Revista Terminal #3 - Jan 2014

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REVISTA TERMINAL Número 3 - Janeiro de 2014 EDIÇÃO Renan Santos ARTE Renan Santos TRADUTORES Bernardo Campella Emílio Costaguá Hugo de Santa Cruz Luiz Otávio Talu Renan Santos Ricardo Santos de Carvalho William Campos da Cruz ESCRITORES Johny Nery

A Revista Terminal é um projeto sem fins lucrativos que busca simplesmente reunir e divulgar bons trabalhos de tradução, ensaios, poemas e contos. Entre em contato conosco e envie o seu: http://revistaterminal.com.br contato@revistaterminal.com.br

© Revista Terminal 2014


#3

Janeiro de 2014



ÍNDICE

FILOSOFIA A doutrina socrática da alma, John Burnet.......................................................................................................................................................................................6 Uma definição de cavalheiro, John H. Newman.........................................................................................................................................................................24 Os doze tons do Espírito, Rosenstock-Huessy.............................................................................................................................................................................26 A essência do humanismo, William James....................................................................................................................................................................................31 Fragmentos sobre o ceticismo, John. H. Newman..................................................................................................................................................................36

HISTÓRIA A Ética e a Economia Nacional, Heinrich Pesch..............................................................................................................................................................................39

LITERATURA Dedicatória ao pior dos homens nos domínios de Sua Majestade, William Combe..............................................................................................51 Estudo de uma Consciência Claustrofóbica......................................................................................................................................................................................54

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FILOSOFIA

A Doutrina Socrática da Alma, John Burnet Tradução de conferência de John Burnet em 26 de janeiro de 1916.

M

eus senhores, senhoras e cavalheiros, quando o presidente e o Conselho me fizeram a honra de convidar-me para dar a Palestra Filosófica Anual

e quando me pediram para que Sócrates fosse o meu tema, eles estavam, é claro, cientes de que

As mais diversas filosofias buscaram ser as filhas adotivas de Sócrates.

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um tratamento de tal assunto deve ser em grande

6

parte filológico e histórico. Eu certamente não me

filosofia. Somos homens, não anjos, e para muitos

julgo um filósofo, porém tenho me esforçado em

de nós a melhor chance de ter um vislumbre das

entender quem era Sócrates e o que ele realizou,

coisas em sua perspectiva eterna é abordá-las por

e concebo que essa seja uma questão de genuíno

meio do tempo. Ademais, alguns de nós possuem

interesse filosófico. Por mais que também possa

o que pode-se chamar de senso de lealdade para

ser definida de outro modo, a filosofia, em um dos

com um grande homem. De certa forma, é claro

seus aspectos, é o esforço progressivo do homem

que não importa se devemos a verdade a Pitágoras,

em encontrar seu verdadeiro lugar no mundo. Esse

ou a Sócrates ou a Platão, mas é natural que deseje-

aspecto deve ser tratado historicamente, porque

mos conhecer nossos benfeitores e guardá-los com

é parte do progresso humano, e filologicamente,

carinho na memória. Portanto, não pedirei descul-

porque envolve a interpretação dos documentos.

pas pelo caráter histórico do muito que tenho que

Então, não temo a objeção de que a maior parte

colocar diante de vocês e devo começar anunciando

do que tenho para dizer hoje seja história e não

o problema de uma forma estritamente histórica.


I

acerca de Sócrates, ou não teria escrito 600 ou mais páginas a seu respeito.

Em uma carta ao filósofo Temístio, o imperador Juliano diz: As conquistas de Alexandre o Grande são superadas, a meus olhos, por Sócrates, filho de Sofrônisco. É a ele que atribuo a sabedoria de Platão, a fortaleza de Antístenes, a estratégia de Xenofonte, as filosofias eretríaca e megárica, com Cebes, Símias, Fédon e incontáveis outros. A ele também devemos as colônias que criaram, o Liceu, a Stoa e as Academias. Quem algum dia encontrou a salvação nas vitórias de Alexandre?… Enquanto isso, é graças a Sócrates que todos que encontram a salvação na filosofia estão

Maier chega à conclusão de que Sócrates não era, um filósofo, o que torna ainda mais incrível que os filósofos da geração seguinte concordassem unanimemente em tratá-lo como seu mestre.

sendo salvos ainda agora.1

A conclusão a que ele chega é a de que Sócrates Estas palavras de Juliano ainda são verdadeiras, e

não era, propriamente falando, um filósofo, o que

isto em parte porque haja tão pouca concordância

torna ainda mais incrível que os filósofos da gera-

a respeito de Sócrates. As mais diversas filosofias

ção seguinte, por mais diferentes que fossem em

buscaram ser suas filhas adotivas, e cada nova

outros aspectos, concordassem unanimemente em

explicação a seu respeito tende a refletir os estilos

tratar Sócrates como seu mestre. Maier dá muita

e preconceitos do momento. Em uma época, ele é

importância às diferenças entre as escolas socrá-

um iluminado deísta, em outra um ateu radical.

ticas e insiste que elas não poderiam ter surgido

Ele foi louvado como o pai do ceticismo e também

se Sócrates tivesse sido um filósofo com um sis-

como o sumo sacerdote da mística; como um refor-

tema próprio. À primeira vista parece haver algo

mador social democrático e como uma vítima da

de verdadeiro aí, mas só torna mais problemático

intolerância e ignorância democráticas. Ele che-

o fato desses filósofos desejarem representar suas

gou até a ser reinvidicado – com igual razão, no

filosofias como socráticas. Em tempos modernos,

mínimo – como um quaker. Não é de admirar que

as mais inconsistentes filosofias foram chama-

o seu último biógrafo, H. Maier, exclame:

das cartesianas, ou kantianas, ou hegelianas, mas nesses casos podemos normalmente decifrar de

Diante de cada nova tentativa de trazer a personali-

que forma elas foram derivadas de Descartes, Kant

dade de Sócrates para mais perto de nós, a impressão

ou Hegel, respectivamente. Cada um desses pensa-

que sempre fica é a mesma: ‘Um homem cuja influ-

dores tinha fundado algum novo princípio que foi

ência foi tão grande e tão profunda não pode ter sido

aplicado então por seus sucessores de formas diver-

desse jeito!2

gentes e até contraditórias, e deveríamos esperar descobrir algo parecido em Sócrates. Zeller, com

Infelizmente, essa é precisamente a impressão

quem a maioria de nós aprendeu sobre o assunto,

que me deixou a própria volumosa obra de Maier,

achava que sabia do que se tratava: é que Sócrates

embora ele tenha dominado o assunto e seu tra-

descobriu o universal e fundou a Begriffsphilosophie.

tamento a respeito seja razoável na medida do

A tese de Maier não terá nada a ver com isso, e eu

possível. A menos que encontremos outra linha de

prefiro pensar que pelo menos aqui ele está sendo

abordagem, parece que Sócrates deve permanecer

sensato. A evidência não resiste ao exame, e, de

para nós o Grande Desconhecido. Essa certamente

qualquer forma, a hipótese explicaria apenas Platão

não é a visão de Maier. Ele acha que sabe muito

(se é que explicaria). Os outros socráticos seguiriam

1. 264c 2. H. Maier, Sokrates, sein Werk und seine geschichtliche Stellung (Tübingen, 1913), p. 3.

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FILOSOFIA

sem explicação. No entanto, se devemos nos pri-

aceitar sua conclusão como base para o argumento,

var dessa engenhosa construção, precisamos de

ele defende que devemos nos restringir aos primei-

algo para substitui-la, e em vão buscaremos em

ros escritos de Platão e destaca particularmente a

Maier. Ele nos diz que Sócrates não foi um filósofo

Apologia e o Crito, aos quais acrescenta o discurso

no sentido próprio do termo, mas apenas um pro-

de Alcibíades no Banquete. Nessas duas obras, e

fessor de moral com seu próprio método distinto, o

naquela porção única da terceira, ele defende que

da “protréptica dialética.” Em outras palavras, sua

Platão não tinha outra intenção senão “colocar

“filosofia” não era nada mais do que seu plano de

diante de nossos olhos a personalidade e a vida de

fazer com que as pessoas se tornassem boas ao dis-

seu mestre, sem nenhum aumento da sua parte.”3

cutir com elas de um modo peculiar. Certamente o

Isso não significa, observem, que a Apologia seja

homem cuja influência foi tão grande “não pode ter

um relato do discurso realmente proclamado por

sido desse jeito!”

Sócrates em seu julgamento, ou que a conversa com Crito na prisão tenha ocorrido. Significa simples-

II

mente que o Sócrates que aprendemos a conhecer a partir dessas fontes é o verdadeiro homem, e que

Ora, é certamente impossível discutir a ques-

o único objetivo de Platão até então era preser-

tão socrática em todos seus aspectos dentro dos

var uma memória fiel dele. Maier também utiliza

limites de uma única palestra, então o que eu

outros diálogos, mas mantém certas reservas a

proponho fazer é tomar Maier como o mais apto

seu respeito, que não pretendo discutir. Eu prefiro

e mais recente defensor da visão de que Sócrates

tomar suas suposições no sentido mais estrito e

não foi realmente um filósofo, e aplicar o método

com todas as qualificações com que ele insiste.

socrático do raciocínio a partir das admissões feitas pelo outro lado. Se tentarmos ver aonde isso irá nos levar, é possível que cheguemos a conclusões que o próprio Maier deixou de aduzir, e estas serão ainda mais cogentes se estiverem baseadas apenas na evidência que ele concede como válida. Ele é um escritor franco, e são tão poucas as suas suposições, que, se um argumento puder ser defendido com base nelas, há grande chance de que seja bastante sólido. A mim pareceu que o experimento no

Se queremos compreendê-lo historicamente, devemos primeiro devolvê-lo ao ambiente de sua própria geração.

mínimo valia a tentativa, e, de qualquer modo, o seu resultado foi inédito até para mim, logo deve

A questão, então, toma a seguinte forma: “O que

ser inédito também para outras pessoas.

nós poderíamos saber sobre Sócrates como filósofo se nenhum outro relato dele tivesse chegado

Eu decidi, então, não questionar a avaliação de

até nós além da Apologia, do Crito e do discurso de

Maier sobre o valor de nossas fontes. Ele rejeita o

Alcibíades, e com a cláusula de que mesmo estes

testemunho de Xenofonte, que não pertenceu ao

não deveriam ser tratados como relatos de dis-

círculo íntimo de Sócrates e que dificilmente tinha

cursos ou conversas reais?” Devo acrescentar

mais de vinte e cinco anos quando viu Sócrates pela

que Maier também nos permite tratar as alusões

última vez. Ele também desaprova a evidência de

na comédia contemporânea como evidência cor-

Aristóteles, que foi a Atenas como um rapaz de

roborativa, embora com precaução. Essas são as

dezoito anos, trinta depois da morte de Sócrates, e

condições do experimento que resolvi tentar.

que não possuía fontes importantes além daquelas acessíveis a nós mesmos. Isso deixa Platão como

III

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nossa única testemunha, mas Maier não aceita a

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totalidade de seu testemunho; longe disso. Por

Em primeiro lugar, então, sabemos, através da

razões que não preciso discutir, já que proponho

Apologia e do Crito, que Sócrates tinha recém passado

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3. p. 147


dos setenta anos quando foi condenado à morte na primavera de 399 a.C., e isto significa que ele nasceu em 470 ou 469 a.C.,sendo, portanto, um homem da era de Péricles. Ele já tinha dez anos de idade quando Ésquilo apresentou a Trilogia de Orestes, e cerca de trinta quando Sófocles e Eurípedes escreveram suas primeiras tragédias. Ele deve ter visto do início ao fim a construção do novo Partenon. Nós

Amípsias dizia que ele “nasceu para irritar os sapateiros,” mas Sócrates pode ter tido outras razões além da pobreza para andar de pés descalços.

tendemos muito a ver Sócrates destacado contra o fundo mais sóbrio daqueles últimos dias a que per-

A partir da Apologia, sabemos também que Sócrates

tenceram Platão e Xenofonte e esquecer-nos de que

concebia a si mesmo como possuidor de uma missão

ele já passava dos quarenta anos quando Platão nas-

para com seus concidadãos, e que sua devoção a ela

ceu. Se queremos compreendê-lo historicamente,

levou-o à miséria. Ele não pode ter sido realmente

devemos primeiro devolvê-lo ao ambiente de sua

pobre, para começar; pois o vemos em serviço

própria geração. Em outras palavras, devemos nos

antes de Potidéia, o que significa que ele possuia a

esforçar para compreender sua juventude e o início

qualificação de propriedades exigida à época para

da sua fase adulta.

quem servia entre os hoplitas. Nove anos depois (423 a.C.), contudo, quando Aristófanes e Amípsias

Para a maior parte das pessoas, Sócrates é mais

o representaram no palco da comédia, parece que

conhecido por seu julgamento e morte, e por

suas necessidades já começavam a ser anedóticas.

isso ele é geralmente retratado como um senhor

Ambos aludem ao que parece ter sido uma piada

idoso. Nem sempre recorda-se, por exemplo, que

corrente sobre sua carência de um manto novo e

o Sócrates caricaturizado por Aristófanes em As

os expedientes a que se sujeitava para conseguir

Nuvens é um homem de quarenta e seis anos, ou

um. Amípsias dizia que ele “nasceu para irritar

que o Sócrates que serviu em Potidéia (432 a.C.) –

os sapateiros,” mas Sócrates pode ter tido outras

de uma maneira que hoje em dia lhe garantiria a

razões além da pobreza para andar de pés descal-

Cruz Vitória – tinha cerca de trinta e sete. Nessa

ços. No mesmo fragmento, ele é tratado como um

ocasião, ele salvou a vida de Alcibíades, que devia

“camarada intrépido que, por causa de todo seu

ter no mínimo vinte anos, ou não estaria ativo

apetite, nunca deixou de ser um parasita.” Dois

em serviço. Mesmo se supormos que a Potidéia

anos depois, Eupólis usou uma linguagem mais

foi sua primeira campanha, Alcibíades era no

dura. Ele chama Sócrates de um “mendigo taga-

máximo dezoito anos mais jovem do que Sócrates,

rela, que tem idéias sobre tudo, exceto sobre onde

e o discurso no Banquete nos leva ainda mais para

conseguir comida.” É claro que não devemos levar

trás, até a época em que ele tinha cerca de quinze

essa linguagem muito a sério. Sócrates ainda estava

anos.4 Ao ler o relato que ele dá sobre o começo

servindo como hoplita em Délio, no ano anterior a

de sua convivência com Sócrates, estamos lendo

As Nuvens de Aristófanes e ao Connus de Amípsias, e

o entusiasmo de um garoto por um homem que

em Anfípolis no ano seguinte. Contudo, algo deve

recém entrou na casa dos trinta. A história deixa

ter acontecido um pouco antes para levá-lo à noto-

uma outra impressão se tivermos isso em mente.

riedade pública, ou os poetas cômicos não teriam

Contudo, o que nos importa agora é que a “sabedo-

imediatamente lhe devotado atenção, e está claro

ria” de Sócrates é tomada como questão de senso

também que ele havia sofrido algum tipo de perda.

comum nesses primeiros dias. Foi só porque ele

Muito provavelmente isso se devia em primeiro

possuía um conhecimento estranho e inédito para

lugar à guerra, mas a Apologia o mostra ainda mais

deixar como legado que Alcibíades buscou con-

pobre ao final da vida, colocando-o como atribuindo

quistar sua afeição.5 Devemos ver a conseqüência

isso à sua missão. Acho que podemos concluir que

disso mais à frente.

a missão pública de Sócrates começara no ano

4. Ao passar do relato de seu primeiro contato com Sócrates para o de Potidéia, Alcebíades diz ταῦτά τε γάρ μοι ἅπαντα προὐγεγόνει, καὶ

μετὰ ταῦτα κτλ., “Essa era uma antiga história, mas tempos depois, etc.” (Banquete, 219e, 5)

5. Ele achava que seria um golpe de sorte πάντ’ ἀκοῦσαι ὅσαπερ οὗτος ᾔδει (Banquete, 217a, 4).

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FILOSOFIA

anterior a As Nuvens, mas era então algo novo, de

Sócrates não tivesse relação alguma com a “sabe-

maneira que sua natureza ainda não era claramente

doria” pela qual ele era conhecido em sua época

compreendida. Como sabemos, no ano anterior ele

anterior. A Apologia não nos ajuda aqui. Ela nos

estava fora de Atenas e provavelmente nos anos

conta bastante acerca da missão, mas nada acerca

anteriores também, embora não cheguemos a ler

da natureza da “sabedoria” que impeliu à investi-

a respeito de nenhuma batalha real entre Potidéia

gação de Querefonte, enquanto Alcibíades não está

e Délio em que ele tenha tomado parte. Contudo,

sóbrio o bastante no Banquete para nos dar mais do

dizem que seu hábito de meditação era uma piada

que uma alusão, que dificilmente é inteligível, mas

no exército antes de Potidéia, e que foi ali que uma

à qual ainda retornaremos. Será melhor, então,

vez ele se deteve em pensamento por vinte e qua-

começar com o relato dado na Apologia sobre a

tro horas.6 Parece que o chamado lhe veio quando

missão para com seus concidadãos, à qual Sócrates dedicou os últimos anos de sua vida, e ver se pode-

Tendo descoberto o sentido do oráculo, Sócrates agora sentia ser seu dever defender a veracidade do deus dedicando o resto de sua vida à exposição da ignorância de outros homens.

mos concluir daí algo a respeito da “sabedoria” pela qual ele ficara conhecido no início da fase adulta. IV Dizem, então, que, a princípio, Sócrates recusou-se a aceitar a declaração da pítia de que ele era o mais sábio dos homens e por isso dedicou-se a refutá-la apresentando alguém que certamente era mais sábio. Contudo, o resultado dos seus esforços foi apenas mostrar que todas as pessoas sábias aos seus próprios olhos e aos dos outros eram na verdade ignorantes, e concluiu que o sentido do

ele estava em campanha; e, em caso afirmativo, a

oráculo não era literal. O deus devia querer dizer

missão não pode ter se tornado a única ocupação de

na verdade que todos os homens são ignorantes,

sua vida até depois de Délio, quando Sócrates tinha

mas que Sócrates era mais sábio nesse sentido,

quarenta e cinco anos. Ora, nós vimos que ele era

de que ele sabia que era ignorante, enquanto os

conhecido por sua “sabedoria” bem antes disso,

outros homens achavam que eram sábios. Tendo

e que a Apologia confirma o discurso de Alcibíades

descoberto o sentido do oráculo, ele agora sentia

a esse respeito. Foi antes de Sócrates aceitar sua

ser seu dever defender a veracidade do deus dedi-

missão que Querefonte foi a Delfos e perguntou ao

cando o resto de sua vida à exposição da ignorância

oráculo se havia alguém mais sábio do que Sócrates,

de outros homens.

de onde se conclui que essa “sabedoria”, qualquer que fosse, era algo anterior e bastante indepen-

Pode-se pensar que essa obviamente seria uma

dente da missão pública descrita na Apologia. Para

forma chistosa de contar a história. Por razões muito

resumir, a evidência que Maier admite é suficiente

suficientes, o oráculo de Delfos era um objeto de sus-

para provar que Sócrates era conhecido como um

peita em Atenas, e, quando Eurípides o pinta com

“sábio” antes dos quarenta anos e antes de sair

tintas desfavoráveis, apenas reflete os sentimentos

questionando seus concidadãos. O que quer que

da sua platéia. É incrível que qualquer ateniense pen-

pensemos dos detalhes, tanto a Apologia quanto

sasse valer a pena fazer o mais mínimo sacrifício em

o discurso de Alcibíades assumem tal como fato,

defesa de uma instituição que havia se destacado por

sendo ainda mais convincente do que se tivesse

suas tendências pró-persas e pró-espartanas, ou que

sido enunciado em muitas palavras.

Sócrates tivesse esperado aplacar seus juízes afir-

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mando ter se desgraçado por tal causa. Poderíamos

10

Por outro lado, não parece provável que a missão de

da mesma forma esperar um júri de dissidentes

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6. Banquete 220c, 3 sqq. Maier diz (p. 301 n.) que isso obviamente depende de uma tradição confiável.


ingleses impressionar-se positivamente com o apelo

é exatamente o que eles queriam que ele fizesse.

de que um réu tivesse sido reduzido à pobreza por sua

Não. Cada parte deve se ater à sentença pronun-

defesa da infalibilidade papal.

ciada; Sócrates deve morrer, e seus acusadores

Ele não temia o Estado, como os professores alemães ocasionalmente temem.

devem ficar com a condenação por perversidade e desonestidade. É isso o que ele diz na Apologia8 e acrescenta que assim é que devia ser. Mesmo Xenofonte, que apresenta o apelo de conformidade religiosa da parte de Sócrates, mostra uma percepção muito maior do que os alemães. Em sua própria Apologia ele admite que outros

A esse respeito, os recentes críticos alemães

relatos do discurso – certamente o de Platão em

chegam a ter um vislumbre da verdade, embora

particular – tinham conseguido reproduzir o tom

incorram em conclusões muito equivocadas. Vários deles fizeram a profunda descoberta de que o dis-

elevado (μεγαληγορία) de Sócrates. Sócrates real-

mente falou daquele jeito, diz ele,9 e estava bem

curso que Platão coloca na boca de Sócrates não

indiferente quanto ao resultado do julgamento.

é de forma alguma uma defesa e que provavel-

Infelizmente, isso imediatamente é colocado a per-

mente não cativaria o tribunal. Eles vão deduzir

der por sua reclamação de que ninguém explicara

que Sócrates não pode ter falado daquela forma,

tal indiferença, de forma que isso soava “muito

e alguns chegam a concluir que toda a história

imprudente”, como soa para os alemães. A própria

do oráculo é uma invenção de Platão. Isto porque

visão de Xenofonte, que ele modestamente atribui

eles partem da convicção de que Sócrates deve ter

a Hermógenes, é a de que Sócrates queria, por uma

tentado defender-se o melho que podia. “Ele pre-

morte oportuna, escapar aos males da velhice. Ele

cisava apenas,” diz Maier, “apelar à retidão com

não queria ficar cego e surdo. Não puderam nem

a qual sempre cumprira os deveres da religião de

Xenofonte nem os alemães ver que a única coisa a

um cidadão ateniense. A Apologia de Xenofonte o

ser esperada de um bravo homem denunciado por

coloca falando nesses termos. E ele certamente

uma acusação barata é exatamente aquele tom de

falou nesses termos.” A conclusão é caracteris-

chistosa condescendência e persiflage que Platão

ticamente alemã, mas o Sócrates que pensamos

reproduziu. Como veremos, também há momentos

conhecer a partir da Apologia, do Crito e do discurso

sérios na Apologia, mas a verdadeira defesa é antes

de Alcibíades jamais teria se sujeitado a fazer algo

uma provocação do que um pedido de absolvição. É

do tipo. Ele não temia o Estado, como os profes-

exatamente por isso que nos sentimos tão seguros

sores alemães ocasionalmente temem. Sócrates

de que o discurso é fiel à vida real.

7

certamente admitia o direito do Estado de tratar seus cidadãos como considerasse adequado,

Então, não precisamos duvidar de que Sócrates

mas isso é algo bem diferente de reconhecer seu

realmente tenha dado uma explicação de sua

direito de controlar a liberdade de pensamento e de

missão como a que lemos na Apologia, embora

expressão. De fato, o Sócrates do Crito insiste que

devamos ter em mente o caráter “irônico” dessa

uma sentença legalmente pronunciada deve ser

parte do discurso. A maioria dos críticos ingleses

executada, e que, portanto, ele deve se submeter

lê essa parte de forma séria demais. Eles pare-

à morte pelas mãos do Estado; mas nós o enten-

cem pensar que a mensagem de Sócrates aos seus

deremos muito mal se não virmos que ele afirma

concidadãos não pode ter sido nada além do que é

com ainda mais convicção seu direito de não se

revelado ali, e que seu único propósito na vida era

rebaixar a uma defesa humilhante, ou de tornar

expor a ignorância dos outros. Se isso fosse real-

tudo mais fácil para seus acusadores ao fugir, que

mente tudo, seria certamente difícil acreditar que

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8. 39b, 4 sqq.

9. Apol. de Xen. 1 ᾧ καὶ δῆλον ὅτι τῷ ὄντι οὕτως ἐρρήθη ὑπὸ Σωκράτους. Platão estava presente no julgamento, mas Xenofonte estava “em algum lugar na Ásia.”

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7. p. 105

11


FILOSOFIA

ele estaria pronto para encarar a morte ao invés

do contexto e o artifício retórico de repetição. O que

de simplesmente abandonar a tarefa. Sem dúvida

Sócrates diz é o seguinte:

Sócrates defendia que a convicção da própria ignorância era o primeiro passo no caminho da

[...] não deixarei de filosofar e de vos exortar ou de

salvação, e que era inútil falar sobre qualquer coisa

instruir cada um, quem quer que seja que vier à

além disso com as pessoas que ainda tinham esse

minha presença, dizendo-lhe, como é meu costume:

passo para dar, mas até Xenofonte, que os mesmos

‘Ótimo homem,… não te envergonhas de fazer caso

críticos geralmente tratam como uma autoridade

das riquezas, para guardares quanto mais puderes e

sobre “o Sócrates histórico,” representam-no

da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso

como um professor de doutrina positiva. Mesmo a

e nada te importares de sabedoria, da verdade e da

partir da própria Apologia deve ser possível desco-

alma, para tê-la cada vez melhor?

brir qual era essa doutrina.

“Preocupar-se com a alma” era ao que Sócrates incitava seus concidadãos.

E também: Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e com as riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela seja quanto possível melhor.10

V “Preocupar-se com a alma,” então, era ao que De fato, não devemos assumir que Sócrates pen-

Sócrates incitava seus concidadãos, e teremos de ver

sasse valer a pena dizer no julgamento muita coisa

o que isso implica. Porém, em primeiro lugar, deve-

a respeito do seu verdadeiro ensinamento, embora

-se notar que há muitos ecos dessa frase em toda

seja provável que ele realmente tenha dado um

a literatura socrática. Xenofonte utiliza-a em con-

indício do que a constituía. Certamente havia

textos que não parecem ser derivados dos diálogos

alguns entre seus quinhentos juízes que mereciam

de Platão. Parece que Antístenes também a empre-

ser levados a sério. Porém, mesmo que ele não

gava, e ele dificilmente a teria tomado emprestado

tenha feito isso, Platão era obrigado a fazê-lo por

de Platão. Isócrates se refere a ela como algo fami-

ele se quisesse produzir o efeito que obviamente

liar.11 A Academia ateniense possuía um diálogo que

pretendia produzir. Na verdade, é bastante inequí-

fora evidentemente criado como um tipo de intro-

voco que ele tenha feito isso, e a única razão por

dução à filosofia socrática para iniciantes, colocado

que geralmente se negligencia esse ponto é a de

apropriadamente na forma de uma conversa entre

que achamos difícil nos colocar no lugar daqueles

Sócrates e o jovem Alcibíades. Eu acho que ele não

para quem tal doutrina era inédita e estranha.

é da autoria de Platão, mas vem de um período

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antigo. Nele, Sócrates mostra que, se alguém deve

12

A passagem que nos faz penetrar no segredo é

se preocupar consigo mesmo, deve antes de tudo

aquela em que Sócrates diz aos seus juízes que não

saber o que é isso que ele é; prova-se, então, que

desistirá daquilo que chama de “filosofia” e que

cada um de nós é uma alma, e que, portanto, cui-

mesmo assim eles deveriam absolvê-lo. É aqui que

dar de nós mesmos é cuidar de nossas almas. Tudo

buscamos, mais do que em qualquer outro lugar,

isso é posto da forma mais provocantemente sim-

uma exposição da verdade pela qual ele estava

ples, empregando as costumeiras analogias com a

pronto para morrer, e Platão com razão o faz forne-

arte do sapateiro, etc., e incrivelmente confirma o

cer a totalidade e substância de sua “filosofia” em

que é dito na Apologia.12 Porém, não explorarei esse

palavras obviamente escolhidas com o maior cui-

ponto, pois Maier admite, e na verdade insiste, que

dado e com toda ênfase possível para a solenidade

essa é uma fórmula caracteristicamente socrática.

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10. 29d, 4 sqq., e 30a, 7 sqq. 11. Como referência, cf. Maier, p. 333, n. 3. A alusão em Isócrates (Antid. § 309) foi observada por Grote (Plato, vol. I, p. 341). 12. [Platão] Alc. I. 127e, 9 sqq.


Vejamos, então, até onde essa suposição nos levará.

Sócrates, mas não há saída se realmente queremos

No começo, receio que ela parecerá não levar a

medir a importância do avanço que ele realizou.

lugar algum em particular. Através da repetição,

Ficará óbvio, no que se segue, que eu tive ajuda da

essa linguagem tornou-se insípida e nos exige

Psyche de Rohde, mas esta obra realmente grande a

algum esforço para ser avaliada. Quanto às pala-

meu ver parece não chegar à conclusão a que devia

vras, Sócrates fez muito bem seu trabalho. Trata-se

ter chegado. Não há nela absolutamente nenhum

de uma opinião ortodoxa e respeitável hoje em dia

capítulo sobre Sócrates.

a de que cada um de nós possui uma alma e de que a saúde dela é do nosso mais alto interesse, e de que já era assim no século IV a.C., como podemos ver com Isócrates. Supomos, sem questionamento, que também existia uma vaga ortodoxia semelhante sobre o assunto nos tempos de Sócrates, e que não havia nada de notável no fato de ele a ficar repetindo. É por isso que Maier, tendo chegado com segurança até esse ponto, contenta-se em não

A palavra ψυχή era usada, exatamente como o spiritus latino, para o que nós ainda chamamos de “destemor.”

avançar na investigação, declarando que Sócrates não foi um filósofo no sentido estrito, mas apenas

VI

um professor de moral com um método próprio.

Originalmente, a palavra ψυχή significava “respi-

Eu espero poder mostrar que ele parou exatamente onde deveria ter começado.

ração”, mas, em tempos históricos, ela já havia se

especializado em duas formas distintas, vindo a sigPois é aqui que se torna importante lembrar que

nificar, em primeiro lugar, coragem, e, em segundo,

Sócrates pertenceu à era de Péricles. Não podemos

sopro de vida. É claro que o primeiro sentido não

supor que suas palavras significassem tanto ou tão

tem nenhuma relação com nossa presente investi-

pouco quanto elas poderiam significar em Isócrates

gação, mas surgiu tanta confusão a partir da falha

ou em um sermão moderno. O que devemos per-

em distingui-lo do segundo sentido, que será bom

guntar é o que elas significariam na eclosão da

limpar o terreno definindo seu verdadeiro alcance.

Guerra do Peloponeso; e eu creio que, se fizermos

Há abundante evidência, em muitas línguas, de uma

essa pergunta, descobriremos que, longe de parecer

idéia primitiva de que o orgulho e a coragem natu-

um lugar comum, a exortação para “preocupar-se

ralmente se expressavam pela respiração difícil,

com a alma” deve ter sido um choque para o ate-

ou – sem querer exagerar aqui em detalhes – pelo

niense daqueles dias, e pode até ter soado um tanto

bufar. Talvez isso fosse observado nos cavalos. De

ridícula. Está implícito, cabe-nos observar, que há

qualque forma, a frase “respirar com dificuldade”

algo em nós capaz de atingir a sabedoria, e que esta esta coisa Sócrates chamava de “alma” (ψυχή). Ora, mesma coisa é capaz de chegar ao bem e à justiça. A

em que Sócrates dava. Não só a palavra ψυχή nunca

ninguém jamais havia dito isso antes no sentido

(πνεῖν μέγα) sobreviveu no sentido de “orgulharira” e “sopravam Ares.” Então a palavra ψυχή era

-se”, e se dizia que os guerreiros “sopravam de usada – exatamente como o spiritus latino – para o

que nós ainda chamamos de “destemor.”[high spirit]

havia sido usada dessa forma, como a existência do

Heródoto e os trágicos frequentemente a tomavam

que Sócrates chamava por esse nome jamais havia

nesse sentido, e Tucídides faz isso uma vez.13 A

sido percebida. Se puder se provar isso, será mais fácil compreender como Sócrates veio a ser tratado como o verdadeiro fundador da filosofia, e nosso uma investigação sobre a história da palavra ψυχή, problema estará resolvido. Isto envolve, é claro,

o que pode parecer nos levar para muito longe de

partir daí se deriva o adjetivo εὔψυχος, “animado”

μεγαλόψυχος, é propriamente o “homem de espí-

[spirited], “corajoso”, e o homem “magnânimo”, o Sócrates realmente queria dizer com ψυχή quando rito.” Está claro que, se quisermos descobrir o que

ele chamava a sede da sabedoria e do bem por esse

13. Tuc. II, 40, 3. Em Herod. v. 124 diz-se que Aristágoras era ψυχὴν οὐκ ἄκρος. Partindo do contexto, vemos claramente que isso significa que ele era acanhado. Menciono isso porque Lidell e Scott estão errados nesse ponto.

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___________________________________________________

13


FILOSOFIA

nome, devemos eliminar todos os casos da palavra

espelho.14 As almas que partiram são coisas tolas

que se enquadram aqui.

e fracas. Tirésias é a exceção que prova a regra, e na Nekya é só quando as sombras podem beber

Homero jamais atribui qualquer sentimento à ψυχή. O θυμός e o νοός, que sentem e percebem, tem sua sede no diafragma ou no coração.

O segundo significado de ψυχή é o “sopro de vida,” a presença ou ausência do que é a distinção mais óbvia entre o animado e o inanimado. É, em primeiro lugar, o “fantasma” que um homem “abandona” na morte, mas ele pode também deixar o corpo temporariamente, o que explica o fenômeno do desmaio (λιποψυχία). Sendo assim, parecia natural supor que era também a coisa que pode vaguear livremente quando o corpo está adormecido e mesmo aparecer no sonho de outra pessoa. Ademais, visto que podemos sonhar com os mortos, então o que aparece para nós deve ser justamente o que deixa o corpo no momento da morte. Essas considerações explicam a crença universal na “alma” como um tipo de “duplo” do homem corpóreo real, o ka egípcio, o genius italiano, e a ψυχή grega.

Ora, esse “duplo” não se identifica com aquilo que em nós, durante nossa vigília, sente e deseja. Geralmente se supõe que esse seja o sangue, e não

relação com a vida consciente quando ela estava no corpo, e portanto não pode ter consciência alguma quando separada dele. Alguns favoritos dos céus escapam desse destino sombrio ao serem enviados para as Ilhas dos Bem-Aventurados – mas esses não morrem mesmo. São levados ainda vivos e mantêm seus corpos, sem os quais seriam incapazes da bem-aventurança. Esse ponto também é bem percebido por Apolodoro.15 VII Há uma concordância geral de que essas visões vâncias do culto mortuário ( τά νομιζόμενα ), as dificilmente podem ser primitivas, e que as obser-

quais encontramos sendo praticadas em Atenas e outros lugares, realmente dão testemunho de um que em certa época a ψυχή tinha de habitar com estrato de crença muito anterior. Eles mostram o corpo no túmulo, onde ela tinha de ser mantida

mente por libações (χοαί) vertidas sobre o túmulo. através das oferendas dos sobreviventes, especialConcluiu-se razoavelmente que a imunidade do

mundo homérico com relação aos fantasmas tinha cremação. Quando o corpo é queimado, a ψυχή muito a ver com a substituição do enterro pela não tem mais um ponto de apoio nesta vida. Seja

como for, o antigo fantasma ateniense não era

sentimento à ψυχή. O θυμός e o νοός, que sentem e

de forma alguma tão fraco e desamparado como

percebem, tem sua sede no diafragma ou no cora-

manecesse sem vingança, ou se as oferendas em

Em um certo sentido, a ψυχή certamente continua

seu túmulo fossem negligenciadas, seu fantasma

a existir depois da morte, pois ela aparece para os

preservava a memória de uma época em que se

sobreviventes, mas em Homero ela dificilmente é

acreditava que as almas partidas revisitassem

sequer um fantasma, visto que não pode lhes apa-

recer senão em sonho. Ela é uma sombra (σκία) ou

seus antigos lares uma vez por ano. Não há aqui

imagem (εἴδωλον ), com tanta substância, como

nenhum traço do que possa ser chamado de louvor

Apolodoro coloca, quanto o reflexo do corpo em um

que isso. Embora menos desamparado e, portanto,

ção; eles pertencem ao corpo e perecem com ele.

JANEIRO 2014

ψυχή algo que ela um dia teve; não tem nenhuma taneamente. Isso não é porque a morte roubou da

a respiração. Homero tinha muito a dizer a respeito dos sentimentos, mas ele jamais atribui qualquer

14

sangue que a consciência retorna a elas momen-

o homérico. Se o assassinato de um homem per-

poderia “perambular,” e o festival da Anthesteria

aos antepassados. É algo muito mais primitivo do

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14. Apolodoro περί θεῶν (Estob. Ecl. I, p. 420, Wachsm.) ὑποτίθεται τάς ψυχάς τοῖς εἰδώλοις τοῖς εν τοῖς κατόπτροις φαινομένοις ὁμοίας

καἰ τοῖς διά τῶν ὑδάτων συνισταμένοις, ἃ καθάπαξ ἡμῖν ἐξείκασται καἰ τάς κινήσεις μιμεῖται, στερεμνωδη δὲ ὑπόστασιν οὐδεμίαν ἔχει εις ἀντίληψιν καἰ ἁφήν. 15. Apolodoro, ib. (Estob. Ecl. I, p. 422) τούτοις μέν οὗν καἰ τά σώματα παρεῖναι.


mais formidável do que a “sombra” homérica, o

de sigilo se referia apenas ao ritual, e teríamos de

fantasma ateniense primitivo dependia das ofe-

saber algo mais definido quanto à vida futura se os

rendas dos sobreviventes, que sem dúvida faziam

Mistérios tivessem sido explícitos a esse respeito.

essas oferendas em parte por sentimentos de pie-

O coro em As Rãs de Aristófanes provavelmente

dade natural, mas principalmente para manter o

nos conta tudo o que há para contar, e isto se

fantasma quieto. Isso dificilmente pode ser cha-

resume apenas a uma visão de prados e banquetes

mado de culto.

– um tipo de piquenique glorificado. De uma coisa

Está claro, por outro lado, que essas crenças eram meras relíquias na Atenas do século V a.C. Não saberíamos quase nada acerca delas não fosse pelas observâncias mortuárias terem adquirido importância legal em casos de homicídio e herança, de

A justiça deve ser feita na terra, ou em nenhum outro lugar.

maneira que os oradores tinham de tratá-los com seriedade; além disso, elas prosseguiram muito confortáveis lado a lado com a crença totalmente inconsistente de que todas as almas partidas iam para o seu lugar próprio. Sabemos hoje que a representação que Luciano faz de Caronte em seu barco reproduz fielmente o imaginário do século VI a.C.; porque está em pleno acordo com a representação em uma peça de cerâmica de figura negra recém-descoberta.16 Ali não vemos as almas – criaturinhas miseráveis com asas – chorando sobre a praia e rezando para embarcarem, enquanto Caronte senta na popa e abre caminho remando. As pessoas que decoravam uma obra de cerâmica, de

podemos estar certos: de que nenhuma nova visão sobre a alma foi revelada nos Mistérios ; pois, do contrário, certamente encontraríamos algum traço disso em Ésquilo. Para falar a verdade, ele não nos diz nada sobre a alma, e sequer mal a menciona. Para ele, como para a maioria dos seus contemporâneos, o pensamento não pertence ao corpo; mas ao sangue ao redor do coração, que, com a morte, pára de pensar. Em seu esquema das coisas não há lugar para a vida futura, e é justamente por isso que ele se preocupa tanto com o problema dos pecados dos pais castigando os filhos. A justiça deve ser feita na terra, ou em nenhum outro lugar.

uso obviamente pretendido para o culto mortuá-

De qualquer modo, as promessas oferecidas nos

rio, evidentemente com tal cena não tinham crença

Mistérios são tão inconsistentes com as crenças

viva alguma na existência contínua da alma dentro

implícitas no culto mortuário quanto com Caronte

do túmulo. Encontramos a mesma contradição no

e seu barco, e o fato de que a Eleusínia tivesse sido

Egito, mas lá ambas as crenças eram levadas à sério.

apropriada pelo Estado como parte da religião

Os egípcios eram um povo comercial e saíram dessa

pública mostra mais uma vez quão pouca influên-

dificuldade ao assumir duas almas, uma das quais

cia tinham tais crenças sobre o ateniense comum.

(o ka) permanece no túmulo, enquanto a outra (o

Não quero dizer que ele ativamente duvidasse

ba) parte para o lugar dos mortos. Artifícios seme-

delas, mas eu suporia que ele pensava muito pouco

lhantes foram adotados em outros lugares, mas

a seu respeito. Afinal de contas, os atenienses

os gregos não sentiam necessidade de nada desse

eram criados com Homero, e suas crenças cotidia-

tipo. Podemos com segurança concluir que a antiga

nas derivavam dessa fonte. Além disso, Homero

crença havia perdido sua força entre eles.

já estava começando a ser interpretado alegoricamente, e no tempo de Sócrates a noção dominante era sem dúvida a de que as almas dos mortos aca-

nienses sobre a alma eram sombrias o bastante,

bavam absorvidas pelo ar superior, assim como

e não podemos nos surpreender com a popula-

os corpos o eram pela terra. Em As Suplicantes,

ridade dos Mistérios de Elêusis, que prometiam

Eurípedes nos fornece a fórmula “terra a terra, e

algum tipo de destino melhor aos iniciados depois

ar a ar”, e esta não é uma heresia sua.17 Era algo

da morte. No entanto, não parece de modo algum

tão natural que havia se incorporado ao epitáfio

que isso fosse claramente concebido. A obrigação

oficial daqueles que caíram em Potidéia alguns

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16. Furtwängler, Charon, eine altattische Malerei (Archiv für Religionswissenschaft, VIII (1905), pp. 191 sqq.)

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Seja de que modo for, as tradicionais crenças ate-

15


FILOSOFIA

anos antes (432 a.C.).18 Não há nada de anormal nisso. Não havia espaço na religião pública para nenhuma doutrina de imortalidade. Só os deuses são imortais, e seria escandaloso sugerir que os seres humanos também pudessem sê-lo. Os mor-

sua religião era assegurar a libertação (λύσις) da alma de sua escravidão, por meio de certas obser-

pecado original (καθαρμοί). As almas que fossem vâncias dirigidas à sua limpeza e à purificação do suficientemente purificadas retornariam mais uma

tos são apenas os mortos; como os mortos podem

vez aos deuses e recuperariam seus antigos postos

ser imortais? De fato, na era heróica, alguns seres

entre eles.

humanos haviam atingido a imortalidade ao se transformarem em deuses e heróis, mas ninguém esperava que essas coisas acontecessem agora. As honras heróicas prestadas a Brásidas em Anfípolis tinham uma motivação política e dificilmente foram levadas a sério. VIII Até aqui tratei das crenças do cidadão comum e com a religião oficial de Atenas, mas seria fácil

Não está tão claro que os órficos tenham ido muito além do espiritismo primitivo na explicação que davam acerca de natureza da alma.

encontrar pessoas que defendiam visões bem dife-

Essa certamente não é uma crença primitiva,

rentes sobre a alma. Em primeiro lugar, havia os

mas uma especulação teológica, como encontra-

membros das sociedades órficas, e havia também

mos entre os hindus e, de uma forma mais crua,

os partidários da ciência jônica, que tinham se tor-

entre os egípcios. O problema era ainda até recen-

nado bastante numerosos desde que Anaxágoras

temente o de que não havia espaço para uma era

introduzira-os aos atenienses. Em geral, os órfi-

de tal especulação dentro dos limites da história

cos seriam encontrados principalmente entre as

grega como a conhecemos, e muitos estudiosos

classes mais humildes, e os seguidores da ciência

modernos seguiram o exemplo de Heródoto de

jônica principalmente entre a aristocracia ilumi-

defender que ela vinha dos “bárbaros,” do Egito

nada. Mesmo na ausência de testemunho direito,

em particular. Por outro lado, o orfismo estava

devemos assumir que Sócrates, ao qual tudo

estreitamente ligado à veneração de Dionísio, que

interessava e o qual tudo colocava à prova, não

parece ter vindo da Trácia, e dificilmente podemos

ignorou os dois mais notáveis movimentos que

creditar os trácios com um dom para a teologia

aconteceram em Atenas em sua própria geração, e,

mística. Se, porém, tomarmos uma visão mais

se quisermos restitui-lo ao ambiente de sua pró-

ampla, descobriremos que doutrinas parecidas

pria época, certamente deveremos levá-los em

são encontradas em muitos lugares que nada tem

conta. O movimento religioso foi o primeiro no

a ver com a Trácia. Zielinski mostrou fundamen-

tempo e é o primeiro a exigir nossa atenção.

tos sólidos para se crer que a teologia hermética,

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importante em épocas posteriores, originou-se

16

O traço mais marcante da crença órfica é que ela

na Arcádia e especialmente na Mantinéia, o lar

se baseia na negação do que acabamos de ver ser

da profetisa Diótima, que certamente não deve

a doutrina cardinal da religião grega, isto é, de que

ser tomada como um personagem fictício.19 Havia

há um abismo intransponível, ou quase intrans-

muitos elementos místicos na veneração do Zeus

ponível entre deuses e homens. Ao contrário, os

cretense, e em épocas posteriores sobreviveu um

órficos defendiam que toda alma é um deus caído,

livro de profecias composto no dialeto do Chipre,

trancafiado na prisão do corpo como penalidade

que é praticamente idêntico ao árcade.20 A distri-

por um pecado pré-natal. O objetivo da prática de

buição geográfica da doutrina sugere fortemente

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17. Eur., As Suplicantes, 533 – πνεῦμα μὲν πρὸς αἰθέρα,τὸ σῶμα δ‘ ἐς γῆν. 18. C. I. A. i. 442 – Αἰθὴρ μὲν ψυχὰς ὑπεδέξατο, σώματα δὲ χθών. 19. Archiv für Religionswissenschaft, IX (1906), p. 43.


que estamos de fato diante de uma relíquia da era egéia, e que o período de especulação teológica que provavelmente devemos assumir foi justamente a época do poder de Cnosso. Se for assim, os sacerdotes de Heliópolis no delta podem muito bem ter emprestado isso de Creta, e vice-versa, se é que houve qualquer empréstimo. É desnecessário bus-

Não havia uma doutrina da alma na religião recebida, ou ninguém achava que valia a pena falar dela

car origens remotas. IX Como seja, é certo que essas doutrinas floresceram enormemente no século VI a.C., e que sua influência sobre o pensamento mais elevado da

A palavra ψυχή também havia sido usada nas

escolas científicas da Jônia em um sentido bem

Grécia não foi de forma alguma insignificante.

diferente do popular e tradicional. Ele parece ter

Contudo, devemos cuidar para evitar o exagero

se originado na doutrina de Anaxímenes de que

aqui; pois, enquanto é certo que os órficos deram uma importância à “alma” que ia muito além de

o “ar” (ἀήρ), a substância primária, era a vida do

mundo, assim como a respiração era a vida do

qualquer coisa reconhecida na religião pública ou

corpo. Essa doutrina estava sendo ensinada em

privada dos estados gregos, de forma alguma está

Atenas por Diógenes de Apolônia no início da fase

tão claro que eles tenham ido muito além do espi-

adulta de Sócrates, que é representado como seu

ritismo primitivo na explicação que davam acerca

seguidor em As Nuvens de Aristófanes. Contudo,

de sua natureza. Na medida em que se imaginava

toda a ênfase recai sobre o lado cósmico. Não há

que a alma revelaria sua verdadeira natureza no

um interesse especial na alma humana individual,

“êxtase”, que podia ser produzido artificialmente

que é exatamente aquela porção do ar ilimitado que

por drogas ou pela dança, isso é óbvio; mas, mesmo

vem a ser momentaneamente encerrada em nosso

em suas manifestações mais elevadas, a doutrina

corpo, e que explica nossa vida e consciência. Há

ainda tem traços que remetem à sua origem primi-

aqui um grande avanço sobre as visões primiti-

tiva. A mais antiga afirmação na literatura acerca da origem divina única da alma encontra-se em um

vas, na medida em que a ψυχή é identificada pela

primeira vez com a consciência normal em vigília,

fragmento de uma das lamentações de Píndaro,21

e não com a consciência em sonho. Esse ponto é

da vida” (αἰῶνος εἴδωλον) que sobrevive à morte,

especialmente enfatizado no sistema de Heráclito,

muito ao modo homérico, e nos é dito expressa-

vigília e sonho, vida e morte.23 A alma em vigília é

ativos” (εὕδει δὲ πρασσόντων μελέων) e exibe sua

aquela em que o fogo elemental queima brilhante

natureza profética apenas nos sonhos. Na verdade,

parcial ou total. Por outro lado, a alma se encontra

como disse Adam, ela é mais como o que tem se

em um estado de fluxo, assim como o corpo. Ela

chamado d’ “o eu subliminal” em tempos moder-

também é um rio no qual você não pode banhar-

nos, e está bastante dissociada da consciência

-se duas vezes; não há nada sobre o qual você

normal em vigília.22 Ela pode ser divina e imor-

possa falar como um “eu” ou mesmo um “isto.”

tal, mas realmente não nos diz respeito, exceto

ψυχή a origem do movimento que ele se obrigava

mas mesmo aí ela é chamada de uma “imagem

mente que ela “dorme quando os membros estão

durante o sonho e no momento da morte. Não está identificada com o que chamamos de “eu.”

que se baseava precisamente na oposição entre

e seco; o sono e a morte devem-se à sua extinção

Anaxágoras preferia chamar de νοῦς ao invés de a postular, mas, para nossos atuais propósitos, ele queria dizer praticamente a mesma coisa. O traço

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20. Sobre Euclos, o cipriano, ver M. Schmidt in Kuhns Zeitschrift, IX (1908), pp. 361 sqq. A identidade dos dialétos arcáde e cipriota é o fato mais certo e fundamental com respeito à era egéia.

22. Adam, The Doctrine of the Celestial Origins of the Soul (Cambridge Praelections, 1906). Adam destacou (p. 32) que Myers escolhera o fragmento pindárico como cabeçalho do seu capítulo sobre o Sono (Human Personalitiy, vol. I, p. 121). 23. Cf. meu Greek Philosophy, Part I, Thales to Plato, § 41.

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21. Píndaro, fr. 131 Bergk.

17


FILOSOFIA

comum em todas essas teorias é que nossa vida

consciente vem até nós “pela porta” (θύραθεν),

X

como Aristóteles coloca, empregando um termo

Na literatura ateniense do século V, a idéia de alma

que em outros lugares é usado para descrever a

é ainda mais desconhecida. Podíamos esperar que

respiração. Sua existência é de um tipo temporá-

ao menos a teoria órfica, se não a científica, dei-

rio e acidental, dependendo unicamente do fato de

xaria algum rastro, mas nem isso aconteceu. Em

que momentaneamente uma porção da substância

um assunto como esse, as impressões vagas e

primária está encerrada em um corpo em parti-

gerais são inúteis, e as observações que vou fazer

cular. Vê-se que isso encaixa-se bem o bastante

se baseiam no que eu creio ser uma enumeração

na visão geralmente aceita em Atenas e expressa na fórmula “terra a terra, ar a ar.” É por isso que

completa de todos os exemplos da palavra ψυχή

na literatura ateniense do século V que chegou até

ninguém se escandalizou com a visão científica. Os

nós, incluindo Heródoto, que escreveu especial-

“sofistas” eram acusados de quase tudo, mas não

mente para atenienses. Eu fiquei muito surpreso

me recordo de lugar algum onde eles fossem acu-

com o resultado dessa investigação, que mostrou

sados de falhar em “pensar com nobreza sobre a

que, até o final do século, não há praticamente

alma.” Não havia uma doutrina da alma na religião

nenhum exemplo da palavra em algum outro sen-

recebida, ou ninguém achava que valia a pena falar

tido distinto do puramente tradicional.

dela, e portanto não podia haver impiedade no que os sofistas ensinavam. Era muito mais provável que

Em primeiro lugar, como disse antes, ela geral-

a doutrina órfica ofendesse os preconceitos de então.

mente significa “destemor” ou coragem, mas isso não nos importa no momento. Em certo número

Na literatura ateniense do século V, a idéia de alma é ainda mais desconhecida.

de passagens, ela significa “fantasma,” mas os fantasmas não são muito mencionados. Em mais lugares, pode ser traduzida como “vida,” e aí notou que, na literatura desse período, ψυχή jamais

começam os possíveis enganos. Na verdade, não se significa a vida de um homem, exceto quando ele

Talvez os pitagóricos pudessem ter desenvol-

está morrendo ou em perigo de morte, ou, em

vido uma doutrina mais adequada da alma, pois

outras palavras, que até aqui o uso ático é igual ao

eles partilhavam ao mestmo tempo do interesse

homérico. Você pode perder ou “abandonar” sua

religioso dos órficos e dos interesses científicos dos jônicos. Contudo, o que aconteceu é que seus dela como uma “mistura” (κρᾶσις) ou “harmonia”

como Alcestis, ou prender-se a ela ignobilmente,

(ἁρμονία) dos elementos que compõem o corpo, do qual, portanto, ela é meramente uma função.

24

e φιλοψυχία é um termo comum para covardia. No

mesmo sentido, você pode dizer que uma coisa é

Demócrito chegou de fato a distinguir os prazeres

tão estimada quanto uma “vida estimada.” Quanto

náculo” (σκῆνος) ou corpo; mas, como ele defendia

-las ou vingá-las, e ψυχή neste caso claramente

como Admeto. “Amar a sua ψυχή” é temer a morte,

da alma como mais “divinos” do que os do “taber-

às ψυχαί das outras pessoas, você pode lamentá-

que a alma é corpórea, essa era apenas uma dife-

significa a vida perdida, podendo muito bem ser

que nem a religião nem a filosofia no século V a.C. sabiam qualquer coisa a respeito da alma. O que

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lutar ou falar em sua defesa; você pode sacrificá-la,

estudos musicais e médicos os levaram a tratar

rença de grau.25 Devemos concluir, como um todo,

18

ψυχή ou pode salvá-la; você pode arriscá-la, ou

“vida.” O que você não pode fazer com uma ψυχή é

traduzida tanto como “morte” quanto como viver por ela. Quando Teseu em Eurípides26 ordena

eles chamavam por esse nome era algo extrínseco e

a Anfítrion “fazer violência à sua alma,” ele quer

dissociado da personalidade normal, que era total-

dizer “force-se a viver,” e o sentido literal de suas

mente dependente do corpo.

palavras é “Mantenha à força o sopro da vida” e

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24. Cf. ib. § 75. 25. Cf. ib. § 155.

26. Eur., Herc. 1366 ψυχήν βιάζου. A interpretação que faz Wilamowitz disso é peculiarmente ruim.


não o deixe escapar. “Recuse-se a abandonar o a expressão “Mantenha sua ψυχή”27 propriamente fantasma” chega próximo disso. Da mesma forma, quer dizer “Faça um esforço para não desmaiar,”

e implica a mesma idéia de segurar a própria res-

dormentes.29 Isso explica, ademais, como a ψυχή

pode ficar “aflita” ao ser tocada de forma crua, e a ψυχή. Nós ainda falamos hoje em dia de um espetambém porque se diz que certas dores “atingem” táculo “tocante” ou de um apelo que “atinge” o

atenienses do século V por um único caso de ψυχή

coração, embora tenhamos esquecido a psicologia

maio ou morte.

Se seguirmos tal pista, descobriremos que os sen-

A ψυχή também é dita nos trágicos como a sede de

pertencem à nossa parte obscura mais afim à

piração. Vocês em vão buscarão nos escritores

primitiva na qual essas frases se baseiam.

significando “vida,” exceto em ligação com destimentos ligados à ψυχή são sempre aqueles que

certos sentimentos, caso em que naturalmente a

consciência do sonho. Assim são todos os estra-

traduzimos por “coração.” O que não se percebeu

nhos anseios, pressentimentos e pesares “grandes

muito especial. Vimos que Píndaro pensava a ψυχή

demais para pôr em palavras,” como dizemos.

como uma espécie de “eu subliminal” que “dorme

teza que acompanha os sentimentos de horror

quando os membros estão ativos,” mas que tem

e desespero, e que é expressa como um peso do

é que esses sentimentos são sempre de um tipo

visões proféticas enquanto o corpo dorme. Na tragédia ática, essa função é geralmente atribuída ao lugar onde a ψυχή parece definitivamente significar

coração e não à “alma,” mas há pelo menos um o “subconsciente.” Em As Troianas se lamenta que o menino Astíanax, quando está a ponto de morrer, não tenha tido a experiência consciente dos em tua ψυχή, porém tu não os conheces.”

privilégios da realeza. “Tu os vistes e os marcastes 28

Esse

Os sentimentos ligados à ψυχή são sempre aqueles que pertencem à nossa parte obscura mais afim à consciência do sonho.

Assim também é a sensação de opressão e trisqual buscamos livrar nossa ψυχή. A ansiedade e

[low spirits] – têm sua sede na ψυχή, e assim tama depressão – o que chamamos de “abatimento”

bém todos os medos e horrores irracionais. Diz-se sistível, como o amor de Fedra, ataca a ψυχή.30 Em uma ou duas vezes que a paixão estranha e irreamável (εὔνοια), mas isso vai muito além do seu

Sófocles, por duas vezes ela é a sede do sentimento alcance comum.31 É seguro dizer que a ψυχή jamais é tratada como tendo algo a ver com a percepção clara ou com o conhecimento, ou mesmo com a emoção articulada. Ela retém algo de misterioso

e estranho, bem distinto da nossa consciência comum. Uma ou duas vezes os dons da profecia e da habilidade mágica estão ligados à ela, mas nunca o pensamento ou o caráter. Portanto, ela ainda é essencialmente o “duplo” da crença primitiva, e é exatamente por isso que ela pode se dirigir a nós ou nós nos dirigirmos a ela como se fôssemos dis-

de conhecimento à ψυχή – e ele é expressamente

tintos. É claro que isso se tornou um maneirismo

negado como conhecimento. Trata-se apenas de

assim. A “alma” do guarda na Antígona, que tenta

uma percepção vaga do início da infância, que não

dissuadi-lo de dar seu relato a Creonte, pode ale-

deixa rastro na memória. Observamos a mesma

gar parentesco com a “consciência” de Launcelot

liar atinge a ψυχή, isto é, para despertar memórias

Gobbo no Mercador de Shakespeare.

parece ser o único lugar onde se atribui algum tipo

idéia em outro lugar, onde se diz que algo fami-

ou figura de linguagem, mas no começo não era

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27. Eur., Herc. 626 σύλλογον ψυχῆς λαβέ | τρόμου τε παῦσαι. Cf. As Fen., 850 ἀλλά σύλλεξαι σθένος | καὶ πνεῦμ᾽ ἄθροισον. 29. Sóf., Electra 902. 30. Eur., Hip. 504, 526. 31. Sóf., O. C. 498, fr. 98.

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28. Eur., As Tro. 1171. Cf. B. H. Kennedy na nota de Tyrrell.

19


FILOSOFIA

Agora seremos capazes de ver as relações com

alguns usos especiais da palavra ψυχή. Por exem-

“uma alma”, ao invés de “um sangue.”

plo, ela é expressa como a sede de uma consciência

Finalmente, devemos observar um uso curioso e

com culpa. Isso claramente vem à tona em uma

particularmente instrutivo da palavra, que sabe-

passagem notável em Antífon, 32 onde faz seu

mos derivar da linguagem popular. A ψυχή é a sede

estivesse consciente da culpa. “Uma ψυχή sem

dos humores e apetites instáveis, e especialmente

culpa”, diz ele, “frequentemente preservará a si

comida e bebida, que às vezes emergem da parte

mesma e também um corpo exausto, mas uma cul-

mais irracional e incontrolável da nossa natureza.

posa deixará à própria sorte até mesmo um corpo

O cíclope em Eurípedes, que não provava o sabor

vigoroso.” É pelo mesmo ponto de vista que a lei

da carne humana há muito tempo, diz que fará um

(ἡ δράσασα ou βουλεύσασα ψυχή), uma frase em

não despreza colocar o fantasma de Dario aconse-

cliente argumentar que jamais iria a Atenas se

de homicídio exige o confisco da “alma” culpada

que o uso de ψυχή como a sede da consciência com33

daqueles inexplicáveis anseios por certos tipos de

bem à sua ψυχή ao comer Odisseu.36 Mesmo Ésquilo lhando os anciãos persas a “dar todo dia algum

bina-se com o sentido da vida como uma coisa a

prazer a suas almas.”37 Desse modo, os romanos

ser perdida. Várias passagens dos trágicos devem

também falavam em animo ou genio indulgere, e de

ser interpretadas à luz disso. De fato, como era

agir animi causa. Trata-se de uma parte singular

de se esperar, Ésquilo faz a consciência residir no

de psicologia primitiva, e certamente é conve-

coração, mas ele é enfático em relacioná-la com a

niente fazer de um “duplo,” pelo qual você não é

consciência do sonho. É “durante a noite” que se

estritamente responsável, a fonte desses singula-

abre a ferida do remorso.34 Até o plácido Céfalos da

res anseios pela boa vida, aos quais estão sujeitos

República de Platão é vez ou outra desperto de seu

mesmo os melhores entre nós de vez em quando.

sono pelo temor de que possa ter em sua consci-

O ka egípcio possuía tendências semelhantes.

ência algum pecado contra os deuses ou homens.

Vista dessa forma, a ψυχή é meramente o elemento “animal” da nossa natureza.

Vista dessa forma, a ψυχή é meramente o elemento “animal” da nossa natureza.

vra ψυχή na literatura ateniense do século V. Mesmo

Agora já cobri praticamente todos os usos da palaem Lísias, que pertence ao séc. IV, há apenas um caso da palavra num sentido estritamente tradicional, o que é ainda mais notável, pois ele no mínimo pertenceu ao perímetro do círculo socrático. As poucas exceções que observei são todas do tipo que

Outro misterioso sentimento estritamente asso-

confirmam a regra. Quando Heródoto discute a

ciado com o elemento subconsciente em nossa

suposta origem egípcia da crença na imortalidade,

vida é o sentimento de parentesco, o que os franceses chamam de la voix du sang. Os gregos também

mas ele é no fundo uma figura órfica.39 De outro

Clitemnestra em Sófocles se dirige a Electra como

“nascida da minha ψυχή ,”

forma, a palavra é usada por Eurípedes de um modo

e ocasionalmente

puramente tradicional, mesmo em As Bacantes.

parentes próximos são chamados possuidores de

Ésquilo emprega-a muito raramente, e de maneira

32. De caede Herodis, § 93.

35

33. Antífon, Tetr. Γ. a, 7. Cf. Platão, Leis, 873a, 1. 34. Cf. Headlam, Agamemnon, p. 180.

JANEIRO 2014

Hipólito em Eurípides fala de uma “alma virgem,”

geralmente falam do sangue nesse sentido, mas a

___________________________________________________

20

ele naturalmente utiliza ψυχή no sentido órfico.38

35. Sóf., Electra 775. 36. Eur., O Cícl., 340. 37. Ésq., Os Persas, 840. 38. Heród., II, 123.


muito simples. Sófocles, como se poderia esperar,

lembrar de Filoctetes; mas quem fala é um ora-

é bem mais sutil, mas não consigo encontrar mais

culista de Oreos, de modo que é outra exceção que

do que duas passagens onde ele realmente ultra-

confirma a regra.44 Eu acho que podemos imagi-

passe os limites que indiquei, e ambas aparecem

nar o espanto produzido pelo ensinamento de

em uma de suas últimas peças, a Filoctetes. Odisseu

Sócrates, se considerarmos o desconfortável sen-

vras a ψυχή de Filoctetes,”40 o que parece implicar

timento frequentemente suscitado pelas palavras

que ela seja a sede do conhecimento, e Filoctetes

em seu sentido antigo de “espírito” e “espiritual.”

fala da “alma má de Odisseu observando por fres-

Há algo não totalmente reconfortante na frase

tas,”

“advertência fantasmagórica.”

conta a Neoptólemo que vai “apanhar com pala-

41

o que parece implicar que ela seja a sede

“fantasma”[ghost] e “fantasmagórico”[ghostly]

do caráter. Esses exemplos pertencem ao final do século e antecipam o uso do próximo. Não há outro lugar onde sequer se sugira que a “alma” tenha algo a ver com conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade, e para Sócrates essa era a coisa mais importante a seu respeito. Ora, se até mesmo a mais alta poesia obser-

O poder de fundir o aparentemente discrepante é exatamente o que se quer dizer com originalidade.

vava esses limites, podemos ter certeza de que a linguagem popular o fazia ainda mais restrita-

XI

mente. Quando incitados a “cuidar da sua alma,”

A novidade desse uso socrático da palavra ψυχή

os homens simples de Atenas deviam supor estarem sendo exortados a ter prudência para com sua

também é indicada pelas frases curiosamente

segurança pessoal, a “cuidar da sua pele,” como

experimentais pelas quais ele às vezes a substitui,

dizemos, ou até que se lhe recomendava o que

frases como “Tudo que em nós possua conheci-

chamamos “divertir-se.” Caso possamos con-

mento ou ignorância, bondade ou maldade.”45 Pelo

fiar em Aristófanes, as palavras lhes sugeririam

mesmo princípio, eu explicaria a referência de

que cada um deles tinha de “preocupar-se com

Alcibíades no Banquete ao “coração, ou alma, ou

foi até Sócrates “querendo ver a ψυχή que o tinha

como quer que chamemos isso.”46 Esses retoques

abandonado enquanto ainda vivia,” onde há um

Alcibíades é natural, se Sócrates foi o primeiro

jogo de palavras com o duplo sentido de “cora-

a usar a palavra dessa forma. Ele negava, se não

gem” e “fantasma.” Sócrates é reconhecido

como a autoridade sobre as ψυχαί, é quem “con-

estou enganado, que a alma fosse qualquer tipo de

voca os espíritos” (ψυχαγωγεῖ) das profundezas.42

um misterioso segundo eu e a identificava aberta-

Em As Nuvens, os companheiros da sua fábrica de

pensamentos ( φροντιστήριον ) são jocosamente

outro lado, defendia que ela é mais do que parece

chamados de “sábias ψυχαί ”.

ser, e portanto exige todo o “cuidado” que os devo-

É verdade que

tos de Orfeu exortavam os homens a dar aos deuses

“almas astutas” ( δόλιαι ψυχαί ), que nos fazem

caídos dentro deles. Sem dúvida é possível para

seu fantasma.” As Aves nos conta como Pisandro

43

ouvimos falar uma vez em Aristófanes sobre as

históricos são muito platônicos, e a hesitação de

mente com nossa consciência ordinária; mas, por

qualquer um defender que, mesmo assim, Sócrates

___________________________________________________

39. Eur., Hip. 1006. 40. Sóf., Fil. 55. 41. Sóf., Fil. 1013. 42. Arist., As Aves 1555 sqq.

44. Arist. A Paz 1068.

45. Cf. Crito 47e, 8 ὅτι ποτ᾽ ἐστὶ τῶν ἡμετέρων, περὶ ὃ ἥ τε ἀδικία καὶ ἡ δικαιοσύνη ἐστίν. 46. Banq. 218a, 3 τὴν καρδίαν γὰρ ἢ ψυχὴν ἢ ὅτι δεῖ αὐτὸ ὀνομάσαι κτλ.

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43. Arist. As Nuvens 94.

21


FILOSOFIA

A doutrina socrática de que bondade é conhecimento equivale a negar que haja alguma distinção última entre teoria e prática.

aplicação do método dialético para a exortação moral. É por isso que ele diz que Sócrates não foi um filósofo no sentido mais estrito do termo. Se ele apenas quer dizer que Sócrates não expôs um sistema no curso de suas aulas, isso é verdade, sem dúvidas; porém, mesmo no pior dos tempos, a filosofia jamais significou apenas isso para os gregos. Nem é certo dizer que a sabedoria da qual Sócrates fala na Apologia e no Crito fosse mera-

não foi realmente original. Ele apenas combinou

mente a sabedoria prática. Nesse ponto, Maier

a doutrina órfica da purificação das almas caídas

comete um grande engano ao importar para a

com a visão científica da alma como consciência

e σοφία. É claro que essa distinção tem seu valor,

em vigília. Esse é o recurso favorito daqueles que tem como ocupação depreciar a originalidade dos grandes homens. Contra isso, pode-se insistir que o poder de fundir o aparentemente discrepante é exatamente o que se quer dizer com originalidade. A visão religiosa e a visão científica podiam

discussão a distinção aristotélica entre φρόνησις mas nesse tempo a φρόνησις e a σοφία eram termos

completamente sinonímicos e continuaram sendo sabedoria e à verdade (φρόνησις καί ἀλήθεια) que usados de maneira bem promíscua por Platão. É à

a alma deve se dirigir, e é anacronismo introdupalavra φρόνησις é geralmente preferida em lugar

ter continuado lado a lado indefinidamente, como

zir a idéia aristotélica de “verdade prática.” Se a

de fato as encontramos em Empédocles, onde

de σοφία é apenas porque a segunda evocava asso-

estão simplesmente justapostas. Teve de existir um Sócrates para perceber que elas se comple-

ciações consideravelmente ruins, como a nossa

mentavam, e, ao uni-las, chegar à idéia melhor

“esperteza.” De qualquer modo, dificilmente vale a

traduzida em nossa língua pelo velho termo

pena desperdiçar palavras sobre esse ponto, pois a

“espírito”[spirit]. Nesse sentido e nesse âmbito,

doutrina socrática de que bondade é conhecimento

ele foi o fundador da filosofia.

equivale a negar que haja alguma distinção última entre teoria e prática.

Estou certo de que só a partir da Apologia pode-se concluir que, para Sócrates, a imortalidade

XII

da alma era um corolário necessário dessa visão sobre sua natureza, mas o importante é perceber

As condições de nosso experimento não nos permi-

que esse não foi o seu ponto de partida nem o de

tiram admitir muitas evidências, e isto de início não

discussão em especial. Se, por um breve momento,

parecia nada promissor. No entanto, fomos capa-

eu puder ir além da Apologia e do Crito em busca

zes de chegar a um resultado de suma importância,

de um argumento negativo, não será desprezível

que agora temos de expressar com precisão. Nós

encontrar, tanto no Fédon quanto na República,

48

descobrimos que, se temos de confiar na Apologia

Platão representando os sujeitos mais íntimos de

sobre o assunto em questão, então Sócrates tinha

Sócrates espantados com sua profissão de fé na

o hábito de exortar seus concidadãos a “cuidar de

imortalidade. Não parece, então, que esse fosse o

suas almas.” Isto Maier admite. Vimos também

47

tema comum do seu discurso. O que ele realmente pregava como algo necessário para a alma era que ela devia lutar pela sabedoria e pela bondade.

que essa exortação implica um uso do termo ψυχή e uma visão sobre a natureza da alma bastante inéditos antes do tempo de Sócrates. De fato os órficos

JANEIRO 2014

haviam insistido na necessidade de se purificar a

22

É claro que Maier se vê obrigado pela evidência

alma, mas para eles a alma não era a personali-

que admite como válida a reconhecer que Sócrates

dade normal;49 era um estranho de outro mundo

chamava sua obra em vida de “filosofia,” mas ele

que residia em nós por algum tempo. Os cosmólo-

defende que essa filosofia consistia apenas na

gos jônicos certamente haviam identificado a alma

___________________________________________________

47. Platão, Fédon, 70a, 1sqq. 48. Platão, Rep. 608d, 3.


com nossa consciência em vigília, mas isso também

acrescentar que ela fornece a explicação natural

veio de fora. Como afirma Diógenes de Apolônia,

de sua missão. Se Sócrates realmente defendia

ela era um “pequeno fragmento de deus,”50 com

que a alma era irresistivelmente levada a ir para

o que ele queria dizer uma porção do “ar” cósmico

além de si mesma da maneira ali descrita, não

que sucede animar momentaneamente nossos cor-

havia necessidade de um oráculo de Delfos para

pos. Sócrates, até onde pudemos ver, foi o primeiro

fazê-lo assumir a tarefa de converter os atenien-

a dizer que a consciência normal era o verdadeiro

ses. Contudo, isso já é transgredir os limites que

eu, e que ela merecia todo cuidado prestado pelos

impus a mim mesmo, e não pretendo prejudicar o

religiosos ao misterioso inquilino do corpo. As pia-

que eu creio ser o resultado sólido a que chegamos.

das de Aristófanes deixaram claro que Sócrates era

Ele em si basta para mostrar que importa muito

conhecido como um homem que falava estranha-

pouco se chamamos Sócrates de filósofo no sen-

mente acerca da alma antes de 423 a.C., e isto nos

tido próprio do termo ou não; pois agora podemos

remete a uma época em que Platão não tinha nem

ver como devemos a ele, nas palavras de Juliano,

cinco anos de idade, de modo que não pode haver

que “todos que encontraram a salvação na filosofia

dúvida quanto a ele ser o autor da visão que atribui

estão sendo salvos ainda agora.” Esse é o problema

a Sócrates. Penso que podemos concluir razoavel-

que nos propusemos a resolver. Eu queria apenas

mente que a “sabedoria” que tanto impressionou

dar algumas dicas para mostrar que Maier teria de

o menino Alcibíades e o impulsivo Querefonte era

escrever mais 600 páginas, pelo menos, para esgo-

exatamente essa.

tar as implicações de suas próprias suposições. Alguns de nós preferirão pensar que Platão já fez

Importa muito pouco se chamamos Sócrates de filósofo no sentido próprio do termo ou não.

isso melhor do que ele. Tradução por Renan Santos

Eu prometi não ir além da evidência permitida por Maier e, portanto, devo me deter no limiar da filosofia socrática. Contudo, não posso evitar sugerir as linhas em que se poderia prosseguir uma investigação posterior. Em um diálogo escrito trinta anos depois da morte de Sócrates, o Teeteto, Platão o coloca descrevendo seu método de dar à luz os pensamentos, em uma linguagem inspirada na ocupação de sua mãe, e podemos provar que isso é genuinamente socrático a partir da evidência de Aristófanes, que fazia graça disso mais de meio século antes.51 Por sua vez, o método maiêutico envolve a teoria do conhecimento expressa miticamente na doutrina da reminiscência. A doutrina do Amor, que Sócrates no Banquete professa ter aprendido com Diótima, é apenas uma extensão da mesma linha de pensamento, e podemos ___________________________________________________

dade. Por esta razão, não creio que Sócrates a acatasse nesse sentido. 50. A. 19. Diels, μικρόν μόριον του θεοῦ. 51. Arist., As Nuvens 137.

JANEIRO 2014

49. A doutrina da παλλιγενεσία ou transmigração, em sua forma usual, implica essa dissociação da “alma” do restante de sua personali-

23


FILOSOFIA

Uma definição de cavalheiro, John H. Newman Tradução de trecho do Discurso VIII em“The Idea of a University” (1852)

um sobressalto ou choque nas mentes daqueles com os quais se mistura; — todo conflito de opinião ou colisão de sentimentos, toda repressão, ou suspeita, ou melancolia, ou ressentimento; sua grande preocupação sendo fazer todos sentirem-se à vontade e em casa. Ele observa a todos em sua companhia; é tenro com o tímido, gentil com o distante e misericordioso com o absurdo; ele é capaz de lembrar-se com quem está falando; ele protege-se contra as alusões inoportunas ou temas que possam ser irritantes; ele raramente arvora-se na conversa, e jamais é cansativo. Ele faz pouco dos favores enquanto os realiza, e parece ser quem os recebe quando os concede. Ele jamais fala de si mesmo, exceto quando exigido, jamais se defende por uma simples réplica, não dá ouvidos a calúnia ou fofoca, é escrupuloso ao imputar motivos aos que se intrometem, e a tudo interpreta com a melhor das intenções. Em suas controvérsias, jamais é mesquinho ou insignificante, jamais leva uma vantagem injusta, jamais confunde personalidades ou a língua afiada com argumentos, ou insinua uma maldade

N

a prática, define-se um cavalheiro

Ele conhece a fragilidade da razão humana, bem como sua força, seu domínio e seus limites.

JANEIRO 2014

dizendo que ele é alguém que jamais

24

inflige a dor. Esta descrição é refinada

que não ousaria dizer em alto e bom som. Partindo

e, na medida do possível, precisa. Ele

de uma previdente prudência, ele observa a máxima

ocupa-se principalmente com a simples remo-

do sábio antigo, de que devemos sempre nos diri-

ção dos obstáculos que impedem a ação livre e

gir ao nosso inimigo como se ele um dia se tornasse

desembaraçada daqueles à sua volta, e contribui

nosso amigo. Ele possui bom senso demais para ser

com seus passos, ao invés de apenas por si tomar

afrontado por insultos, é muito ocupado para se

a iniciativa. Seus benefícios podem ser conside-

lembrar de ofensas, e indolente demais para com-

rados como paralelos ao que chamamos confortos

portar malícia. É paciente, tolerante e resignado a

ou conveniências nas disposições pessoais: como

respeito de princípios filosóficos; submete-se à dor,

uma poltrona ou um bom fogo, que fazem sua parte

porque é inevitável, à perda, porque é irreparável, e

para dissipar o frio e o cansaço, embora mesmo

à morte, porque é seu destino. Se entra em qualquer

sem eles a natureza forneça os meios de descanso e

tipo de controvérsia, seu disciplinado intelecto o

calor animal. Da mesma forma, o verdadeiro cava-

preserva da desajeitada descortesia de mentes pos-

lheiro cuidadosamente evita tudo que possa causar

sivelmente melhores, mas menos educadas: pessoas


que, como armas embotadas, rasgam e retalham ao invés de fazer um corte limpo, que confundem o ponto da argumentação, desperdiçam sua energia em ninharias, interpretam mal o adversário e deixam a questão ainda mais convoluta do que quando a encararam. A opinião do cavalheiro pode estar certa ou errada, mas ele é lúcido demais para o injusto; é tão simples quanto convincente, e tão breve quanto decisivo. Em nenhum outro lugar encontraremos maior franqueza, consideração e indulgência: ele joga-se para dentro da cabeça de seus oponentes e explica seus enganos. Ele conhece a fragilidade da razão humana, bem como sua força, seu domínio e seus limites. Se ele for um descrente, será profundo demais e generoso demais para ridicularizar a religião ou ir contra ela; ele é sábio demais para ser um dogmático ou fanático em sua infidelidade. Ele respeita a piedade e a devoção; até mesmo apóia como veneráveis, belas ou úteis as instituições das quais discorda; ele honra os ministros religiosos e julga agradável rejeitar seus mistérios sem ter de atacá-los ou denunciá-los. Ele é um amigo da tolerância religiosa, e isto não porque sua filosofia o tenha ensinado a ver todas as formas de fé com um olhar imparcial, mas também pela gentileza e feminilização do sentimento, que serve à civilização. Não que ele também não possa ter uma religião, ao seu próprio modo, mesmo quando não é um cristão. Nesse caso, sua religião é uma religião da imaginação e do sentimento; é a encarnação daquelas idéias do sublime, do majestoso e do belo, sem as quais não pode haver uma grande filosofia. Às vezes reconhece a existência de Deus, às vezes aplica um princípio desconhecido ou uma qualidade desconhecida com os atributos da perfeição. E essa dedução de sua razão ou criação de sua imaginação ele transforma na ocasião de excelentes pensamentos e o ponto de partida de um ensinamento tão variado e sistemático, que ele até parece um discípulo da próprio cristianismo. A partir da precisão e estabilidade mesmas de seus poderes lógicos, ele é capaz de ver quais sentimentos são consistentes naqueles que defendem alguma doutrina religiosa, e parece aos olhos dos outros sentir e defender um círculo inteiro de verdades teológicas, que existem em sua mente simplesmente

Tradução por Emílio Costaguá

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como uma série de deduções.

25


FILOSOFIA

Os doze tons do Espírito, Rosenstock-Huessy Tradução do Capítulo VI de “I Am an Impure Thinker” (1970)

O

amor o espírito são mais fortes do que a morte. Por isso, não há nada que possamos fazer sem os dois sem que nos condenemos à futilidade estéril. Pois

amar é ser fecundo, e estar inspirado significa superar e impor limites à morte. Quando o corpo morre, o espírito permanece. E o espírito revela-se divino sempre que as trilhas iluminadas por vidas criativas e adoráveis são exploradas por sucessores, herdeiros, pupilos e seguidores, ou quando sendas demoníacas são renunciadas e abandonadas por mensagens de alerta como NÃO ULTRAPASSE. Daí que o teste derradeiro do espírito seja a aquisição, pelas gerações futuras, de faculdades herdadas, gratamente recebidas e aceitas. Todas as várias expressões de nossa fé: a presença de Deus, o futuro, a regeneração, a adoção, os filhos de Deus e não os do Homem, os próprios termos “liberdade,” “Deus,” “Espírito,” “Demônio,” “história” – tentaram transmitir-nos a boa notícia de que tínhamos predecessores que dotaram-nos com faculdades adquiridas, adquiridas por eles e que serão concedidas a nós quando simplesmente lhes

criança. Deus é incalculável. Ele fez algumas crianças

respondermos com a aceitação. E mais: a boa notí-

e alguns adultos muito bons, de fato, e outros, idosos

cia era contrastada com a má notícia. Sem a má, a

ou crianças, bastante perversos. Ele é incalculável, e

boa é incompreensível. É provável que a boa notícia

certamente não faz diferença para Deus a data ou o

torne-se novamente audível se antes falarmos mais

ano em que nascemos. Em qualquer época, é igual-

JANEIRO 2014

Nem a criança é melhor que o homem velho, e nem o homem velho é melhor que a criança. Deus é incalculável.

26

mente difícil viver uma vida boa. A boa notícia, ao enfatizar a total indiferença de Deus pelo ano de nosso nascimento ou de nossa morte, clama-nos também para que, seguindo o caminho trilhado pelo Primogênito de Deus, sejamos também o seu Povo Herdeiro. Daí que a boa nova seja relatada como uma relação contínua entre fundador e herdeiro, entre testamentário e sucessores. Hoje,

explicitamente da má. Esta diz que uma criança é

essa verdade está obscurecida, como até mesmo o

melhor que uma cabeça grisalha, que o novo é melhor

antigo termo “Imitação de Cristo” foi enfraquecido.

que o velho, que o estímulo e a sensação nos arras-

Freqüentemente, ele é entendido não como uma

tam dia após dia enquanto presumem nos garantir

herança da faculdade adquirida de Cristo, mas como

melhores valores. De fato, toda essa maldade é deve-

uma imitação pedante, uma macaqueação.

ras má. Eis a verdade: nem a criança é melhor que o homem velho, e nem o homem velho é melhor que a

Vamos, pois, reafirmar a boa nova.


Cristo adquiriu uma nova faculdade: a afinação do

junto ao balcão. A “inspiração” é propagandeada.

Espírito. Ele transmitiu-nos esse espírito afinado

Porém, poxa vida, inspiração leva tempo! Exige

com precisão, esse poder não só de falar, pensar,

noventa ou cem anos de uma vida inteira. Não é

escrever, proclamar ou cantar, mas também de

altamente provável que o Espírito sopre sobre nós,

obedecer às inspirações no momento de Deus, nem

ao longo da vida, de várias formas? Vocês sabem

cedo nem tarde demais.

tão bem quanto eu que o Espírito permeia nossos corpos carnais em pelo menos três fases. Primeiro,

Aqui, eu renuncio à tentação de acusar os natura-

ele entra em nós. Esse estágio é chamado infân-

listas de roubo e plágio. Eu poderia acusá-los de

cia. Nessa etapa, todas as coisas são recebidas pela

corromper todos os termos da vida no Espírito:

criança com o entusiasmo da estréia, e, nesse con-

“presença,” “futuro,” “hereditariedade,” “sobre-

texto, “novo” significa o mesmo que “inspiração”.

vivência,” “história,” “faculdades adquiridas.” Todos esses termos de Darwin têm sua origem na

Em seguida, porém, o espírito começa a trabalhar

Bíblia. Porque só Deus pode estar presente. Somente

em nós. Ele incita-nos. Permanece em nós e trans-

os filhos de sua herança podem ter um futuro.

forma-nos. Essa etapa pode ser chamada de fase

Somente os frutos do espírito podem sobreviver à

adulta. Por fim, o Espírito, sendo uma força, não

morte. E somente os apóstolos podem ter êxito em

pode isolar-se dentro de nós. Nesse estágio, pode-

transmitir as novas faculdades adquiridas do nosso

mos ser chamados de anciãos, ou, usando o termo

Salvador. Deixo para vocês as conclusões.

de origem grega correspondente, presbíteros.

Não é altamente provável que o Espírito sopre sobre nós, ao longo da vida, de várias formas?

De cima, vem o Espírito sobre cada filho de Adão. Dentro, opera em cada homem ou mulher que atinge a idade certa. Fora, na vida social, quando ganhamos um cargo. Hoje, essa tripartição não é suficiente. Nós devemos ser mais precisos. Os numerosos processos do Espírito não vêm sendo bem discernidos desde a Reforma Protestante. O segundo artigo do Credo,

Todavia, talvez eu precise recordá-los que, em

isto é, as sentenças que falam do Salvador, mono-

sociedade, em nossa comunidade histórica, nós

polizaram as cátedras dos teólogos. Os filósofos, por

movemo-nos como homens nascidos através da

sua vez, usurparam o primeiro artigo e isolaram-no,

palavra viva, para nossos tempos e lugares, em

tornando-o sem sentido. Mas o terceiro artigo do

direção ao nosso destino futuro. Temos o privilégio

Credo é o primeiro artigo de nossa experiência. Os

singular de contribuir para a sobrevivência perpé-

apóstolos tiveram a experiência do Pai através do

tua das faculdades adquiridas que abraçamos, como

Filho no Espírito Santo. Em outras palavras, antes

também o de contribuir para o banimento perpétuo

de Deus enviar o Espírito no Pentecostes, nem o Pai

ao inferno das faculdades adquiridas que desejamos

e nem o Filho eram-lhes acessíveis. Os estranhos

ver extirpadas. É desse modo que Criação acontece

anseios das seitas pentecostais dos nossos tempos

debaixo de nossos narizes. E ninguém pode perma-

devem alertar-nos que uma experiência do espí-

necer neutro na guerra espiritual entre legar as boas

rito deve preceder toda compreensão do Pai e do

qualidades através da fé ou, por desespero, desistir

Filho na Trindade. A igreja legítima deve combater

de eliminar as qualidades diabólicas.

a arrogância grega pela qual nossas assim chamadas “mentes” não são consideradas como o receptáculo,

O modo pelo qual nós somos encadeados na criação

o veículo ou o transmissor do Espírito Uno através

de Deus, dia após dia em sua história, dá-se atra-

das eras, mas como agentes livres de nossos atomi-

vés dos doze estágios ou tons do Espírito. Desde

zados, inumeráveis e distintos eus.

que os processos de Deus são conhecidos por todos, Quando abordamos os processos mentais em nós

belíssima ordem e inevitável sucessão. Nenhuma

mesmos como o processo do Espírito que vem dos

geração parece ser tão indiferente a esse processo

outros até nós, dentro de nós e de nós para os outros,

quanto a nossa. Impacientemente, com toda a

torna-se audível uma ordem de três vezes quatro

presssa do mundo, toda inspiração nos é vendida

atitudes. O moribundo, quando devolve o espírito

JANEIRO 2014

ninguém parece prestar muita atenção em sua

27


FILOSOFIA

ao Criador, é autorizado por nossas leis a expri-

um professor ou educador;

mir uma última vontade e deixar um testamento. Essa é a mínima honra espiritual que a comunidade

um líder ou legislador;

concede-lhe. Por isso, a nossa vida espiritual deve ser traçada desde a hora de nossa morte para trás.

um sofredor ou perseverador;

Se, na “natureza”, o nascimento parece preceder à morte, e a vida é descrita como a soma de todos os

um manifestante ou rebelde;

processos do lado de cá da morte, o Espírito inverte essa ordem do naturalismo.

um crítico ou analista;

Na natureza, o nascimento precede à morte;

um cético ou desesperançado;

Na natureza, a vida tenta evitar a morte;

um instrumentista ou cantor;

No espírito, a morte precede à vida;

um aprendiz ou andarilho;

No espírito, a morte do fundador orienta a vida

um leitor ou idealizador;

dos seus herdeiros. um ouvinte ou cumpridor de ordens; Portanto, o primeiro comando espiritual é: deixe um testamento, um dote, um legado. Este é o primeiro

Esse ordenamento foi esquecido no secularismo.

comando porque direciona e dá sentido a todos os

Quando aplicada pelo pensador secular, a ordem

passos anteriores. Aquele que experimenta o dia

espiritual é invertida. Na psicologia secular que

de sua morte como o cumprimento de uma missão

começa com a própria criança, diz-se que ela deve

é abençoado. Essa pessoa, porque acreditou a vida

caminhar com os próprios pés e tornar-se auto-

inteira na bênção, projetar-se-á do dia de sua morte

-suficiente, expressando o próprio eu e vivendo por

para os dias anteriores. Ela desejará ter a satisfação

si mesma. A conseqüência inevitável é que ela tam-

do conjunto de sua vida. Uma vez que desobstruímos

bém viverá e talvez venha a morrer por si e para si

essa porta secreta da ordem espiritual no cristia-

mesma. É com certeza um espetáculo horrível.

nismo, subitamente entendemos porque de fato Cristo abriu as portas da morte para a nossa alma.

Quando aplicada pelo pensador secular, a ordem espiritual é invertida.

Encarando-se o aprendizado da fala como o décimo segundo tom espiritual, isto é, a primeira operação do Espírito quando Ele entra em uma alma recém-nascida, percebe-se que esse tom “jorra” na vida do homem quando fala de seu leito de morte. O primeiro sorriso de uma criança está na extremidade oposta, à maior distância das palavras de Jesus

O dia de nossa morte, junto com os nossos maiores

na cruz, ou do discurso de despedida de George

desejos e legados, dirige-se para as gerações vin-

Washington, ou do último discurso de Moisés. O

douras. Assim, podemos iluminar facilmente todos

tom do espírito reverbera primeiro em nós quando

os estágios anteriores da vida. Os últimos coman-

obedecemos. A criança que não é feita para obedecer

dos devem dominar todos os anteriores. No fim,

é alijada do poder de um dia comandar. Comandar,

são esses comandos que nos habilitam a realizar a

identificar-nos com a vontade de Deus: e essa é a

nossa vontade perfeita, a última vontade com a qual

nossa perfeição, esse é o nosso destino. Qualquer

a herança humana pode ser aumentada e tornar-se

pessoa que realiza uma vontade, em qualquer campo

o fruto das sementes de nossas vidas.

de atividade humana, está comandando, ou melhor,

JANEIRO 2014

torna-se um comando. Lincoln, o cardeal Newman

28

Portanto, a etapa do testamentário será normal-

e Moisés estão comandando pessoas além da morte.

mente precedida por:

Todos os seus poderes parecem vir de alguma parte deles que, durante suas vidas, não poderia ser rea-

um profeta ou admoestador;

lizada. A grandeza de Moisés consiste justamente


nisso, de ele não ter entrado na Terra Prometida.

qualquer pessoa. O homem precisa ensinar. Uma

Nisso consiste a divindade de Cristo: Ele não usou

vez que esse dever for entendido, a formação de

o Espírito em seu tempo, mas doou esse espírito à

professores parecerá infinitamente mais dificul-

sucessão apostólica.

tosa que a educação de crianças ou a construção de prédios escolares. Também ficará claro que nós

Restaurado o décimo segundo comando (“ouvir” ou

ensinamos aos nossos alunos o que eles são chama-

“obedecer”) à sua posição de corolário do primeiro

dos a fazer, realizar, manter, quem se tornar, pelo

comando (“deixe o seu espírito para a posteridade”),

fato de que não podemos fazer tudo por nós mes-

não temos nenhum problema em dividir a tábua de

mos. Em outros termos, existe uma medida entre

tons entre o duodécimo comando e o primeiro em

ser governador e professor. O pai é governador, é

mais ou menos dez períodos de cerca de seis anos e

professor e é profeta, assim como é testamentá-

três períodos com cerca de vinte anos cada.

rio da próxima geração. Ele lidera em vista de um futuro, ensina sobre o futuro, profetiza as calami-

I. Infância ou juventude: na sociedade,

dades ou obstáculos que cruzarão seus caminhos

é representada pelo artista.

no futuro, e tenta deixar alguns meios para que os

12. obedecer / existencial / envolvido

herdeiros possam encarar esse futuro. Tudo isso

11. ler / mental / isolado

pertence ao seu sacerdócio.

10. aprender / seletivo / meio envolvido, meio isolado 9. cantar durante toda essa etapa, pois ainda não chegou sua hora II. Idade adulta: na sociedade, representada pelo guerreiro. 8. Duvidar e reter / meio envolvido, meio isolado 7. analizar e sintetizar / isolado

As crianças, os adultos, os anciãos ou artistas, os guerreiros e os sacerdotes estão em diferentes fases de afinação do espírito.

6. manifestar-se e insistir / envolver-se

Vemos, portanto, que os comandos 1, 2, 3 e 4 (deixar

5. esperar e perseverar / permanecer engajado

em testamento, profetizar, ensinar e governar) são um e o mesmo comando enunciado em seus qua-

III. Os anciãos: o sacerdócio universal dos

tro aspectos! O mesmo é verdadeiro para os quatro

que crêem.

comandos dos adultos guerreiros e para os quatro

4. liderar e legislar

comandos da infância.

3. ensinar e instruir 2. profetizar e admoestar

Além disso, o leitor, ao ouvir mais de perto, pode

1. “testamentar,” dotar e outorgar

perceber que as crianças, os adultos, os anciãos ou artistas, os guerreiros e os sacerdotes estão em

Todos os doze comandos ou tons do Espírito per-

diferentes fases de afinação do espírito. A criança

meiam todas as fases de nossa vida. É óbvio que o

brinca e ainda não é séria, pois não chegou a hora.

chefe de um acampamento pode ter dezenove anos

O significado da brincadeira é que ela mantém-se

e já ser capaz de agir nos tons 3 e 4. Isso não muda o

deste lado do processo pelo qual Deus procede nas

fato de que cada tom deve ser vivido em um deter-

guerras, calamidades, crises e revoluções.

minado período de vida para que seu cultivo seja pleno. Quando jovens de doze anos são treinados

Crianças possuem um tempo infinito, ou, mais

para liderar, dá-se a ver a toda uma multidão de

precisamente, “indefinido”. Por outro lado, os guer-

educadores, psicólogos e políticos o que é pôr car-

reiros exercem pressão. Eles tentam estar à frente

gos de adultos e idosos em jovens que perecerão sob

de seu tempo. São impacientes. Como um protes-

o peso desses fardos.

tante tentando adiantar o Dia do Senhor. Paulo é paciente, porque nós somos, ao mesmo tempo,

deveria) escrever um livro inteiro. Por exemplo:

crianças que jogam sob a guarda de Deus e guerrei-

“ensinar” é um “dever” na maturidade da vida de

ros que lutam por Deus. A relação do ancião com o

JANEIRO 2014

quer que nós sejamos impacientes tanto quanto ele Sobre cada um desses períodos se poderia (e se

29


FILOSOFIA

tempo é diferente. Seu gênio está na afinação. Entre

empurrar, puxar, rasgar, erguer, responder, falar,

os abolicionistas (“os adultos”) e os indiferentes

escrever, mover, escalar, etc., a criança está rode-

(os playboys), Lincoln provou ser um bom gover-

ada de coisas mortas que reagem com um único e

nador graças à sua afinação. Ele assinou no tempo

repetido movimento.

perfeitamente exato a emancipação dos escravos, a perfeição profetizada por John Quincy Adams trinta

Não seremos eloqüentes, a menos que legali-

anos antes. Adams profetizou que a questão da

zemos as palavras que nos são pronunciadas

escravidão, após 1828, chegaria a um impasse que

existencialmente.

somente o comandante-chefe em tempo de guerra resolveria. Essa é, aliás, uma boa ilustração do papel genuíno da profecia no processo espiritual. A profecia não é uma predição ou previsão do tempo. A profecia fala desde o “Dia do Julgamento” até os nossos dias. Daí que ela sempre coloca, entre o dia de hoje e o último dia, alguma terrível calamidade. Pois o profeta reconhece que a geração atual não se move na direção de nosso destino. Julgando o presente à luz de nosso destino, o profeta sabe que os obstáculos surgidos com o nosso movimento para a direção errada precisam ser removidos. Profetas não prevêem como ficaremos ricos, profetas prevêem que nossos herdeiros serão visitados por nossa própria ganância ou transgressão.

Não seremos eloqüentes, a menos que legalizemos as palavras que nos são pronunciadas existencialmente. O profeta então está tão intimamente conectado com o futuro como os governantes, professores e testamentários. Moisés, Isaías, Rei Davi, Eclesiastes, Estêvão, João, Lucas e Pedro: os quatro primeiros no Antigo Testamento, os quatro últimos no Novo, estão unidos, embora sejam discerníveis entre eles reis, mestres, profetas e testamentários. Todos eles vivem do futuro, da solidariedade do Homem, criatura de Deus, em seu presente dia. Quando conseguirmos reconhecê-los nos tons 1, 2, 3 e 4 na harpa do Espírito, a puerilidade de nossa situação educacional facimente será vencida. Veremos então que não se aprende a falar engo-

JANEIRO 2014

lindo substantivos, meras palavras, mas apenas

30

cumprindo ordens de modo existencial. Os verbos são os radicais que põem as crianças em ação. A nossa era industrial, com seus botões mecânicos, está ameaçando-as. Em vez de aprovar os verbos ir,

Tradução por Ricardo Santos de Carvalho


A essência do humanismo, William James Tradução do capítulo 7 (“The essence of humanism”)de “Essays in Radical Empiricism” (1912)1

O

humanismo é um fermento que “veio

profundas, é claro que não se dispensará nenhuma

para ficar.” Ele não é a hipótese única de

dor que os filósofos possam sofrer – em primeiro

um teorema e não depende de nenhum

lugar para defini-lo, e em segundo para promovê-

fato novo. Pelo contrário, é uma lenta

-lo, averiguá-lo ou dirigi-lo.

mudança da perspectiva filosófica, fazendo as coisas aparecerem como que a partir de um novo foco de interesse ou ponto de vista. Alguns escritores estão muito conscientes da mudança, outros semi-inconscientes, ainda que sua própria visão tenha passado por grande mudança. O resultado é uma confusão nada insignificante no debate, os humanistas semi-conscientes frequentemente tomando parte contra os radicais, como se desejassem contar com o outro lado.

É sempre bom num debate conhecer autenticamente o ponto de vista do seu adversário. Mas os críticos do humanismo jamais definem exatamente o que significa a palavra “verdade.”

Se “humanismo” é realmente o nome para essa mudança de perspectiva, é óbvio que, se o huma-

Atualmente, o humanismo carece muito de uma

nismo prevalecer, toda o cenário filosófico mudará

definição completa. Seus defensores mais siste-

de algum modo. A ênfase nas coisas, a ordem

máticos, Schiller e Dewey, publicaram soluções

entre primeiro e segundo planos, as suas magni-

apenas fragmentárias; e não foi traçada a sua rela-

tudes e valores, nada disso permanecerá o mesmo.

ção com muitos dos problemas filosóficos vitais,

Se o humanismo envolver essas conseqüências

exceto pelos adversários, que, farejando heresias

1. O texto apareceu pela primeira vez em forma de artigo no The Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Methods, 02/03/1905, e foi reimpresso em The Meaning of Truth: A Sequel to Pragmatism (1909).

JANEIRO 2014

___________________________________________________

31


FILOSOFIA

com antecedência, despejaram golpes em doutri-

argumentação do idealismo transcendental, é

nas (subjetivismo e ceticismo, por exemplo) que

preciso uma explicação copiosa para torná-la ine-

nenhum bom humanista considera necessário aco-

quívoca. À primeira vista, ela parece limitar-se a

lher. Por sua vez, com reticências ainda maiores,

negar o teísmo e o panteísmo. Mas, na verdade, ela

os anti-humanistas desorientaram os humanistas.

não precisa negar nenhum dos dois; tudo depen-

Muito da controvérsia envolveu a palavra “verdade.”

deria da exegese, e se a fórmula algum dia fosse

É sempre bom num debate conhecer autenticamente

canônica, ela certamente produziria intérpretes de

o ponto de vista do seu adversário. Mas os críticos do

direita e de esquerda. Eu mesmo leio o humanismo

humanismo jamais definem exatamente o que sig-

teística e pluralisticamente. Se há um Deus, ele

nifica a palavra “verdade” quando eles mesmos a

não é um sujeito absoluto de todas as experiências,

usam. Os humanistas são obrigados a adivinhar a sua

mas simplesmente o sujeito de experiência com o

opinião; e o resultado certamente tem se limitado

maior alcance consciente real. Interpretado assim,

a dar murros em ponta de faca. Acrescente a tudo

o humanismo para mim é uma religião capaz de

isso as grandes diferenças individuais em ambos os

defesa racional, embora eu esteja muito ciente do

campos, e fica claro que nada é tão urgentemente

número de mentalidades para quem ele só pode

necessário, no estágio a que as coisas chegaram atu-

apelar religiosamente quando tiver sido traduzido

almente, do que uma definição mais precisa de cada

como um monismo. Eticamente, a sua configu-

parte a respeito do seu ponto de vista central.

ração pluralística para mim está mais atrelada à realidade do que qualquer outra filosofia que eu

Quem quer que contribua com a mais mínima

conheça – sendo ela essencialmente uma filosofia

precisão nos ajudará a ter certeza do que estamos

social, uma filosofia do “co,” onde as conjunções é

falando e de quem estamos falando. Qualquer um

que realizam o serviço. Mas minha razão primeira

pode contribuir com tal definição, e, sem ela, nin-

para defendê-la é sua incomparável economia

guém sabe exatamente onde se encontra. Se eu

intelectual. Ela se livra não apenas dos “proble-

oferecer a minha própria definição provisória de

mas” constantes que o monismo engendra (“o

humanismo aqui e agora, outros podem melhorá-

problema do mal,” “o problema da liberdade,” e

-la, algum adversário pode ser levado a definir sua

coisas do tipo), mas também de outros mistérios e

própria crença mais precisamente, por contraste, e

paradoxos metafísicos.

talvez isso resulte num certo aceleramento do processo de cristalização da opinião geral.

Se há um Deus, ele não é um sujeito absoluto de todas as experiências, mas simplesmente o sujeito de experiência com o maior alcance consciente real.

Ela se livra, por exemplo, de toda a controvérsia agnóstica, recusando-se plenamente a acolher a hipótese de qualquer realidade trans-empírica. Ela se livra de toda necessidade de um absoluto do tipo bradleiano (confessadamente estéril para fins intelectuais), insistindo que as relações conjuntivas encontradas na experiência são perfeitamente reais. Ela se livra da necessidade de um absoluto do tipo royceano (igualmente estéril) por meio de seu tratamento pragmático do problema do conhecimento [...] Como as visões sobre conhecimento, realidade e verdade imputadas ao humanismo

I

foram até agora as mais ferozmente atacadas, é sobre essas idéias que um ajuste do foco parece ser

O serviço essencial prestado pelo humanismo,

mais urgente. Destarte, a partir de agora colocarei

como eu entendo a situação, é ter visto que, embora

em foco, o mais resumidamente possível, a visão

uma parte da nossa experiência possa se apoiar sobre

que nesses aspectos eu imputo ao humanismo.

JANEIRO 2014

outra parte para fazer dela o que ela é em qualquer um

32

dos seus vários aspectos possíveis, a experiência como

II

um todo é independente e não se apóia sobre nada. Se for aceita a tese humanista central, colocada Como essa fórmula também expressa a principal

acima em itálico, a conclusão será que, caso haja


algo como o conhecimento, então o cognoscente

pelo menos das possíveis. Chamar a idéia presente

e o objeto conhecido devem ambos ser porções da

que tenho do meu cão, por exemplo, de cognitiva

experiência. Portanto, uma parte da experiência

do cão real significa que, conforme constitui-se o

deve ou (1) conhecer a outra parte da experiên-

tecido atual da experiência, a idéia é capaz de levar

cia – em outras palavras, as partes devem, como

a uma cadeia de outras experiências minhas que

diz o prof. Woodbridge, representar uma a outra,

vão da seguinte à próxima e finalmente terminam

ao invés de representar as realidades fora da

em percepções sensíveis vívidas, como as de um

“consciência” – e esse é o caso do conhecimento

pulo, de um latido, de um corpo peludo. Estes são

conceitual; ou (2) elas devem, em primeiro lugar,

o cão real, a presença completa do cão para meu

simplesmente existir, como tantos entes ou fatos

senso comum. Se o suposto falante for um filósofo

últimos do ser; e então, como um embaraço secun-

profundo, embora aqueles dados possam não ser

dário, e sem dobrar sua singularidade entitativa,

para ele o cão real, eles significam o cão real, são

todo ente deve figurar alternativamente como uma

substitutos práticos do cão real, como a represen-

coisa conhecida e um conhecimento da coisa, em

tação era um substituto prático deles, aquele cão

razão dos dois tipos divergentes de contexto no

real sendo um monte de átomos, digamos, ou de

qual se tece a experiência em seu curso geral.

matéria mental, que se encontra onde se encon-

O filósofo representa o estágio mental que vai para além do estágio do senso comum.

tra a percepção sensível tanto na experiência dele como na minha. III O filósofo aqui representa o estágio mental que vai para além do estágio do senso comum; e a diferença é simplesmente que ele “interpola”

Esse segundo caso é o da percepção sensível. Há

e “extrapola” onde o senso comum não faz isso.

um estágio do pensamento que vai além do senso

Para o senso comum, dois homens vêem o mesmo

comum, sobre o qual já falarei mais; porém, o

cão idêntico. A filosofia, percebendo as diferenças

estágio do senso comum é a parada perfeitamente

reais em suas percepções, aponta sua dualidade e

definitiva para o pensamento, primeiramente

interpola entre elas algo como um terminus mais

para os fins da ação; e, enquanto permanecemos

real – primeiro, os órgãos, as vísceras, etc.; depois,

no estágio mental do senso comum, o objeto e o

as células; e então, os átomos últimos; e, por fim,

sujeito se fundem no fato da “presentificação” ou

talvez, a matéria mental. Os termini sensíveis ori-

percepção sensível – a caneta e a mão que eu vejo

ginais dos dois homens, ao invés de aderir-se entre

agora escrevendo, por exemplo, são as realidades

si e ao objeto do cão real, como primeiramente se

físicas que essas palavras designam. Neste caso,

supunha, são então considerados pelos filósofos

não há uma auto-transcendência implícita no

como separados por realidades invisíveis com as

processo de conhecer. O humanismo aqui é apenas

quais, no máximo, eles coincidem.

uma Identitasphilosophie fragmentada. Agora, elimine-se um dos percipientes, e a interNo caso (1), pelo contrário, a experiência represen-

polação converte-se em “extrapolação.” O terminus

tativa de fato transcende-se no conhecimento da

sensível do percipiente restante é tratado pelo filó-

outra experiência que é seu objeto. Ninguém pode

sofo como uma realidade sem muito alcance. Ele

falar do conhecimento de um pelo outro sem vê-los

apenas levou o processo das experiências – assim

como entes numericamente distintos, dos quais

pensa o filósofo – até uma parada definida (porque

um se encontra para além do outro e fora dele, em

prática), em algum ponto do caminho rumo a uma

alguma direção e com algum intervalo, que pode

verdade absoluta, que permanece para além.

ser precisamente indicado. Mas, se quem estiver No entanto, o humanista vê o tempo todo que não

esse intervalo da distância de maneira concreta e

há uma transcendência absoluta nem mesmo acerca

pragmática e confessar que ele consiste de outras

das realidades mais absolutas assim conjecturadas

experiências intervenientes – se não das atuais,

ou acreditadas. As vísceras e células são só perceptos

JANEIRO 2014

falando for um humanista, ele também deve ver

33


FILOSOFIA

possíveis que seguem-se aos do corpo exterior. Os

concepção ou imaginação. Ambas são termini provi-

próprios átomos, embora talvez jamais cheguemos

sórios ou finais, a sensação sendo apenas o terminus

a um meio humano de percebê-los, são ainda defi-

no qual habitualmente se detém o homem prático,

nidos perceptualmente. A própria matéria mental é

enquanto o filósofo projeta um “além” na forma

concebida como um tipo de experiência; e é possí-

de uma realidade mais absoluta. Esses termini para

vel conceber a hipótese (tais hipóteses não podem

os estágios prático e filosófico do pensamento são

ser excluídas da filosofia por lógica alguma) de dois

auto-sustentados. Eles não são “verdadeiros”

cognoscentes de um pedaço da matéria mental e a

de nenhuma outra coisa, eles simplesmente são,

própria matéria mental tornando-se “confluentes”,

são reais. Eles “não se apóiam em nada”, como

no momento em que nosso conhecimento imper-

dizia minha fórmula em itálico. Ao invés disso,

feito poderia passar para um tipo de conhecimento

todo o tecido da experiência se apóia neles, como

concluído. Mesmo você e eu habitualmente repre-

todo o tecido do sistema solar, incluindo várias

sentamos nossas duas percepções e o cão real como

posições relativas, por sua posição absoluta no

confluentes, embora apenas provisoriamente e para

espaço, apóia-se em qualquer uma de suas estre-

o estágio mental do senso comum. Se minha caneta

las constituintes. Aqui, mais uma vez, temos uma

for internamente feita de matéria mental, não há

Identitatsphilosophie em forma pluralística.

agora confluência entre a matéria mental e minha visão perceptiva da caneta. Mas é concebível que

IV

possa haver tal confluência; pois, no caso da minha mão, as sensações visuais e os sentimentos inter-

Se consegui tornar claro tudo isso (embora eu

nos da mão, sua matéria mental, por assim dizer,

tema que a brevidade e a abstração nessas coisas

são agora mesmo tão confluentes quanto quaisquer

tenham-me levado ao fracasso), o leitor perceberá

duas coisas podem ser.

que a “verdade” das nossas operações mentais

JANEIRO 2014

A sensação é apenas o terminus no qual habitualmente se detém o homem prático, enquanto o filósofo projeta um “além” na forma de uma realidade mais absoluta.

34

deve sempre ser um assunto intra-experimental. Uma concepção é considerada verdadeira pelo senso comum quando se pode fazer com que ela leve a uma sensação. A sensação, que para o senso comum não é tão “verdadeira” quanto “real,” é defendida pelo filósofo como sendo provisoriamente verdadeira, na medida exata em que cobre (tangencia, ou ocupa o lugar de) uma experiência ainda mais absolutamente real, em cuja possibilidade, para alguém que experimenta mais remotamente, o filósofo encontra razão para acreditar.

Portanto, não há brecha na epistemologia

Entretanto, o que realmente conta como verdadeiro

humanista. Seja o conhecimento tomado como

para qualquer pensador individual, seja ele um

idealmente perfeito, ou apenas como verdadeiro o

filósofo ou homem comum, é sempre um resul-

bastante para servir à prática, ele depende de um

tado de suas apercepções. Se uma nova experiência,

plano contínuo. Por mais remota que seja, a reali-

conceitual ou sensível, contradiz muito enfatica-

dade é sempre definida como um terminus dentro

mente nosso sistema pré-existente de crenças, em

das possibilidades gerais da experiência; e o que

noventa e nove por cento dos casos ela será tratada

a conhece se define como uma experiência que a

como falsa. Apenas quando as experiências mais

“representa”, no sentido de ser substituível por ela em

antigas e as mais novas são congruentes o bastante

nosso pensamento porque leva às mesmas associa-

para mutuamente aperceberem-se e modificarem-

ções, ou no sentido de “apontar para ela” através de

-se é que resulta aquilo que consideramos um

uma cadeia de outras experiências que intervêm ou

progresso na verdade [...] Porém, a verdade não

podem intervir.

precisa de forma alguma consistir de uma relação entre nossas experiências e algo arquetípico ou

A realidade absoluta aqui mantém a mesma rela-

trans-experimental. Se nós chegássemos a expe-

ção com a sensação que a sensação mantém com a

riências absolutamente terminais, experiências


sobre as quais todos concordássemos, que não fossem suplantadas por nenhuma correção posterior, elas não seriam verdadeiras, seriam reais, simplesmente seriam, e de fato seriam os ângulos, cantos e cavilhas de toda a realidade, na qual residiria a verdade de todo o restante. Apenas as outras coisas levadas por conjunções satisfatórias até aquelas seriam “verdadeiras.” Alguma conexão satisfatória com esses termini é tudo o que quer dizer a palavra “verdadeiro.” No estágio mental do senso comum, as representações sensíveis servem como tais termini. Nossas idéias, conceitos e teorias científicas passam por verdadeiros apenas na medida em que harmoniosamente levem-nos de volta para o mundo do sentido. Espero que muitos humanistas endossem esta minha tentativa de traçar as características mais essenciais de tal forma de ver as coisas. Tenho quase certeza de que os Srs. Dewey e Schiller farão isso. Se os críticos também a levarem um pouco em conta, pode ser que a discussão erre menos o alvo do errou até aqui. Traduzido por Bernardo Campella

JANEIRO 2014 35


FILOSOFIA

Fragmentos sobre o ceticismo, John. H. Newman Tradução de “Fragments on Cepticism”, 30 de abril de 1853.

Pouco a pouco perdemos toda aquela confiança que outrora fora tão simples, com ou sem o poder de vincularmo-nos a qualquer outra confissão. mas porque há em operação princípios <agentes> mais profundos e mais sutis de nossa natureza, os quais, no estado de guerra contra a religião que lhe é peculiar, fazem uso da livre investigação ou da obstinação irracional como seus instrumentos. Orgulho, sensualidade, egoísmo, mundanismo, desconfiança de Deus e semelhantes maus princípios são os verdadeiros inimigos da religião; e, como estes são o espírito dominante de todas as eras do mundo, a forma que sua hostilidade assume contra ela, numa era de ignorância, é a superstição; numa era de investigação, é o ceticismo. Começamos com o que recebemos quando crianças; aceitamos, apreciamos e defendemos o que nos foi ensinado; pode ser que deparemos com dificuldades que talvez não sejamos capazes de responder, que podem nos importunar, mas que não abalam nossa confiança. Tentamos responder às objeções,

JANEIRO 2014

A 36

as quais sentimos e contornamos para prosseguir tendência de uma era de pensamento,

sem grandes problemas intelectuais. Por fim, à

vista como divorciada da influência da

medida que nossa mente se desenvolve, acumu-

religião, é cair num estado de ceticismo,

lamos informações, conhecemos mais o mundo

assim como a tendência de uma era de

e exercitamos nosso espírito com mais liber-

ignorância, divorciada dessas tendências, é cair na

dade, surgem perguntas que realmente requerem

superstição. De fato, e mesmo do ponto de vista

uma resposta, as quais, se estamos fora da Igreja

histórico, tanto a estagnação quanto a atividade do

Católica, começam a abalar a confiança implícita

pensamento <intelecto> têm sido hostis à verdade

que nutríamos até então no credo que recebemos

divina; não decerto por algo que lhes é intrínseco

de nossos pais ou de nossos venerados instrutores.

– pois a religião realmente é favorecida pela livre

Pouco a pouco perdemos toda aquela confiança que

investigação, embora possa prescindir dela –,

outrora fora tão simples, com ou sem o poder de


vincularmo-nos a qualquer outra confissão. Talvez

conveniências políticas podem ser recrutadas em

às vezes pensemos que o fizemos; todavia, em

seu favor; pode converter-se de um dogma religioso

geral, nossa mente se abriu muito mais verdadeira-

numa instituição social e civil; pode desenvolver-se

mente ao vazio daquilo em que um dia acreditamos

como um establishment; e pode entrelaçar-se com as

do que para a verdade de qualquer outra coisa.

leis de um país. Dessa forma, uma mentira bem-

Entretanto, por algum tempo professamos outro

-sucedida <fraude> ou um sonho pode tornar-se a

credo e nos apegamos firmemente a ele. Mas o

joia mais radiante na coroa de um monarca, o palá-

mesmo processo se repete, a mente continua em

dio das liberdades de um país ou a pedra angular

ação e se enche de objeções a que não pode respon-

de sua filosofia; até que a estrutura social e política

der. Vê o abismo sem fim que se encontra diante

se rompa, e a opinião religiosa desapareça junto

dela, mas não está disposta a ceder nem por um

com ela. Ou pode ser cerceada ou combinada com

segundo; sente estar virtualmente a um passo de

sanções de natureza terrível, com anátemas con-

alcançar a verdade. Tenta modificar e emendar sua

cernentes a sua negação, com bênçãos aos seus

teoria da melhor maneira possível; torna-se eclé-

apoiadores, com a voz de um grande partido reli-

tica ou tenta projetar-se nalguma autoridade. Uma

gioso, e assim perpetuar-se no mundo.

tentativa ou outra a faz manter-se em sua posição; mas no que diz respeito a atividade, clareza, honestidade e vigor intelectual, a tentativa se mostra desesperada; e, conforme o tempo passa, lenta e calmamente paira sobre a superfície aberta de um oceano sem litoral a morte profunda do interminável e desesperado ceticismo, o estado em que não se crê em nada, não se professa nada e talvez nem se conjeture nada. O ceticismo não pode satisfazer-se sem uma teoria

A religião supre uma carência na natureza humana; sem ela um homem não é perfeito e completo na perfeição e na totalidade de suas potências.

ou visão positiva para expressar e então justificar suas determinações, e a visão que ele adota da ver-

É tão necessária uma fé permanente para o bem-

dade religiosa e do dever do homem é a seguinte:

-estar nacional e temporal, tão desejável estar

que na religião não podemos ir além da opinião e

livre de controvérsias, tão adequado ter um senso

que as opiniões estão sempre em formação e des-

moral e religioso implantado num povo, tão difícil

truição – tal como bolhas de ar, que são brilhantes e

de imprimir na população, que mentes judiciosas e

promissoras, até que estouram. Ou como as ondas,

filantrópicas sem uma centelha de fé em sua ver-

que conferem movimento à superfície monótona

dade ainda podem regozijar-se com seu sucesso,

do mar e parecem estar aumentando e construindo

olhar com assombro e com ódio para aqueles que

algo de forma e substância permanentes, mas que

a subverteriam – ainda que lhes pareça falsa – e

rui e desaparece tão rápido quanto se ergue. Por

podem tolerar uma fraude piedosa melhor do que

toda parte, em toda mente ativa (continuarão a

uma verdade irreligiosa. Por isso eles a incentivam,

dizer) essas criações sempre estão vindo à existên-

a apoiam, fazem qualquer coisa, mas no recôndito

cia, conforme o acidente do tempo; e, conquanto

de seus corações eles mesmos a reconhecem, e isto

sejam normalmente evanescentes, ainda assim as

por pura benevolência, uma vez que a religião supre

circunstâncias podem conferir-lhes uma consis-

uma carência na natureza humana; sem ela um

tência temporária e uma aparência de durabilidade.

homem não é <perfeito e completo> na perfeição

O poder do governo, a influência dos poderosos, os

e na totalidade de suas potências (Vide o lamento

interesses de classe, a imaginação popular, o cará-

de Carlyle sobre a loucura da Revolução Francesa).1

ter nacional, tudo pode conspirar para estabelecer Se questionadas quanto a sua fé em Deus, ou se

seguintes. Então educação, hábito, associação e

estão contentes de levar seu ceticismo às últimas

___________________________________________________

1. Capítulo final de The French Revolution. [Disponível em vários formatos, aqui: http://www.gutenberg.org/ebooks/1301].

JANEIRO 2014

e fossilizar a vida efêmera e legá-la às gerações

37


FILOSOFIA

consequências, algumas dessas pessoas <homens> sustentarão até o fim que não têm certeza de nada; outras não terão seriedade suficiente para responder a pergunta de jeito nenhum; outras serão felizmente incoerentes e admitirão a verdade; e estas têm encontrado uma moral ou uma utilidade na incerteza melancólica que confessam. Dirão que a busca pela verdade nos proporciona maior benefício moral que a sua posse; que não devemos possuí-la nunca, mas sempre buscá-la; que jamais seremos condenados por [não] possuí-la, porque não a podemos possuir, ou porque não há verdade religiosa ou porque uma verdade religiosa não é mais verdadeira do que outra, mas estaremos totalmente condenados se não a buscarmos adequadamente. [Dirão que] sinceridade, imparcialidade, honestidade e perseverança são as virtudes que nos trarão sãos e salvos ao céu, não a fé. Outros vão além e dizem que a busca do conhecimento é muito mais agradável e melhor que o próprio conhecimento – e alguns deles, por isso mesmo, descartando a noção católica de recompensa futura do bem, que consiste na visão beatífica <visão de Deus>, consideram que esta consiste numa vida assim: ocupada, inquisitiva <aquisitiva> e diversificada. Estou dando um relato genérico da escola em questão, que não pertence como um todo a nenhum indivíduo, mas numa medida mais plena ou mais restrita <parcial> a esta ou aquela pessoa.

JANEIRO 2014

Traduzido por William Campos da Cruz

38


Trechos de “Ethik und Volkswirtschaft” (1908), com revisão do alemão por Henrique Garcia.

D

urante a Primeira Guerra Mundial, houve

desse desafio, ele teria de se basear num funda-

muita discussão sobre o que se via então

mento mais profundo e mais sólido do que aquele

como o pleno colapso do direito inter-

que a filosofia do direito dominante poderia for-

nacional. O que transpirava durante a

necer. Sua força vinculante não pode derivar

Guerra deixava claro que importantes áreas e prin-

exclusivamente da vontade arbitrária dos Estados,

cípios subjacentes ao direito internacional eram,

da tradição, da força ou dos interesses dominantes.

na melhor das hipóteses, ainda fragmentários.

Pelo contrário, ela deve se enraizar num imperativo

Ficou ainda mais evidente que, sob a pressão dos

moral muito mais básico, isto é, numa lei natural

perigos que surgiram para enfrentá-los, muitos

universalmente válida que derive do próprio Deus.

Estados recorreram na prática a políticas que esta-

Na verdade, o direito das nações só pode se tor-

vam em flagrante violação das exigências do direito internacional. No entanto, cada vez mais esse comportamento evocava ou confirmava a convicção, mesmo entre especialistas, de que o direito internacional, longe de ter perdido sua importância, era de especial relevância para o período de transição entre a Primeira Guerra Mundial e uma nova ordem em tempos de paz, quando o mundo encararia tarefas vitais e desafiadoras, de uma magnitude com a qual talvez jamais tivesse lidado antes na história.

nar uma força vital, fértil, cultural e durável para a liberdade e para a civilização se, associando-se com

Para que o direito internacional estivesse à altura

nossas mais sagradas tradições, for de novo mais

JANEIRO 2014

As leis morais possuem validade universal. Elas ordenam simplesmente toda atividade livre do homem.

HISTÓRIA

A Ética e a Economia Nacional, Heinrich Pesch

39


HISTÓRIA

intimamente unido às idéias e princípios do direito

cristã e destacar todo seu valor, porque apenas

e da soberania, do trabalho e da sociedade, do amor

segundo eles é que a lei humana será capaz de se

ao próximo e da paz entre as nações – e todos estes

desenvolver de uma maneira vital e duradoura.”

têm seu fundamento mais seguro no cristianismo. […] [...] Essas idéias incitaram o Comitê do Trabalho para a Defesa dos Interesses Alemães e Católicos na Primeira Guerra, em novembro de 1917, a estabelecer uma Comissão do Direito Cristão Internacional e preparar uma série de artigos sobre a reconstrução da ordem da lei e da paz entre as nações. Obviamente, o campo de atuação da Comissão abstinha-se do envolvimento direto nas atividades relacionadas à estruturação dos tratados de paz à época. Contudo, a Comissão e seu trabalho eram também motivados por um reconhecimento

O homem não é só um apêndice do mundo material em que vive. Ele também tem obrigações morais para com as pessoas e a comunidade nacional da qual faz parte como indivíduo.

de que os católicos em outros países nas últimas décadas haviam dedicado mais atenção ao direito

INTRODUÇÃO

internacional do que os católicos na Alemanha. Naturalmente, dadas as condições dominantes

1. Há obrigações morais na vida econômica? Como

de então, tal negligência da parte dos católicos

dizia George von Mayr,1 a pergunta pode parecer

alemães poderia levar a conseqüências unilate-

tola, pois não é fácil atinar com uma boa razão por

rais e prejudiciais para a Alemanha. Ademais, há

que os mandamentos morais não se aplicariam

também a importante consideração de que as con-

justamente nesse importante setor da vida social

tribuições científicas derivadas da cultura católica

a que chamamos atividade econômica.

JANEIRO 2014

nos últimos séculos, como respeitáveis estudiosos

40

reconhecem, proporcionam importantes rique-

As leis morais possuem validade universal. Elas

zas frequentemente ainda não apreciadas, que

ordenam simplesmente toda atividade livre do

unicamente carecem de reconhecimento e desen-

homem. Por conseguinte, são válidas também para

volvimento entre os interesses universais da

aquele setor particular da atividade humana que

ciência e da cultura.

diz respeito à vida econômica.

Nós consideramos um presságio especialmente feliz

Porém, não é de todo supérfluo recordar os homens

para o futuro de nossa empreitada que um dos maio-

dessa verdade simples e auto-evidente, pois os

res promotores e aliados da unidade cristã entre as

seguidores de uma visão de mundo materialista

nações, o Papa Bento XV, em 30 de dezembro de

– míopes admiradores do desenvolvimento eco-

1917, tenha oferecido suas felicitações à fundação

nômico moderno –, em seu projeto temerário de

da Comissão depois de ter sido notificado sobre

eliminar todos os obstáculos que possam inibir a

essa empreitada pelo cardeal V. Hartmann. Ele

aceleração desse desenvolvimento, não hesitam

também ofereceu suas bênçãos para que o esforço

em excluir da vida econômica qualquer conside-

proposto tivesse, em suas palavras, “um efeito mais

ração de ordem moral. Até Sombart2 sugeriu que

significativo e benéfico no meio do presente caos

todos os impulsos morais e expressões de um

internacional, onde é especialmente urgente apre-

senso de justiça teriam de se conformar ao dado de

sentar à luz adequada os princípios da moralidade

uma ordem social economicamente avançada. Só

___________________________________________________

1. Die Pflicht im Wirtschaftsleben (1900), 8f. 2. Schriften des Vereins für Sozialpolitik, 88 (1900), 253f.


nesse âmbito é que a moral conseguiria enraizar-

material e interage com a civilização. A ativi-

-se. Deveríamos adotar,primeiramente, as formas

dade econômica é uma parte componente da vida

mais eficientes de organização econômica, e só

humana e da vida sócio-política da comunidade. É

então nos preocuparíamos com a moral ou qual-

importante destacarmos, em primeiro lugar, quão

quer coisa do tipo. Segundo essa visão, a moral,

importante é a moral cristã para o progresso cul-

em última análise, não tem nenhuma influên-

tural, para a estruturação correta daquele estado da

cia decisiva sobre a fisionomia do progresso, e a

perfeição civil, política e social a que normalmente

ordem social não está fundamentada na moral;

nos referimos como civilização, e para o completo

ao contrário, a moralidade que tentasse impor-se

desenvolvimento e ordenamento da vida social

às custas daquilo que uma concepção materialista

como um todo.

entende por progresso chegaria mesmo a impedir todo desenvolvimento social.

Se realmente foi uma tolice de Schleiermacher e Ziegler, entre outros, supor na realização da

Nós temos uma concepção diferente. A moral é,

prosperidade temporal e no progresso cultu-

sim, compatível com todo tipo de progresso téc-

ral constante da raça humana o “sumo bem”,

nico e econômico enquanto tal. Ela não inibe nem

contudo o progresso da cultura e da civilização é

atrapalha a eficiência e a realização que sirva para

realmente um bem importante na visão cristã, um

promover o genuíno bem-estar humano. Ao con-

bem querido pelo próprio Deus, e por isso semear

trário, ela promove esse bem-estar. Porém, as

e compartilhar cultura entre as pessoas permanece

relações econômicas não se reduzem à mera uti-

uma missão da raça humana em seu desenvolvi-

lidade técnica e econômica, nem são reguladas por

mento histórico. No fim, não se trata senão da

esta tão-somente. O homem não é só um apêndice

gradativa manifestação da imagem divina encer-

do mundo material em que vive. Ele também tem

rada na natureza humana e da participação no

obrigações morais para com as pessoas e a comu-

domínio de Deus sobre a natureza – participação

nidade nacional da qual faz parte como indivíduo.

que, conquistada e afirmada conforme as exi-

Na verdade, a prosperidade material das nações é

gências da lei moral, implica simultaneamente a

essencialmente condicionada pela vigência prática

consumação e a promoção dos objetivos mais ele-

da lei moral e pelo grau de moralidade existente na

vados do homem e da humanidade.

vida econômica da nação. Essa é a tese que queremos desenvolver nas páginas seguintes; e, quando falarmos em ética, teremos em mente a moral cristã. “Se eliminarmos todos os valores e poderes éticos, e se instalarmos no seu lugar o instinto puramente natural do amor-próprio como a força que orienta a economia, e se dermos um passo adiante e exigirmos uma liberdade completa para essa força orientadora na busca dos indivíduos pelo lucro, então não deveremos nos surpreender com as conseqüências. Um sistema

A noção de personalidade e de direitos subjetivos está diretamente ligada aos objetivos individuais próprios do homem e em particular aos objetivos mais elevados da existência humana.

que parta de premissas falsas – como faz o sistema da livre-iniciativa – e que seja auto-contraditório só

3. Uma idéia que se tornou cada vez mais mani-

pode levar a conseqüências absurdas quando entrar

festa como resultado do impacto da moral cristã

em operação. E quais são essas conseqüências absur-

no curso da história, ainda que às vezes se perca a

das? Elas podem ser resumidas em duas palavras:

visão disso, é a noção da verdadeira natureza humana

capitalismo e socialismo.”

– o conceito de humanidade. É pelo bom cultivo, educação e ordenamento interior de sua própria natureza, das suas faculdades

A vida econômica incide no campo da cultura

intelectuais e da sua vontade, pelo controle dos

JANEIRO 2014

I. A VIDA ECONÔMICA E A VIDA EM SOCIEDADE

41


HISTÓRIA

instintos e paixões inferiores e pela submissão

opressão nas áreas coloniais. A grande lei da cari-

deles à razão e à consciência, e, finalmente,pelo

dade cristã transcende as fronteiras de cada Estado,

direcionamento destes à moderação e ao seu fim

fornecendo um critério de Justiça e de Direito para

próprio, que o homem se torna um ser humano no

além delas. Mesmo o viajante solitário no deserto,

sentido pleno do termo. É dessa forma que ele se

na medida em que é um ser humano, preserva seus

eleva acima do nível animal, ao qual ele mergulha

direitos e reinvidicações de auxílio, que ninguém

sempre que perde de vista suas obrigações morais

pode violar sem incorrer em delito moral. Todas

e,com isso, também a dignidade de sua própria

as pessoas, tanto as da Judéia como as da Samaria,

natureza. É assim que ele se torna capaz das rela-

e todos aqueles que demonstraram tanta hostili-

ções sociais com outros seres humanos.

dade contra nós alemães, como os russos, ingleses,

Em nenhum outro lugar essa unidade da raça humana encontra sua expressão mais claramente do que na vida da Igreja de Cristo.

franceses, americanos – todos esses permanecem filhos da grande família de Deus. Quando rezamos o Pai Nosso, pedimos que eles também possam ter seu pão de cada dia, assim como o perdão pelos seus erros; e, mais ainda, não podemos esperar ganhar o perdão de nossos próprios pecados se não estivermos preparados para perdoar os pecados deles contra nós.

Ao mesmo tempo, a moral cristã salvaguarda o

Em nenhum outro lugar essa unidade da raça humana

valor próprio do indivíduo humano no âmbito

encontra sua expressão mais claramente do que na

externo, seja ele operário ou empresário, subordi-

vida da Igreja de Cristo. Aí, os ricos e pobres têm a

nado ou supervisor, livre ou escravo. A noção de

mesma origem, o mesmo fim, o mesmo Pai em

personalidade e de direitos subjetivos está direta-

comum no céu, o mesmo Redentor, e a mesma

mente ligada aos objetivos individuais próprios do

condição natural e sobrenatural como filhos de

homem e em particular aos objetivos mais eleva-

Deus. Quando os mais pobres dos pobres vêm até a

dos da existência humana. Em virtude do seu fim

casa de Deus, eles se sentem em sua própria casa.

último – seu destino eterno, que é um princípio

Há alguns anos, em Ems, o Rei Jorge da Saxônia

que transcende toda evolução histórica –, o ser

ajoelhava-se junto com os trabalhadores comuns

humano, diferente do que respeita ao mundo exte-

na mesma fila da comunhão e recebia o mesmo

rior em que vive, permanece autônomo. Por isso

Salvador das mãos do mesmo padre. Enquanto

ele não pode se tornar um simples meio a serviço

estive em Berlim, ministrei os sacramentos der-

de algum poder terreno.

radeiros a um pobre alfaiate. O coroinha que me

JANEIRO 2014

auxiliou era descendente de uma nobre família de

42

Sem perder sua individualidade, o homem traba-

príncipes. É porventura incomum que filhas de

lha e luta em meio à sociedade. Aí ele se encontra

príncipes ofereçam suas vidas a serviço dos pobres

ao lado de outros homens que podem reivindi-

e enfermos? Na verdade, a freira franciscana que

car os mesmos direitos em virtude de objetivos e

limpa o suor da testa do operário moribundo faz

propósitos idênticos. Tal como ele, essas pessoas

mais e se sacrifica mais por ele do que o agitador

também possuem direito aos meios necessários

socialista que lhe promete o Eldorado em algum

para realizarem seus objetivos de vida, o direito de

lugar no futuro, mas que, nesse ínterim, furta-

trabalhar, de desenvolver e realizar seus destinos,

-lhe sua fé e, junto com isso, a paz de sua alma.

tanto os terrenos quanto os eternos. É a ordem

Na verdade, a Igreja Católica é uma Igreja de

moral que aponta caminhos autenticamente

todas as pessoas, não só uma Igreja para os ricos

humanos aos indivíduos e às nações em suas rela-

e poderosos; não é uma igreja de classes e cas-

ções uns com os outros. É também a ordem moral

tas. Há muito tempo ela conseguiu, segundo suas

que impõe limites a toda arbitrareidade na esco-

próprias constituições, o que os socialistas lutam

lha dos meios e fins específicos. É a solidariedade

tanto para conseguir: a abolição das diferenças de

universal humana que une tudo o que se chama

classe. É na Igreja, onde reina o espírito de Cristo,

humano, que coloca o trabalhador junto do empre-

que todos são abraçados pelo mesmo amor; e há até

gador e que protege o negro contra a exclusão e a

um amor especial pelos pequenos e pobres, para


quem em primeiro lugar é pregado o Evangelho. E

por exemplo, pelo dom da linguagem e seu anseio

nem a Igreja cristã é uma igreja nacional, mas uma

por relações sociais, fica claro que o homem é por

igreja mundial e uma igreja de todas as nações, que

sua própria natureza um ser social. Ele vem a este

abarca toda a raça humana. Para o cristão genuíno,

mundo como um membro de sua família, de sua

o estrangeiro não é algum tipo de inimigo ou bár-

tribo, de seu clã e de sua comunidade nacional. Ele

baro. Ele é seu amigo e seu irmão.

se beneficia por ser membro de uma comunidade,

A unidade nuclear original da sociedade humana é a família.

sem ter sua individualidade por isso suprimida. Mas ele também precisa conformar-se à sociedade e até subordinar-se a ela como uma comunidade mais alta e determinante; e deve servir aos fins da comunidade e do bem-estar das pessoas com que se associa na vida da comunidade. A essa noção de

Theodore Meyer3 disse que a irmandade entre os

serviço a ser realizado por dever está relacionado o

homens baseia-se num vínculo natural onímodo,

pensamento cristão acerca da profissão ou função na

a saber, a nobreza comum que vem das mãos de

sociedade. A personalidade ética da pessoa humana

Deus, a solidariedade daqueles que dividem o

se desenvolve ao cumprir com seu dever de estado

mesmo e elevado destino sobrenatural último, a

e, sem dedicar-se a uma profissão definida, a vida

solidariedade daqueles que participam da mesma

virtuosa se torna impossível. Assim, a ética cristã

peregrinação humana em direção ao mesmíssimo

não cultiva o ser humano apenas para um mundo

fim, compartilhando todos os auxílios, perigos,

mais alto na vida que está por vir, mas também,

lutas, esperanças e alegrias que ela envolve. É isso

em um sentido muito específico, para a coopera-

que constitui na consciência humana o quadro

ção nas tarefas que tem diante de si aqui na terra.

moral universal da sociedade humana. Sempre que

Como F. W. Foerster observou,4 ela transforma o

o vínculo ético da caridade humana universal perde

indivíduo centrífugo em um indivíduo centrípeto;

sua efetividade, os interesses privados puramente

e nos recônditos mais íntimos do indivíduo, dá a

egoístas inevitavelmente passam ao primeiro

luz um tipo de vida que transcende a mera indi-

plano e se tornam dominantes. O ódio, a inveja e

vidualidade, para tornar possível a sobrevivência

a força bruta então se tornam as forças motivacio-

e o progresso da vida em comunidade com outros

nais que determinam a forma pela qual a sociedade

seres humanos.

se desenvolve. Essa era claramente a condição do mundo pagão após a sua rejeição pecaminosa de

5. A unidade nuclear original da sociedade humana

Deus, o único ponto focal social possível para todas

é a família. É na família que a religiosidade deve

as nações e todas as eras. Mas o novo paganismo,

encontrar sua raiz mais funda e irradicável, como

um grave e pecaminoso afastamento de Deus em

disse A. M. Weiss5, ou então ela jamais prosperará.

nossos próprios dias, como refletido na horrenda

É aí que os fundamentos primeiros e mais seguros

Primeira Guerra, não trouxe o mesmo estado de

da fé, da obediência, do respeito pela autoridade,

coisas? O que Jesus Cristo teria a dizer sobre esse

de um senso de sacrifício pelo bem comum – os

manifesto impulso que as nações exibem para se

cinco fundamentos da estrutura social – se estabe-

destruírem umas as outras?

lecem. É aí também que são nutridas as sementes de uma mentalidade conservadora genuína que

4. Os indivíduos não são simples átomos dis-

respeite os costumes e as tradições e que sirva

persos. A justaposição kantiana entre o “eu” e

de muro protetor para os traços, peculiaridades e

“o mundo” não pode nos levar a um relaciona-

costumes dos sexos, tribos e nações. Aí encontram

mento moralmente correto do indivíduo com a

sua salvaguarda e sua proteção a propriedade, os

comunidade na qual ele vive. O homem é capaz e

hábitos e os modos de trabalho tradicionais para

ao mesmo tempo necessita de realização. Assim,

se adquirirem as coisas. Aí também se formam

3. Die Arbeiterfrage und die christlich-ethischen Sozialprinzipien (1895), 31f. 4. Christentum und Klassenkampf (1906), 106, 108, 112, 115. 5. Soziale Frage und soziale Ordnung, I (1904), 463.

JANEIRO 2014

___________________________________________________

43


HISTÓRIA

sempre novos laços entre as pessoas, que são na

Muitas das tarefas que costumavam fazer parte da

verdade os laços mais fortes de todos – os laços

economia doméstica agora são feitas também fora

da relação de sangue. Aí elas se unem, e pessoas

de casa, como cozinhar, lavar, abater animais, etc.

cujos caminhos normalmente iriam em direções

Mas significa isso que a família esteja destinada

diferentes são unidas pela amizade e interesses

a ser inteiramente abolida e colocada de lado por

sociais em comum. Só onde a família se estabelece

essa restruturação cultural do campo econômico da

de maneira segura e ordeira podemos esperar a

atividade dentro da família? Pelo contrário, há um

garantia da paz social.

número suficiente de tarefas importantes deixadas

O futuro das nações e a emancipação genuína da mulher devem ser encontrados não na destruição do domicílio familiar e da economia doméstica, mas em sua conveniente restauração.

a cargo da família, que agora podem ser feitas de maneira ainda melhor conforme os entraves econômicos forem sendo suspensos. Schmoller6 dizia que aqueles que mandassem cada pessoa faminta para um restaurante, cada mulher grávida para uma clínica, cada criança desde o nascimento até a idade adulta para uma sucessão de instituições educacionais, teria conseguido simplesmente transformar a sociedade em um agregado de vagabundos interesseiros e egoístas, cujas neuroses e tensões resultariam em um excedente de candidatos aos hospícios. Quanto mais agitada se torna a vida em nossa época, mais importante é garantir

JANEIRO 2014

um laço de amor que seja exclusivo e que envolva

44

Originalmente, a ênfase da vida econômica tam-

o tipo de confiança e respeito que apenas a famí-

bém se encontrava na economia doméstica, que

lia pode dar. O futuro das nações e a emancipação

tinha de servir diretamente como a unidade

genuína da mulher devem ser encontrados não na

econômica que proporcionava a auto-suficiên-

destruição do domicílio familiar e da economia

cia garantidora das necessidades e carências da

doméstica, mas em sua conveniente restauração.

família. Então, conforme as economias de troca

Mas é possível a restauração da vida familiar

gradualmente se espalharam e tornaram-se a

onde prevalece a degradação moral, onde a rela-

regra, atingindo a estabilidade necessária, a antiga

ção sexual se torna um fim em si mesmo, onde o

unidade entre o polo produtivo e o consumidor da

amor é meramente uma paixão, ao invés do verda-

economia desapareceu mais e mais, ao menos de

deiro e genuíno amor baseado no respeito mútuo

forma geral. O homem de nossos tempos busca

e combinado com um senso de responsabilidade

seu rendimento principalmente fora de casa. As

e fidelidade entre cônjuges unidos e devotados à

mulheres e crianças não estão, via de regra, envol-

criação dos filhos? Não foi sem uma boa dose de

vidas na mesma atividade econômica dos homens;

extravagante imaginação que Engels e Bebel tenta-

muitas vezes vão trabalhar em outros lugares.

ram ensinar aos pobres operários que as mulheres

Nas famílias onde se administra algum negócio

em tempos primitivos eram dotadas de liberdade

familiar, como é o caso das pequenas indústrias

sexual e econômica, e que com o desaparecimento

de classe média e famílias agrárias, o significativo

dos direitos da maternidade elas se tornaram pro-

papel econômico da família foi melhor mantido. De

priedade do homem. É claro que as mães de família

outro modo, é só consumo o que se dá em casa. Pai

em grandes cidades metropolitanas e industriais

e filho sentam à mesa para consumir o que a mãe

atualmente não gozam da igualdade de direitos

coloca diante deles. Certos artigos de vestuário e

própria a uma companheira de vida no sentido da

outros bens têxteis talvez possam ainda ser fei-

moral cristã. Pelo contrário, elas servem como ins-

tos em casa, e,com mais freqüência, sua limpeza e

trumentos para satisfazer a luxúria e como escravas

reparo ainda o são. Na verdade, mesmo o lar que se

dos homens. Sem o amor maternal, sem o amor

limite ao consumo hoje corre o risco de ficar vazio.

entre cônjuges, a vida casada é muitas vezes, como

___________________________________________________

6. Grundriss der allgemeinen Volkswirtschaftslehre, I, 255ff.


se alega ter sido em tempos primitivos, apenas um

lealdade de ambos os lados, com uma preocupa-

breve interlúdio de liberdade sexual e econômica,

ção altruísta pelos interesses presentes e futuros

e até pior do que isso! Qualquer um que observe a

da outra parte tamquam sua, em especial pelo seu

vida em nossas cidades e áreas metropolitanas sabe

destino eterno.

bem que é precisamente a destruição da vida em família cristã que constitui o mal difuso que ame-

Agora, desloquemos nossa atenção para outro pro-

aça nossa cultura em seus fundamentos. Ninguém

blema econômico muito importante.

conhece e aprecia o valor da familia cristã melhor do que um capelão em uma das grandes institui-

Há uma relação inegável entre o progresso econô-

ções sociais de nossas áreas metropolitanas.

mico e o aumento populacional. Onde há progresso

7

Há uma relação inegável entre o progresso econômico e o aumento populacional.

econômico, via de regra, a população também aumenta; e, reciprocamente, o fator da população crescente indica um aumento da produtividade, uma maior intensidade na divisão do trabalho, ou na atividade industrial e comercial. Uma população crescente também indica que há mais consumo, sendo esta uma condição do crescente progresso econômico em uma nação. Assim, aumentando a

A restauração da vida familiar também exige uma

população, é possível aumentar a riqueza nacio-

regulação do relacionamento entre os criados e

nal; e o aumento da riqueza nacional proporciona a

seus empregadores. Todos os esforços para resol-

base econômica para uma população em expansão.

ver esse problema serão em vão, a menos que o serviço doméstico novamente venha a ser tratado

Os sábios antigos (como Platão e Aristóteles) já

como uma profissão digna e ocupação honrosa. A

haviam destacado o perigo que representaria um

Imperatriz da Áustria8 nos dá um bom exemplo a

aumento muito rápido na população, com um

esse respeito, sendo que ela carrega o nome de uma

consequente desequilíbrio entre a população cres-

santa que trabalhou como criada: Santa Zita. É uma

cente e os meios de subsistência; e eles também

questão da mais alta importância que a posição dos

sugeriam alguns métodos extremos para lidar com

criados continue a ser uma parte integrante da uni-

o problema. Alguns escritores franceses e ingle-

dade familiar. Não podemos remunerar os criados

ses, junto com Justus Möser, também trataram

simplesmente com dinheiro. Devemos também

do problema mais recentemente. Mas foi Thomas

aprender a tratá-los adequadamente, aliviando o

Robert Malthus quem se dedicou a determinar

fardo associado a uma posição subserviente pelo

como poderia se manter o equilíbrio entre a popu-

respeito e pelo amor, bem como por uma retribui-

lação e os meios de subsistência. Malthus defendia

ção psíquica e por um cuidado familiar condizentes

a restrição moral, ou seja, a abstinência moral do

com a responsabilidade moral. Roscher dizia que o

casamento, seja permanente ou temporária. Onde

ideal a ser buscado no que tange o trabalho domés-

esse método falhasse, a pobreza e a miséria entra-

tico é uma situação em que o trabalho se encaixe e

riam em operação como medidas repressivas. O

se torne parte da estrutura familiar e seja tratado

Neomalthusianismo considerava o método mal-

como tal tanto por patrões como criados. Isso em

thusiano da restrição moral (celibato, casamento

última análise significa que deve haver gentileza

tardio e continência no casamento) no mínimo

por um lado e dedicação pelo outro, assim como

impraticável. Ele exigia intervenções artificiais

9

___________________________________________________

7. Na função de padre jesuíta, Heinrich Pesch serviu por muitos anos como capelão no Convento do Bom Pastor em Berlim, que fornecia abrigo para mães solteiras e mulheres que fugiam de uma vida de prostituição.

exemplar. Depois da sua deposição, eles foram exilados para Madeira, onde Charles morreu em 1º de Abril de 1922. Seu corpo está incorrupto. Ele foi declarado “Venerável” pela Igreja em 12 de abril de 2003, e está em andamento seu processo de beatificação. A imperatriz Zita morreu em 14 de março de 1989, aos 97 anos. 9. Grundlagen der Nationalökonomie, I, Ch. 4, §76.

JANEIRO 2014

8. Pesch se referia à Imperatriz Zita, esposa do último monarca reinante de Habsburgo, Carlos da Áustria. Ambos levaram uma vida cristã

45


HISTÓRIA

no ato procriativo (“paternidade responsável”,

lamentando o fato de que, se a taxa de natalidade

”esterilidade voluntária”, etc.). Kautsky e outros

francesa não aumentar, a França estará perdida.

escritores socialistas também defendiam que,

Contudo, deve estar claro que todas as tentativas

na sociedade do futuro, seria necessária a “rela-

de impressionar as pessoas com a seriedade do pro-

ção sexual contraceptiva”. O Neomalthusianismo

blema não surtiram efeito algum. O processo de

buscou em vão desenvolver uma justificação

descristianização dessa infeliz nação, que começou

teórica para a “política de dois filhos,” e ainda

no período que vai até a grande Revolução, é res-

tenta fazer isso. Fahlbeck disse que esse sistema

ponsável por seu declínio; e essa descristianização

persiste atualmente. 10 Ele se esconde em toda

é a verdadeira causa por trás da aceitação da política

civilização avançada, como o verme se esconde

de dois filhos ali vigente. Acabe-se com a política de

na fruta. Nós preferimos dizer que ele se encon-

dois filhos e as igrejas da França hoje vazias amanhã

tra onde quer que tenha se instalado a decadência,

voltarão a encher. Nem se discute que as errôneas

tendo a cultura moral de uma nação falhado em

disposições de herança do Code Civil também tor-

acompanhar suas conquistas materiais. A causa

nam indesejável possuir um grande número de

mais direta e óbvia por trás da ruína do mundo

filhos. Contudo, a verdadeira razão por trás do sui-

grego e, subsequentemente, do romano foi a cres-

cídio nacional encontra-se alhures: na decadência

cente escassez da população. Mas, como Fahlbeck

moral que muitas vezes acompanha a prosperidade

Se a taxa de natalidade francesa não aumentar, a França estará perdida.

puramente material, que dá ensejo à busca irrestrita do prazer. E essa decadência moral é também sutil o bastante para promover, pela atividade sexual ilícita, os apetites sexuais mais baixos, bem como outros modos de egoísmo indignos de companheiros de casamento e de vida familiar. Essa é a ferida

apontou, esse foi simplesmente o resultado de uma

que debilita a França, e é a raiz do horrendo mal que

falha na procriação: as pessoas cessaram de garan-

lá se difundiu, não só nas grandes cidades e entre as

tir o prosseguimento de sua raça. Por mais que a

classes mais altas, como até mesmo entre trabalha-

doença e a guerra em várias épocas tenham dizi-

dores rurais e a população camponesa. Julius Wolf11

mado a população, especialmente em meados do

contava que, segundo Leroy Beaulieu, a escassez

séc. II d.C., esses déficits teriam sido rapidamente

de crianças é uma conseqüência da “Ecole laique” e

compensados, se a reprodução tivesse perma-

do iluminismo político e religioso. Um excesso de

necido forte, ou pelo menos num nível normal.

nascimentos sobre mortes continua a acontecer

Em nações dinâmicas, o crescimento populacio-

apenas nos departamentos católicos (e de frequen-

nal depois de tais adversidades tende a ser ainda

tadores da igreja) de Vendée, Bretagne, e outros no

maior, de modo que a população retorna ao seu

norte da França. Entre os Walloons na Bélgica, o sis-

nível original em 15 a 20 anos. Portanto, aqueles

tema estatal de ensino que excluiu a religião teve o

infortúnios talvez não tivessem tido consequências

mesmo efeito, porque minou a influência da Igreja.

mais graves, se a procriação não tivesse começado

A taxa de natalidade alemã também caiu conside-

a decair. Nesse caso como em outros, foi a falta de

ravelmente em tempos recentes, e tanto aqui como

procriação que se se tornou uma ameaça fatal para

em outros lugares se prevê um declínio geral. Qual a

culturas em declínio.

verdadeira razão última para isso? Nenhuma outra senão o declínio da fé cristã e da moralidade cristã.

Em nossa época, as conseqüências da política de

Bornträger12 observou nas Veröffentlichungenausdem

dois filhos aparecem de forma especial na deca-

Gebiete der Medizinalverwaltung (Publicações

dência da França. O diretor do Bureau Estatístico

no Campo da Administração Médica) prus-

de Paris, Jacques Bertillon, há muitos anos vem

sianas como em geral é verdade que a crença

JANEIRO 2014

___________________________________________________

46

10. “Der Neomalthusianismus,” in Zeitschrift für Sozialwissenchaft, 6 (1903), 623ff. 11. Der Geburtenrückgang (1912), 95. 12. Citado por Krose, “Geburtenrückgang und Konfession,” in Fassbender’s Des Deutschen Volkes Wille Zum Leben (1917), 215f. Cf. também as contribuições de Walter e Rademacher, e o Geburtenrückgang und Sozialreform (1917) de Hitze.


genuinamente religiosa exerce uma influência

Num país onde não há uma ligação com a casa e

restritiva,impedindo o vício da prevenção contra-

com a terra, há pouco espaço para o amor genuíno

ceptiva, e que, visto que a fé incondicional é mais

pelo lar, pela nação ou pela pátria. Quando a reli-

comum entre católicos do que entre protestantes,

gião cristã consagra e abençoa a casa e a terra, os

e que na Alemanha a influência do clero católico

prados e o pátio da igreja, ela liga o que há de mais

sobre a população é consideravelmente maior do

sagrado com o que são também os sentimentos

que a do clero protestante, o católico sincero está

humanos mais naturais. Como Lagarde indicou, a

mais protegido contra a tentação da prevenção

religião também precisa de um domicílio terreno,

natal do que o protestante.

um lar pacífico no qual se vive e no qual as leis

A filosofia cristã rejeita a tentativa de Rousseau de traçar a origem do Estado a um contrato social. Na verdade, o Estado se baseia em um fundamento muito mais sólido.

da vida são conhecidas, ou pelo menos sentidas, porque se tem diante de si um desenvolvimento progressivo indo de seus ancestrais até seus netos, num processo contínuo. A piedade pede por banquetes por meio dos quais a luz do sol invada os corações humanos. Ela precisa de túmulos onde o amor possa oferecer seus lamentos, onde a esperança suporte a dor, onde o senso de eternidade venha à tona. Ela exige uma idade sagrada anterior da qual absorva o que há de melhor, presevando-a e dando-lhe continuidade, e cuja reverência lhe sirva de pano de fundo para um futuro que espera

Os pais que tentam evitar os fados e sacrifícios

não ter fim.

acarretados pela manutenção de grandes famílias não tem um amor genuinamente saudável

[...]

por crianças. Wendland13 dizia que os filhos provenientes de grandes famílias estão muito mais

II. O Estado e a Economia Nacional: o propósito e

preparados para viver no mundo. Eles cobram

a unidade da economia nacional

menos da vida; eles aprendem desde cedo a ter consideração pelos outros; todo o espírito de casa os

7. A filosofia cristã rejeita a tentativa de Rousseau

inclina a ajudar os outros e a aplicar suas energias

de traçar a origem do Estado e sua autoridade a um

ao máximo. Também nesses lares provavelmente

contrato social, mesmo quando se entende isso no

existe uma vida intelectual mais rica, pois é muito

sentido de um constructo idealizado, ao invés de

grande a influência do incentivo entre as próprias

uma origem histórico-genética genuína. Na ver-

crianças, bem como na interação com os amigos

dade, o Estado se baseia em um fundamento muito

que elas levam para casa. As crianças tendem a ser

mais sólido. Os Estados particulares são, de fato,

menos mimadas, e a queixa de uma velhice soli-

produto direto da história. Contudo, esse desen-

tária é ouvida com menos freqüência entre os pais

volvimento sempre recorrente em direção a uma

que tenham muitas crianças e netos. Devemos nos

sociedade política e ao próprio Estado permanece-

perguntar se não foi a “esperteza matrimonial” a

ria inexplicável se não voltássemos às causas que

responsável por tantas lágrimas amargas durante a

transcendem as meramente históricas, que dão

Guerra, quando a morte tão frequentemente privou

origem a Estados individuais específicos: a saber, a

os pais de alguém que, por ação deles, permanecera

necessidades universais que encontramos na natu-

o fils unique.

reza humana. O homem, sendo quem ele é, exige outros laços sociais além da família e outras formas

[...]

sociais mais restritas derivadas da família, para se desenvolver plenamente e assegurar um modo digno de existência humana. É sua natureza social,

sem um lar é um homem sem uma base firme.”

com sua capacidade e necessidade de realização,

___________________________________________________

13. Handbuch der Sozialethik (1916), 54.

JANEIRO 2014

6. O cardeal Manning observava que “um homem

47


HISTÓRIA

que constantemente o move para além da família

Seja como for, qualquer política social autêntica

em direção àquela poderosa associação mais alta e

que deva conseguir não apenas a ascensão tem-

mais abrangente – o Estado. Pois é pelo Estado que

porária ao poder de uma determinada classe, mas

ele realiza todos seus objetivos temporais humanos

que se dirija também a elevar os relacionamen-

que sem ele seriam inatingíveis. Por sua vez,aquilo

tos entre os vários grupos de interesse a um nível

que constitui a base para a existência e o desen-

permanente de reciprocidade social e comunidade

volvimento da sociedade a que chamamos Estado

vital genuína, encontrará um apoio fundamental e

também impõe limites ao seu fim. O Estado deve

sólido no princípio cristão de solidariedade e do dever

fazer por seus membros o que eles, por suas pró-

comum para com as causas públicas, em outras pala-

prias capacidades pessoais e pelas capacidades de

vras, a responsabilidade solidária de todos pelo

sociedades inferiores dentro do Estado, não podem

bem comum da nação.

realizar; e isto inclui a proteção ordeira e garantida de seus direitos, da efetiva assistência e da

A justiça distributiva exclui toda a arbitrariedade da

verificação de que suas deficiências sejam supri-

parte das autoridades estatais na maneira pela qual

midas pelo poder que os cidadãos de um Estado

distribui os benefícios e responsabilidades públi-

possuem quando agem em concerto. Em resumo, o

cas. Os benefícios devem ser distribuídos com

fim do Estado consiste em fornecer, salvaguardar

base no merecido e no necessário. Foi segundo

e complementar a soma dessas condições sociais,

esse princípio que Leão XIII, na encíclica Rerum

instituições e estruturas que sozinhas forne-

Novarum, pediu por uma proteção especial à classe

cem e preservam a todos os membros do Estado a

trabalhadora. Por outro lado, as responsabilida-

capacidade mais plena de assegurar e manter sua

des também devem ser distribuídas com base nas

prosperidade temporal por conta própria e pelo

capacidades. No que tange às cargas tributárias, os

uso de suas próprias capacidades. A realização

cidadãos individuais não tem apenas um tipo de

direta do bem-estar dos indivíduos particulares

relação de troca com o Estado, como se sua carga

pelo Estado ocorre apenas em casos excepcionais,

tributária fosse determinada segundo os benefícios

em que outros auxílios apropriados para esses fins

que cada cidadão deriva do Estado (conforme a teo-

estejam em falta ou sejam inadequados. Então o

ria liberal de juros respectivos e de seguro). Não: há

envolvimento por parte do Estado se torna neces-

uma obrigação genuína para se pagarem os impos-

sário para a prevenção ordeira e efetiva da miséria

tos, obrigação que não se baseia em benefícios

e da pobreza entre as pessoas que são incapazes de

particulares recebidos do Estado pelo indivíduo,

ajudar a si próprias.

mas no fato de que a pessoa é um membro do corpo

Podemos continuar a perceber as vantagens da monarquia sem ver a democracia como o “ápice da impiedade.”

político. Especialmente em nossa época, diante da necessidade de se distribuírem encargos cada vez maiores e dos esforços para se adquirirem novas fontes de renda aumentando o direito à propriedade – uma tendência que pode se tornar ainda mais dominante depois da Guerra –, o Estado deve não apenas tomar cuidado para evitar todo tipo de injustiça contra indivíduos e unidades econômicas individuais, mas também contra grupos inteiros de interesses comerciais e grupos ocupacionais den-

[...]

tro da economia, para que o eventual dano a toda a economia nacional seja desproporcional a qualquer

Benjamin Kidd atribui o avanço vitorioso do

vantagem material que o Estado pudesse adquirir.

JANEIRO 2014

movimento trabalhista na Inglaterra ao impacto

48

centenário da religião cristã que penetrou nos

Podemos continuar a perceber as vantagens da

recônditos da consciência e também permeou

monarquia sem ver a democracia como o “ápice

toda a literatura, de modo que o clamor das clas-

da impiedade.” De qualquer modo, não é possível

ses mais baixas por dignidade humana e direitos

deduzir da religião cristã nem uma forma par-

iguais veio a ser associado com as convicções mais

ticular de Estado ou governo nem a necessidade

nobres e profundas de todas as pessoas decentes.

de algum tipo particular de sistema econômico.


Contudo, para todas as formas de Estados e gover-

vínculos morais, não de um modo que a comuni-

nos, o propósito do Estado se soma ao tipo de

dade nacional ou o Estado acabe sendo o sujeito

imperativo que se impõe às vontades de todos os

do processo econômico, mas porque os cidadãos,

membros do Estado, cidadãos e autoridades públi-

no que diz respeito às suas atividades econômi-

cas, e disso surgem importantes obrigações morais

cas, estão também subordinados aos propósitos

na área econômica. Em todos os casos, o cidadão

do Estado, para que também devam servir à pros-

deve subordinar seus interesses privados aos inte-

peridade geral, que é comum a todos. Esse tipo de

resses da comunidade, conforme o princípio dos

unidade não acaba com a independência econômica

direitos conflitantes. Ele deve assumir sua parte no

das unidades econômicas individuais no sentido

encargo comum segundo a medida de suas capaci-

em que o comunismo ou o socialismo estatal faria.

dades, e deve obedecer às regras das autoridades

Ela não elimina a pluralidade de economias. O

legítimas estabelecidas com vistas à prosperidade

Estado não se torna co-extensivo com a sociedade

de toda a comunidade. Por outro lado, as autorida-

e não elimina a atividade individual por parte de

des estatais são obrigadas a apoiar o bem comum

seus cidadãos e as atividades das organizações de

Mas também não há espaço para o absolutismo das autoridades estatais. Os direitos do Estado não vão além do seu fim.

cidadãos na área econômica. A socialização não se justifica pelo simples fato de que pareça ser técnica e economicamente possível e útil; também se deve provar que ela seja financeira e economicamente necessária em cada caso individual. Como Schäffle coloca: tenhamos uma política econômica expandida, porém apenas em casos extremos uma economia estatal! Em suma, a independência e a autonomia de unidades econômicas individuais

da comunidade no máximo que permitirem seu

devem continuar. Contudo, a economia nacional

conhecimento e capacidades. Não há espaço aqui

transforma a pluralidade dessas unidades econô-

para o conceito de um Estado vigilante, para um

micas em uma unidade social genuína pelo fim que

tipo puramente utilitário-econômico de Estado que

todos os cidadãos devem cooperar para realizar. O

tenha como seu fim único proteger as liberdades de

homo oeconomicus é um cidadão, e continua a sê-lo

competidores egoístas e a propriedade de um tipo

também quando age como uma pessoa econômica.

de criatura bípede que não possui um fim mais alto

Mesmo nas relações econômicas internacio-

na vida do que comprar com o preço mais barato

nais que se estendem para além das fronteiras

possível e vender com o preço mais alto possível.

do Estado, ele não é um cidadão do mundo que

Mas também não há espaço para o absolutismo das

não tem responsabilidades para com o Estado. Se

autoridades estatais. Os direitos do Estado não vão

“economizar” significa trabalhar para adquirir

além do seu fim. Dentro do Estado persiste uma

bens materiais para a satisfação das necessidades

esfera de liberdade individual inviolável, não só

humanas, então é tarefa da “economia nacional”

para os direitos mais altos da pessoa moralmente

como unidade social, controlada pelos fins para os

livre, como também para os negócios, atividades e

quais o Estado existe, realizar o tipo de satisfação

fins mais estritos da área econômica, contanto que

das necessidades da nação que esteja de acordo

não infrinjam o bem-estar público. Para realizar o

com o nível cultural dado, e que possa ser tratada

seu fim último, o Estado pode limitar a liberdade

nesse sentido como riqueza nacional derivada da

onde isso for necessário, mas jamais eliminá-la.

prosperidade pública e das ações de seus cidadãos. O conceito orgânico reconhece que o Estado possui

[...]

certas tarefas que lhe são peculiares e que transcendem os indivíduos que compõe o Estado. Assim, o fim da economia nacional também se eleva acima

a simples soma das unidades econômicas indivi-

dos fins subjetivos dos indivíduos econômicos. Mas

duais cujo único elo sejam as relações contratuais

ele não põe de lado e suprime esses fins, contanto

estabelecidas entre si, assim como o Estado não é

que eles estejam em harmonia com o fim eco-

a mera soma de cidadãos-átomos. Ao invés disso,

nômico nacional. Pois, assim como o Estado não

a economia nacional é uma unidade mantida por

é um organismo físico, onde os membros sejam

JANEIRO 2014

A economia nacional não pode ser tratada como

49


HISTÓRIA

meramente membros e nada mais do que isso,

[...]

sem nenhum grau de autonomia e independência próprias, a unidade da economia nacional também

…segundo nossa abordagem, a noção de comuni-

possui o mesmo caráter moral-orgânico. Os cida-

dade que encontrou expressão tão clara durante

dãos engajados na atividade econômica não servem

a [primeira] Guerra Mundial tem seu firme apoio

apenas ao fim comum; eles também têm seus pró-

em Deus e na vontade de Deus, na qual em última

prios fins. Eles permanecem seres humanos livres,

análise se baseia a ordem no mundo – um fun-

e a melhor garantia de sua liberdade repousa no

damento totalmente distinto de pensamentos e

fato de que esta não é um absoluto para cada indi-

sentimentos do capricho humano, do entusiasmo

víduo, mas se vê limitada pelas reinvidicações e

patriótico, ou da mudança constante das circuns-

interesses legítimos dos seus concidadãos – assim

tâncias extrínsecas. Vemos os indivíduos não

como a liberdade civil política é limitada pelos fins

como simplesmente deixados soltos para seguir

da comunidade nacional organizada na forma de

suas próprias inclinações egoístas, mas como uni-

um estado político.

dos a toda a comunidade por obrigações, respeito

Isso só faz sentido se o todo é algo mais elevado e precioso do que a simples soma de muitos indivíduos.

e auxílio mútuos; enquanto a comunidade é vista como algo dotado de grande valor por seus próprios méritos, que transcende os indivíduos não só devido ao seu poder, mas em virtude do seu lugar na ordem moral e do fim que realiza. Se, por outro lado, a nação e o Estado não são nada mais do que uma soma de todos os indivíduos, então, como dizia Otto Gierke14, o brilho de uma elevada

O conceito integral da comunidade como um orga-

idéia moral empalidece, fenômeno que sempre

nismo moral também normalmente inclui, além da

prefigurou a morte da pátria. De fato, por que um

unidade e da ordem, alguma estratificação social.

indivíduo desejaria sacrificar-se pelo bem-estar de

Fazer o mesmo tipo de trabalho ou envolver-se

muitos outros que na verdade não são diferentes

na mesma ocupação constitui o vínculo unificante

dele? Nós temos um mandamento que governa a

interno para as organizações que vêm a ser órgãos

conduta de um indivíduo com relação a outro: ama

do corpo social em geral, e cuja realização opera-

teu próximo como a ti mesmo. É sobre esse manda-

tiva emerge como uma “função social” em virtude

mento que individualistas extremos como Tolstoy,

do papel delas em satisfazer as necessidades das

com todas as boas intenções, querem basear a vida

pessoas. Uma estrutura corporativa baseada nesses

da sociedade humana; e, percebam, são pessoas

vínculos unificantes não constitui um Estado den-

que demoliriam o Estado e que pregam a anarquia!

tro de outro Estado. O interesse geral da sociedade

O complemento religioso que acompanha o man-

transcende os interesses grupais, e é promovido e

damento de amar ao próximo será encontrado na

preservado, novamente, pela indispensável solida-

lei: amar a Deus acima de todas as coisas. Esse é

riedade mais elevada da comunidade econômica e

o mandamento que constrói o reino de Deus que

política nacional, e salvaguardada pela ação regu-

não é deste mundo. Mas mesmo para a comunidade

latória e harmonizante da parte das autoridades

temporal, dizemos aqui, mantendo a lei de Deus:

públicas. Contudo, o conceito vocacional-ocu-

ame o todo mais do que você ama a si mesmo! E isso

pacional – a idéia de serviço para o todo – como

só faz sentido se o todo é algo mais elevado e precioso do

compreendida aqui serve para fortalecer a comu-

que a simples soma de muitos indivíduos.

nidade econômica nacional. O conceito de classe, por outro lado, que se baseia apenas em quanta propriedade as pessoas possuem, tomado em si mesmo rasga o tecido social, na medida em que

JANEIRO 2014

injecta partidos, mesmo na área econômica, onde

50

deveria haver órgãos. ___________________________________________________

14. Das Wesen der menschlichen Verbände (1902), 34f.

Traduzido por Hugo de Santa Cruz


Tradução da dedicatória em “The Diaboliad” (1777)

LITERATURA

Dedicatória ao pior dos homens nos domínios de Sua Majestade, William Combe

Pois mesmo a carreira compulsória, por assim dizer, não o impediu de lograr alguns prodígios editoriais. É o caso da sátira em versos The Diaboliad, de 1777, no qual a escolha do sucessor ao trono infernal é o ponto de partida para um desfile de caricaturas inspiradas em personagens de ficção e personalidades em voga. Graças ao sucesso de vendas, o poema foi objeto de reedições e continuações, mas lamentavelmente não escapou ao mesmo destino da restante volumosa produção literária do autor: a indiferença de acadêmicos e editores, que raro debruçam-se sobre ela. E mesmo entre aqueles que o fazem, as divergências são muitas, uma vez que a delimitação da bibliografia de Combe e o acompanhamento de seu percurso biográfico são dificultados pela estratégia por ele adotada para fugir ao assédio dos credores: jamais assinar suas obras, ou assinálas sob pseudônimo, nem tornar manifesta a motivação de suas críticas ou a identidade de seus alvos. Sobre o Diaboliad, a hipótese corrente, desde quando aventada pelo poeta Thomas Campbell, é a de que se trata de uma réplica a um fidalgo que teria descumprido a promessa de remunerar o satirista com uma régia pensão anual, Nota do tradutor

em troca do compromisso deste de contrair matrimônio com sua amante; só o que restaria controversa seria a

O gosto pela ostentação foi a ruína do inglês William

identidade do fidalgo, ora atribuída a Simon Luttrell,

Combe (1741–1823). Ainda em sua juventude, já o

famigerado libertino, ora a um amigo do autor, Francis

pai lhe custeava, além dos estudos, uma que outra

Seymour-Conway. Outros poucos, no entanto, descartam

excentricidade; mas estas só fizeram acentuar-se

essa hipótese, sob o argumento de que um contrato nesses

quando a fortuna transmitida pelo padrinho garantiu-

termos jamais receberia o endosso de quem, embora

lhe ainda maior penetração na sociedade londrina—à

não se alçando à nobreza por meios financeiros, ainda

qual sua elegância, inteligência e jovialidade já

cultivava nos modos seu ideal.

tinham franqueado o acesso, mas cujas exigências não demoraram em deixá-lo à míngua e, ademais,

Mas apesar das dúvidas e imprecisões, elas em nada

mergulhado em dívidas que o condenariam ao regime

comprometem a apreciação da verve de William Combe—

da prisão de King’s Bench, reservada a insolventes. Não

da qual se tem uma pequena amostra na tradução a seguir.

que o repugnasse trabalhar para o próprio sustento; a necessidade batendo-lhe à porta, não se furtou a nenhuma ocupação: soldado, professor, garçom, oportunidade de debochar da sociedade que ele culpava por sua penúria, e que, destarte, ironicamente, acabaram por lhe restituir o prestígio social.

N

ão tenho a honra de conhecer pessoalmente Vossa Senhoria; e não sendo de meu desejo que haja qualquer tentativa de violação de minha propriedade,

JANEIRO 2014

cozinheiro. Mas foram as letras que lhe deram a

Meu Senhor,

51


LITERATURA

alienação do afeto de minha esposa, sedução de

íntimo ou um personagem de comédia; contudo,

minha filha ou corrupção de meu filho, não ter

se menciono um provérbio de Salomão, o Sábio,

estabelecido vínculo algum convosco é-me causa

de imediato Vossa Senhoria perceberá, mercê da

de verdadeira satisfação.

peculiaridade de tão característico apelativo, que

Muitos há no mundo para os quais o aperfeiçoamento de suas habilidades consiste em fazer dos vícios um meio de chamar a atenção dos homens.

a pessoa a quem me refiro é ninguém menos que o Rei de Israel. Quão inexpressivos não nos soam General Sir Jeffery e até Lorde Amherst, se comparados a Conquistador da América!2 E quão insípidos não nos parecem os títulos de General, Sir William e até Lorde Howe, em comparação ao de seu Reconquistador— tivessem as pretensões da Grã-Bretanha sido satisfeitas!3 Entre os antigos, Cícero e muitos outros deveram seus nomes a alguma peculiaridade ou defeito pes-

Dirigir-me a vós, meu Senhor, pelo nome que

soal,4 e o infortúnio de um par de pernas arqueadas

herdastes de vossos antepassados seria dispen-

conferiu sabida alcunha a um de nossos próprios

sar-vos igual tratamento ao dispensado àqueles

monarcas. 5 Não me consta, meu Senhor, que a

que não ostentam qualificativos que os distingam

Natureza tenha sido culpada de alguma desatenção

da multidão dos comuns. Os mais eminentes bar-

para com vossa aparência; mas ainda que o tenha,

dos, oradores, filósofos e estadistas colheram

pouco se me dá: confio que é do espírito que vertem

mais prazer e obtiveram mais subida reputação de

os melhores nomes e cognomes. Embora, tivesse eu

alcunhas características de sua excelência que dos

tempo e fosse pertinente ao assunto, é possível que

títulos outorgados pelo favor imperial. Não será

nos parecesse motivo de curiosa especulação inquirir

verdade, meu Senhor, que a reputação de que des-

por que ao mais desvalido e ignóbil dos homens na

fruta a pessoa do Sr. Garrick provém da atribuição

face da terra, tendo a caprichosa Natureza assentado

daqueles apelidos que tanto fez ele por merecer:

em suas costas uma corcunda, caberia a honra de

Reformador dos Palcos, Grande Exemplo Teatral, Ator

receber o mesmo título de Vossa Senhoria—e sem

Britânico, etc., etc., e aos quais seu nome próprio

as formalidades de uma patente real.6

1

relaciona-se tão pouco quanto a qualquer outro porventura adotado com fins de distinção social?

Mas prossigamos.—O grosso da humanidade, que

Referisse eu um juízo atribuído a Salomão, e é

é incapaz de uma observação mais sutil e que,

de se crer que Vossa Senhoria o imaginasse um

fosse dotada dessa capacidade, não lhe veria ser-

especulador judeu, um parente próximo, um criado

ventia, não leva em consideração o estado mais

___________________________________________________

1. David Garrick (1717–1779) exerceu profunda influência na cena teatral inglesa do século XVIII, principalmente como ator (graças ao tratamento realista que imprimia a suas interpretações), mas também como diretor, dramaturgo, gestor e produtor. 2. Jeffery Amherst (1717–1797), 1º Barão Amherst, atuou como comandante-em-chefe das forças britânicas na Guerra dos Sete Anos, que opôs franceses e ingleses na disputa pelos territórios do continente norte-americano. 3. William Howe (1729–1814), 5.o Visconde Howe, atuou como comandante-em-chefe das forças britânicas na Guerra da Independência dos Estados Unidos. A ele é atribuído o fracasso na Campanha de Saratoga, que estimulou a adesão da França à causa dos colonos e a derrota definitiva dos ingleses. 4. Segundo o historiador Plutarco (c. 46–120), o nome Cícero teria origem na peculiaridade física de um antepassado do célebre cônsul romano: uma protuberância no nariz, em forma de grão-de-bico (em latim, cicer). 5. De fato, o hábito da equitação teria resultado no arqueamento das pernas de Henrique II da Inglaterra (1133–1189), do mesmo modo como

JANEIRO 2014

a predileção por capas de menor comprimento lhe teria valido a alcunha de Curtmantle, ou manto curto. A associação entre um e outro, no

52

entanto, vai da invenção do autor. 6. Robert Cecil (1563–1612), figura de proa no governo de Isabel I, auxiliou secretamente o rei Jaime VI da Escócia a subir ao trono inglês, como Jaime I, em seguida à morte da rainha. Suas cavilações políticas inspiraram os desafetos a correlacionar sua deformidade física (ao que parece, uma escoliose severa) a uma deformidade moral—como o filósofo Francis Bacon, seu primo, que, sem mencioná-lo abertamente, escreveu: “do mesmo modo como a natureza fez mal [às pessoas deformadas], assim fazem elas por natureza”.


intermédio das reputações; mas, transitando de

Em o fazendo, perdoar-me-eis, por estar eu ora

uma vez de um extremo a outro, fixa sua atenção

obrigado a desviar-me de um assunto tão impor-

nos melhores e piores entre os homens. Não é o

tante quanto Lorde ———— para um indivíduo

caso, portanto, de Vossa Senhoria preocupar-se

tão insignificante quanto eu mesmo.8

em que se lhe esquive a celebridade que pretendo outorgar com esta dedicatória. Entretanto, para

Não é de meu natural refinar e lapidar minhas

nada omitir capaz de formar vosso convencimento,

próprias criações! Em razão do hábito longamente

peço licença, meu Senhor, para esclarecer que, faz

cultivado de traçar esboços ligeiros de homens e

muitos anos, quando os homens em geral não eram

coisas, sou absolutamente incapaz de rematar um

tão ilustrados e informados quanto hoje, mais

desenho com aquelas efetuosas manchas de luz

particularmente no que respeita às reputações,

e de sombra, e aquela acertada mistura de cores,

publicou-se uma carta endereçada Ao mais despu-

cuja harmonia distingue o fruto de uma aplicação

dorado dos homens vivos, cognome infinitamente

judiciosa. Bem sei, meu Senhor, que sou um escri-

mais vago e indefinido que este, que me concedi a

tor negligente: receio que as inexatidões desta

honra de atribuir a Vossa Senhoria. Não obstante,

dedicatória, bem assim das páginas que se seg-

de imediato a opinião pública descobriu a quem se

uem, darão prova cabal de minha afirmação. Não

destinava aquele medíocre feito—que de fato era

obstante, como resultado deste feito—por menor

assaz medíocre—, mesmo o destinatário estando

o esforço nele empenhado—, sinto uma auto-

abrigado onde não se imaginaria que o despudor

complacência que estou certo ser desejo de Vossa

achasse abrigo: no seio da Igreja.

Senhoria que dela eu desfrute, como forma de con-

7

Não posso permitir que seja mortificada minha justa vaidade. Muitos há no mundo para os quais o aper-

solo e recompensa. Eis que, portanto, não posso permitir que uma satisfação assim seja minorada, nem que seja mortificada minha justa vaidade, antepondo a esta obra um nome que há de ser visto costumeiramente nas páginas anuais do vexatório Register,9 e que jamais permitis seja apagado dos livros contábeis de vossos credores.

feiçoamento de suas habilidades consiste em fazer dos vícios um meio de chamar a atenção dos

Eu sou, meu Senhor, com o devido respeito,

homens. Em vosso próprio coração, meu Senhor, haveis de reconhecer que sois um entre eles; e

um amigo sincero de Vossa Senhoria,

mesmo qualquer argumentação ulterior sobre o assunto decerto parecendo-vos nugatória e

** ***.

impertinente, asseguro que vosso sucesso tem correspondido a vossos desejos.

Traduzido por Luiz Otávio Talu

Entretanto, acaso não estejais convencido de meus argumentos, e a propriedade do cognome que minha pena vos outorgou deixe margem a dúvidas em vosso íntimo, far-me-á meu Senhor a mercê de avançar algumas poucas linhas e atender às justificativas que apresento para a liberdade que tomei?

___________________________________________________

7. A Familiar epistle to the most impudent man living, escrita em 1749 pelo filósofo Henry St. John Bolingbroke, teve por alvo o bispo anglicano William Warburton.

Register. (Ver nota a seguir.) 9. Numa paródia ao Annual Register—publicação em que Edmund Burke compendiava ano a ano os principais eventos nos campos da história, da política e da literatura—, em 1777–1784 Combe escreveu e editou o Royal Register, com sátiras que desfaziam de personalidades da Igreja, do Estado e da Corte.

JANEIRO 2014

8. No ano em que escreveu o Diaboliad, Combe esteve atarefado com pelo menos outros nove livros, além do primeiro número do Royal

53


LITERATURA JANEIRO 2014 54

Estudo de uma Consciência Claustrofóbica Pequeno ensaio de Johny Nery sobre “Hamlet”, de Shakespeare.

O

u li em algum crítico ou notei por expe-

divisão da tragédia de Bradley, isto é, a exposição

riência própria que a primeira cena de

do problema. Talvez a aparição do fantasma logo

qualquer peça de Shakespeare é sempre

na primeira cena nos tenha feito não perceber algo

muito significativa para o entendimento

importante.

do todo, às vezes contendo seu sentido na forma de uma imagem. A primeira cena de Hamlet, ao

Mas como ter a medida do que é importante, se

contrário, pelo menos aparentemente, parece

a maioria dos críticos não está de acordo sequer

ater-se a completar o objetivo da tripartida

quanto ao tema principal da peça? Hazlitt é claro


ao dizer que “his ruling passion is to think, not to

esclarecer melhor a diferença entre a nossa inter-

act”, endossando com Bradley a visão de uma

pretação e as outras interpretações. O fantasma

incapacidade de Hamlet de agir eficazmente. Essa

faz questão de ressaltar que “a serpent stung me, so

visão é um pouco corrigida ao supor-se, com base

the whole ear of Denmark”; há portanto uma cor-

nos estudos das imagens poéticas, que se trata de

respondência entre o estado físico do rei e de seu

um estudo do caráter melancólico de Hamlet, que

reino. Essa correspondência é comum nessa peça e

por vezes pensa sem agir e por outras (como no

em outras, como em Ricardo II, em que o rei diz que

assassinato de Polônio) age sem pensar. Goethe

os próprios elementos naturais da Inglaterra hão

sugere que é a peça que fala sobre um homem que

de defendê-lo contra Bolingbrook. Isso significa

recebeu uma tarefa maior que si mesmo. Martin

que – excluído Cláudio, porque golpista e traidor,

Lings diz que é sobre a Purificação por meio da

e portanto falso rei – a definição das fronteiras da

Vingança. Dr. Freud interpreta-a usando o con-

Dinamarca corresponde a movimento semelhante

ceito de complexo de Édipo, que explica o desejo

de Hamlet filho. O tema principal de Hamlet é a

de vingança de Hamlet contra um homem que fez

descoberta existencial de seu caráter finito e de sua

tudo o que ele próprio quis fazer: matar o pai e

reação a essa descoberta. “Cuando no hay alegría, el

casar-se com a mãe. Soellner defende que Hamlet

alma se retira a un rincón de nuestro cuerpo y hace de él

é um homem em busca de autoconhecimento.

su cubil”, nos explica Ortega y Gasset, e continua:

De qualquer forma, não há espaço para todas as interpretações aqui e nenhuma delas conseguiu

Y; además, cuando no hay alegría, creemos hacer un

ser satisfatória para todos: cada homem tem seu

atroz descubrimiento. Muy especialmente si la falta

próprio Shakespeare.

de alegría proviene de un dolor físico percibimos con extraña evidencia la línea negra que limita cada ser y

O tema principal de Hamlet é a descoberta existencial de seu caráter finito e de sua reação a essa descoberta.

lo encierra dentro de sí, sin ventanas hacia fuera, como Leibniz decía, pero sin el infinito que este hombre contento metía dentro de cada uno. Este es el descubrimiento que hacemos por medio del dolor como por medio de un microscopio: la soledad de cada cosa.

Quão semelhante não é com o

Para explicar melhor o meu ponto de vista, tento

O God, I could be bounded in a nut-shell, and count

montar a primeira cena: começaria com uma

myself king of infinite space

neblina, e, aos poucos, apareceria a silhueta ainda borrada do vigia (Bernardo), que se delinearia cada

Não fosse a continuação: “were it not that I have bad

vez mais, finalmente perguntando “quem está

dreams”. Um personagem titânico, sem dúvidas.

aí?”; donde seguiria do mesmo modo o segundo

O mundo é uma prisão, ele deseja que seu corpo

vigia (Francisco), exigindo “revele-se”. O mesmo

tivesse um estado fluido; o homem, a suprema

para Marcelo e Rodrigo, até entrar no palco o fan-

criação de Deus, não o agrada (nem mesmo as

tasma que, por sua vez, é, no dizer de Rosencratz,

mulheres!). Ele tem uma consciência claustrofó-

“a shadow’s shadow”. Parece acabar por aí, mas a

bica, e o único remédio é a ação. A ação que trará

introdução do fantástico mexe conosco e não nos

morte, que manchará a consciência, a vingança.

deixa ver um outro personagem: Marcelo perA vingança aqui é importante, mas é apenas o modo

tem que estreitar seus hábitos e vestir armaduras?

pelo qual Hamlet expressa o lado pessoal de sua

Por que, indiferente se é dia ou noite, se labora e

reação à descoberta universal da limitação humana.

descansa por turnos? Devido à guerra, a então des-

Quando se põe ênfase muito forte na vingança como

cuidada Dinamarca tem que definir suas fronteiras.

o centro da peça, geralmente se cai em dois erros.

O último personagem assoma da indefinição da

O primeiro é quanto à natureza e ao propósito do

neblina: é a própria Dinamarca.

fantasma. “Não há porta-voz incontestável nas peças”, já diria Harold Bloom, e Hamlet se pergunta

É importante ressaltar essa imagem, para

se a aparição não seria na verdade um demônio.

JANEIRO 2014

gunta qual a razão da guarda. Por que os homens

55


LITERATURA

Segundo todo o discernimento dos espíritos da era

Reconhece também a legitimidade da causa de

elizabetana, tratava-se mesmo de um demônio; o

Laertes:

que é muito harmônico com o fato do rei mecenas de Shakespeare – a quem ele dedica suas obras –, Jaime

For, by the image of his cause, I see

I, ser um notável demonólogo. Embora o fantasma

The portraiture of his

estivesse certo quanto ao assassinato de Hamlet pai, isso não deve nos bastar para afastarmos a hipótese

Fortinbrás, o filho, também procura vingar seu

de que ele seja um demônio, porque ele pode falar

pai com a conquista da Dinamarca. Há corres-

a verdade para enganar melhor e assim alcançar

pondência no perdão entre Laertes e Hamlet e

um objetivo oculto. Dr. Johnson, assumindo que é

a concessão da coroa de Hamlet para Fortinbrás

mesmo o espírito de Hamlet pai, observa que “The

e o enterro solene de Hamlet por Fortinbrás.

poet [Shakespeare] is accused of having shewn little

Ademais, se olharmos as figuras de linguagem,

regard to poetical justice, and may be charged with equal

Hamlet, chamado de melancólico por outros e por

neglect of poetical probability. The apparition left the

si mesmo, corresponde ao elemento terra; Laertes

regions of the dead to little purpose; the revenge which

(“fiery Laertes”) e Fortinbrás (“unimproved mettle

he demands is not obtained but by the death of him that

hot and full”) são do tipo colérico, que corresponde

was required to take it”. A vingança acaba é por termi-

ao fogo. Terra e fogo são o destino dos cadáveres

nar de matar o vingado, já que o filho é considerado

e tem a função de destruir a podridão do reino da

a continuação do pai. A morte de Hamlet filho não

Dinamarca.

deixa nada de Hamlet pai vivo. Também não digo convictamente que era um demônio, mas prefiro

A platéia deve ter visto a vingança como algo posi-

deixar na incerteza o que a própria peça deixa na

tivo, como se os vingadores fossem instrumentos

incerteza.

de Deus e a vingança como um tipo de justiça

Outro erro é fazer de Hamlet a representação do vingador. Nem há uma só vingança, e nem mesmo ele chega a ocupar o papel de vilão

para reestabilizar a ordem. Vejo a peça como o processo dessa instrumentalidade por Hamlet, desde o debater-se da descoberta até o quinto ato, quando ele diz “readiness is all”. Vejo um paralelo entre o príncipe da Dinamarca e o príncipe Hal: ambos enfrentaram inimigos que os circunstantes julgaram superiores (Laertes e Hotspur, respectivamente) e venceram porque souberam que seu tempo tinha chegado (embora Hamlet seja ambí-

O outro erro é o que faz de Hamlet a representação

guo, dizendo a Rosencratz que deixou de lado os

do vingador. É um erro, porque nem há uma só vin-

exercícios e a Horácio que praticou esgrima desde

gança, e nem mesmo ele chega a ocupar o papel de

que Laertes partiu, Hal treinou esgrima em taver-

vilão contra Laertes. Ele é ao mesmo tempo vilão e

nas troçando com Falstaff). De qualquer modo,

herói: “I must be cruel only to be kind”. Polônio, bom

Hamlet aprendeu a esperar, porque “a Vingança

e justo homem, embora refratário da ordem antiga,

é de Deus”. O tempo de espera é o de atravessar

é assassinado por Hamlet, que na hora reconhece

– para usar termos hinduístas – o “samsara” e

que tem de pagar por aquilo:

atingir superação, descobrindo o verdadeiro eu.

JANEIRO 2014

Shakespeare representa isso usando a “cadeia de

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I do repent: but heaven hath pleas’d so,

vinganças” que aparece tanto na guerra das rosas

To punish me with this, and this with me,

de Henrique VI quanto em Romeu e Julieta. Para

That I must be their scourge and minister.

uma vingança acontecer tem de haver um vin-

I will bestow him, and will answer well

gado (vd), um assassino (a) e um vingador (vr).

The death I gave him

Northrop Frye esquematiza da seguinte forma:


O resultado exterior é zero. Horácio exprime bem esse fato ao resumir a história de Hamlet para Fortinbrás: So shall you hear Of carnal, bloody, and unnatural acts, Of accidental judgments, casual slaughters, Of deaths put on by cunning and forced cause, And, in this upshot, purposes mistook Fall’n on th’ inventors’ heads.

O racionalista Horácio, contudo, não percebeu a conquista espiritual de Hamlet.

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