REVISTA TERMINAL Número 4 - Março de 2014 EDIÇÃO Renan Santos ARTE Renan Santos TRADUTORES Larry Martins Fernandes Oswaldo Viana Jr. Rafael Daher Rafael Falcón Wendy Aelson Carvalho William Campos da Cruz ESCRITORES Marcus Boeira
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© Revista Terminal 2014
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Marรงo de 2014
ÍNDICE
FILOSOFIA O ensino da gramática, John de Salisbury.......................................................................................................................................................................................6 O romantismo europeu e as raízes da secularização política............................................................................................................................................12 Feliz Aniversário, Charles Darwin, Benjamin Wiker.................................................................................................................................................................17 RELIGIÃO Qual o principal ponto do jejum? Metropolita João..................................................................................................................................................................20
LITERATURA O sectário social, G. K. Chesterton........................................................................................................................................................................................................24 O ponto de vista russo, Virginia Woolf................................................................................................................................................................................................27 Introdução ao Diário de Amiel, Tolstói..............................................................................................................................................................................................33 Dois tipos de atividade mental, Tolstói............................................................................................................................................................................................36
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FILOSOFIA
O ensino da gramática, John de Salisbury Tradução dos capítulos 23 e 24 do Tomo I do “Metalogicon” (1159)
Capítulo 23. Quais os principais meios para o
os textos escritos. O ensinamento, por sua vez,
exercício da filosofia e da virtude; e como a
também diz respeito, a princípio, aos escritos;
gramática é seu fundamento.
não obstante, avança ainda rumo a coisas que não
S
foram escritas, mas que se refugiaram nos arcanos ão principais, para o exercício de toda
da memória, ou que se notam pelo entendimento
filosofia e virtude, a leitura, o ensinamento,
do objeto por si mesmo1. Já a meditação se estende
a meditação e o trabalho constante. Ora, a
até ao que é desconhecido, e frequentemente se
leitura possui como sua matéria-prima
eleva a coisas incompreensíveis, desvelando tanto
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1. Há, portanto, uma continuidade: a leitura é o início, o ensinamento a complementa por meios não-escritos. Esses meios dizem respeito, primeiro, ao ensino oral, que é mais completo e detalhado que o escrito; segundo, à percepção do objeto de discurso (res), que contém muitas informações ausentes do texto. Nenhum manual de micro-ondas explicará, por exemplo, o que é uma tomada ou como se encaixa o plugue nela. A primeira informação normalmente advém pela audição de outros seres humanos, e a segunda é evidente pela própria visão do objeto.
os aspectos manifestos do assunto, quanto os
natureza, mas apenas depois que a Graça prepa-
secretos.
rou o terreno. Essa semente – desde que acorra a
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Graça cooperante – transforma-se num tronco O quarto item, isto é, o trabalho constante, embora
de sólida virtude e cresce de muitas formas, até
seja limitado pela compreensão pré-existente, e
que frutifique em boas obras; e daí os homens
ainda que necessite de conhecimento, pavimenta o
bons “recebem esse nome, e realmente o são” 7.
caminho para o entendimento, de vez que há “bom
Contudo, somente a Graça, que opera o querer e o
entendimento para todos que o põem em prática” .
realizar do bem8, faz um homem bom; e é ela, mais
Os arautos da verdade, está escrito, “proclamaram
do que qualquer outro fator, que comunica aos seus
3
A leitura, o ensinamento e a meditação dão à luz o conhecimento.
escolhidos a capacidade de escrever e falar corretamente, e lhes administra diferentes artes. Não se deve desprezá-la quando ela se oferece benignamente a nós, que dela necessitamos; pois se for desprezada, com justiça ela se retira, e não resta, a quem a desprezou, motivo algum de queixa.
as obras de Deus, e compreenderam seus feitos” 4 . De resto, o conhecimento precede, pela
Capítulo 24. Sobre a prática da leitura e da
própria natureza, a prática e o cultivo da virtude:
preleção, com uma explicação do método de
pois ela não “corre sem saber aonde vai”, tam-
Bernardo de Chartres e de seus seguidores
pouco “golpeia o ar” na guerra que faz aos vícios. 5
Ao contrário, “ela enxerga aonde vai e para onde
Quem aspira, pois, a tornar-se um filósofo, aplique-
distende o arco” . Não segue corvos ao acaso com
se à leitura, ao ensinamento e à meditação, bem
lama e um tijolo.
como à realização de boas obras, para que o Senhor
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não se enfureça e lhe tome o que parecia possuir9. A leitura, o ensinamento e a meditação dão à luz o conhecimento. Daí resulta que a gramática, que
Ora, a palavra “leitura” é equívoca. Ela pode
é fundamento e raiz do conhecimento, lança, por
referir-se tanto à atividade do professor e do aluno
assim dizer, uma semente como que no sulco da
quanto à ocupação de investigar algum escrito por
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2. Supõe-se sempre, entre os autores antigos e medievais, que não se pode compreender um texto sem meditá-lo. A ideia de que se possa simplesmente ler algo e obter uma compreensão automática, instantânea, concomitante com o ato de leitura, parecer-lhes-ia absurda e até ridícula. Para cada frase, há um espaço necessário de meditação, que permite a passagem da superfície verbal (signum) para o conteúdo completo (res). 3. “O temor do Senhor é o começo da sabedoria; é bom entendimento para todos que o põem em prática” (Salmos, 110, 10). 4. “Todo homem teve medo; e proclamaram as obras de Deus, e compreenderam seus feitos” (Salmos, 63, 10). 5. “Eu, porém, não corro como quem não sabe aonde vai, nem luto como quem golpeia o ar” (Coríntios, 1, 9, 26). 6. “Há, por acaso, um alvo rumo ao qual contrais e distendes teu arco? Ou segues corvos ao acaso, com tijolo e lama, seguro de que acertarás seus pés, e vives de improviso?” (Pérsio, III, 60-2). A sátira de Pérsio bem se aplicaria a um sem-número de santarrões, desde a Idade Média até o século XXI, que gritam aos quatro ventos que é mais importante a moral que o saber. Esses fazem confusão entre os pedantismos acadêmicos – que de fato pouco interessam à virtude – e o conhecimento contemplativo, que é premissa de qualquer ação moral. Por isso nunca faltarão retratos satíricos da piedade artificial de alguns energúmenos, que parecem ansiosos por pôr em prática um conhecimento que não chegaram a adquirir. De fato, consideram a moral uma ciência tão simples que são incapazes de aceitar que ela tenha tais requisitos intelectuais como os que John de Salisbury lhe atribui. 7. “Vede que amor nos dedicou o Pai, que sejamos chamados filhos de Deus, e que realmente o sejamos” (João 1, 3, 1). 8. “Deus opera em nós o querer e o realizar segundo o seu prazer”(Filipenses, 2, 13). Contra os santarrões ignorantes, que poderiam negar ao conhecimento seu primado sobre a virtude, remetendo-a à Graça, John lembra que não apenas a virtude, mas o próprio conhecimento e até o desejo de conhecer são intimamente dependentes do Espírito Santo. Em seguida, porém, ele nos lembrará que os dons do Espírito lhes a inteligência – dom do Espírito. 9. “Àquele que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado” (Mateus, 25, 29). Agora John não fala mais ao moralista ignorante, mas ao intelectual especulativo; suas descobertas devem resultar em boas ações. Lembre-se ele de que sua inteligência lhe foi dada pela Graça, e pode ser-lhe tirada; não abandone as boas obras, substituindo-as pelos estudos teóricos, porque ambos os pesos devem estar em equilíbrio
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não podem ser desprezados; e esta é precisamente a omissão dos néscios que, sob pretexto de moralizar suas ações, recusam-se a aplicar-
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FILOSOFIA
conta própria. A uma, isto é, ao que se comunica
discursivas, e por meio de frequentes admoe-
entre professor e aluno, chamemos (para usar o
stações mande tudo isso à memória dos alunos.
termo de Quintiliano) de “preleção”; à outra, à que
Examine os clássicos e (sem despertar o riso dos
diz respeito ao escrutínio meditativo, chamemos
alunos) arranque-lhes suas plumas; as quais, para
diretamente de “leitura”. Segundo a autoridade do
obter cores mais belas, eles tomaram (como o
mesmo Quintiliano, durante a preleção o profes-
gralho da fábula13) de várias disciplinas, e com elas
sor de gramática deverá chamar atenção até aos
cobriram suas obras.
menores detalhes: requeira que se discriminem as partes do discurso, depois de desmontar o
Quanto mais e com mais abundância alguém se
verso, e as características dos pés, que devem ser
tiver imbuído de muitos conhecimentos, tanto
observadas nos poemas10. Destaque as expressões
mais plenamente conseguirá perceber a elegância
bárbaras, as impróprias e outras que tenham sido
dos clássicos, e com tanto mais clareza conseguirá
compostas contra a lei do discurso. Mas não o faça
ensinar. Eles, de fato, por diácrisis 14 – que nós
como se reprovasse os poetas, aos quais muito se
podemos chamar “ilustração” ou “picturação”
deve perdoar pela obrigação do metro – de modo
– uma vez que tivessem tomado a matéria-bruta
que os defeitos, num poema, devem ser estimados
dos fatos históricos, dos argumentos, das ficções
com o nome de virtudes. De fato, a mesquinhez
poéticas ou outra qualquer, com tal riqueza de
das obrigações muitas vezes rouba o louvor da vir-
conhecimentos e tal graça de composição e de
tude, pois não se lhes pode negar o assentimento
tempero 15 a trabalhavam, que o produto final
sem alguma perda.11
parecia uma imagem, por assim dizer, de todas as
Quanto mais e com mais abundância alguém se tiver imbuído de muitos conhecimentos, tanto mais plenamente conseguirá perceber a elegância dos clássicos.
artes. Pois que a gramática e a poética espalham-se inteiras e ocupam a superfície inteira daquilo que é exposto. A este campo, como se costuma dizer, a lógica, trazendo as cores da demonstração, acrescenta seus métodos em ouro fulgurante; a retórica, nos argumentos persuasivos e no brilho do discurso, emula o candor da prata. A matemática é trazida pelas rodas de seu quadrívio16 e, pisando nos passos das outras, teceu ela as suas cores e galhardias com rica variedade. A física, tendo explorado os desígnios da natureza, tira de seu estoque uma variada galhardia de cores. Porém,
Que mostre os metaplasmos, esquematismos e
a mais proeminente de todas as partes restantes
tropos oratórios , a multiplicidade de dicções –
da filosofia, digo, a ética, sem a qual nem o nome
quando houver – e tais e tais diferentes técnicas
de filósofo subsiste, antecede todas as outras pela
12
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para agradar a Deus. 10. Partes do discurso (partes orationis) são as classes das palavras, como substantivo, adjetivo, etc. Antes de apontá-las, o aluno deve “soltar o verso” (versum solvere), isto é, reordená-lo como se prosa fosse. Também deve observar os pés, isto é, as unidades métricas do poema, que em latim eram constituídas da alternância entre sílabas breves e sílabas longas. 11. Nossos críticos literários fariam bem em aprender, com John de Salisbury, a não condenar tão prontamente a gramática dos poetas. 12. Nomes diversos para o que chamamos figuras de linguagem. 13. Numa fábula famosa de Fedro, Graculus Superbus et Pavo, o gralho (ave esquisita e feia) veste-se com penas de pavão e, invadindo um grupo deles, tenta passar-se por igual. É imediatamente percebido na farsa, e leva uma terrível surra. A moral diz respeito a não se comportar como alguém que não se é, mas não parece que John queira insinuar que os poetas são falsos ou pedantes por ornar-se com as artes.
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Ele recorda a imagem do gralho sem associá-la ao componente moral.
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14. O termo grego não tem nada que ver com a tradução latina. John não sabia grego, e está citando erroneamente algum termo de manual retórico. 15. Compositio e condimentum são termos da culinária, aplicados metaforicamente às artes literárias. 16. O quadrivium era o curso superior de estudos, composto de aritmética, geometria, música e astronomia. Todas essas disciplinas podem
graça do decoro que confecciona. Examina Virgílio
exortava-os, uns por conselhos, outros por golpes
ou Lucano e, não importa que filosofia professes,
e castigos, a imitar o que ouviam. Além disso, cada
ali encontrarás um condimento dela17.
um era obrigado a explicar, no dia seguinte, algo que houvesse escutado no anterior, e uns diziam mais,
Assim, segundo a capacidade do aluno ou a dil-
outros menos; pois para eles “o dia seguinte é um
igência e engenho do professor, permanece firme
discípulo do anterior”. O exercício vespertino, que
o fruto da preleção dos clássicos. Quem seguia esse
se chamava declinação, era repleto de tão grande
costume era Bernardo de Chartres, este que, em
riqueza gramatical que, se alguém o frequentasse
nossos tempos, é uma fonte transbordante das
por um ano inteiro, contanto que não fosse um
letras na França. Ao ler os clássicos, mostrava o
retardado mental, teria às mãos o método de falar e
que fosse simples e ajustado à forma da regra: as
escrever, e não teria mais como desconhecer o sig-
figuras da gramática, cores retóricas, advertências
nificado das palavras de uso comum.
a sofismas; e se alguma parte do excerto proposto à leitura remetia a outras disciplinas, ele interrom-
Mas uma vez que nem escola, nem dia algum deve
pia a exposição para explicá-las; mas o fazia não
ser desprovido de religião, sempre se dispunha
para ensinar tudo de uma vez, e sim de modo a dis-
uma matéria que edificasse a fé e os costumes, e
pensar-lhes no tempo apropriado, de acordo com
por onde os presentes, reunidos como que numa
a capacidade dos ouvintes, a medida necessária de
leitura conventual (collatio), fossem animados para
conhecimento.
o bem. O último elemento desta declinação, quer
Os antigos contavam, entre as virtudes do gramático, ignorar algumas coisas.
dizer, da collatio filosófica, era uma conferência sobre os caminhos da piedade religiosa; depois, recomendavam-se as almas dos falecidos ao seu Redentor, pelo oferecimento devoto do salmo, o sexto dos penitenciais, e na oração do Senhor19.
E que o brilho da oração ou vem da propriedade18
Para aqueles a quem se indicavam os exercícios
– isto é, quando se ajunta elegantemente o adje-
primários (praeexercitamina)20, na imitação de prosa
tivo ou verbo ao substantivo – ou da transferência,
ou de poesia, ele escolhia poetas ou oradores como
quer dizer, quando a fala (com uma justificativa
modelos e ordenava que se imitassem os passos
plausível) é conduzida a significados alheios; tais
deles; mostrava tanto as conexões entre as coisas
conceitos ele inculcava, se a ocasião se apresen-
ditas quanto as conclusões elegantes de perío-
tasse, nas mentes dos ouvintes. E já que a memória
dos. Contudo, se alguém remendasse o brilho de
se firma e o engenho se apura pelo exercício,
seu próprio trabalho com um tecido alheio21, após
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ser entendidas em subordinação à matemática, pois eram abordadas do ponto de vista abstrato – por exemplo, em “música” não se aprendia a tocar flauta, mas a lidar com as proporções matemáticas envolvidas. A metáfora da matemática sendo levada pelas disciplinas é uma brincadeira com a quadriga, uma carruagem suntuosa conduzida por quatro cavalos. 17. Os conflitos das escolas filosóficas geralmente não são contradições completas, mas exposições distintas de percepções reais, que embora se contradigam na superfície verbal, como o grave contradiz o agudo, encontram sua unidade de fundo na harmonia última da realidade. É essa harmonia que as intuições dos poetas comunicam, tornando possível que elas tragam em si “condimentos” de todas as filosofias possíveis. John recorda-nos que a gramática parece abranger, de certo modo, todas as artes, até mesmo a ética. 18. No sentido de “atribuir uma propriedade a algo”, como fica claro a seguir. 19. Isto é, o Pai-Nosso.
20. Os προγυμνάσματα, exercícios preparatórios, visavam a desenvolver diversas capacidades discursivas que seriam aproveitadas na fase dos discursos retóricos completos. Praticava-se a narração, vários tipos de argumentação, louvores e vitupérios.
21. “Os inícios solenes, e que prometem grandes coisas, muitas vezes, para que mais brilhem, são remendados com pano púrpura” inseridos de modo artificial, sem combinar com o conjunto. John de Salisbury trabalha sobre a imagem, sugerindo que os alunos plagiavam autores clássicos (“pano alheio”), e que o plágio era mais visível por causa da inadequação com o restante do texto. Considerando o restante do parágrafo, provavelmente está implícito, aqui, que um plágio bem inserido no novo contexto não era considerado furto. Certamente essa era prática comum na Antiguidade, como se vê pelo dito atribuído a Virgílio, de que era mais fácil roubar a clava de Hércules que um verso
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(Horácio, Ars Poetica, 14-16). Refere-se Horácio a poemas que começam com trechos grandiloquentes, que porém foram enxertados, isto é,
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FILOSOFIA
pegá-lo no furto, Bernardo ralhava com ele; mas
Porém, costumava dizer: “deve-se fugir do conhec-
quase nunca lhe infligia algum castigo. Ele ral-
imento supérfluo; é suficiente ler o que escreveram
hava nessas circunstâncias, contudo, apenas se a
os autores ilustres; pois que correr atrás do que
inepta adaptação o merecia; então ordenava e fazia
foi dito por algum homem desprezível provém,
embarcar – com moderada indulgência – rumo à
ou duma inquietude excessiva, ou de gabolice
expressão da imagem dos autores imitados . De
vazia26. Isso retarda e destrói a inteligência, que
fato, dizia ele, quem imita os mais velhos torna-se
com mais proveito permaneceria desocupada para
digno da imitação dos pósteros.
outros estudos; ora, aquilo que nos retira o que
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Na exercitação primária dos alunos nada é mais útil do que habituar-se ao que se faz com técnica.
temos de melhor, por isso mesmo não nos é útil, e não a chamemos pelo nome de ‘bem’”. De fato, sacudir todos os papiros e revirar todos os escritos, mesmo os indignos de leitura, é tão pertinente quanto dar atenção às estórias das velhas. Como disse Agostinho, no De Ordine, “quem pode suportar que um homem seja visto como ignorante por nunca ter ouvido sobre o voo de Dédalo, quando
Também ensinava e imprimia nos corações, entre
aquele que o disse não é considerado mentiroso,
os primeiros rudimentos, que virtude havia na
o que lhe deu crédito não é tolo, e o que pergun-
economia23; qual havia na dispensa apropriada das
tou não é desavergonhado? Ou quanto àquilo que
matérias que se usam para compor elogios; qual era
costumo lamentar muito em nossos amigos, que
a diferença entre a simplicidade e, por assim dizer,
se não responderem como era chamada a mãe de
a anemia da linguagem, onde é que se encontrava
Euríalo, são acusados de insciência; aos outros,
a abundância louvável, onde o excessivo, onde a
porém, que lhes fazem essas perguntas, eles não
medida de tudo. Aconselhava que percorressem
ousam chamar de tolos, inúteis e curiosos”. Isto
as obras historiográficas e os poemas com grande
dizia ele com elegância e verdade. E por isso é com
diligência, aqueles que não fossem impelidos por
razão que os antigos contavam, entre as virtudes
alguma espora a fugir24; e exigia de cada um, com
do gramático, ignorar algumas coisas27.
diligente insistência, como uma dívida diária, algo que tivesse guardado na memória25.
E porque na exercitação primária dos alunos nada
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de Homero. Virgílio, de fato, “emprestou” muitos versos homéricos, mudando-os de contexto e modificando-os. A técnica do empréstimo foi praticada pela maioria dos poetas até o século XIX e, depois, retomada por modernistas de pendor clássico como T. S. Eliot. 22. A metáfora da escrita como “embarcar para a guerra” era muito utilizada para referir-se à poesia épica, que se destacava tanto pelo tema bélico (“as armas e os varões assinalados”) quanto pela dificuldade intrínseca da escrita. Como o poeta épico, escrevendo em tal gênero, se submetia a grandes riscos, sua “jornada” se comparava à dos heróis que eram objeto de seu próprio poema. Aqui, John retoma a imagem, aplicando-a à imitação dos clássicos em geral (e não só dos épicos), para ressaltar que imitar um clássico, tentando superá-lo com seus próprios versos, é uma empreitada perigosa. O prêmio, porém, é grande – como ressaltava Bernardo de Chartres. Cf. a fala de Dante a Virgílio: “tu se’ solo colui da cu’ io tolsi/ lo bello stilo che m’ha fatto onore” (Comm., I, 86-87). Que admirador de Dante não se sentiria ofendido, se um professor lhe dissesse que seu estilo era todo imitado de Virgílio? Porém não é um professor, e sim o próprio Dante quem o declara. 23. Provavelmente no sentido de “organização do discurso”, dizendo respeito a algo como a dispositio retórica, mas talvez com um sentido um mais amplo: a relação entre as partes, a adequação de cada parte ao todo, etc. 24. O sentido parece ser que as obras não devem ser percorridas com pressa, como um cavalo que corre desesperadamente, movido por golpes de espora. Ao contrário, devem ser estudadas com vagar e atenção. 25. Mais uma vez, John ressalta a atenção que tinha Bernardo de Chartres para com a memória, exigindo que todos os dias os alunos lhe mostrassem algo que haviam memorizado. É bom lembrar que não se tratava da memorização de informações abstratas, mas de passagens
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literárias, de poesia ou prosa.
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26. Isto é, desejo de gabar-se por conhecer muitas coisas (mesmo que insignificantes). Alguns de nós diriam “pedantismo”. Quanto à inquietude, ela é bem conhecida de certos estudantes tão bem-intencionados quanto desorientados que, para não se sentirem estúpidos, perseguem conhecimentos fáceis e inúteis. 27. A frase é de Quintiliano (Inst. I, 8, 18): “mihi inter virtutes grammatici habebitur aliqua nescire”. John visivelmente a citou de cabeça, pois trocou algumas palavras (e.g. nescire por ignorare). Isso mostra com que força se imprimiu na sua mente o texto de Quintiliano.
é mais útil do que habituar-se ao que se faz com
Donde resulta que aqueles que lucram com todas
técnica, escreviam muita prosa e poesia todos os
as artes, tanto as liberais como as mecânicas, já
dias, e se exercitavam comparando seus trabalhos
não conhecem a primeira; e sem ela, em vão se
uns com os outros; nada é mais útil à eloquência do
avança às outras. É claro que outras disciplinas
que esse exercício, nem mais proveitoso ao con-
ajudam a educar-se nas letras, mas a gramática
hecimento, além de trazer muito benefício à vida,
tem o privilégio singular de conferir o nome de let-
se a dedicação a ele for regida pela caridade, se o
rado. Por isso Rômulo a chama de literatura, Varrão
avanço literário for serviçal da humildade. De fato,
por sua vez de literação, e aquele que a professa,
“não pode um mesmo homem servir às letras e aos
digo eu, é chamado letrado. Na Antiguidade era
vícios carnais” .
chamado de mestre32, como em Catulo: “Um pre-
28
sente, Sylla, te dá o mestre”33. Por isso é razoável Segundo a forma de seu mestre é que os meus
dizer que aquele que despreza a gramática não
preceptores na gramática, Guilherme de Conches
apenas não é um mestre, como não tem o direito
e Ricardo, conhecido como o Bispo (atualmente
de chamar-se nem de letrado.
arquidiácono de Coutances), um homem nobre na vida e na conversação29, por algum tempo for-
Tradução por Rafael Falcón
maram seus discípulos. Mas um pouco depois,
Aquele que despreza a gramática não apenas não é um mestre, como não tem o direito de chamar-se nem de letrado. devido ao fato de que as opiniões criaram preconceitos contra a verdade, e os homens preferiram parecer, em lugar de ser filósofos, e os professores das artes prometiam transfundir aos ouvintes a filosofia inteira30 em menos de três ou dois anos, vencidos pela força da multidão ignorante, cederam31. Desde então, o estudo da gramática tem recebido cada vez menos tempo e diligência. ___________________________________________________
28. “Não pode um mesmo homem gostar de ouro e das Escrituras, apreciar vinho e entender os Profetas e Apóstolos” (S. Jerônimo, Epistulae, III, 61, 3). 29. Uma alusão ao vir bonus dicendi peritus, definição do orador, originalmente enunciada por Catão: “um homem nobre e habilidoso no discurso”. A frase ficou famosa por meio de Quintiliano, que se valeu dela para condensar sua filosofia pedagógica – segundo a qual só poderia ser considerado um homem educado aquele que fosse, ao mesmo tempo, formado no discurso e na moralidade (dicere et agere). Esse componente duplo da pedagogia de Quintiliano é adaptado por John de Salisbury com a expressão vita et conversatio. Se e como é possível unir, no mesmo processo pedagógico, o domínio técnico da arte retórica ao desenvolvimento da moralidade, é uma questão que vem sendo discutida há algum tempo, e que exigiria um artigo à parte. 30. Trata-se de uma metáfora: prometem transfundir a filosofia como se faz uma transfusão de sangue. A ideia é absurda porque a filosofia não pode ser “transfundida” de uma pessoa para a outra: tem de ser mediada pela linguagem. Ora, se o discípulo não é devidamente treinado nas artes do trivium, ele não tem o nível de consciência e de domínio técnico da linguagem necessário para proceder à alta filosofia. 31. Não fica claro se Guilherme e Ricardo desistiram de ensinar, pela falta de alunos, ou se cederam ao mesmo método degenerado, e pas-
32. litterator, “Aquele que faz ser letrado”, o “letrador”. 33. Catulo, Liber, 14, 9.
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saram a ensinar as doutrinas filosóficas sem passar pelas artes preparatórias do trivium.
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FILOSOFIA
O romantismo europeu e as raízes da secularização política Ensaio de filosofia política escrito pelo prof. Marcus Boeira
em hodierna perspectiva, ou seja, comparado à modernidade2. A imposição do traço comparativo impõe uma revolução nas formas simbólicas e estéticas do imaginário social. A época das ideologias vinha para ficar e carregava consigo a marca da neutralidade, da ausência de padrões e compromissos, do superávit dos desejos e da anulação dos vínculos. A falta de compromissos atinente ao modernismo provocou a transladação do cristianismo, centro produtor da civilização europeia até então, para um lugar-comum na plateia das tendências, dos modismos e das metas revolucionárias. Era o cristianismo rebaixado ao andar dos apetites políticos e ideológicos do senso comum. Séculos de Magistério foram depositados nas bibliotecas vazias e o embotamento do patrimônio filosófico escolástico, cada vez mais frequente.
O socialismo e o comunismo surgem como novas religiões políticas que florescem no ardor de uma civilização em decadência.
C
Inversamente, o socialismo e o comunismo surgem arl Schmitt dizia que o século XIX repre-
como novas religiões políticas que florescem no
sentou muitas coisas, dentre as quais
ardor de uma civilização em decadência. O ano de
uma nova forma de ver o mundo e a
1848 representou para a Alemanha não só o clímax
história. A filosofia da história e o
político de uma guinada institucional restauracio-
senso espiritual do povo europeu resultaram na
nista das monarquias de divino iure, mas a crença
mudança do paradigma norteador . O cristianismo
tipicamente germânica de que se estaria a erguer
primitivo, há muito abandonado na prática exis-
um Império para expandir a cultura revolucionária
tencial da sociedade ocidental, passa a ser visto
de vanguarda.
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12
1. SCHMITT, Carl. Romanticismo Político. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2001, p. 63 e seguintes. 2. Taylor nos diz que em um sentido, “a secularidade consiste no abandono de convicções e práticas religiosas, em pessoas se afastando de Deus e não mais frequentando a igreja. Nesse sentido, os países da Europa ocidental tornaram-se majoritariamente seculares – até mesmo aqueles que mantêm vestígios de referência a Deus no espaço público”. TAYLOR, Charles. Uma Era secular. 1ª ED. São Leopoldo: editora Unisinos, 2010, p. 15.
O romantismo entrou porta adentro nos quartos
ideologias e mostrasse a inexorável impossibili-
da filosofia da história: o arrombo estético pro-
dade de uma fusão entre o plano espiritual cristão
vocado por tamanha secularização do espírito
de salvação e a existência política e social como
popular acarretou um deslocamento do sentido
tal, é necessário admitir que a luz aludida parecia
histórico-espiritual da Europa para o campo dos
obtusa e indecifrável, ainda que tão somente ela
movimentos políticos e sociais .
pudesse iluminar as trincheiras divisórias entre o
3
imanente e o transcendente. O paralelismo entre a teologia cristã da história e a filosofia política segundo as novas religiões seculares tornaram o século XX a era da cultura evanescente. Schmitt nos diz, interpretando Donoso Cortés, que Tocqueville estava certo a respeito dos resultados da revolução francesa. Ao invés de promover a liberdade, acabou solidificando ainda mais a centralização burocrática e administrativa do poder civil4 . O diagnóstico de Schmitt elucida
A desordem da luz só seria possível mediante o abandono do mundo e o reconhecimento da própria condição existencial.
proficuamente o tempo de contrastes que foram os
Dentro dos padrões culturais do romantismo,
séculos XVIII e XIX. Nessa perspectiva, declaramos
o vislumbre do feixe de luz tinha como limite
que o novecento intensificou ainda mais a polari-
as cercanías estéticas do mundo imaginado, do
dade de cosmovisões .
belo imanentizado pelas categorias sublimes do
5
Espírito absoluto hegeliano. O condicionamento Ao mesmo tempo em que o paralelismo teológico-
pelos padrões tinha como fronte de ataque a litera-
-histórico e filosófico político entre o cristianismo
tura e as artes, embora o quintal interno do projeto
e o socialismo apareciam cada vez mais nos cas-
romântico tivesse como apoio o castelo de areia das
telos ideológicos e nos movimentos de massa,
instituições administrativas do Estado, o objeto de
desenvolvia-se um desdobramento paradoxal na
consenso de todas as ideologias e, contraditoria-
cultura: os socialistas querendo tornar o socia-
mente, o inimigo mortal de todas elas.
lismo um “cristianismo realizado na história” e o romantismo, tomando de assalto os corações e as
A desordem da luz só seria possível mediante o
mentes da juventude europeia .
abandono do mundo e o reconhecimento da pró-
6
pria condição existencial, de não ser possível A proliferação das ideologias de massas como ten-
chegar à perfeição nem mudar o mundo à nossa
tativa de substituir o paraíso cristão pela perfeição
imagem e semelhança. A chave para a luz era não
burocrática dos Estados Liberais europeus, perfeição
criá-la, mas assumir a inevitabilidade do “para-
advinda com as revoluções e reformas simbolizadas
lelismo”. Aceitar que não é possível sacralizar a
pelo ano de 1848, passava a conviver com a cres-
história representaria, então, ter presente a insu-
cente descristianização da sociedade europeia7.
ficiência teológica de todas as filosofias políticas da era romântica e abrir-se para o desconhecido. Tal
Se uma autêntica auto-interpretação da sociedade
foi a experiência de Donoso Cortés.
europeia em seu sentido verdadeiro só poderia ser alcançada por uma luz que acabasse com as
Todo paralelismo, se interpretado desde a ótica
___________________________________________________
3. VOEGELIN, Eric. Gnostic Politics. Democracy in the New Europe, in Collected works of Eric Voegelin, Volume 10 – Published essays (19401952). Columbia: University of Missouri Press, 2000, p. 223 e seguintes. 4, TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848. 1ª ed. São Paulo: Cia das letras, 2011.
6. Para um panorama geral de fundo sobre a cultura do período, sugerimos a leitura da obra Os Demônios, de Fiodor Dostoievski. DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. 1ª ed. São Paulo: editora 34, 2004. 7. VOEGELIN, Eric. Democracy in the New Europe. Democracy in the New Europe, in Collected works of Eric Voegelin, Volume 11 – Published
MARÇO 2014
5. SCHMITT, Carl. Interpretación Europea de Donoso Cortés. 1ª ed. Buenos Aires: 2006, p. 13 e 14.
13
FILOSOFIA
do socialismo, acarreta uma visão distorcida do
tinha, no Estado, sua representação pormenori-
cristianismo primitivo. O cristianismo passa a
zada. O grande paralelismo era dissolvido para dar
ser contemplado como reacionário e reduzido ao
vazão ao secularismo em todas as esferas da exis-
ostracismo. A hostilidade é inevitável, já que con-
tência social. A teologia da história era reduzida à
duz a investigação histórica para um sentido que
filosofia política, provocando o irrompimento da
inverte a pedra de toque espiritual, legitimando a
teologia política.
nova religião social.
Não mais a Igreja, nem as dinastias, nem as cortes, nem mesmo os mitos, mas o próprio povo era quem legitimava o soberano.
Definitivamente, o Estado substituía a Deus e passava a ocupar o coração da existência espiritual da civilização europeia. A cultura democrática, enquanto anunciava a redenção do homem-livre, escravizava-o ainda mais na medida em que passou a usá-lo para legitimar a centralização do poder. Em perspectiva comparada, enquanto Deus distribuía graça e misericórdia ao homem na cultura de outrora, o Estado distribuía encargos, obrigações e
Por outro lado, uma interpretação cristã primitiva
deveres políticos, sob o prisma de carregar a espé-
e reacionária da história poderá reduzir a totali-
cie humana para o “progresso” e a “evolução”.
dade do novo ao banalizado conceito de mal. Todos os mitos históricos são acompanhados de um anta-
O próprio retrato do estado de coisas nesses termos
gonismo entre o antigo e o novo; porém, é o apreço
já denota um tipo de condicionamento que a cul-
redutível pelo ocaso histórico e a infalibilidade do
tura moderna – diríamos, modernista – impôs ao
novo que conduzem a marcha das ideologias mas-
observador no trato com a história. Separá-la em
sificadas. A visão triunfante e predestinada do
duas idades ocidentais bem definidas, colocando
novo mundo coteja o núcleo da existência histó-
Deus na primeira e o Estado, na segunda.
rica segundo o paralelismo: se primitivo, o sentido é dirigido para o imutável; se novo, para a própria
Não mais a Igreja, nem as dinastias, nem as cor-
história, em sua marcha redentora .
tes, nem mesmo os mitos, mas o próprio povo era
8
quem legitimava o soberano. Da mesma maneira O paralelismo é o ponto de partida para o enten-
como a Igreja era a representação espiritual de
dimento dos acontecimentos políticos da era
Deus na história, o povo agora ocupava o posto de
moderna, uma idade marcada pela crescente
representar o seu deus, o Estado.
centralização das funções políticas na burocracia administrativa e pelo fortalecimento do Estado,
No mundo ocidental europeu a erosão provocada
local do encontro entre a teologia da história e a
na consciência histórica do povo pelo paralelismo
filosofia política.
(sobretudo durante o século XIX) potencializou a expansão de alguns Impérios, especialmente
No terreno político, a florescente cultura democrá-
àqueles em que a teologia política era o semblante
tica, reivindicatória dos “anseios populares”, assistiu
de ouro, ou seja, cuja estrutura institucional era
à diluição das camadas populares no poder. A substi-
caracterizada pela unidade eclesiástica e estatal.
tuição do voto censitário pelo sufrágio universal, de fato, não resultou na participação real e concreta do
Para Schmitt, uma visão realista e completa da luta
povo no poder, mas no contrário. A cultura de mas-
ideológica de 1848 e do paralelismo assinalado exige
sas foi sopesada pelo crescimento do Estado, pela
que tomemos Donoso Cortés como peça-chave e
ampliação das áreas sujeitas à intervenção estatal.
como princípio de estrutura de nosso imaginário a respeito. Sem a análise de sua obra, faltaria um
MARÇO 2014
O espírito absoluto da filosofia da história de Hegel
14
ingrediente substancial que, frente à situação dada,
___________________________________________________
essays (1953-1965). Columbia: University of Missouri Press, 2000, p. 59 e seguintes. 8. Nesse sentido, ver BERLIN, Isaiah. A Força das Idéias. 1ª ed. São Paulo: Cia das letras, 2005, p. 44 e seguintes.
só poderia ser extraído da alma da Espanha.
foi contraposta pelo autor por uma antropologia sedimentada em um mergulho profundo nos abis-
Schmitt afirma que, ante a progressiva democra-
mos da natureza humana: Donoso não quis, como
tização social e centralização política, assistia-se
seus contemporâneos franceses e alemães, modi-
à ilusão de “se associar o progresso da técnica ao
ficar a natureza humana, mas enfrentar sua dura
da liberdade e ao da perfeição moral da huma-
realidade tensional, contraditória, assumindo sua
nidade, criando assim um conceito uniforme de
crua nudez. A constatação de que o homem novo
progresso” .
do socialismo estava muito distante do homem de
9
Para o antologista espanhol, todo homem carrega em sua ontologia uma carga de inumanidade.
carne e osso, que combate nas trincheiras e que se revolta contra todos aqueles que não se submetem à ele, o impelira à denúncia antropológica dos erros e fracassos do progressismo tout court, tão distante do caráter inumano da nova espécie humana. Para o antologista espanhol, todo homem carrega em sua ontologia uma carga de inumanidade. Todavia, o humano para a nova religião não é sope-
As experiências de 1848 não condicionaram a
sado pelo que possui de inumano, mas tomado
imagem que Cortés tinha do paralelismo; antes,
como realização plena de seu fim espiritual. A
conservaram-lhe a fé e, do ponto de vista histó-
antropologia da nova era acalenta uma visão distor-
rico, obrigaram-no a uma visão escatológica, que
cida da realidade potencial da humanidade, pois ao
mantinha a autonomia dos dois planos, sem os
encurtar as distâncias do paralelismo é obrigada a
fundir. As sínteses indesejadas das ideologias não
tomar o homem perfeito como objeto de sua filoso-
ecoavam na consciência de nosso varão espanhol.
fia prática. É daí que nasce o ideal de super-homem
Donoso Cortés foi, sim, um homem do século XIX.
concebido por Nietzsche. O super-homem é o tipo
Mas um espanhol, católico, que não fundia o espi-
completo de ser humano, àquele que atualizou
ritual com o temporal, nem almejava qualquer
todas as suas potencialidades e que carrega em
transfiguração na história da humanidade que não
sua natureza todas as dimensões da beatitude. Em
fosse empregada pelo próprio Cristo. Como diz
oposição a isso, Donoso chamaria a atenção para o
Schmitt, “sua visão da história se tornou escatoló-
lado desconhecido do super-homem, àquele onde
gica, sem negar um conceito de história”10.
o protótipo do santo traz consigo o infra-homem, a opacidade de suas entranhas vulneráveis.
Ainda que estivesse distante da Alemanha e da França e não conhecesse a teologia clássica nem o
Segundo Schmitt, “não foram sem amigos nem
pensamento de Hegel, Cortés levou tão à sério o
seus inimigos que compreenderam a Donoso.
paralelismo que concluiu ser a pseudo-religião da
Unicamente seus inimigos socialistas, inspirados
humanidade absoluta o princípio de um caminho
em uma autêntica hostilidade, quando atacaram
que conduziria ao terror inumano .
algo de sua verdadeira grandeza”12.
A partir da constatação do paralelismo e dos
O ataque provinha revestido de uma reação pecu-
rumos da religião secular, Donoso profetizou o
liar: é que tão logo identificaram que Donoso
cataclismo totalitário que assaltou a Europa nas
tivesse decifrado a inevitabilidade do paralelismo,
décadas vindouras. A concepção absolutista de
viram-no como ameaça. E a ameaça tinha ende-
humanidade presente no secularismo do novecento
reço: os socialistas monopolizaram a interpretação
11
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10. Op.Cit., p. 35. 11. Op.Cit., p. 38. 12. Op.Cit., p. 42.
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9. SCHMITT, Carl. Interpretación Europea de Donoso Cortés. Op.Cit, p. 30.
15
FILOSOFIA
decimonônica da natureza teológica do poder ao
saída mais convincente. Nesses termos, prepa-
proporem a legitimação do político pelo próprio
ram-se instituições democráticas e regidas pelas
poder, ou seja, ao projetarem a teofania do movi-
Constituições. Porém, na tensão entre o Estado de
mento religioso secular destinado a transformar
Direito e o Estado de exceção, exige-se um con-
o mundo e pô-lo no universo imaginado pelo
trole permanente do próprio Estado, para que ele
romantismo: o paraíso terreno, local do encontro
funcione e promova o bem comum. A delimitação
entre as potências subjetivas do humano e a reali-
do campo de atuação estatal, nesse novo cenário
dade transfigurada do mundo perfeito.
do liberalismo constitucional, não pode ser desacompanhada da delimitação exigida para o campo
O caráter profético desse “reacionário, meio louco”
de ação dos inimigos do Estado de Direito. O risco
se fizera sentir nos ardores do século XX, sob a
sempre presente de que a legalidade seja con-
forma dos regimes totalitários.
quistada e os inimigos sejam “legitimados” como
A existência da autoridade pública reside na decisão.
amigos do Estado, poderá acarretar a transformação do que é ilegal em legal e do que é legal, em ilegal. Em suma, haverá sempre o risco de que os amigos da liberdade se transformem em inimigos do Estado!
Segundo Schmitt, o paralelismo anunciado no século XIX acarretaria para o século XX, de acordo com Cortés, a necessidade da escolha entre duas saídas: de um lado, o socialismo, crente na fusão; de outro, o reacionarismo, nos moldes propagados por De Maistre, Bonald e pelo próprio espanhol. Nessa dialética de opostos, De Maistre proporia uma solução sui generis: o ato de decisão. A decisão tornaria cada plano irredutível. No mundo político, a decisão promove a soberania, enquanto nas coisas espirituais, infalibilidade. Em suma, o ato de decisão na ordem estatal carrega o Estado de Soberania. O ato de decisão na ordem espiritual é infalível, a saber, sua essência é o fato de ser inapelável. A existência da autoridade pública reside na decisão. Sendo a decisão um traço característico da filosofia contrarrevolucionária do século XIX, é dela o imperioso ato de manter “cada qual no seu quadrado”. O paralelismo, assim, via-se diante de três caminhos (e não apenas dois): fusão, tradição e reconhecimento. A fusão, enquanto caminho preferido pelo socialismo. A tradição, pelos contrarrevolucionários. E o reconhecimento, pelo
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liberalismo constitucional.
16
Como se viu, as tentativas de conservar ou transfigurar os dois primeiros caminhos resultaram em armadilhas à liberdade política e civil. A opção pelo terceiro parece, do ponto de vista institucional, a
Feliz Aniversário, Charles Darwin, Benjamin Wiker Tradução do artigo “Happy Birthday, Charles Darwin”, publicado no InsideCatholic.com, em 12/02/2009
o Norte proclame uma cruzada contra a escravidão. A longo prazo, um milhão de mortes cruéis seriam amplamente recompensadas pela causa da humanidade… Grande Deus, como eu gostaria de ver abolida essa que é a maior das maldições sobre a terra, a escravidão.
Ele admirava Lincoln, mas achava-o tímido demais.
O ódio à escravidão moldou a visão de Darwin sobre a evolução humana. O ódio de Darwin pela escravidão não era um modismo fortuito. A causa abolicionista foi tomada com grande força e indignação pelos avôs de Charles, Erasmus Darwin e Josiah Wedgwood. Erasmus e Josiah lutaram lado a lado com o grande William Wilberforce contra o comércio de escravos britânico. A aliança da família Darwin-Wedgwood, consolidada no casamento dos pais de Charles, Robert Darwin e Susanna Wedgwood, produziu
E
uma frente unida de tias, tios, primos e irmãos, m 12 de fevereiro de 1809 nasceram
todos firmes e solidamente contrários à escravidão.
Abraham Lincoln e Charles Darwin – uma coincidência muito interessante. Há
Adrian Desmond e James Moore, notáveis estudio-
outras coincidências incríveis em suas
sos de Darwin, argumentam no livro Darwin’s Sacred
vidas: suas mães morreram muito cedo, menos
Cause [A causa sagrada de Darwin, jan/2009] que o
de um ano entre uma e outra – a mãe de Charles,
ódio à escravidão “moldou a visão de Darwin sobre
Susanna, em 1817, e a mãe de Abraham, Nancy, em
a evolução humana.” Certamente um adequado
1818. Ambas perderam três crianças.
e oportuno acréscimo aos estudos darwinianos, neste ano em que se comemoram os 200 anos de
Ainda mais interessante: ambos eram abolicionis-
seu nascimento.
tas convictos – Charles talvez mais do que Abraham. Mas antes de comemorarmos entusiasticamente
que o exército do norte dos EUA vencesse a Guerra
aniversários e causas moralmente corretas, é
Civil americana e levasse a escravidão à extinção. Ele
melhor olharmos mais de perto as idéias e o
chegou a escrever em uma carta:
legado de Darwin. Ele odiava a escravidão, mas ao mesmo tempo confirmava que a escravidão era
Alguns poucos – e eu sou um deles – pedimos a Deus,
natural. Ele odiava o racismo, mas sua teoria da
mesmo ao custo da perda de milhões de vidas, que
evolução humana era fundamentalmente racista.
MARÇO 2014
Para dizer o mínimo, Darwin desejava com fervor
17
FILOSOFIA
Seu coração e sua cabeça estavam em completa
ao mesmo tempo de “odioso” e “maravilhoso”
contradição.
instinto – odioso de acordo com seu coração, maravilhoso de acordo com sua teoria, mas, toda-
O coração e a cabeça. Leia o bem documentado livro
via, natural.
de Desmond e Moore, e você não terá nenhuma dúvida acerca da postura de Darwin quanto à escra-
Porém, se (como ele argumenta em A Linhagem do
vidão. Mas leia o próprio livro de Darwin, Descent of
Homem) a seleção natural explica tudo sobre os
Man [A Linhagem do Homem], e estremeça.
seres humanos, do formato da cabeça à forma de organização das sociedades, então não seria o caso
A Linhagem do Homem foi o livro que Darwin não
da existência da escravidão entre seres humanos
escreveu quando ele pôs no papel A Origem das
dever-se à seleção natural? Se sim, então a escra-
Espécies. Ele estava bem consciente das impli-
vidão humana seria tão natural quanto entre as
cações da sua teoria da evolução para os seres
formigas. Darwin esquivou-se de extrair esta
humanos, mas ele se conteve, e falou apenas sobre
conclusão óbvia em seu livro; de fato, ele disse
plantas e animais em A Origem das Espécies. Isto,
muito pouco sobre a escravidão. Talvez ele tenha
por sua vez, foi um ato de auto-preservação: ele
compreendido muito bem as implicações, e não
sabia que, se sua obra contivesse as implicações de
tenha podido encará-las. Mas o pouco que ele
aplicar-se a seleção natural ao homem, ele seria
falou, entretanto, foi condenatório para sua causa
escorraçado da Inglaterra como um ateu imundo e
abolicionista – a saber: que o “grande pecado da
subvertedor da moralidade.
escravidão tem sido quase universal”. Em termos
A ancestralidade comum não impediu que Darwin tirasse as mais perniciosas conclusões racistas.
de sua teoria, isso significa apenas uma coisa: que a evolução humana considerou a escravidão ainda mais útil à sobrevivência dos mais aptos do que a evolução das formigas. Desmond e Moore tentam desvencilhar-se das implicações óbvias. Eles argumentam que Darwin propôs que todos os seres humanos têm um ances-
O que Darwin não viu, ou o que recusou-se a ver, foi
tral evolutivo comum precisamente porque isso
que sua própria teoria minava inteiramente sua tão
significaria que africanos e europeus viriam do
estimada moral contra a escravidão. Pior: ela exigia
mesmo galho na árvore da Evolução, e por isso divi-
um tipo abominável de racismo – um racismo que
diriam uma espécie de irmandade evolucionária.
Darwin aceitou alegremente.
MARÇO 2014
Mas é aí que está o problema: uma ancestralidade
18
Rastreemos isso passo a passo. Como fervoroso
comum não impede que a escravidão seja natural.
abolicionista, Darwin estava convencido de que
“Natural” significa “de acordo com o princípio
a escravidão era uma instituição estritamente
da seleção natural”. Não há nenhuma dúvida que
humana e artificial (isto é, não-natural). Mas ele
todas as formigas, escravas e não-escravas, têm
ficou estupefato ao testemunhar por si mesmo a
um ancestral comum, e que a seleção natural pro-
“extraordinária formiga escravista”. Numa carta
duziu ambas as espécies – não por escolher um
eufórica a um de seus amigos, ele escreveu como
lado errado e outro certo, mas simplesmente por
tinha visto “as pequenas escravas pretas nos
ramificação. De acordo com a teoria de Darwin,
ninhos de seus senhores”. Darwin ficou ao mesmo
não há dúvida de que todos os homens, em todas as
tempo chocado e maravilhado por descobrir que
sociedades humanas, escravagistas e não-escrava-
existia algo como formigas escravas: grandes for-
gistas, têm um ancestral comum. A seleção natural
migas vermelhas capturavam pequenas formigas
produziu as variações sociais, não escolhendo um
pretas, e estas obedeciam ao comando daquelas.
lado errado e outro certo, mas simplesmente rami-
De acordo com sua teoria, a única explicação para
ficando-se. Não há lado errado ou certo. O que quer
o escravismo entre as formigas era, é claro, a
que contribua para a preservação da sociedade é
seleção natural, e esta foi a explicação que ele deu
afirmado pela seleção natural. Este é o argumento
para isso na sua Origem das Espécies, chamando-o
central do livro A Linhagem do Homem.
E o que é ainda mais lastimável: a ancestralidade
com as subespécies humanas mais inferiores na
comum não impediu que Darwin tirasse as mais
escala evolutiva – “serão sem dúvida extermina-
perniciosas conclusões racistas, porque o que
dos. A distância [entre seres humanos e macacos]
realmente importa na evolução humana é o que
será então maior ainda, porque ela se dará entre
acontece depois que as raças se dividem. Embora
o homem em um estágio mais civilizado que o
os seres humanos tenham um ancestral comum
caucasiano – esperamos nós –e alguns macacos tão
(“um quadrúpede peludo, provido de uma cauda
primitivos como os babuínos, ao invés da atual dis-
e orelhas pontiagudas, provavelmente de hábi-
tância entre o negro ou o australiano e o gorila”.
tos arbóreos”), “desde que atingiu a categoria de humanidade ele se dividiu em raças distintas ou,
Uma simples e imparcial descrição do funciona-
mais apropriadamente falando, em subespécies”.
mento da evolução – e isto vindo de um fervoroso
As raças, em si mesmas, refletem divergência, e
abolicionista. Nessa visão, pessoas como “o negro
não comunalidade. “Algumas delas, por exem-
ou o australiano” eram como que espécies inter-
plo, a Negra e a Europeia, são tão distintas que, se
mediárias, as que menos evoluíram dos macacos, e
espécimes fossem trazidos a um naturalista sem
por isso mais passíveis de perder a implacável luta
nenhuma outra informação adicional, eles sem
dos mais aptos contra os menos aptos. A luta em
dúvida seriam consideradas por ele como de espé-
si mesma não pode ser censurada, porque ela é a
cies diferentes”.
própria batalha entre tribo e tribo, raça e raça, que
“Em um futuro não muito distante (medindo-se por séculos), as raças humanas civilizadas irão quase certamente exterminar e substituir em todo o mundo as raças selvagens.”
conduziu os seres humanos a um nível acima dos macacos antropomórficos. Essa mesma luta prosseguiu arduamente até gerar o homem caucasiano, e acabou criando – finalmente – um homem capaz de formular uma teoria da evolução. Ele nasceu há 200 anos atrás, no dia de hoje. Feliz aniversário, Charles Darwin. Traduzido por Oswaldo Viana Jr.
A seleção natural gera diferentes características em cada raça. Isto é, o efeito da seleção natural em escolher algumas “raças favorecidas” para subir mais na escala evolutiva exprime-se nas diferenças entre elas: as raças “mais baixas” continuam com aparência de macaco e permanecem selvagens, mental e moralmente; as “mais elevadas” parecem-se com… ora, bons ingleses, e têm as mais desenvolvidas habilidades mentais e morais. E é aqui que a porca torce o rabo: uma vez que a evolução humana prossegue em seu desenvolvimento da mesmíssima forma que chegou até hoje, a luta entre as raças e a extinção de algumas delas tem que continuar: “Em um futuro não muito distante (medindo-se por séculos), as raças humanas civilizadas irão quase certamente selvagens”, escreveu Darwin em A Linhagem do Homem. “Ao mesmo tempo, os macacos antropomórficos” – isto é, aqueles que mais se parecem
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exterminar e substituir em todo o mundo as raças
19
RELIGIÃO
Retirado do livro Какподготовиться и провестиВеликийпост (Como se preparar e passar a Grande Quaresma)
O
RELIGIÃO
Qual o principal ponto do jejum? Metropolita João
mandamento do jejum foi o primeiro
combinar os bons frutos da abstinência do jejum
mandamento feito para o homem, logo
interior, para a melhora do espírito?
em sua criação. Adão pecou ao comer o fruto da árvore proibida, e o terrível dano
do pecado penetrou em toda raça humana. Desde então, o diabo conseguiu acesso ao coração do homem decaído. Na criação perfeita de Deus, Adão não conhecia a malícia nem o sofrimento – mas
Preste atenção em si mesmo e não em não poder comer carne.
depois ficou sujeito às paixões que, até hoje, como
No entanto, para marchar sem errar no caminho da
o fogo do inferno, queima nossos corações carentes
salvação, evitando todo desvio, que nas palavras do
da bem-aventurada comunhão com Deus.
Senhor é a destruição, deve-se ter em mente não só
MARÇO 2014
a abstinência da comida e da vida carnal obtidas pelo
20
Seria por isso que Nosso Senhor Jesus Cristo, quando
pecado, mas também da purificação do coração e de
veio ao mundo para salvar os pecadores, começou
um desejo fervoroso para obter a imaculada pureza
seu ministério na terra com o jejum de quarenta
da alma. O bem-estar neste santo desejo é o fértil
dias e quarenta noites no deserto, para que com Seu
e benéfico zelo – o principal significado do jejum.
próprio exemplo nos fosse lembrado o benefício e a obrigação do jejum? Em sua tripla rejeição às men-
“Aparte-se do mal, e faça o bem” (1 Pedro 3,11) –
tiras do demônio, Ele não nos mostrou a imagem da
tais palavras das Sagradas Escrituras devem ser
guerra espiritual, inevitável para todos que buscam
lembradas na Quaresma antes de qualquer coisa.
Infelizmente, mesmo entre o povo da Igreja há
Mas nossa jornada não termina aí. Devemos seguir
pecadores tolos que não entendem o elevado signi-
a Cristo ainda mais. Seguindo o caminho do ensi-
ficado espiritual da Quaresma. Confira em si mesmo
namento, quando devemos testemunhar a Alegria
a correta e exaustiva a simples abstinência em não
Divina, a Divina Graça, que visitou nosso coração no
comer o fruto proibido.
começo de nossa realização.
Ai de nós, irracionais, ai de nós, hipócritas!
Aqui, como na época dos apóstolos de Cristo, encon-
“Em vão te alegras, ó minha alma”, ouvimos na Oração da Quaresma.
tramos todos os tipos de prisão, todos os tipos de circunstâncias dificultosas e começamos a vacilar. Ou como seguidores do Senhor de pouca fé, falhamos em momentos de provações mentais.
Preste atenção em si mesmo e não em não poder
Mas para triunfar sobre o pecado, para finalmente
comer carne: você não chateia seu próximo? Não res-
confirmar o bem em nossos corações, somos exi-
munga para Deus as aflições e dificuldades da alma?
gidos para seguir a Cristo e não só até o Jardim do
Você não esconde seu ressentimento, fúria e inveja?
Getsêmani. Devemos continuar nosso caminho até
Não sente orgulho por suas supostas virtudes? Por
a casa dos sacerdotes Anás e Caifás, até o Pretório de
acaso tem agradecido a Deus tudo que lhe foi dado?
Pôncio Pilatos, até ouvir as palavras assustadoras:
Não há em seu coração desejos terrenos inúteis?
“Crucificai-o, crucificai-o!”.
Quando ainda recusa colocar carne em seu corpo,
Então o caminho nos levará até ao Calvário, para
você ainda não está negligenciando sua própria alma,
nele, junto com Cristo, possamos crucificar nossa
deixando de vomitar de seu coração a ira, hipocrisia,
carne com suas paixões e concupiscências. Assim,
avareza, inimizades, orgulho e auto-estima? A Santa
somos enterrados com o Senhor. E só então ocorre
Igreja Ortodoxa nos alerta ardorosamente que não
a ressurreição da nossa alma. Só então ocorre o
há benefícios na abstinência da carne se ainda não
triunfo da bondade em nossos corações. E é esta-
estamos ligados à abstinência das paixões – livres do
belecida a firme paz de espírito, quando passamos
mal das paixões, que nos atormentam para o pecado.
da Cruz e obtemos o Espírito Santo do dia de Pentecostes. É assim que devemos sentir e expe-
“Em vão te alegras, ó minha alma”, ouvimos na
rimentar o caminho da salvação. É difícil desta
Oração da Quaresma, “da abstinência de comida,
forma, mas precisamos fazer assim. Vá, apesar das
enquanto ainda não estás purificada das paixões,
dificuldades e decepções e de teus vizinhos pecami-
se a abstinência não levar até a correção, acabarás
nosos… Às vezes não sabemos o que fazer. Mas se
odiando a Deus”.
continuarmos zelosamente no caminho de Cristo, clamando pela ajuda divina, vamos sem medo até o
A Grande Quaresma – uma forma de seguir a Cristo
Calvário, seremos até crucificados com Cristo – que o Senhor nos conceda Sua divina graça para forta-
O caminho de Cristo – o caminho que todo cristão
lecer nossas forças enfraquecidas, para nos ajudar
deve seguir. E eu lhe digo uma coisa: é o caminho
na superação de todos os tipos de pecado e paixões,
para Cristo o Redentor, é este o caminho de todos
que nos imporão bons hábitos para alcançar a vida
nós cristãos. Quando o Senhor nos chamou até
eterna em Cristo Jesus, Nosso Senhor.
Ele no seio da Igreja, quando recebemos o Santo Batismo e, em um certo momento, quando a Luz
Revelando a Parábola do Filho Pródigo
Divina toca nossos corações, de fato sentimos uma O homem recebeu os mandamentos de Deus para
Cenáculo, junto a Cristo. E neste momento tudo é
guardá-los e, assim, conseguir uma boa vida. Mas
luz e alegria, pois o Senhor aumenta nossa força
todo problema está no fato de que nem sempre as
mental e física, para que possamos sentir e conhe-
pessoas apreciam tal riqueza – a execução dos man-
cer como o Senhor é bom.
damentos de Deus, o alimento para a alma. Algumas vezes, estes momentos surgem quando o homem
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alegria extraordinária, como se estivéssemos no
21
RELIGIÃO
está com um amor escasso, aquele amor que é sua
dificultosas na vida, doenças, necessidades…
fonte de vida, o amor a seu Criador, assim tudo que alimenta o espírito humano passa a lhe parecer um
Mas ao enviar toda sorte de infortúnios, o Senhor
fardo. Ele tenta se libertar, apagar e alterar o fardo
desperta o homem, como se lhe batesse: “Despertai!
dos mandamentos de Deus para assim seguir um
Levantai, homem! Estás em perigo!”.
caminho independente, livre e conforme deseja. Este caso inclui as pessoas que deixaram o alimento Em outras palavras, o homem retira o Senhor de si
spiritual e aderiram ao alimento pecaminoso. E
mesmo e abraça o pecado. Este é o começo da queda.
o homem perde sua alegria espiritual, esvazia a si
O homem tenta deixar o jugo de Cristo e partir para
mesmo e se transforma num escravo do pecado. E se
um lugar distante, o lugar do pecado aonde, como
o pecado ainda não destruiu o homem por completo,
vimos, parece haver diversão e alegria sem fim. O
sempre há a possibilidade de despertar do sono do
pecado chama a mente humana para todas as doçu-
pecado. Mas também acontece do pecado escravizar
ras e delícias do mundo. Ele grita, acena. E as pessoas
o homem por completo, para que ele fique atro-
não percebem este engano, assim ruminam e bus-
fiado, perdendo seu senso de percepção espiritual,
cam esta comida espiritual de animais – o pecado.
transformando-se num incapaz para qualquer vida
Como é dito no Evangelho sobre o filho pródigo: ele definhava de fome, mas foi recuperado.
espiritual ou de despertamento. Mas se seu coração ainda é uma boa área de solo, a graça divina lança sua semente nele. E em seguida, vem o despertar. Mas como ele virá? Como é dito no Evangelho sobre o filho pródigo: ele definhava de fome, mas foi recuperado. O que significa – recuperado? Isso significa a realização
Antes, enquanto ainda não perdeu os dons do
do perigo de sua posição, de sua condição deterio-
Espírito Santo, o homem ainda sente a força da
rada. Diante do homem de pecado, a graça de Deus
vida. Ele é como um ramo partido. Além do mais,
abre uma cortina e ele se vê diante de um abismo –
quando um ramo saudável da árvore é separado, ele
mais um passo e ele cairá no abismo, para a morte.
não seca imediatamente, pois ainda guarda certos
É assim que ocorre a recuperação.
sumos obtidos da árvore. Enquanto isso, este ramo vai sendo alimentado pelo sumo.
Quando isso acontece, o homem começa a lembrar sobre a antiga vida na graça paterna.
Bem, e depois? E então ocorre o famoso fim - a secura. Os mandamentos de Deus, antes vistos por ele A mesma coisa ocorre com o homem de pecado. Tudo
como severos demais, agora assumem uma apa-
que lhe foi dado por meio do cumprimento dos man-
rência diferente e não evocam mais amargor, mas
damentos de Deus e da graça de Deus fica escasso e
sim doçura. Neste ponto, a determinação amadu-
vazio,com isso o homem murcha espiritualmente
rece. A determinação para se levantar e se afastar
de forma gradual. E no coração surge um vazio.
do abismo. Esta é a segunda etapa da ação da graça
Esse vazio terrível não dá ao homem um momento
de Deus para a alma humana.
de paz. E então o homem começa a correr e olhar para todo tipo de entretenimento, entregando-se
Então, vem o terceiro e salvífico estágio do despertar
à concupiscência da carne, à soberba, depravação,
– é quando o filho pródigo não só decide voltar para
maldade, inveja, ganância e outros atos pecamino-
a casa de seu pai, mas também se levanta e vai. Ele já
sos. Mas nada disso trás satisfação. E se não fosse a
venceu a escravidão do pecado e com um profundo
misericórdia de Deus, o que seria de nós, seduzidos
sentimento de arrependimento voltou à estaca zero.
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pelas maquinações do diabo? Mas mesmo no pecado
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o Senhor não deixa o homem sem Sua misericórdia.
É assim que ocorre o arrependimento salutar. Aqui
Ele, em Sua Divina Providência, possui muitas for-
está o que nos é exigido para retornamos à casa do
mas para nos levar até o caminho correto. Algumas
Pai, para que possamos orar ao Senhor e Criador
vezes, com remédios amargos: circunstâncias
em busca de perdão.
Mas lembre-se: o Senhor aceita apenas o sincero arrependimento. Apenas quando o homem está consciente de sua queda, humilhando-se diante do Criador e chorando: “Pai, pequei diante de Ti, não sou mais digno de ser chamado de teu filho, pois quebrei e desperdicei todos os mandamentos que me deste! Então me pegue pelo menos como um de teus servos, para que eu possa tomar parte das refeições e conseguir viver”. Apenas depois disso o Senhor nos dará as roupas luminosas.
Se obedecermos aos mandamentos de Deus com amor e por amor, o jugo de Cristo nos será fácil. É isso que nos revela a Santa Igreja, na semana do filho pródigo. Ela nos revela como as pessoas estão gradualmente se afastando das verdades de Deus, estão em pecado, mas ela nos revela como despertar embusca da volta à casa paterna. E desejo que jamais nos esqueçamos dos limites paternais, para que o jugo de Deus não nos seja doloroso. Será que não ouvimos a voz de Nosso Divino Salvador: “vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”? Aqui está ela, a verdadeira palavra de Deus! Se obedecermos aos mandamentos de Deus com amor e por amor, o jugo de Cristo nos será fácil. Aqui está ela, a verdadeira palavra de Deus! Se obedecermos aos mandamentos de Deus com amor e por amor, o jugo de Cristo nos será fácil. Então, não vá para o lugar distante, não possua o mundo do pecado, com isso a volta não será necessária. Tradução por Rafael Daher
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LITERATURA
O sectário social, G. K. Chesterton Tradução do artigo “The Sectarian of Society”, publicado na antologia “A Miscellany of Men” (1912).
U
ma crença definida é absolutamente indispensável à liberdade. Se os homens são e deveriam ser diferentes, tem que existir alguma comunicação entre eles,
se quiserem deleitar-se para além de sua diferença. E uma fórmula intelectual é a única coisa que pode criar uma comunicação que não dependa de mero sangue, classe ou simpatia caprichosa. Se começarmos concordando que o sol e a lua exis-
tem, podemos falar sobre nossas diferentes visões a respeito deles. O homem perspicaz poderia orgulhar-se de ver o sol como um círculo perfeito; o míope poderia dizer (com orgulho, se fosse um impressionista) que vê a lua como um borrão prateado; o daltônico poderia regozijar-se no truque de fada que permite a ele viver sob um sol verde e uma lua azul. Mas uma vez sustentado que na visão de um homem não há nada além de um borrão prateado, ou um círculo brilhante (como um monóculo) na visão de outro, então nenhum deles é livre, porque cada um está encerrado na célula de um universo separado.
Todos os míopes se reúnem e fundam uma cidade chamada Miopia, onde todos tomam a miopia por pressuposto, pintam pequenas obras míopes e estabelecem políticas muito míopes.
erva-daninha. O que acontece é o seguinte: todos os míopes se reúnem e fundam uma cidade chamada Miopia, onde todos tomam a miopia por pressuposto, pintam pequenas obras míopes e estabelecem políticas muito míopes. Enquanto isso, todos os homens que conseguem mirar o sol reúnem-se no Salisbury Plain1 e não fazem nada além de mirar o sol; e todos os homens que vêem uma lua azul se reúnem para afirmar a lua azul, não uma vez a cada luz azul, mas o tempo todo. Então, ao invés de um pequeno e variado grupo, você tem grupos grandes e monótonos. Ao invés da liberdade do dogma, você tem a tirania do gosto.
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Mas é certo que, na prática, uma sorte ainda pior
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decorre da fórmula intelectual básica, que diz não
Alegorias à parte, a todos ocorrerão exemplos do
só que o indivíduo se tornou pequeno, como espa-
que digo; talvez o mais óbvio seja o socialismo.
lha pequenez em todo o mundo como uma nuvem;
Socialismo significa o monopólio governamental
ele faz a pequenez crescer e se multiplicar como
(qualquer que seja) de todas as coisas necessárias à
___________________________________________________
1. Trata-se de um planalto de giz, localizado na região centro-sul da Inglaterra.
produção. Se um homem afirma ser socialista neste
homem do seu tipo terá uma esposa vestida em
sentido, ele pode ser qualquer tipo de homem que
verde pálido e um “Triumph of Labour” de Walter
ele aprecie em qualquer outro sentido – um apos-
Crane pendurado no corredor.
tador, um Mahatma, um boêmio, um arcebispo ou
Claro que há muitos outros exemplos, pois a
um crioulo de Margate2. Sem, até o momento, lem-
sociedade moderna é quase toda ela feita des-
brar os socialistas lúcidos em todas essas áreas, é
ses remendos monocromáticos. Eu, por exemplo,
óbvio que um socialista lúcido (isto é, um socialista
lamento a superação da velha unidade puritana,
com uma crença) pode ser um soldado, como o Sr.
fundada na teologia – embora abraçando tipos que
Blatchford; um Dom, como o Sr. Ball; um condutor,
vão de Milton ao dono da mercearia –, pela unidade
como o Sr. Meeke; um clérigo, como o Sr. Conrad
puritana mais recente, que é fundada em certos
Noel, ou um artístico homem de negócios, como o
hábitos sociais, certos lugares comuns, simultane-
finado Sr. William Morris.
amente permissivos e proibitivos, ligados a certos
Freqüentei muitas igrejas, capelas e salões onde junto de um orgulho confiante em ter superado certos credos vem a invencível incapacidade de superar frases prontas.
prazeres sociais. Por isso eu lamento, por exemplo, que – se você terá uma aristocracia -, ela não tenha permanecido fundada na ciência da heráldica, que afirma e defende a teoria bastante defensável de que o teste é a genealogia física; ao invés de ser, como é agora, uma mera máquina de Eton3 e Oxford4 para envernizar alguém rico o bastante com um verniz monótono. É o que ocorre mormente no caso da religião. Tão logo tenhas um credo, que todos em certo grupo
Mas algumas pessoas se consideram socialistas
acreditem ou devam acreditar, tal grupo consistirá
sem se restringir ao que chamam de ‘dogma res-
das figuras antigas e recorrentes da história reli-
trito’; dizem que o socialismo significa muito, muito
giosa, que podem ser remetidas ou julgadas por ela:
mais do que isso; tudo o que é elevado, tudo o que
o santo, o hipócrita, o brigão, o irmão fraco. Essas
é livre, tudo que é, etc., etc. Agora preste atenção
pessoas fazem bem umas às outras; ou todas elas
aos seus horríveis destinos: porque eles tornaram-
se unem para fazem bem ao hipócrita, com reite-
-se totalmente inaptos para ser homens de negócio,
rados e pesados golpes. Mas uma vez quebrado o
soldados, clérigos ou qualquer outra sofrível profis-
vínculo da doutrina que sozinho une essas pessoas,
são humana, mas tornaram-se um tipo particular de
cada uma delas passará a gravitar em sua própria
pessoa que é sempre a mesma. Quando se descobre
seita fora do grupo. Os hipócritas se reunirão e se
que socialismo não significa uma estreita fórmula
chamarão entre si de santos; os santos se perde-
econômica, também se descobre que socialismo
rão num deserto e se chamarão ‘irmãos fracos’; os
realmente significa vestir um certo tipo de roupas,
irmãos fracos ficarão cada vez mais fracos numa
ler certo tipo de livros, pendurar certo tipo de pintu-
atmosfera geral de imbecilidade, e os intolerantes
ras e na maioria dos casos mesmo comer certo tipo
procurarão alguém mais com quem possam brigar.
de comida. Pois os homens devem reconhecer uns aos outros de algum modo. Esses homens não se
Isso acontece demais na moderna religião da
reconhecerão com base num princípio, como con-
Inglaterra. Freqüentei muitas igrejas, capelas e
cidadãos. Não podem reconhecer-se pelo cheiro,
salões onde junto de um orgulho confiante em ter
como fazem os cachorros. Eles tem então que recair
superado certos credos vem a invencível incapa-
numa coloração geral; retroceder ao fato de que um
cidade de superar frases prontas. Mas onde quer
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3. Colégio particular inglês para garotos, fundado em 1440 por Henrique VI da Inglaterra. 4. A Universidade de Oxford, situada na cidade de Oxford, na Inglaterra, é a mais antiga universidade do mundo anglófono.
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2. Local situado na costa inglesa, no distrito de Thanet, no condado de Kent.
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LITERATURA
que apareça a falsidade, ela vem da negligência da mesma verdade: de que os homens deveriam concordar sobre um princípio; de que eles podem discordar de todo mundo; de que Deus deu aos homens uma lei que eles possam transformar em liberdades.
Uma nação com uma religião tradicional será tolerante. Uma nação sem religião será intolerante. Havia um sentido imensamente maior nos antigos, quando diziam que uma esposa e um marido deveriam ter a mesma religião, do que há em toda a verborragia contemporânea sobre almas gêmeas, parentesco de espíritos e auras de cor idêntica. Na realidade, quanto mais os sexos estiverem em violento contraste, menos provavelmente eles estarão em violento conflito. Quanto mais incompatível seus temperamentos, melhor. É óbvio que a alma de uma esposa não pode ser uma alma gêmea. Muito raramente ela chega a ser uma prima de primeiro grau. Há muito poucos casamentos de idêntico gosto ou temperamento; e geralmente são infelizes. Mas ter a mesma teoria fundamental, concordar sobre o que é virtude (praticando-a ou negligenciando-a), sobre o que é pecado (punindo-o, perdoando-o ou rindo dele), e, em última instância, ter o mesmo conceito de dever e de desgraça – isto é realmente necessário a um casamento feliz e tolerante; e é muito melhor representado por uma religião comum do que por afinidades e auras. O que se aplica à família se aplica à nação. Uma nação com uma religião tradicional será tolerante. Uma nação sem religião será intolerante. Por último, o pior efeito de todos é este: quando homens se unem para professar um credo, eles o fazem corajosamente, ainda que escondidos em catacumbas e cavernas. Mas quando eles formam um grupelho, tornam-se ardilosos, renegando toda mudança ou desacordo, ainda que seja para jantar com uma banda musical num grande hotel londrino. Pois os pássaros de penas semelhantes
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voam juntos, mas os pássaros de pena branca voam
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mais alto que todos os outros. Traduzido por Wendy Aelson Carvalho
LITERATURA
O ponto de vista russo, Virginia Woolf
Tradução de “The Russian Point of View”, publicado em sua coletânea de crítica literária, “The Common Reader” (1925).
E
mbora muitas vezes possamos ter dúvidas sobre se os franceses ou os americanos, que tanto têm em comum conosco, conseguem mesmo compreender a literatura
inglesa, precisamos admitir dúvidas ainda mais sérias sobre se, apesar de todo o seu entusiasmo, os ingleses conseguem compreender a literatura russa. O debate poderia se estender indefinidamente em relação ao que queremos dizer com “compreender”. Exemplos ocorrerão a todos de escritores americanos, em particular, que escreveram com o mais alto discernimento de nossa literatura e de nós mesmos; que viveram toda uma vida entre nós e por fim deram passos legais para se tornarem cidadãos do rei Jorge. Apesar disto tudo, teriam eles nos entendido? não teriam eles permanecido estrangeiros até o fim de seus dias? Poderia alguém acreditar que os romances de Henry James foram escritos por um homem que havia crescido na sociedade que descreve, ou que sua crítica dos escritores ingleses foi escrita por um homem que havia lido Shakespeare sem qualquer ideia do Oceano Atlântico e duzentos ou trezentos anos do outro lado separando sua civilização da nossa? O estrangeiro muitas vezes alcançará uma
Temos julgado toda uma literatura despida de seu estilo. Tratados desta forma, os grandes escritores russos são como homens destituídos.
— a diferença da língua. De todos os que se banquetearam com Tolstoi, Dostoiévski e Tchekhov durante os últimos vinte anos, não mais do que um
de visão; mas não aquela ausência de autocons-
ou dois talvez foram capazes de lê-los em russo.
ciência, aquela facilidade de companheirismo e
Nossa avaliação de suas qualidades foi formada
senso de valores comuns que representam a inti-
por críticos que nunca leram uma palavra de russo,
midade, a normalidade e o rápido toma-lá-dá-cá
nem viram a Rússia, nem sequer ouviram a língua
das interações familiares.
falada por nativos; que tiveram que depender, cega e implicitamente, do trabalho de tradutores.
Não apenas temos nós tudo isso a nos separar da literatura russa, mas uma barreira muito mais séria
O que estamos dizendo, então, equivale ao
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certa perspicácia e afastamento, um ângulo agudo
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LITERATURA
seguinte: que temos julgado toda uma litera-
e afetado. O equivalente inglês para “Irmão” é
tura despida de seu estilo. Depois que se mudam
“Parceiro” [“Mate”] — uma palavra muito dife-
todas as palavras em uma oração, do russo para o
rente, com algo de sardônico, uma sugestão
inglês, alteram-se, com isto, um pouco o sentido,
indefinível de humor. Embora encontrando-se
e completamente o som, o peso e a acentuação das
nas profundezas do infortúnio, os dois ingleses
palavras em relação umas às outras, nada restando
que assim interpelam um ao outro encontrarão,
além de uma versão crua e grosseira do sentido.
temos certeza, um emprego, farão suas fortunas,
Tratados desta forma, os grandes escritores russos
passarão os últimos anos de suas vidas no luxo e
são como homens destituídos, por um terremoto
deixarão uma soma de dinheiro para prevenir que
ou um acidente de trem, não só de suas roupas,
pobres diabos chamem uns aos outros de “irmão”
mas também de algo mais sutil e mais importante
no Aterro do Tâmisa. Mas é o sofrimento comum,
— suas maneiras, as idiossincrasias de seu caráter.
mais do que a felicidade, esforço ou desejo comuns,
O que sobra é (como provam os ingleses pelo fana-
que produz o senso de fraternidade. É a “tristeza
tismo de sua admiração) algo de muito poderoso e
profunda”, que o Dr. Hagberg Wright considera
muito impressionante, mas é difícil se ter certeza,
típica do povo russo que cria sua literatura.
em vista dessas mutilações, do quanto podemos confiar em que não imputamos, distorcemos ou lemos neles com uma ênfase que é falsa. Eles perderam as roupas, dizemos, em alguma terrível catástrofe, como uma figura que descreva a simplicidade, a humanidade, apartadas de todo esforço para esconder e disfarçar seus instintos, que a literatura russa, seja devido à tradução ou a alguma causa mais profunda, evoca em nós. Vemos estas qualidades permeando-a por inteiro, como óbvias nos escritores menores e também nos maio-
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res. “Aprendei a tornar-vos semelhantes ao povo.
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Estes contos são inconclusivos, dizemos, e daí passamos a estruturar uma crítica baseada no pressuposto de que os contos deveriam se concluir de um modo que reconheçamos.
Gostaria até de acrescentar: tornai-vos indispen-
Uma generalização deste tipo, é claro, mesmo que
sáveis a ele. Mas que esta simpatia não esteja na
tenha algum grau de verdade quando aplicada ao
mente — pois com a mente é fácil — mas no cora-
corpo da literatura, será profundamente alterada
ção, com amor a eles.” ”Dos russos”, alguém diria
quando um escritor de gênio se puser a trabalhá-
imediatamente, onde quer que encontrasse esta
-la. De imediato surgem outras questões. Vê-se que
citação. A simplicidade, a ausência de esforço, o
uma “atitude” não é simples; é altamente com-
pressuposto de que em um mundo explodindo de
plexa. Homens despojados de seus casacos e de
miséria nossa principal missão seja compreender
suas maneiras, perplexos com um acidente de trem,
nossos irmãos de sofrimento, “e não com a mente
dizem coisas duras, coisas ríspidas, coisas desagra-
— pois com a mente é fácil — mas com o coração”
dáveis, coisas difíceis, mesmo que as digam com
— esta é a nuvem que paira sobre toda a literatura
o abandono e a simplicidade que a catástrofe lhes
russa, a qual nos seduz, desde nosso próprio bri-
tenha inspirado. Nossas primeiras impressões de
lho encarquilhado e nossos caminhos ressequidos,
Tchekhov não são de simplicidade, mas de estupefa-
para que nos dilatemos em sua sombra — e, claro,
ção. ‘Qual o sentido disto e por que ele faz disto uma
com resultados desastrosos. Nós nos tornamos
história?’, nós nos perguntamos, enquanto lemos
desajeitados e auto-conscientes; negando nossas
um conto após outro. Um homem se apaixona por
próprias qualidades, escrevemos com uma afeta-
uma mulher casada, eles se separam, eles se encon-
ção de bondade e simplicidade que é nauseante ao
tram e no fim são deixados conversando sobre sua
extremo. Não conseguimos dizer “irmão” com uma
posição e sobre por que meios eles podem se livrar
convicção simples. Há um conto do Sr. Galsworthy
”desta intolerável prisão”.
no qual um dos personagens se dirige assim a um outro (eles estão ambos nas profundezas do infor-
“‘Como? Como?’ perguntou ele, apertando a
túnio). Imediatamente, tudo se torna forçado
cabeça. … E parecia que dali a pouco a solução
seria encontrada e então começaria uma vida nova
contas, há uma enorme diferença entre Tchekhov
e esplêndida.” O final é este. Um empregado do
e Henry James, entre Tchekhov e Bernard Shaw.
correio conduz um estudante à estação e durante
Obviamente – mas de onde vem ela? Também
todo o caminho o estudante tenta fazer o empre-
Tchekhov está consciente dos males e injustiças do
gado conversar, mas ele permanece em silêncio.
estado social; a condição dos camponeses o estar-
De repente o empregado diz, inesperadamente, “É
rece, mas o zelo do reformador não é o seu — não é
contra o regulamento levar quem quer que seja com
este o sinal para pararmos. A mente lhe interessa
o correio.” E ele caminha para cima e para baixo na plataforma, com uma aparência de raiva no rosto. “Com quem ele estava zangado? Era com as pessoas, com a pobreza, com as noites de outono?” Novamente, termina o conto. ‘Mas é este o final?’, perguntamos. Temos antes a impressão de que negligenciamos os sinais; ou é como se uma melodia tivesse se acabado antes que
Depois que o olho se acostuma a essas nuances, metade das “conclusões” da ficção desaparecem no puro ar.
os acordes esperados a encerrassem. Estes con-
enormemente; ele é um sutil e delicadíssimo ana-
tos são inconclusivos, dizemos, e daí passamos a
lista das relações humanas. Mas, de novo, não; o
estruturar uma crítica baseada no pressuposto de
final não está lá. Será porque ele está interessado
que os contos deveriam se concluir de um modo que
primeiramente não na relação da alma com outras
reconheçamos. Ao fazê-lo, levantamos a questão
almas, mas na relação da alma com a saúde — na
sobre nossa própria aptidão como leitores. Onde a
relação da alma com a bondade? Estes contos estão
melodia é familiar e o final empático — amantes
sempre nos mostrando alguma afetação, pose e
unidos, vilões desbaratados, intrigas reveladas —
insinceridade. Alguma mulher entrou em uma
como na mais vitoriana ficção, mal podemos nos
relação falsa; algum homem foi pervertido pela
enganar, mas onde a melodia não é familiar e o
desumanidade de suas circunstâncias. A alma está
final é uma nota de interrogação ou meramente a
doente; a alma está curada; a alma não está curada.
informação de que eles continuaram conversando,
Estes são os pontos de empatia de seus contos.
como é com Tchekhov, precisamos de um senso de literatura muito ousado e atento para nos fazer
Depois que o olho se acostuma a essas nuances,
ouvir a melodia e em particular aquelas últimas
metade das “conclusões” da ficção desaparecem
notas que completam a harmonia. Provavelmente
no puro ar; elas mostram como que transparên-
temos que ler muitos e muitos contos até sentir-
cias com uma luz por trás de si — espalhafatosa,
mos (e a sensação é essencial para nossa satisfação)
berrante, superficial. A arrumação geral do último
que conseguimos juntar as partes e que Tchekhov
capítulo, o casamento, a morte, a afirmação de
não estava simplesmente divagando de forma des-
valores tão sonoramente trombeteada, tão pesa-
conexa, mas tocou ora esta nota, ora aquela, com
damente sublinhada, tornam-se do tipo mais
certa intenção, a fim de completar seu sentido.
rudimentar. Nada é resolvido, sentimos; nada é reunido da forma correta. Por outro lado, o método que primeiro parece tão casual, inconclusivo e ocu-
onde exatamente entra a ênfase nestes estranhos
pado com ninharias, agora parece ser o resultado de
contos. As próprias palavras de Tchekhov nos dão
um gosto requintadamente original e caprichoso,
uma pista na direção correta. “… uma conversa tal
escolhendo de forma ousada, dispondo de forma
como esta entre nós,” diz ele, “teria sido impensá-
infalível e controlado por uma honestidade para
vel para nossos pais. À noite eles não conversavam,
a qual só podemos encontrar páreo entre os pró-
mas dormiam profundamente; nós, nossa geração,
prios russos. Pode não haver resposta para estas
dormimos mal, estamos agitados, mas falamos
perguntas, mas, ao mesmo tempo, não manipu-
muito e estamos sempre tentando decidir se esta-
lemos nunca a evidência de modo a produzirmos
mos certos ou não.” Nossa literatura de sátira social
algo de conveniente, decoroso, agradável à nossa
e de fineza psicológica brotam ambas deste sono
vaidade. Este pode não ser o modo de se conquistar
agitado, desta conversa incessante; mas, afinal de
a atenção do público; afinal de contas, eles estão
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Temos que buscar em torno a fim de descobrirmos
29
LITERATURA
acostumados a uma música mais alta, a medidas
que rastejam como caranguejos na areia que há
mais agressivas; mas como a melodia soou, assim
no fundo de nós. Mas enquanto ouvimos, nossa
ele a escreveu. Consequentemente, ao lermos estes
confusão lentamente se aquieta. Uma corda nos é
pequenos contos sobre nada, o horizonte se amplia;
atirada; apanhamos um solilóquio; apertando os
a alma ganha um senso assombroso de liberdade.
dentes, somos arrastados rápido pela água; febril
Na verdade, é a alma que é o principal personagem da ficção russa.
e selvagemente, somos arrastados cada vez mais longe, ora submersos, ora, em um momento de visão, compreendendo mais do que jamais entendemos antes e recebendo revelações tais como é provável que só recebamos da pressão da vida em seu máximo. Enquanto voamos, pegamos tudo
Ao lermos Tchekhov, nos pegamos muitas vezes
— os nomes das pessoas, seus relacionamentos,
repetindo a palavra “alma”. Ela salpica suas pági-
que eles estão ficando no hotel em Roulettenburg,
nas. Velhos beberrões a usam livremente; “…
que Polina está envolvida em uma intriga com
você está bem colocado no serviço, além de todo
o marquês de Grieux — mas que assuntos sem
alcance, mas não tem espírito de verdade, meu
importância são estes em comparação com a alma!
caro garoto… não há força nele.” Na verdade, é a
É a alma que importa, sua paixão, seu tumulto,
alma que é o principal personagem da ficção russa.
sua mescla de beleza e vileza. E se nossas vozes de
Delicado e sutil em Tchekhov, sujeito a um número
repente se levantam em gargalhadas lancinantes
infinito de humores e destemperos, ele é de maior
ou se somos sacudidos pelos mais violentos solu-
profundidade e volume em Dostoiévski; está
ços, o que pode ser mais natural? — mal é digno
sujeito a doenças violentas e febres furiosas, mas
de atenção. O ritmo em que estamos vivendo é tão
ainda é a preocupação predominante. Talvez seja
tremendo que as fagulhas saltam de nossas rodas
por isto que é necessário tamanho esforço por parte
enquanto voamos. Além do mais, quando a velo-
do leitor inglês para ler Os Irmãos Karamazov ou Os
cidade é de tal forma aumentada e os elementos
Possessos uma segunda vez. A “alma” lhe é alheia.
da alma são vistos, não separadamente, em cenas
É até antipática. Ele tem muito pouco senso de
de humor ou cenas de paixão, como nossas mentes
humor e nenhum senso de comédia. Ele é informe.
inglesas mais tardas as concebem, mas fatiadas,
Mal tem ligação com o intelecto. É confuso, difuso,
envolvidas, inextricavelmente confundidas, um
tumultuoso, incapaz, parece, de se submeter ao
novo panorama da mente humana é revelado. As
controle da lógica ou da disciplina da poesia. Os
velhas divisões fundem-se umas com as outras. Os
romances de Dostoiévski são redemoinhos borbu-
homens são ao mesmo tempo vilões e santos; seus
lhantes, tempestades giratórias de areia, trombas
atos são ao mesmo tempo belos e desprezíveis. Ao
d’água que silvam, fervem e nos sugam. Eles são
mesmo tempo amamos e odiamos. Não há nada
compostos pura e completamente da matéria da
daquela divisão precisa entre o bem e o mal à qual
alma. Contra nossa vontade, somos puxados para
estamos acostumados. Muitas vezes, aqueles por
dentro, tragados em torno, cegados, sufocados e
quem mais sentimos afeição são os maiores crimi-
ao mesmo tempo enchidos de um arrebatamento
nosos, e os mais abjetos pecadores nos comovem
vertiginoso. Tirando-se Shakespeare, não há
até a mais forte admiração, assim como ao amor.
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uma leitura mais empolgante. Abrimos a porta e
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nos encontramos em uma sala cheia de generais
Arremessado à crista das ondas, jogado e batido
russos, dos tutores dos generais, suas enteadas
contra as rochas do fundo, é difícil um leitor inglês
e primos e multidões de pessoas em mistura que
se sentir à vontade. O processo pelo qual ele se
estão falando aos berros sobre seus assuntos mais
acostumou a sua própria literatura é invertido. Se
íntimos. Mas onde estamos? Certamente, é fun-
desejássemos contar a história de um caso de amor
ção do romancista nos informar se estamos em
de um general (e acharíamos muito difícil, em pri-
um hotel, em um apartamento ou em uma habi-
meiro lugar, não rirmos do general), deveríamos
tação alugada. Ninguém pensa em explicar. Somos
começar por sua casa; deveríamos solidificar seus
almas, torturadas e infelizes almas, cujo negócio é
arredores. Somente quando tudo estivesse pronto
falar, revelar, confessar, extrair até qualquer far-
deveríamos tentar lidar com o próprio general.
rapo de carne e nervo que seja os pecados obscuros
Além do mais, não é o samovar mas o bule de chá
que domina na Inglaterra; o tempo é limitado; o
e que, a partir daí, procede, também, como esta-
espaço, apertado; a influência de outros pontos de
mos acostumados a proceder, não de dentro para
vista, de outros livros, mesmo de outras idades, se
fora, mas de fora para dentro. Eis um mundo no
fazem sentir. A sociedade é categorizada em classes
qual a batida do carteiro na porta se ouve às oito
baixas, médias e altas, cada uma com suas pró-
e as pessoas vão para cama entre dez e onze. Eis
prias tradições, suas próprias maneiras e, até certo
aqui, também, um homem que não é um selvagem,
ponto, com sua própria língua. Quer ele deseje ou
nem um filho da natureza; ele é educado; tem todo
não, há uma constante pressão sobre um roman-
tipo de experiência. É um daqueles aristocratas
cista inglês para que ele reconheça estas barreiras
natos que usaram de seus privilégios ao máximo.
e, consequentemente, impõe-se uma ordem a ele e
É cosmopolita, não suburbano. Seus sentidos, seu
algum tipo de forma; ele é inclinado antes à sátira
intelecto são acurados, poderosos e bem-nutridos.
que à compaixão, antes ao escrutínio da sociedade
Há algo de orgulhoso e soberbo no ataque de uma
que à compreensão dos próprios indivíduos.
mente e um corpo destes à vida. Nada parece lhe
A alma em Dostoiévski não é contida por barreiras. Ela transborda, ela enche, ela se mistura às almas dos outros.
escapar. Nada desvia dele o olhar desapercebidamente. Nada, portanto, pode expressar assim a empolgação do esporte, a beleza dos cavalos e toda a violenta desiderabilidade do mundo aos sentidos de um jovem forte. Cada galho, cada pena adere a seu ímã. Ele percebe o azul ou o vermelho de uma camisa de criança; o modo como um cavalo desvia a cauda; o som de uma tosse; a ação de um homem tentando por as mãos nos bolsos que foram costurados. E o que seu olho infalível informa sobre uma
Dostoiévski. Para ele, dá no mesmo se o sujeito é
tosse ou um jeito com as mãos, seu cérebro infalível
nobre ou simples, um vagabundo ou uma grande
associa a algo de oculto no personagem, de modo
dama. Quem quer que seja, ele é o vaso deste líquido
que nós conhecemos sua gente não só pelo modo
perturbado, esta matéria baça, agitada e preciosa, a
como eles amam, por suas opiniões sobre a política
alma. A alma não é contida por barreiras. Ela trans-
e sobre a imortalidade da alma, mas também pelo
borda, ela enche, ela se mistura às almas dos outros.
modo como eles espirram e se engasgam. Mesmo
O simples conto de um bancário que não podia
em uma tradução sentimos que fomos postos no
pagar por uma garrafa de vinho se espalha, antes
topo de uma montanha e puseram um telescópio
de sabermos o que está acontecendo, pelas vidas
em nossas mãos. Tudo é espantosamente claro e
de seu sogro e das cinco amantes que seu sogro
absolutamente penetrante. Então, de repente,
tratava de forma abominável, da vida do empre-
logo quando estamos exultando, respirando fundo,
gado do correio, da empregada do lar e da princesa
sentindo-nos ao mesmo tempo preparados e puri-
que habitava o mesmo bloco de apartamentos;
ficados, algum detalhe — talvez a cabeça de um
pois nada está fora do território de Dostoiévski; e
homem — vem até nós, destacando-se do quadro
quando ele se cansa, ele não para, ele continua. Ele
em um modo alarmante, como que expelido pela
não consegue se conter. Ele entorna em cima de
própria intensidade de sua vida. “De repente, uma
nós, quente, escaldante, misturado, maravilhoso,
coisa estranha me aconteceu: primeiro, deixei de
terrível, opressivo — a alma humana.
ver o que estava ao meu redor; então, seu rosto
Resta a alma do maior de todos os romancistas —
pareceu desaparecer até só restarem os olhos, bri-
pois do que mais podemos chamar o autor de Guerra
lhando contra os meus; em seguida, os olhos me
e Paz? Também deveremos achar Tolstoi alheio,
pareceram estar em minha própria cabeça e aí tudo
difícil, um estrangeiro? Haverá alguma estranheza
se tornou confuso — eu não conseguia ver nada e
em seu ângulo de visão que, ao menos até nos tor-
fui obrigado a fechar os olhos, a fim de me libertar
narmos discípulos e, portanto, perdermos nossa
da sensação de prazer e medo que seu olhar fixo
orientação, nos mantenha a uma certa distância,
estava produzindo em mim….”
em suspeita e estupefação? Desde suas primeiras palavras, podemos, ao menos, estar certos de uma
Repetidas vezes compartilhamos dos sentimen-
coisa — ele é um homem que vê o que nós vemos
tos de Masha em Felicidade Conjugal. Fecham-se
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Nenhuma destas restrições foram impostas à
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LITERATURA
os olhos para se escapar da sensação de prazer e de medo. Muitas vezes, é o prazer que está em primeiro plano. Nesta história mesma, há duas descrições, uma de uma garota caminhando em um jardim à noite com seu amante, outra de um casal recém-casado, saltitando pela sala de visitas, que de tal modo transmitem a sensação intensa de felicidade que fechamos o livro para senti-la melhor. Mas sempre há um elemento de temor
Da árvore dos grandes escritores russos, é Tolstoi quem mais nos envolve e mais nos repele. que faz com que desejemos, como Masha, escapar do olhar fixo que Tolstói prega em nós. Será a sensação, que na vida real pode nos oprimir, de que uma tal felicidade, como ele descreve, é intensa demais para durar, que estamos à beira do desastre? Ou seria porque a própria intensidade de nosso prazer é de certo modo questionável e nos obriga a perguntar, com Pozdnyshev em A Sonata a Kreutzer, “Mas por que viver?” A vida domina Tolstoi como a alma domina Dostoiévski. Há sempre, no centro de todas as pétalas brilhantes e reluzentes da flor, este escorpião: “Por que a viver?” Há sempre, no centro do livro, algum Olenin, Pierre ou Levin que recolhe em si toda a experiência, gira o mundo entre os dedos e nunca para de perguntar, como se gostasse mesmo, qual é o sentido disto e quais deveriam ser nossos objetivos. Não é o padre quem estilhaça nossos desejos do modo mais eficaz. É o homem que os conheceu e os amou ele mesmo. Quando ele os despreza, o mundo, de fato, se torna em pó e cinzas sob nossos pés. Assim, o medo se mistura ao nosso prazer e, da árvore dos grandes escritores russos, é Tolstoi quem mais nos envolve e mais nos repele. Mas a mente toma seu viés do local de seu nascimento e, sem dúvida, quando ela bate em uma literatura tão alheia quanto a russa, desvia-se por
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uma tangente muito afastada da verdade.
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Traduzido por Larry Martins Fernandes
Introdução ao Diário de Amiel, Tolstói Tradução de “Introduction to Amiel’s Journal”, em inglês em “Tolstoy on Art” (1924), organizado por Aylmer Maude
C
deste livro.
Um escritor é precioso e necessário para nós somente na medida em que nos revela o exercício interior de sua alma.
Durante a leitura, marcava as passagens que me
trinta anos – cuja íntegra ocupa vários volumes,
comoviam de modo especial. Minha filha incum-
em grande parte nunca publicados.1
erca de 18 meses atrás, tive a oportunidade de ler pela primeira vez o livro de Amiel, Fragmentos de um Diário Íntimo. Fiquei tocado pela importância e pela
profundidade de seu conteúdo, pela beleza de sua apresentação e, acima de tudo, pela sinceridade
biu-se de traduzir essas passagens e, assim, esses excertos de Fragmentos de um Diário Íntimo
Henri Amiel nasceu em Genebra, em 1821, e ficou
tomaram forma: ou melhor, trata-se de excertos
órfão ainda jovem. Tendo completado o curso supe-
do Diário que Amiel escreveu todos os dias durante
rior em Genebra, Amiel foi para o exterior e passou
1. Isso era válido na época em que Tolstói escreveu esta apresentação. Hoje, há uma edição do diário completo em 12 volumes. HenriFrédéric Amiel, Journal Intime. 12 vols. Lausanne, L’âge d’homme, 1976-1994.
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LITERATURA
alguns anos nas universidades de Heildelberg e de
obra seja nova e inédita. O que quer que tenha sido
Berlim. Ao voltar em 1849 a sua terra natal, ele, um
escrito – uma peça, uma obra de erudição, uma
jovem de 28 anos, obteve a cátedra da Academia de
narração, um tratado filosófico, versos líricos, uma
Genebra, primeiramente de Estética e, depois, de
crítica, uma sátira –, o que é precioso para nós na
Filosofia, a qual ocupou até sua morte.
obra de um autor é tão-somente aquele esforço interior de sua alma, não a estrutura arquitetônica
Amiel passou toda a vida em Genebra, onde mor-
em que normalmente – e eu acho que sempre –,
reu em 1881, sem em nada distinguir-se do grande
distorcendo-a, ele embrulha seus pensamentos e
número de professores comuns que mecanica-
sentimentos.
mente preparavam suas preleções a partir dos últimos livros de sua área de especialidade e as transmitiam a seus ouvintes de maneira igualmente mecânica, e do número ainda maior de versejadores carentes de substância, que oferecem essas mercadorias ainda vendidas às dezenas de milhares em periódicos que são publicados – embora ninguém precise delas. Amiel não teve o menor sucesso nem acadêmico nem literário. Quando já se aproximava da velhice, escreveu de si mesmo o seguinte:
Embora se possam encontrar muitas expressões de sentimento religioso mais elegantes e mais bem elaboradas que as de Amiel, é difícil encontrar busca mais íntima ou mais sincera.
O que consegui extrair dos dons a mim concedidos e das circunstâncias especiais da minha vida de meio
Tudo o que Amiel publicou e a que deu acabamento
século? O que colhi do meu solo? Serão todos os meus
final – palestras, ensaios, poemas – está morto;
rabiscos recolhidos – minha correspondência, essas
mas seu diário, onde, sem pensar na forma, falava
milhares de páginas sinceras, minhas conferências,
apenas a si mesmo, está cheio de vida, sabedoria,
meus artigos, meus versos, minhas memórias – nada
instrução, consolo, e continuará entre os melhores
mais que uma coleção de folhas secas? Para quem e
livros que já nos foram legados, acidentalmente,
para que fui útil? Será que meu nome sobreviverá a
por homens como Marco Aurélio, Pascal e Epicteto.
mim por pelo menos um dia e terá algum sentido para alguém? Uma vida insignificante, vazia! Vienulle!
Diz Pascal:
Dois escritores franceses bem conhecidos
Há somente três tipos de pessoas: aquelas que, tendo
escreveram sobre Amiel e seu Diário desde a sua
conhecido a Deus, O servem; aquelas que, não O
morte – seu amigo e famoso crítico E[dmond]
conhecendo, estão empenhadas em encontrá-lo; e
Scherer e o filósofo [Edme María] Caro. É interes-
aquelas que, embora não O tenham conhecido, não
sante notar o tom simpático mas condescendente
O procuram. Os primeiros são sensíveis e felizes; os
com que esses escritores se referem a Amiel,
últimos são insensíveis e infelizes; os segundos são
lamentando a ausência das qualidades necessárias
infelizes, mas sensíveis.
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para a produção de obras verdadeiras. Contudo, as
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obras verdadeiras desses dois escritores – as obras
Acho que o contraste que Pascal faz entre o primeiro
críticas de Scherer e as obras filosóficas de Caro –
e o segundo grupo – entre aqueles que, como diz
dificilmente sobreviverão a seus autores, ao passo
alhures, tendo encontrado a Deus, O servem de
que a obra acidental e quimérica de Amiel, seu
todo o coração, e aqueles que, não O tendo encon-
Diário, permanecerá sempre viva e necessária aos
trado, O buscam de todo o coração – não só não
homens e os atingirá de modo frutuoso.
é tão grande quanto ele pensou, mas nem sequer existe. Considero que aqueles que de todo o coração
Pois um escritor é precioso e necessário para nós
e com sofrimento (en gémissant, como diz Pascal)
somente na medida em que nos revela o exercício
buscam a Deus já O estão servindo. Estão servindo-
interior de sua alma – supondo, é claro, que sua
O porque, pelo sofrimento que suportam em sua
busca, estão abrindo o caminho até Deus e reve-
que está condenado à morte mas cuja execução está
lando-o para os outros, como o próprio Pascal fez
atrasada. [Este homem condenado] concentra-se em
em seus Pensamentos, e como Amiel fez em toda a
si mesmo. Já não mais emite energia, apenas fala com
sua vida retratada neste Diário.
sua própria alma. Já não age, contempla…
Toda a vida de Amiel, como nos é apresentada neste
Traduzido por William Campos da Cruz
Diário, está repleta desta busca sofredora e sincera de Deus. E a contemplação dessa busca é ainda mais instrutiva porque nunca deixa de ser busca, nunca se torna fixa, nunca assume a forma de uma consciência de ter-se alcançado a verdade ou de ter-se chegado a uma doutrina. Amiel não está dizendo a si mesmo ou aos outros “Eu sei a verdade, ouçam-me!”. Pelo contrário, parece-lhe, como é natural a quem quer que busque sinceramente a verdade, que quanto mais ele sabe, mais precisa saber, e está, portanto, constantemente ciente de sua ignorância. Está continuamente especulando sobre o que deve ser o cristianismo e a condição de um cristão, sem hesitar nem por um momento em pensar que o cristianismo é aquilo que ele professa e que ele mesmo está realizando a condição de um cristão. E, contudo, todo o Diário está cheio de expressões do mais profundo entendimento e sentimento cristãos. E essas expressões agem sobre o leitor com uma força especial exatamente por sua inconsciência e sinceridade. Ele está falando a si mesmo, não pensando que é ouvido de esguelha, nem tentando parecer convicto de algo de que não está convicto, nem escondendo seus sofrimentos e sua busca. É como se alguém estivesse presente, sem o conhecimento do homem, ao mais secreto, profundo e apaixonado exercício interior de sua alma, normalmente escondido de um observador externo. E, portanto, embora se possam encontrar muitas expressões de sentimento religioso mais elegantes e mais bem elaboradas que as de Amiel, é difícil encontrar busca mais íntima ou mais sincera. Pouco antes de sua morte, sabendo que poderia morrer de asfixia a qualquer momento, escreveu: Quando já não sonhas que tens à tua disposição dezenas de anos, um ano ou um mês, quando já contas as dezenas de horas e a chegada da noite traz consigo a arte, à ciência, à política, e contenta-se em conversar consigo mesmo, e isso é possível até o último minuto. Este diálogo interior é a única coisa deixada àquele
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ameaça do desconhecido, obviamente se renuncia à
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LITERATURA
Dois tipos de atividade mental, Tolstói Tradução de “Two Kinds of Mental Activity”, em inglês em “Tolstoy on Art” (1924), organizado por Aylmer Maude.
humana não pela elaboração de sistemas bem construídos, mas por observações isoladas e expressões competentes que indicam as leis eternas que regem nossa vida. Estes são os sábios do mundo antigo que formularam coleções de aforismos, os escritores místicos cristãos e, especialmente, os escritores franceses dos séculos XVI, XVII e XVIII, que elevaram esse estilo de escrita ao mais alto grau de perfeição. Tais são os pensamentos e máximas de La Rochefoucauld, La Bruyère, Pascal, Montesquieu e Vauvenargues, sem mencionar o maravilhoso Montaigne, cujos escritos em parte pertencem a esta classe.
Nota do tradutor
Enquanto os sistemas filosóficos geralmente causam rejeição por seu pedantismo ou enfraquecem a mente do leitor, os livros do segundo tipo sempre atraem por sua sinceridade, elegância e brevidade de expressão.
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O artigo a seguir foi escrito por Tolstói como introdução à
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edição russa de uma coleção de pensamentos, aforismos e
Se compararmos todo o conhecimento das leis da
máximas de La Bruyére, La Rochefoucauld, Vauvenargues
vida humana a uma bola que aumenta continu-
e Montesquieu.
amente de tamanho a cada nova aquisição, então
A
os pensadores do primeiro grupo, os sistemáticos, atividade da razão humana orientada à
deveriam ser comparados a homens que tentam
explicação das leis que governam a vida
envolver a bola com um material mais ou menos
humana sempre se manifestou de duas
sólido e espesso a fim de ampliá-la por igual em
formas distintas. Alguns pensadores
toda a sua volta. Os pensadores da segunda cat-
vêm tentando sistematizar todos os fenômenos e
egoria são homens que, desconsiderando as
leis da vida humana numa conexão definida entre
desigualdades no aumento da superfície das difer-
si. Esses são os criadores de todos os sistemas
entes partes da bola, aumentam-na não por inteiro,
filosóficos, de Aristóteles a Spinoza e Hegel.
mas em vários pontos de seu raio pelos quais seus pensamentos naturalmente viajam, geralmente
Outros têm ajudado a esclarecer as leis da vida
ultrapassando os pensadores do primeiro tipo e
fornecendo aos futuros sistematizadores material sobre que se debruçar. As vantagens do lado dos pensadores da primeira categoria são: coerência, completude e simetria em suas doutrinas. As desvantagens são: artificialidade em sua estrutura, conexão forçada entre as partes, desvios muitas vezes evidentes da verdade para garantir a coerência de toda a doutrina e (como resultado) frequente obscuridade e nebulosidade na forma de expor. As vantagens do lado da segunda categoria de pensadores são: franqueza, sinceridade, inovação, ousadia e, por assim dizer, certa impulsividade nos pensamentos, liberdade das amarras e um correspondente vigor de expressão. Suas desvantagens são: fragmentaridade e às vezes inconsistência externa – embora esta última normalmente seja mais aparente que real. Sua maior vantagem, no entanto, é que, enquanto as obras do primeiro tipo – os sistemas filosóficos – geralmente causam rejeição por seu pedantismo ou, quando não, enfraquecem a mente do leitor ao subjugá-lo e privá-lo da independência, os livros do segundo tipo sempre atraem por sua sinceridade, elegância e brevidade de expressão. Acima de tudo, não esmagam a atividade independente da mente; antes, pelo contrário, a estimulam, por obrigar o leitor ou a deduzir conclusões posteriores do que acaba de ler ou, às vezes, quando discorda do autor, a contestar suas posições e assim chegar a conclusões inéditas e inesperadas. São deste tipo os pensamentos destacados tanto dos escritores antigos quanto dos modernos em geral, e são estes os pensamentos dos escritores franceses cujas máximas estão reunidas na obra que temos diante de nós. Traduzido por William Campos da Cruz
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