mas o nosso forasteiro acreditou tratar-se do nome da pessoa pela qual havia perguntado. “Esse Sr. Kannitverstan deve realmente nadar no dinheiro”, pensou, e seguiu em frente. Sobe rua, desce rua, chegou finalmente à baía chamada “Het Ey” ou, traduzindo, “o Ípsilon”. Lá havia navios e
S
mais navios, mastros e mais mastros, de maneira que, no começo, não soube como daria conta de ver
Amsterdã, é certo que o homem tem,
e contemplar todas aquelas maravilhas com ape-
quando quer, as mesmas chances de con-
nas dois olhos; até que um grande navio, que recém
templar a transitoriedade das coisas
tinha chegado das Ìndias Orientais e estava sendo
terrenas e de resignar-se ao seu destino, mesmo
descarregado naquele momento, acabou por cha-
que nem tudo lhe esteja indo às mil maravilhas.
mar-lhe a atenção. Várias fileiras de caixas e fardos
No entanto, foi pelas vias mais estranhas que, em
já tinham sido amontoadas em terra. Muitas outras
Amsterdã, um aprendiz alemão passou do erro ao
ainda estavam sendo descarregadas, além de barris
conhecimento da verdade. Pois mal havia che-
cheios de café, açúcar, arroz, pimenta e, em meio a
gado a essa grande e rica cidade comercial, cheia
tudo isso, se me é lícita a indelicadeza, fezes de rato.
de prédios suntuosos, navios oscilantes e homens atarefados, defrontou-se com uma mansão enorme
Depois de ter observado longamente, nosso ale-
e bonita, tal como ainda não tinha visto em sua via-
mão perguntou a alguém que estava carregando
gem de Tuttlingen até Amsterdã. Por muito tempo
para fora uma caixa nos ombros como se chamava
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eja em Emmendingen, Gundelfingen ou
47
LITERATURA
o felizardo a quem todas aquelas mercadorias
no seu navio cheio de riquezas e, finalmente, na
tinham vindo do mar. “Kannitverstan” foi a res-
sua estreita sepultura.
posta. Então ele pensou: “Haha, que coincidência! Não surpreende que a pessoa a quem o mar traz tantas riquezas possa manter uma casa como aquela, com tulipas na frente da janela enfeitada com arabescos dourados”. E voltou, sentindo-se deveras triste por ser um pobre diabo no mundo em meio a gente tão rica. Porém, no exato momento em que pensava “Ah, se eu pudesse pelo menos uma vez na vida ser tão afortunado quanto o sr. Kannitverstan” sucedeu-lhe dobrar uma esquina e avistar um enorme cortejo. Quatro cavalos paramentados de preto puxavam um carro fúnebre, também coberto de preto, devagar e solenemente, como se soubessem estar conduzindo um morto ao seu descanso. Atrás vinha uma longa fila de amigos e conhecidos do defunto, aos pares, mudos e envoltos em casacos pretos. À distância soava um sino solitário. Então nosso forasteiro foi tomado de um sentimento melancólico, desses que toda pessoa boa tem ao ver um morto, e parou com o chapéu na mão, reverente, até que tudo passasse. Em seguida, dirigiu-se ao último participante do cortejo – que calculava em silêncio quanto ganharia com seu algodão caso o quintal aumentasse 10 florins – e, tocando-lhe de leve o casaco, pediu-lhe gentilmente licença. “Presumo que esse por quem o sino tocou deva ser um bom amigo seu, para deixá-lo assim tão triste e pensativo”. Kannitverstan! foi a resposta. Nesse momento, caíram copiosas lágrimas dos olhos do nosso cidadão de Tuttlingen, e ele sentiu seu coração pesado e ao mesmo tempo mais leve. “Pobre Kannitverstan”, exclamou, que te restou de toda a tua riqueza? O mesmo que há de restar a mim da minha pobreza: uma mortalha e um lençol; e de todas as tuas belas flores, talvez um ramo de alecrim sobre o teu peito frio, ou uma arruda”. Com tais pensamentos acompanhou o falecido até a sepultura, como se fosse um de seus entes queridos, viu o suposto Sr. Kannitverstan descer à cova e emocionou-se mais com a oração fúnebre holandesa, da qual não entendeu palavra, do que com muitas outras alemãs que tinha ouvido e nas quais não prestara atenção. Finalmente retirou-se
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de coração leve, comeu com apetite um pedaço de
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queijo de Limburgo num albergue onde se falava alemão e, quando quer que depois disso o acabrunhasse o fato de haver gente tão rica no mundo, enquanto ele era tão pobre, logo pensava no Sr. Kannitverstan de Amsterdã, na sua bela mansão,
Tradução por Henrique Garcia
O indecifrável Mann Por Miguel López
O
Brasil não é afeito à obra de Thomas
se levarmos em conta a descendência brasileira de
Mann. Pouco se leu dele, pouco se sabe
Mann por parte materna.
de suas raízes e de seu pensamento. Creio que um dos motivos desse descaso
O fato de escritores e romancistas deste país opi-
se dá no fato de Thomas Mann ser uma charada
narem sobre questões que vão muito além da
indecifrável com relação à sua posição política. O
suas capacidades criou no leitor brasileiro a falsa
outro motivo é o falso hermetismo em suas obras.
impressão de que o autor precisa ter aquilo que
Descendente dos grandes romancistas do século XIX,
Adolf Hitler chamava de “visão de mundo”. Essa
Mann soube compor romances recheados de den-
atual facilidade que se tem de opinar sobre tudo e
sos diálogos entre seus personagens, que formam
todos nos leva a colocar escritores no abjeto redu-
Cada leitura de suas obras nos coloca na pantanosa posição de observadores das opiniões conflitantes dos seus personagens.
cionismo direita-esquerda. Nossos juízos de valor acabam colocando autores e obras nessa redoma difícil de sair, como se essa visão de mundo de um escritor devesse concordar automaticamente com tudo aquilo que uma corrente ideológica pensa, prega ou defende. Isso não se dá com Thomas Mann que, felizmente, escapa dessa estúpida redução. Ocorre que cada leitura
pequenos ensaios de grande complexidade sobre os
de suas obras nos coloca na pantanosa posição de
mais diversos temas. Esse modo alemão de roman-
observadores das opiniões conflitantes dos seus
cear fez com que o autor demorasse para cair no
personagens. Desde sua época, Mann se mostrou
gosto de franceses, ingleses e norte-americanos.
um autor com uma “visão de mundo” altamente
Passado mais de meio século de sua morte, Mann
peculiar e, portanto, indecifrável.
alegórico que Kafka, menos experimental que Joyce
Um dos exemplos da complexa relação do autor
e menos político que Brecht, colocando-o na gale-
com seu pensamento político se vê durante a
ria dos escritores que todo mundo “conhece”, mas
Primeira Guerra Mundial. O antes defensor do
não lê. Isso no nosso caso se mostra mais vexatório,
prussianismo bismarckiano durante o início do
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mostrou-se para o gosto brasileiro um autor menos
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LITERATURA
conflito já não tinha muitas certezas sobre aquilo
ascensão do nazismo, e depois no exílio, a obra de
que afirmava ao fim da guerra, fazendo com que
Mann mostrou-se muito mais política em seus dis-
sua obra Confissões de um Apolítico (Betrachtungen
cursos e ensaios do que em seus romances, a fim de
eines Unpolitischen, 1918) se tornasse o mausoléu
preservar o distanciamento necessário comentado
das suas idéias germanicistas.
por Goethe.
Isso parece se refletir em A Montanha Mágica (Der
Já com o mundo em guerra, Mann não caiu em outra obsessão intelectual persistente até os dias de hoje: o pacifismo.
Zauberberg, 1924), obra que, à guisa de exemplo, nos impede de assumir uma postura referente aos seus personagens Naphta e Settermbrini. No embate interminável entre o progressista italiano e o jesuíta socialista, o protagonista Hans Castorp observa passivamente a explanação das idéias e a desonestidade intelectual de ambos, acabando por admirar o desarticulado e lascivo Mynheer Peeperkorn
Anatol Rosenfeld também notara o fato ao obser-
nas suas odes à natureza e à vida humana.
var que em Doutor Fausto, apesar de se perceber a angústia do autor pelo triste fado alemão, Mann
Thomas Mann se portava, seja em seus discursos,
interpôs um narrador, buscando distanciar-se das
seja em seus romances, como um intelectual, dis-
opiniões referentes ao descenso moral e espiri-
posto a problematizar, deixando os julgamentos
tual da Alemanha nazista3. Mann vira na ascensão
para depois. Daí o motivo dele não aderir à can-
de Hitler por meios democráticos a derrocada da
tilena salvacionista de Bertolt Brecht e outros
República de Weimar, a retomada do espírito
intelectuais de esquerda, que buscaram em Mann
romântico alemão agora no seu nível intelectual
um nome forte para assinar o manifesto que pro-
mais rasteiro, ou seja, compreendeu o processo
punha que o regime nazista “não representava”
popular, e tentou, em vão, chamar o povo alemão
1
a verdadeira Alemanha . Também pelo mesmo
à razão, trazê-lo do encantamento de um flautista
motivo, ele foi visto com maus olhos nos Estados
de Hamelin perverso, que, ao unir o histórico anti-
Unidos nos primeiros anos de Guerra Fria. O fato de
-semitismo alemão com o Dolchstoßlegende (lenda
Mann ingenuamente acreditar na possibilidade de
da punhalada pelas costas) sepultou a República de
um “socialismo mais humano” fez dele um pária
Weimar e transformou o solo germânico em palco
para a nação americana e um potencial espião
de uma das maiores atrocidades do século anterior.
durante a caça às bruxas, resultando na sua volta para um dos países de maior neutralidade política
Já com o mundo em guerra, Mann não caiu em
da época: a Suíça.
outra obsessão intelectual persistente até os dias de hoje: o pacifismo. Atualmente, os inócuos ape-
A adoção de posturas políticas cum grano salis cor-
los pacifistas de Romain Rolland e Bertrand Russell
roborava o que Goethe dissera sobre a função do
nos lembram muito os engajados que vestem
artista, e que Mann retomou em um dos seus ensaios
camisetas brancas e soltam pombas pedindo paz a
sobre a postura moral necessária à vocação artística:
traficantes e assaltantes. Porém, Mann conhecia a insanidade nazista, e estava atento aos pronuncia-
É bem possível que uma obra de arte tenha conse-
mentos de Goebbels, que afirmava em 1943:
qüências morais, mas exigir do artista intenções e finalidades morais significa estragar seu ofício.2
Se algum dia tivermos de partir, se algum dia formos forçados a deixar a cena histórica, então vamos bater
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Já durante os anos em que convivera com a
50
a porta de tal maneira que a Terra vai tremer, e a
___________________________________________________
1. Thomas Mann – Uma biografia, Nova Fronteira, 2000, p. 444. 2. Ensaios – MANN, T. Perspectiva, p. 30, 1988, “O artista e a sociedade”. 3. Thomas Mann – ROSENFELD, A. Perspectiva, p. 91, 1994, “A correspondência de Thomas Mann – II”.
humanidade ficará estarrecida de terror.”4
Ao aceitar a proposta da BBC de Londres para gravar discursos contra Hitler, Mann procurou não apenas alertar uma Alemanha resistente ao totalitarismo, mas também apontar o indicador em riste para a outra Alemanha, sedenta de sangue, não poupando palavras ao chamar seu povo de “usurpadores da Europa”. Sua vergonha em incitar seu país desde o exílio, enquanto avançavam as tropas contra seus conterrâneos, foi imensa, mas maior ainda foi sua hombridade em não deixar o sangue falar mais alto. É de autores assim que precisamos.
4. Ouvintes alemães!: discursos contra Hitler, p. 127, 2009.
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___________________________________________________
51
LITERATURA
A uma amante pós-tudo Resposta de Ricardo Almeida ao poema “ A uma passante pós-baudelairiana“, de Carlito Azevedo
Sobre essa pele morena um pintor mandarim teria escrito à pena de ganso um emblema em nanquim - Sem esquecer entanto o ideograma dos lábios: carnívora tulipa rubra dois traços rasgados a me devorar pernas embaixo de tuas curvas. Talvez esse poeta angustiado não soubesse dizer se sobre os lábios em que se deslê o que leu - tateando em braile o teu dicionário há mais odes para escrever. Mas eu que venero mais que a tudo teus cabelos cobrindo o rosto mudo quando caem, longos, infinitos… não sei se esqueço ou te decifro, esfinge do nilo. Sei que tua pele morena esconde sinais criptografados pra tudo. Hieróglifos borrados Pedem palavras de sussuro. Algum provençal decerto te dedicaria o mais secreto trobar clus: para alaúdes, vihuelas e liras e um menestral suicida. Mas eu te dedico quando chegas me fazendo fremir Esse tiroteio de signos
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Essa salva de suspiros.
52
Ilustração: Daniel Miguez
Tradução do capítulo I de “Inventing the Flat Earth - Columbus and Modern Historians” (1991)
Colombo de uma forma que não vinha um século
1992 marca exatamente meio milênio
atrás. Os nativos americanos podem tratar 1492
desde que Cristóvão Colombo partiu em
como o começo do seu desterramento e os afro-
sua primeira viagem ao Novo Mundo,
-americanos como a abertura do maior mercado
uma ocasião lembrada nos Estados Unidos pelo
de escravos negros. Os judeus e os muçulmanos
Congressional Quincentenary Jubilee Act de 1987. Nos
podem se lembrar que 1492 foi também o ano da
Estados Unidos, o tom da observância de 1992 con-
sua expulsão da Espanha por Fernando e Isabel, os
trasta com a alegre celebração imperial de 1892,
mesmos monarcas que patrocinaram Colombo. Os
porque vem à mente o lado obscuro da viagem de
latino-americanos podem se recordar do período
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O
ito horas da manhã do dia 3 de agosto de
HISTÓRIA
O planeta redondinho, Jeffrey B. Russell
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HISTÓRIA
colonial com mais pesar do que nostalgia. Além
circunferência aproximada. Esse fato tem sido con-
da necessidade urgente e imediata de se reavaliar
sagrado por historiadores há mais de meio século.
o impacto da abertura das Américas, há um outro problema curioso, a seu modo tão etnocêntrico
Um dos mais eminentes historiadores contempo-
quanto o imperialismo de 1892.
râneos da ciência, David Lindberg, disse:
Quinhentos anos depois de Colombo (1451-1506),
Na história de costume, o dogma teórico a respeito de
sua história continua a ser acompanhada por uma
uma Terra plana tinha de ser superado por uma evi-
curiosa e persistente ilusão: a conhecida fábula de
dência empírica da sua esfericidade. A verdade é que
que Colombo descobriu a América e provou que a
a esfericidade da Terra foi um componente caracterís-
Terra é redonda, para o espanto de seus contem-
tico do dogma teórico na maneira que ele chegou até a
porâneos, que acreditavam que ela era plana e que
Idade Média – tão central que quantidade alguma de
se poderia cair para fora da borda.
argumentos teoréticos ou empíricos contrários poderia tê-la destituído.2
Todas as pessoas instruídas em toda a Europa sabiam da forma esférica da Terra.
Em 1964, C. S. Lewis escreveu: “Fisicamente considerada, a Terra é um globo; todos os autores da baixa Idade Média concordavam sobre isso… as implicações de uma Terra esférica eram totalmente
Trata-se de uma ilusão que de forma alguma ficou
compreendidas”3. E Cecil Jane já havia declarado
restrita aos iletrados. John Huchra, do Harvard-
nos anos 30:
Smithsonian Institute for Astrophysics, foi citado dizendo:
Em meados do século XV, a esfericidade do globo era aceita como fato por todos, ou no mínimo por quase
Naquela época [quando o Novo Mundo foi descoberto]
todos os homens instruídos em toda a Europa. Não há
havia muito conhecimento teórico, apesar de incor-
fundamento para a afirmativa, que já teve crédito, de
reto, sobre como era o mundo. Alguns acreditavam
que uma visão contrária era mantida na Espanha por
que o mundo podia ser plano e que você poderia cair
teólogos conservadores e apoiada pelo preconceito
da borda, mas os exploradores se lançaram e desco-
religioso.4
briram o que havia lá de fato.1
A pergunta, então, é de onde veio essa ilusão – “O Para colocar em outras palavras: supõe-se erro-
Erro Plano” – e por que as pessoas continuam acre-
neamente que um dos propósitos, e sem dúvidas
ditando nela. Chamo o Erro não a alegada crença
um dos resultados da viagem de Colombo foi
medieval de que a Terra era plana, mas, pelo con-
provar para os céticos europeus medievais que a
trário, o erro moderno de que isso algum dia tenha
Terra era redonda. Na verdade, esses céticos não
prevalecido.5
existiam. Todas as pessoas instruídas em toda a Europa sabiam da forma esférica da Terra e da sua
Esse Erro Plano segue popular, ainda sendo
___________________________________________________
1. Marcia Bartusiak, “Mapping the Universe”, Discover (Agosto de 1990): 63. 2. Comunicação pessoal com o autor, 1990. 3. C. S. Lewis, The Discarded Image (Cambridge, 1964), 140-41. 4. Cecil Jane, ed., Select Documents Illustrating the Four Voyages of Columbus, 2 vols. (Londres, 1930-1933), 1:xxii. 5. Entre as obras do século XX que tentaram dissipar o erro estão F. S. Betten, “Knowledge of the Sphericity of the Earth During the Earlier
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Middle Ages,” Catholic Historical Review 3 (1923): 74-90; Anna-Dorothee von den Brincken, “Die Kugelgestalt der Erde in der Kartographie
54
des Mittelalters,” Archiv für Kulturgeschichte 58 (1976): 77-95; Pierre Duhem, Le système du monde: Histoire des doctrines cosmologiques de Platon à Copernic, 10 vols. (Paris, 1913-1959); Edward Grant, Physical Science in the Middle Ages (Nova York, 1971); J. B. Harley e David Woodward, The History of Cartography, vol. 1, Cartography in Prehistoric, Ancient, and Medieval Europe and the Mediterranean (Chicago, 1987); Charles W. Jones, “The Flat Earth,” Thought 9 (1934): 296-307; David C. Lindberg e Ronald L. Numbers, eds., God and Nature (Berkeley, Calif., 1986); David C. Lindberg, Science in the Middle Ages (Chicago, 1978); David C. Lindberg e Ronald L. Numbers, “Beyond War and Peace: A Reappraisal of the Encounter between Christianity and Science,” Church History 55 (1986): 338-54; W. G. L. Randles, De la terre plate au globe terrestre: Une
encontrado em muitas apostilas e enciclopédias.6
ilhas, é uma esfera.
Uma enciclopédia de 1983 para alunos de 5ª série
O Prior: Não, não digas isso; isso é uma blasfêmia.10
apresenta: “[Colombo] sentia que ele acabaria chegando às Índias no Oriente. Muitos europeus
Nos anos 80, um grande número de apostilas e
ainda acreditavam que a Terra era plana. Eles pen-
enciclopédias havia corrigido a história11, mas o
savam que Colombo iria cair da borda da Terra.”7
Erro Plano reapareceu num livro muito popular publicado pelo ex-bibliotecário do Congresso,
Um texto de 1982 para alunos de 8ª série dizia:
Daniel Boorstin, The Discoverers (1983). Boorstin escreveu:
O navegante europeu de mil anos atrás também tinha outras crenças estranhas [além de bruxas e do diabo].
Um fenômeno de amnésia intelectual do tamanho
Ele se voltava para essas crenças porque não tinha
da Europa… afligiu o continente de 300 d.C. até pelo
outra forma de explicar os perigos do mar desconhe-
menos 1300 d.C. Durante esses séculos, a fé e o dogma
cido. Ele acreditava…que um navio poderia navegar
cristãos acabaram com a imagem útil do mundo
para longe no mar até o momento em que cairia da
que havia sido tão lentamente, tão dolorosamente
borda do mar… O povo da Europa de mil anos atrás
e tão escrupulosamente construída pelos geógrafos
conhecia pouco sobre o mundo.8
antigos.12
Um prestigiado texto para alunos de universidade
Ele chamou esse suposto hiato de “A Grande
os informa que o fato de que a Terra é redonda era
Interrupção”. O seu capítulo XIV, “A Flat Earth
sabido pelos gregos antigos, mas se perdeu na Idade
Returns”, ridicularizava a “legião de geógrafos
Média. A literatura segue o mesmo exemplo. A peça
cristãos” que seguiram o caminho geográfico feito
de Joseph Chiari, Christopher Columbus, contém o
por um excêntrico do séc. VI.13 Na verdade, o excên-
seguinte diálogo entre Colombo e um Prior:
trico Cosmas Indicopleustes não teve seguidores de
9
nenhum tipo: suas obras foram ignoradas ou desColombo: a Terra não é plana, padre, é redonda!
prezadas com escárnio por toda a Idade Média.14
O Prior: Não digas isso! Colombo: É a verdade; ela não é um lago repleto de
Como pôde Borstin disseminar o Erro Plano e o
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mutation épistémologique rapide (1480-1520) [Cahiers des annales 38] (Paris, 1980). 6. Por exemplo, desde 1900: An Anonymous Introductory History of the United States (Sacramento, Calif., 1900), 2; Calista McCabe Courtenay, Christopher Columbus (New York, 1917), 6; José Forgione, Historia general, 10ª ed., Buenos Aires, 1920), 168; J. Lynn Barnard e A. O. Roorbach, Epochs of World Progress (Nova York, 1927), 352-53; A. Gokovsky e O. Trachtenberg, History of Feudalism (Moscou, 1934), 127; Carlos Cánepa, Historia general de la gran familia humana (Buenos Aires, 1937), 147; Ramon Peyton Coffman e Nathan G. Goodman, Famous Explorers for Boys and Girls (Nova York, 1942), 21; Encyclopedia Britannica (Londres, Chicago, e Nova York, 1947), vol. 6, 79; e o vol. 10, 146; Alberta Powell Graham, Christopher Columbus, Discoverer (Nova York, 1950), 21; Ingridel e Edgar Parin d’Aulaire, Columbus (Nova York, 1955), 7; Bernardine Bailey, Christopher Columbus: Sailor and Dreamer (Boston, 1960), 44; The American People: A History (Arlington Heights, Ill., 1981). 7. America Past and Present (Scott Foresman, 1983), 98. 8. We the People (Heath, 1982), 28-29. 9. Crane Brinton, John Christopher, e Robert Wolff, A History of Civilization: Prehistory to 1715 (Prentice-Hall). O relato se encontra na ed. de 1960, 575; ed. 1971, 513; ed. 1976, 551. 10. Joseph Chiari, Christopher Columbus (Nova York, 1979). 11. Entre os textos escolares que apresentavam as explicações corretas, estão American History (Allyn e Bacon, 1983), 24; United States History (Addison-Wellesley, 1986), 13; The Rise of the American Nation (Harcourt Brace Jovanovich, 1982), 12; American Adventures (Steck-Vaughan, 1987), 16. Entre as enciclopédias que apresentavam a explicação correta, estão The New Encyclopedia Brittanica (1985); Colliers Encyclopedia tentando ‘provar que o mundo era redondo’, como tanto se disse. Ele não tinha por quê”. 12. Daniel Borstin, The Discoverers (Nova York, 1983), 100. 13. Ibid., 109. 14. Veja o capítulo III deste livro.
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(1984). The Encyclopedia Americana (1987); e The World Book for Chidren (1989), que diz, abrupta, mas corretamente, “Colombo não estava
55
HISTÓRIA
público aceitá-lo tão prontamente? O trabalho de
no centro do cosmo. De forma nenhuma se conclui
detetive sobre essa pergunta produz um resultado
logicamente uma Terra plana a partir de um cosmo
mais apavorante do que a idéia de cair da borda da
esférico e geocêntrico. Mas há uma forma histórica
Terra: a idéia de cair da borda do conhecimento.
pela qual ambas estão conectadas: por Copérnico no século XVI, que as uniu para desacreditar os seus
A própria afirmação de que “Colombo provou que o mundo era redondo” apresenta dificuldades lógicas. Como Colombo jamais havia navegado ao redor do mundo, só quando os homens de Magalhães voltariam depois de haver circumnavegado o globo em 1522 é que a esfericidade do planeta poderia ser provada empiricamente. Então, se podemos dizer que o feito de Colombo foi algum tipo de prova, deve ser no sentido de que convenceu as pessoas de que a Terra era provavelmente redonda, pessoas que até então acreditavam no contrário. Mas ninguém
adversários geocêntricos.
A coragem do racionalista confrontado pelo terrível peso da tradição e suas cruéis instituições de repressão é atrativa e excitante – e infundada.
acreditava no contrário.15 Na época em que Copérnico havia revolucionado O que se quer dizer com “ninguém”? Sem dúvida
a forma pela qual as pessoas viam os planetas –
algumas pessoas vivas em 3 de agosto de 1492
girando ao redor do sol e não ao redor da Terra –, a
acreditavam que a Terra era plana. Hoje em dia
semente da Erro Plano havia sido plantada, mas ela
algumas ainda acreditam, e não só os membros da
não cresceu ao ponto de sufocar a verdade, senão
International Flat Earth Society. Pesquisas demons-
muito mais tarde. Quando que ela triunfou, e por
tram a ignorância geográfica das pessoas no final
quê? Quem foi o responsável? Estas são as princi-
do século XX.16 Mas as idéias dos ignorantes não
pais questões deste livro. Mas a primeira pergunta
tinham efeito sobre Colombo, ou sobre sua ben-
é o que Colombo e seus adversários e contempo-
feitora Rainha Isabel. Por que deveriam ter? Os
râneos realmente pensavam em oposição ao que o
instruídos – geógrafos e teólogos – estavam lá para
Erro Plano supõe que eles pensavam.
lhes dizer que a Terra é redonda.17 Os que se opuseram à viagem de Colombo o fizeram por motivos
A história de Cristóvão Colombo, o jovem e audaz
completamente diferentes.
racionalista que superou os ignorantes e intratáveis religiosos e supersticiosos navegadores, está
Na mente moderna, a idéia da geocentricidade está
fixada no folclore moderno.
geralmente ligada à idéia de ser plana, mas são duas coisas distintas. Com algumas exceções, as
“Mas, se a Terra é redonda,” disse Colombo, “não é
pessoas instruídas antes de Copérnico (1473-1543)
o inferno que fica além do mar tempestuoso. Lá deve
de fato acreditavam que os planetas – e as estrelas
estar a praia oriental da Ásia, a Cathay de Marco Polo,
– giravam ao redor da Terra ao invés de ao redor
a Terra de Kubla Khan, e Cipango, a grande ilha para
do sol. Contudo, a idéia de que a Terra é esférica é
além dela”. “Absurdo!” disseram os vizinhos: “o
nitidamente distinta da idéia de que a Terra está
mundo não é redondo – você não consegue ver que ele
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15. Charles E. Nowell, “The Columbus Question”, American Historical Review 44 (1939): 802-22. 16. Geography: An International Gallup Survey (Princeton, N. J., 1988); veja Readers’ Digest, fev. 1988 (132: 119-121); Newsweek (2 de julho, 1984 (104: 12) e 8 de ago., 1988 (112: 31); Los Angeles Times, 17 nov., 1987 (I, 3:2) e 19 nov., 1987 (II, 8:1); US News and World Report, 8 ago., 1988
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(105: 11).
56
17. O latim foi a língua da intelectualidade na Europa ocidental pelos primeiros dezessete séculos da nossa era. Os significados antigo e medieval das principais palavras latinas são ambíguos: orbis ou orbis terrarum (“orbe” ou “orbe das Terras”) poderia significar redondo no sentido forte ou meramente circular (as línguas modernas são também ambíguas, como no português “mesa redonda”). Rotundus também pode significar esférico ou meramente circular: ela deriva de rota, uma roda. As palavras globus e sphaera são mais precisas. Um globus às vezes é uma massa indiferenciada, mas mais geralmente uma bola, esfera ou órbita, e uma sphaera é uma bola ou globo além de ser uma figura geométrica perfeita.
é plano? E Cosmas Indicopleustes, que viveu centenas
A coragem do racionalista confrontado pelo terrí-
de anos antes de você nascer, diz que ela é plana; e ele
vel peso da tradição e suas cruéis instituições de
tirou isso da Bíblia…”
repressão é atrativa e excitante – e infundada.19 Cristóvão Colombo era menos um racionalista do
[Colombo afinal consegue uma audiência com o
que uma combinação de entusiasta religioso com
clero.] No hall do convento estava reunida a impo-
empreendedor comercial; e ele gostava do tipo de
nente companhia – monges de cabeça rapada
fortúnio que ocorre uma vez a cada meio milênio.
trajados de preto e cinza, homens da corte elegan-
Colombo viveu na época certa: os turcos estavam
temente vestidos com garbosos chapéus, cardeais de
bloqueando as antigas rotas terrestres até a Índia
capas escarlates – toda a dignidade e intelectualidade
e a China; os portugueses estavam buscando uma
da Espanha, reunida e aguardando pelo homem e por
rota marítima oriental ao redor da África e esta-
sua idéia. Ele detém-se diante deles com suas cartas,
belecendo lucativos entrepostos comerciais nesse
e explica sua crença de que o mundo é redondo… Eles
processo; os “monarcas católicos” Fernando e
haviam ouvido antes algo sobre isso em Córdoba, e
Isabel estavam unificando a Espanha e podiam
aqui em Salamanca, antes da comissão se reunir for-
ser persuadidos a passar à frente de seus compe-
malmente, e já tinham seus argumentos prontos.
tidores portugueses. Colombo argumentava que uma rota direta para o Oriente abriria as riquezas
“Você acha que a Terra é redonda, e habitada do outro
da China para os comerciantes católicos e as suas
lado? Você não sabe que os Santos Padres da Igreja
almas para os missionários católicos. Ele não era
condenaram essa crença?… Você vai contradizer os
o último a alimentar a ilusão de que os asiáticos
Padres? As Sagradas Escrituras também nos dizem
estavam prontos para atirar-se de corpo e alma aos
expressamente que os céus são esticados como uma
pés dos europeus.
tenda, e como isso pode ser verdade se a Terra não é plana como o solo sobre o qual se assenta a tenda?
As especulações de Colombo sobre navegar para
Essa sua teoria parece herética”.
oeste até as Índias (um termo que então significava o Oriente Distante inteiro) eram parte de uma
Colombo poderia muito bem se borrar de medo à
ampla frente de opiniões já promovidas nessa dire-
menção de heresia; pois havia uma nova Inquisição
ção. Colombo lia muito e sabia que outros haviam
marchando convicta, com seu elaborado sistema
defendido que entre a Espanha e as Índias o mar
de quebrar ossos, apertar carne, aplicar torniquete,
era curto e poderia ser atravessado em poucos
enforcar, queimar e mutilar hereges. O que seria da
dias. 20 Paolo dal Pozzo Toscanelli, o astrônomo
idéia se ele acaso fosse transferido para essa enérgica
florentino, respondeu a uma carta de 1474 de um
instituição?”18
cânone de Lisboa que uma viagem ocidental seria viável, utilizando no caminho ilhas como locais de
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18. James Johonnot, compilador e arranjador, Ten Great Events in History (Nova York, 1887), 123-30. 19. Bartolomé de las Casas, Historia de las Indias, 3 vols. (escrito em meados de 1560; ed. Gonzalo de Reparaz, Madri, 1927), que contém um resumo do próprio Diário de Colombo; C. Colombo, Journal of the First Voyage to America, ed. Van Wyck Brooks (Nova York, 1924); Oliver Dunn e James E. Kelley Jr., The Diario of Christopher Columbus’ First Voyage to America 1492-1493 Abstracted by Fray Bartolomé de las Casas (Norman, Okla., 1989); Ferdinando Colombo, Historia del almirante (1571) (eu uso a tradução de Benjamin Keen, The Life of the Admiral Christopher Columbus by His Son Ferdinand [New Brunswick, N. J., 1959]); Pietro Martire d’Anghiera (1457-1526), Decadas del nuevo mundo (Buenos Aires, 1944). Para o relato de Rodrigo Maldonado em 1515 do encontro da comissão em Salamanca, veja Samuel Eliot Morison, Admiral of the Ocean Sea (Boston, 1942), 88; e o alegado relato de testemunha em Salamanca de Alexandre Geraldini, escrito em 1520-1524, mas só publicado muito tempo depois: Itinerarium ad regiones sub aequinoctiali plaga constitutas (Roma, 1631). Veja W. G. L. Randles, De la terre plate au globe terrestre (Paris, 1980), 29. Fontes secundárias úteis são George Nunn, The Geographical Conceptions of Columbus: A Critical Consideration of Four Problems (Nova York, 1924), Felipe Fernandez-Armesto, Columbus and the Conquest of the Impossible (Nova York, 1974), Jacques Heers, de tudo Morison, Admiral e The European Discovery of America: The Southern Voyages (Nova York, 1974). A obra-prima de Morison desafiou a corrente do Erro Plano mas não interrompeu seu andamento. Um relato popular e literário foi o de Salvador de Madariaga, Christopher Columbus: Being the Life of the Very Magnificent Lord Don Cristobal Colon (Nova York, 1940). 20. Colombo usou uma tradução latina de 1485 do Livro de Marco Polo, uma tradução italiana da História Natural de Plínio impressa em 1489, a Imago mundi de Pierre d’Ailly publicada entre 1480 e 1483, e uma edição de 1477 da Historia rerum ubique gestarum de Aeneas Silvius
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Christophe Colombe (Paris, 1981), Cecil Jane, Select Documents Illustrating the Four Voyages of Columbus, 2 vols. (Londres, 1930-1933), e acima
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HISTÓRIA
abastecimento de água e de provisões. Ele enviou-
espanhola como um Conselho de Estado em 1483,
-lhe um mapa que mostrava muitas pequenas
mas essa instituição, focada primeiramente con-
ilhas no mar ocidental entre a Europa e as Índias.
tra judeus convertidos que recaíam em sua própria
Colombo, sabendo da correspondência, obteve
religião, não tinham nenhum interesse na forma
de Toscanelli uma cópia da carta e do mapa. Em
do globo.
1492, no mesmo ano em que Colombo navegou em direção ao ocidente, Martin Behaim, que havia
Além das hesitações políticas, havia obje-
visitado Lisboa em 1484, voltou para sua cidade
ções intelectuais. Os monarcas espanhóis
natal de Nuremberg e construiu um globo da Terra
indicaram Colombo a uma comissão real dirigida
que mostrava um mar aberto para o ocidente até
por Hernando de Talavera, confessor da Rainha
o Japão e a China. Em 1493, Hieronymus Munzer
Isabel e posterior Arcebispo de Granada.22 Essa
escreveu ao Rei João II de Portugal para propôr a
comissão era na verdade um comitê secular ad hoc
viagem a oeste, sem saber que em 12 de outubro de
composto de conselheiros leigos e clericais; não
1492, Colombo e sua tripulação já haviam avistado
era de forma alguma um conselho eclesiástico, que
a ilha de “San Salvador” (possivelmente a ilha de
dirá uma convenção inquisitorial. Tratavam-se de
Watling nas Bahamas). Colombo acreditava que
homens práticos tentando decidir se era prática
estava num arquipélago que incluía o Japão.
uma passagem a ocidente.
Nenhuma das fontes mais antigas, incluindo o
Depois de alguns atrasos, Talavera convocou um
próprio Diário de Cristóvão Colombo conforme
encontro do comitê um tanto informal em Córdova
apresentado por Las Casas, e o resumo de Fernando
no início do verão de 1486, e outro no Natal em
Colombo das razões por que seu pai fez a viagem,
Salamanca, e ainda outro em 1490 em Sevilla. O
em sua História do Almirante, levanta qualquer
encontro da comissão em Salamanca não foi uma
questão sobre a tal redondeza . Nem os relatos dos
convenção de estudiosos, e a universidade estava
Cabotos ou outros exploradores antes da circum-
envolvida somente na medida em que o comitê se
navegação de Magalhães. A razão era que não havia
reuniu em uma das suas faculdades. Das objeções
questionamento. De onde, então, saíram essas
colocadas a Colombo, nenhuma envolvia questões
sinistras descrições do explorador detido diante
sobre a esfericidade. Até mesmo a estranha objeção
dos seus ignorantes inimigos?
de que uma pessoa tendo navegado “para baixo” na
21
curva da Terra poderia descobrir ser difícil navegar Na verdade, Colombo realmente tinha adversá-
“para cima” de volta supunha a esfericidade.23 Mais
rios. Por volta de 1484, Colombo propôs a viagem
convincentes, os adversários, citando as medidas
ao Rei João de Portugal, mas o rei preferia conti-
tradicionais do globo de acordo com Ptolomeu,
nuar para o sul e o leste ao longo da costa africana,
argumentavam que a circunferência da Terra era
uma política que estava obtendo grandes retornos
grande demais e a distância muito longa para per-
econômicos, ao invés de se arriscar na passagem
mitir uma passagem ocidental segura. Com razão
a ocidente. Quando Colombo voltou-se para os
eles temiam que se poderiam desperdiçar vidas
monarcas espanhóis Fernando e Isabel, encon-
e riquezas numa viagem possivelmente longa. O
trou-os preocupados com o término do processo
comitê ficou suspenso sem nenhum acordo, e os
da unificação da Espanha pela conquista do reino
soberanos espanhóis, ocupados com suas guerras
mouro de Granada. É verdade que os monar-
contra os mouros, não deram resposta.
cas católicos haviam estabelecido a Inquisição
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Piccolomini. Morison, Admiral, 92.
58
21. Ferdinando Colombo, A vida do Almirante, capítulos 6-7. 22. Veja Fidel Fernandez, Fray Hernando de Talavera: Confesor de los reyes catolicos y primer arzobispo de Granada (Madri, 1942). 23. Essa objeção pode vir de “Sir John Mandeville” no século XIV, que escreveu sobre viajar “para cima” ou “para baixo” na esfera: veja o capítulo três.
Nenhuma de suas objeções colocava em questão a esfericidade da Terra.
de graus ocupada pelo mar vazio, e a distância entre os graus. Os cálculos padrões aceitos pela maioria dos geógrafos no século XV eram aqueles de Cláudio Ptolomeu (c. 150 d.C.). Ptolomeu acreditava que o planeta era coberto pelo oceano, exceto pela
Enquanto isso, entre 1486 e 1490, Colombo cui-
grande massa de Terra habitada, que ele chamava
dadosamente preparou os cálculos com os quais
de oikoumene e à qual nós nos referimos como
defenderia seu plano. Em 1490, a comissão final-
Eurásia e África. Oikoumene seria melhor traduzido
mente decidiu contra ele. Novamente, nenhuma de
aqui por “o mundo conhecido”. De leste a oeste,
suas objeções colocava em questão a esfericidade
o mundo conhecido de Ptolomeu ocupava cerca de
da Terra. Confiando em Ptolomeu e Agostinho, eles
180 graus, deixando 180 graus para o oceano.26 Mas
argumentavam que o mar era grande demais; que
Colombo também lia Pierre D’Ailly, que dava uma
a curvatura do planeta proibiria o retorno desde
estimativa de 225 graus para a Terra e 135 para o
o outro lado do mundo; que poderia não haver
mar.27 Isso era muito melhor para Colombo, mas
habitantes no outro lado, porque eles não seriam
ainda não era bom o bastante. Argumentando que
descendentes de Adão; que somente três das tra-
as viagens de Marco Polo haviam mostrado que
dicionais cinco zonas climáticas eram habitáveis;
a massa de terra asiática se estendia muito mais
que Deus não teria permitido que cristãos perma-
para o leste do que era conhecido por Ptolomeu
necessem ignorante de terras desconhecidas por
ou D’Ailly, Colombo acrescentou mais 28 graus
tão longo tempo.
de Terra, somando 253 graus contra 107 do oce-
24
ano. Como o Japão era (Colombo acreditava nisso As dúvidas do comitê eram compreensíveis, pois
por causa de Marco Polo) bem a leste da China,
Colombo havia cozinhado seus próprios argumen-
ele subtraiu mais 30 graus do mar, chegando a 77.
tos. A estimativa moderna da circunferência do
Então, como planejava partir das Ilhas Canárias e
planeta é de cerca de 40mil quilômetros (km). A
não da própria Espanha, ele diminuiu mais 9, dei-
Terra é dividida latitudinalmente e longitudinal-
xando 68. Mesmo isto ainda não era o bastante, e,
mente em 360 graus, e o comprimento de um grau
num esplêndido gesto final, ele decidiu que D’Ailly
de latitude podia ser grosseiramente medido por
havia errado 8 graus, para começar. Na época em
observações do sol, como Eratóstenes havia feito
que tinha terminado, ele havia reduzido o oceano
quase dois milênios antes; a estimativa moderna é
a 60 graus, menos do que um terço da estimativa
de cerca de 111km. Segue-se que 1 grau de longitude
moderna dos 200 graus de distância em direção a
do equador é aproximadamente a mesma estima-
oeste, desde as Ilhas Canárias até o Japão.28
tiva que 1 grau de latitude.
25
Colombo precisava
persuadir Fernando e Isabel que a viagem através
Não contente em manipular a longitude, Colombo
do oceano não era impossivelmente longa, e para
manipulou também a milha. Um grau de longitude
isso ele precisava reduzir duas coisas: a quantidade
no equador é aproximadamente igual a um grau
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24. Morison, Admiral, 97-98. Heers, Christophe Columb, 190-91, oferece uma refutação detalhada da figura do jovem herói diante de um conselho ignorante. Heers sugere algo interessante: Irving pode ter lido o caso de Galileu no de Colombo. 25. Geógrafos modernos sabem, mas os navegadores então não sabiam, que a Terra é um pouco maior na direção leste-oeste do que na norte-sul; de qualquer modo, a diferença é desconsiderável a título de navegação. Só na metade do século XVIII foi possível medir milhas náuticas com precisão. 26. Ele também se estendia de 63 graus ao norte para 16 graus ao sul.
da Sibéria, cobre cerca de 200 graus, então Marinus na verdade estava mais perto da marca do que Ptolomeu. Marinus (c. 140 d.C.) era um contemporâneo mais velho de Ptolomeu. 28. Colombo foi influenciado por sua leitura do livro apócrifo 4 Esdras (ou 2 Esdras na maioria das edições dos apócrifos), 6:42, em acreditar que o planeta era seis sétimos de terra. Morison, Admiral, 71.
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27. D’Ailly seguiu Marinus em seu Cosmographia tractatus. Pelos cálculos modernos, a oikoumene de Ptolomeu, da ponta da Ibéria até a ponta
59
HISTÓRIA
de latitude, e D’Ailly citava o astrônomo árabe Al-Farghani ou “Alfragano” (século IX) como determinando um grau de latitude em 56-2/3 milhas.29 Essa estimativa foi usada por Colombo – com um pequeno toque. Ele escolheu supor que as milhas de Alfragano eram as milhas romanas, mais curtas, ao invés das náuticas, mais longas. Colombo traduziu a estimativa de Alfragano em 45 milhas náuticas. Como Colombo planejava atravessar o oceano consideravelmente ao norte do equador, ele ajustou isso para cerca de 40 milhas náuticas (cerca de 74km) por grau. Ao agrupar essas estimativas, Colombo calculou a distância entre as Canárias e o Japão em cerca de 4.450km. A estimativa moderna é de 22mil km. Isto é, ele estimou a viagem em cerca de 20% da sua distância real. Se Deus ou a sorte não tivesse colocado a América – as Índias ocidentais – no caminho para pegá-lo, Colombo e suas tripulações poderiam de fato ter perecido, não por cair da Terra, mas de fome e de sede. Colombo tornou vitorioso seu argumento junto aos seus patrões ao acrescentar que a viagem podia provavelmente ser interrompida em ilhas pelo caminho. Depois de uma longa manobra política e muitas frustrações, finalmente, em abril de 1492, Colombo obteve o apoio da Rainha Isabel e partiu em viagem no terceiro dia de agosto.30 Os adversários de Colombo, ignorantes de seu paradeiro, tinham nesse caso o conhecimento e a razão mais a seu lado do que ele. Ele tinha a habilidade política, a obstinada determinação, e a coragem. Eles tinham uma idéia nebulosa, mas bastante precisa do tamanho do globo. Como esses supostos ignorantes clérigos da Idade Média vieram a ter um conhecimento tão preciso?
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Tradução por Emílio Costaguá
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29. Os Elementa astronomica de Alfragano foram traduzidos do árabe para o latim por Gerardo de Cremona e Joannes Hispalensis no século XII. 30. Morison fornece um relato claro sobre a política e as preparações em Admiral, 79-149.
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