REVISTA TERMINAL Número 3 - Janeiro de 2014 EDIÇÃO Renan Santos ARTE Renan Santos TRADUTORES Bernardo Campella Emílio Costaguá Hugo de Santa Cruz Luiz Otávio Talu Renan Santos Ricardo Santos de Carvalho William Campos da Cruz ESCRITORES Johny Nery
A Revista Terminal é um projeto sem fins lucrativos que busca simplesmente reunir e divulgar bons trabalhos de tradução, ensaios, poemas e contos. Entre em contato conosco e envie o seu: http://revistaterminal.com.br contato@revistaterminal.com.br
© Revista Terminal 2014
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Janeiro de 2014
ÍNDICE
FILOSOFIA A doutrina socrática da alma, John Burnet.......................................................................................................................................................................................6 Uma definição de cavalheiro, John H. Newman.........................................................................................................................................................................24 Os doze tons do Espírito, Rosenstock-Huessy.............................................................................................................................................................................26 A essência do humanismo, William James....................................................................................................................................................................................31 Fragmentos sobre o ceticismo, John. H. Newman..................................................................................................................................................................36
HISTÓRIA A Ética e a Economia Nacional, Heinrich Pesch..............................................................................................................................................................................39
LITERATURA Dedicatória ao pior dos homens nos domínios de Sua Majestade, William Combe..............................................................................................51 Estudo de uma Consciência Claustrofóbica......................................................................................................................................................................................54
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FILOSOFIA
A Doutrina Socrática da Alma, John Burnet Tradução de conferência de John Burnet em 26 de janeiro de 1916.
M
eus senhores, senhoras e cavalheiros, quando o presidente e o Conselho me fizeram a honra de convidar-me para dar a Palestra Filosófica Anual
e quando me pediram para que Sócrates fosse o meu tema, eles estavam, é claro, cientes de que
As mais diversas filosofias buscaram ser as filhas adotivas de Sócrates.
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um tratamento de tal assunto deve ser em grande
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parte filológico e histórico. Eu certamente não me
filosofia. Somos homens, não anjos, e para muitos
julgo um filósofo, porém tenho me esforçado em
de nós a melhor chance de ter um vislumbre das
entender quem era Sócrates e o que ele realizou,
coisas em sua perspectiva eterna é abordá-las por
e concebo que essa seja uma questão de genuíno
meio do tempo. Ademais, alguns de nós possuem
interesse filosófico. Por mais que também possa
o que pode-se chamar de senso de lealdade para
ser definida de outro modo, a filosofia, em um dos
com um grande homem. De certa forma, é claro
seus aspectos, é o esforço progressivo do homem
que não importa se devemos a verdade a Pitágoras,
em encontrar seu verdadeiro lugar no mundo. Esse
ou a Sócrates ou a Platão, mas é natural que deseje-
aspecto deve ser tratado historicamente, porque
mos conhecer nossos benfeitores e guardá-los com
é parte do progresso humano, e filologicamente,
carinho na memória. Portanto, não pedirei descul-
porque envolve a interpretação dos documentos.
pas pelo caráter histórico do muito que tenho que
Então, não temo a objeção de que a maior parte
colocar diante de vocês e devo começar anunciando
do que tenho para dizer hoje seja história e não
o problema de uma forma estritamente histórica.
I
acerca de Sócrates, ou não teria escrito 600 ou mais páginas a seu respeito.
Em uma carta ao filósofo Temístio, o imperador Juliano diz: As conquistas de Alexandre o Grande são superadas, a meus olhos, por Sócrates, filho de Sofrônisco. É a ele que atribuo a sabedoria de Platão, a fortaleza de Antístenes, a estratégia de Xenofonte, as filosofias eretríaca e megárica, com Cebes, Símias, Fédon e incontáveis outros. A ele também devemos as colônias que criaram, o Liceu, a Stoa e as Academias. Quem algum dia encontrou a salvação nas vitórias de Alexandre?… Enquanto isso, é graças a Sócrates que todos que encontram a salvação na filosofia estão
Maier chega à conclusão de que Sócrates não era, um filósofo, o que torna ainda mais incrível que os filósofos da geração seguinte concordassem unanimemente em tratá-lo como seu mestre.
sendo salvos ainda agora.1
A conclusão a que ele chega é a de que Sócrates Estas palavras de Juliano ainda são verdadeiras, e
não era, propriamente falando, um filósofo, o que
isto em parte porque haja tão pouca concordância
torna ainda mais incrível que os filósofos da gera-
a respeito de Sócrates. As mais diversas filosofias
ção seguinte, por mais diferentes que fossem em
buscaram ser suas filhas adotivas, e cada nova
outros aspectos, concordassem unanimemente em
explicação a seu respeito tende a refletir os estilos
tratar Sócrates como seu mestre. Maier dá muita
e preconceitos do momento. Em uma época, ele é
importância às diferenças entre as escolas socrá-
um iluminado deísta, em outra um ateu radical.
ticas e insiste que elas não poderiam ter surgido
Ele foi louvado como o pai do ceticismo e também
se Sócrates tivesse sido um filósofo com um sis-
como o sumo sacerdote da mística; como um refor-
tema próprio. À primeira vista parece haver algo
mador social democrático e como uma vítima da
de verdadeiro aí, mas só torna mais problemático
intolerância e ignorância democráticas. Ele che-
o fato desses filósofos desejarem representar suas
gou até a ser reinvidicado – com igual razão, no
filosofias como socráticas. Em tempos modernos,
mínimo – como um quaker. Não é de admirar que
as mais inconsistentes filosofias foram chama-
o seu último biógrafo, H. Maier, exclame:
das cartesianas, ou kantianas, ou hegelianas, mas nesses casos podemos normalmente decifrar de
Diante de cada nova tentativa de trazer a personali-
que forma elas foram derivadas de Descartes, Kant
dade de Sócrates para mais perto de nós, a impressão
ou Hegel, respectivamente. Cada um desses pensa-
que sempre fica é a mesma: ‘Um homem cuja influ-
dores tinha fundado algum novo princípio que foi
ência foi tão grande e tão profunda não pode ter sido
aplicado então por seus sucessores de formas diver-
desse jeito!2
gentes e até contraditórias, e deveríamos esperar descobrir algo parecido em Sócrates. Zeller, com
Infelizmente, essa é precisamente a impressão
quem a maioria de nós aprendeu sobre o assunto,
que me deixou a própria volumosa obra de Maier,
achava que sabia do que se tratava: é que Sócrates
embora ele tenha dominado o assunto e seu tra-
descobriu o universal e fundou a Begriffsphilosophie.
tamento a respeito seja razoável na medida do
A tese de Maier não terá nada a ver com isso, e eu
possível. A menos que encontremos outra linha de
prefiro pensar que pelo menos aqui ele está sendo
abordagem, parece que Sócrates deve permanecer
sensato. A evidência não resiste ao exame, e, de
para nós o Grande Desconhecido. Essa certamente
qualquer forma, a hipótese explicaria apenas Platão
não é a visão de Maier. Ele acha que sabe muito
(se é que explicaria). Os outros socráticos seguiriam
1. 264c 2. H. Maier, Sokrates, sein Werk und seine geschichtliche Stellung (Tübingen, 1913), p. 3.
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FILOSOFIA
sem explicação. No entanto, se devemos nos pri-
aceitar sua conclusão como base para o argumento,
var dessa engenhosa construção, precisamos de
ele defende que devemos nos restringir aos primei-
algo para substitui-la, e em vão buscaremos em
ros escritos de Platão e destaca particularmente a
Maier. Ele nos diz que Sócrates não foi um filósofo
Apologia e o Crito, aos quais acrescenta o discurso
no sentido próprio do termo, mas apenas um pro-
de Alcibíades no Banquete. Nessas duas obras, e
fessor de moral com seu próprio método distinto, o
naquela porção única da terceira, ele defende que
da “protréptica dialética.” Em outras palavras, sua
Platão não tinha outra intenção senão “colocar
“filosofia” não era nada mais do que seu plano de
diante de nossos olhos a personalidade e a vida de
fazer com que as pessoas se tornassem boas ao dis-
seu mestre, sem nenhum aumento da sua parte.”3
cutir com elas de um modo peculiar. Certamente o
Isso não significa, observem, que a Apologia seja
homem cuja influência foi tão grande “não pode ter
um relato do discurso realmente proclamado por
sido desse jeito!”
Sócrates em seu julgamento, ou que a conversa com Crito na prisão tenha ocorrido. Significa simples-
II
mente que o Sócrates que aprendemos a conhecer a partir dessas fontes é o verdadeiro homem, e que
Ora, é certamente impossível discutir a ques-
o único objetivo de Platão até então era preser-
tão socrática em todos seus aspectos dentro dos
var uma memória fiel dele. Maier também utiliza
limites de uma única palestra, então o que eu
outros diálogos, mas mantém certas reservas a
proponho fazer é tomar Maier como o mais apto
seu respeito, que não pretendo discutir. Eu prefiro
e mais recente defensor da visão de que Sócrates
tomar suas suposições no sentido mais estrito e
não foi realmente um filósofo, e aplicar o método
com todas as qualificações com que ele insiste.
socrático do raciocínio a partir das admissões feitas pelo outro lado. Se tentarmos ver aonde isso irá nos levar, é possível que cheguemos a conclusões que o próprio Maier deixou de aduzir, e estas serão ainda mais cogentes se estiverem baseadas apenas na evidência que ele concede como válida. Ele é um escritor franco, e são tão poucas as suas suposições, que, se um argumento puder ser defendido com base nelas, há grande chance de que seja bastante sólido. A mim pareceu que o experimento no
Se queremos compreendê-lo historicamente, devemos primeiro devolvê-lo ao ambiente de sua própria geração.
mínimo valia a tentativa, e, de qualquer modo, o seu resultado foi inédito até para mim, logo deve
A questão, então, toma a seguinte forma: “O que
ser inédito também para outras pessoas.
nós poderíamos saber sobre Sócrates como filósofo se nenhum outro relato dele tivesse chegado
Eu decidi, então, não questionar a avaliação de
até nós além da Apologia, do Crito e do discurso de
Maier sobre o valor de nossas fontes. Ele rejeita o
Alcibíades, e com a cláusula de que mesmo estes
testemunho de Xenofonte, que não pertenceu ao
não deveriam ser tratados como relatos de dis-
círculo íntimo de Sócrates e que dificilmente tinha
cursos ou conversas reais?” Devo acrescentar
mais de vinte e cinco anos quando viu Sócrates pela
que Maier também nos permite tratar as alusões
última vez. Ele também desaprova a evidência de
na comédia contemporânea como evidência cor-
Aristóteles, que foi a Atenas como um rapaz de
roborativa, embora com precaução. Essas são as
dezoito anos, trinta depois da morte de Sócrates, e
condições do experimento que resolvi tentar.
que não possuía fontes importantes além daquelas acessíveis a nós mesmos. Isso deixa Platão como
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nossa única testemunha, mas Maier não aceita a
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totalidade de seu testemunho; longe disso. Por
Em primeiro lugar, então, sabemos, através da
razões que não preciso discutir, já que proponho
Apologia e do Crito, que Sócrates tinha recém passado
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3. p. 147
dos setenta anos quando foi condenado à morte na primavera de 399 a.C., e isto significa que ele nasceu em 470 ou 469 a.C.,sendo, portanto, um homem da era de Péricles. Ele já tinha dez anos de idade quando Ésquilo apresentou a Trilogia de Orestes, e cerca de trinta quando Sófocles e Eurípedes escreveram suas primeiras tragédias. Ele deve ter visto do início ao fim a construção do novo Partenon. Nós
Amípsias dizia que ele “nasceu para irritar os sapateiros,” mas Sócrates pode ter tido outras razões além da pobreza para andar de pés descalços.
tendemos muito a ver Sócrates destacado contra o fundo mais sóbrio daqueles últimos dias a que per-
A partir da Apologia, sabemos também que Sócrates
tenceram Platão e Xenofonte e esquecer-nos de que
concebia a si mesmo como possuidor de uma missão
ele já passava dos quarenta anos quando Platão nas-
para com seus concidadãos, e que sua devoção a ela
ceu. Se queremos compreendê-lo historicamente,
levou-o à miséria. Ele não pode ter sido realmente
devemos primeiro devolvê-lo ao ambiente de sua
pobre, para começar; pois o vemos em serviço
própria geração. Em outras palavras, devemos nos
antes de Potidéia, o que significa que ele possuia a
esforçar para compreender sua juventude e o início
qualificação de propriedades exigida à época para
da sua fase adulta.
quem servia entre os hoplitas. Nove anos depois (423 a.C.), contudo, quando Aristófanes e Amípsias
Para a maior parte das pessoas, Sócrates é mais
o representaram no palco da comédia, parece que
conhecido por seu julgamento e morte, e por
suas necessidades já começavam a ser anedóticas.
isso ele é geralmente retratado como um senhor
Ambos aludem ao que parece ter sido uma piada
idoso. Nem sempre recorda-se, por exemplo, que
corrente sobre sua carência de um manto novo e
o Sócrates caricaturizado por Aristófanes em As
os expedientes a que se sujeitava para conseguir
Nuvens é um homem de quarenta e seis anos, ou
um. Amípsias dizia que ele “nasceu para irritar
que o Sócrates que serviu em Potidéia (432 a.C.) –
os sapateiros,” mas Sócrates pode ter tido outras
de uma maneira que hoje em dia lhe garantiria a
razões além da pobreza para andar de pés descal-
Cruz Vitória – tinha cerca de trinta e sete. Nessa
ços. No mesmo fragmento, ele é tratado como um
ocasião, ele salvou a vida de Alcibíades, que devia
“camarada intrépido que, por causa de todo seu
ter no mínimo vinte anos, ou não estaria ativo
apetite, nunca deixou de ser um parasita.” Dois
em serviço. Mesmo se supormos que a Potidéia
anos depois, Eupólis usou uma linguagem mais
foi sua primeira campanha, Alcibíades era no
dura. Ele chama Sócrates de um “mendigo taga-
máximo dezoito anos mais jovem do que Sócrates,
rela, que tem idéias sobre tudo, exceto sobre onde
e o discurso no Banquete nos leva ainda mais para
conseguir comida.” É claro que não devemos levar
trás, até a época em que ele tinha cerca de quinze
essa linguagem muito a sério. Sócrates ainda estava
anos.4 Ao ler o relato que ele dá sobre o começo
servindo como hoplita em Délio, no ano anterior a
de sua convivência com Sócrates, estamos lendo
As Nuvens de Aristófanes e ao Connus de Amípsias, e
o entusiasmo de um garoto por um homem que
em Anfípolis no ano seguinte. Contudo, algo deve
recém entrou na casa dos trinta. A história deixa
ter acontecido um pouco antes para levá-lo à noto-
uma outra impressão se tivermos isso em mente.
riedade pública, ou os poetas cômicos não teriam
Contudo, o que nos importa agora é que a “sabedo-
imediatamente lhe devotado atenção, e está claro
ria” de Sócrates é tomada como questão de senso
também que ele havia sofrido algum tipo de perda.
comum nesses primeiros dias. Foi só porque ele
Muito provavelmente isso se devia em primeiro
possuía um conhecimento estranho e inédito para
lugar à guerra, mas a Apologia o mostra ainda mais
deixar como legado que Alcibíades buscou con-
pobre ao final da vida, colocando-o como atribuindo
quistar sua afeição.5 Devemos ver a conseqüência
isso à sua missão. Acho que podemos concluir que
disso mais à frente.
a missão pública de Sócrates começara no ano
4. Ao passar do relato de seu primeiro contato com Sócrates para o de Potidéia, Alcebíades diz ταῦτά τε γάρ μοι ἅπαντα προὐγεγόνει, καὶ
μετὰ ταῦτα κτλ., “Essa era uma antiga história, mas tempos depois, etc.” (Banquete, 219e, 5)
5. Ele achava que seria um golpe de sorte πάντ’ ἀκοῦσαι ὅσαπερ οὗτος ᾔδει (Banquete, 217a, 4).
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FILOSOFIA
anterior a As Nuvens, mas era então algo novo, de
Sócrates não tivesse relação alguma com a “sabe-
maneira que sua natureza ainda não era claramente
doria” pela qual ele era conhecido em sua época
compreendida. Como sabemos, no ano anterior ele
anterior. A Apologia não nos ajuda aqui. Ela nos
estava fora de Atenas e provavelmente nos anos
conta bastante acerca da missão, mas nada acerca
anteriores também, embora não cheguemos a ler
da natureza da “sabedoria” que impeliu à investi-
a respeito de nenhuma batalha real entre Potidéia
gação de Querefonte, enquanto Alcibíades não está
e Délio em que ele tenha tomado parte. Contudo,
sóbrio o bastante no Banquete para nos dar mais do
dizem que seu hábito de meditação era uma piada
que uma alusão, que dificilmente é inteligível, mas
no exército antes de Potidéia, e que foi ali que uma
à qual ainda retornaremos. Será melhor, então,
vez ele se deteve em pensamento por vinte e qua-
começar com o relato dado na Apologia sobre a
tro horas.6 Parece que o chamado lhe veio quando
missão para com seus concidadãos, à qual Sócrates dedicou os últimos anos de sua vida, e ver se pode-
Tendo descoberto o sentido do oráculo, Sócrates agora sentia ser seu dever defender a veracidade do deus dedicando o resto de sua vida à exposição da ignorância de outros homens.
mos concluir daí algo a respeito da “sabedoria” pela qual ele ficara conhecido no início da fase adulta. IV Dizem, então, que, a princípio, Sócrates recusou-se a aceitar a declaração da pítia de que ele era o mais sábio dos homens e por isso dedicou-se a refutá-la apresentando alguém que certamente era mais sábio. Contudo, o resultado dos seus esforços foi apenas mostrar que todas as pessoas sábias aos seus próprios olhos e aos dos outros eram na verdade ignorantes, e concluiu que o sentido do
ele estava em campanha; e, em caso afirmativo, a
oráculo não era literal. O deus devia querer dizer
missão não pode ter se tornado a única ocupação de
na verdade que todos os homens são ignorantes,
sua vida até depois de Délio, quando Sócrates tinha
mas que Sócrates era mais sábio nesse sentido,
quarenta e cinco anos. Ora, nós vimos que ele era
de que ele sabia que era ignorante, enquanto os
conhecido por sua “sabedoria” bem antes disso,
outros homens achavam que eram sábios. Tendo
e que a Apologia confirma o discurso de Alcibíades
descoberto o sentido do oráculo, ele agora sentia
a esse respeito. Foi antes de Sócrates aceitar sua
ser seu dever defender a veracidade do deus dedi-
missão que Querefonte foi a Delfos e perguntou ao
cando o resto de sua vida à exposição da ignorância
oráculo se havia alguém mais sábio do que Sócrates,
de outros homens.
de onde se conclui que essa “sabedoria”, qualquer que fosse, era algo anterior e bastante indepen-
Pode-se pensar que essa obviamente seria uma
dente da missão pública descrita na Apologia. Para
forma chistosa de contar a história. Por razões muito
resumir, a evidência que Maier admite é suficiente
suficientes, o oráculo de Delfos era um objeto de sus-
para provar que Sócrates era conhecido como um
peita em Atenas, e, quando Eurípides o pinta com
“sábio” antes dos quarenta anos e antes de sair
tintas desfavoráveis, apenas reflete os sentimentos
questionando seus concidadãos. O que quer que
da sua platéia. É incrível que qualquer ateniense pen-
pensemos dos detalhes, tanto a Apologia quanto
sasse valer a pena fazer o mais mínimo sacrifício em
o discurso de Alcibíades assumem tal como fato,
defesa de uma instituição que havia se destacado por
sendo ainda mais convincente do que se tivesse
suas tendências pró-persas e pró-espartanas, ou que
sido enunciado em muitas palavras.
Sócrates tivesse esperado aplacar seus juízes afir-
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mando ter se desgraçado por tal causa. Poderíamos
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Por outro lado, não parece provável que a missão de
da mesma forma esperar um júri de dissidentes
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6. Banquete 220c, 3 sqq. Maier diz (p. 301 n.) que isso obviamente depende de uma tradição confiável.
ingleses impressionar-se positivamente com o apelo
é exatamente o que eles queriam que ele fizesse.
de que um réu tivesse sido reduzido à pobreza por sua
Não. Cada parte deve se ater à sentença pronun-
defesa da infalibilidade papal.
ciada; Sócrates deve morrer, e seus acusadores
Ele não temia o Estado, como os professores alemães ocasionalmente temem.
devem ficar com a condenação por perversidade e desonestidade. É isso o que ele diz na Apologia8 e acrescenta que assim é que devia ser. Mesmo Xenofonte, que apresenta o apelo de conformidade religiosa da parte de Sócrates, mostra uma percepção muito maior do que os alemães. Em sua própria Apologia ele admite que outros
A esse respeito, os recentes críticos alemães
relatos do discurso – certamente o de Platão em
chegam a ter um vislumbre da verdade, embora
particular – tinham conseguido reproduzir o tom
incorram em conclusões muito equivocadas. Vários deles fizeram a profunda descoberta de que o dis-
elevado (μεγαληγορία) de Sócrates. Sócrates real-
mente falou daquele jeito, diz ele,9 e estava bem
curso que Platão coloca na boca de Sócrates não
indiferente quanto ao resultado do julgamento.
é de forma alguma uma defesa e que provavel-
Infelizmente, isso imediatamente é colocado a per-
mente não cativaria o tribunal. Eles vão deduzir
der por sua reclamação de que ninguém explicara
que Sócrates não pode ter falado daquela forma,
tal indiferença, de forma que isso soava “muito
e alguns chegam a concluir que toda a história
imprudente”, como soa para os alemães. A própria
do oráculo é uma invenção de Platão. Isto porque
visão de Xenofonte, que ele modestamente atribui
eles partem da convicção de que Sócrates deve ter
a Hermógenes, é a de que Sócrates queria, por uma
tentado defender-se o melho que podia. “Ele pre-
morte oportuna, escapar aos males da velhice. Ele
cisava apenas,” diz Maier, “apelar à retidão com
não queria ficar cego e surdo. Não puderam nem
a qual sempre cumprira os deveres da religião de
Xenofonte nem os alemães ver que a única coisa a
um cidadão ateniense. A Apologia de Xenofonte o
ser esperada de um bravo homem denunciado por
coloca falando nesses termos. E ele certamente
uma acusação barata é exatamente aquele tom de
falou nesses termos.” A conclusão é caracteris-
chistosa condescendência e persiflage que Platão
ticamente alemã, mas o Sócrates que pensamos
reproduziu. Como veremos, também há momentos
conhecer a partir da Apologia, do Crito e do discurso
sérios na Apologia, mas a verdadeira defesa é antes
de Alcibíades jamais teria se sujeitado a fazer algo
uma provocação do que um pedido de absolvição. É
do tipo. Ele não temia o Estado, como os profes-
exatamente por isso que nos sentimos tão seguros
sores alemães ocasionalmente temem. Sócrates
de que o discurso é fiel à vida real.
7
certamente admitia o direito do Estado de tratar seus cidadãos como considerasse adequado,
Então, não precisamos duvidar de que Sócrates
mas isso é algo bem diferente de reconhecer seu
realmente tenha dado uma explicação de sua
direito de controlar a liberdade de pensamento e de
missão como a que lemos na Apologia, embora
expressão. De fato, o Sócrates do Crito insiste que
devamos ter em mente o caráter “irônico” dessa
uma sentença legalmente pronunciada deve ser
parte do discurso. A maioria dos críticos ingleses
executada, e que, portanto, ele deve se submeter
lê essa parte de forma séria demais. Eles pare-
à morte pelas mãos do Estado; mas nós o enten-
cem pensar que a mensagem de Sócrates aos seus
deremos muito mal se não virmos que ele afirma
concidadãos não pode ter sido nada além do que é
com ainda mais convicção seu direito de não se
revelado ali, e que seu único propósito na vida era
rebaixar a uma defesa humilhante, ou de tornar
expor a ignorância dos outros. Se isso fosse real-
tudo mais fácil para seus acusadores ao fugir, que
mente tudo, seria certamente difícil acreditar que
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8. 39b, 4 sqq.
9. Apol. de Xen. 1 ᾧ καὶ δῆλον ὅτι τῷ ὄντι οὕτως ἐρρήθη ὑπὸ Σωκράτους. Platão estava presente no julgamento, mas Xenofonte estava “em algum lugar na Ásia.”
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7. p. 105
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FILOSOFIA
ele estaria pronto para encarar a morte ao invés
do contexto e o artifício retórico de repetição. O que
de simplesmente abandonar a tarefa. Sem dúvida
Sócrates diz é o seguinte:
Sócrates defendia que a convicção da própria ignorância era o primeiro passo no caminho da
[...] não deixarei de filosofar e de vos exortar ou de
salvação, e que era inútil falar sobre qualquer coisa
instruir cada um, quem quer que seja que vier à
além disso com as pessoas que ainda tinham esse
minha presença, dizendo-lhe, como é meu costume:
passo para dar, mas até Xenofonte, que os mesmos
‘Ótimo homem,… não te envergonhas de fazer caso
críticos geralmente tratam como uma autoridade
das riquezas, para guardares quanto mais puderes e
sobre “o Sócrates histórico,” representam-no
da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso
como um professor de doutrina positiva. Mesmo a
e nada te importares de sabedoria, da verdade e da
partir da própria Apologia deve ser possível desco-
alma, para tê-la cada vez melhor?
brir qual era essa doutrina.
“Preocupar-se com a alma” era ao que Sócrates incitava seus concidadãos.
E também: Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e com as riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela seja quanto possível melhor.10
V “Preocupar-se com a alma,” então, era ao que De fato, não devemos assumir que Sócrates pen-
Sócrates incitava seus concidadãos, e teremos de ver
sasse valer a pena dizer no julgamento muita coisa
o que isso implica. Porém, em primeiro lugar, deve-
a respeito do seu verdadeiro ensinamento, embora
-se notar que há muitos ecos dessa frase em toda
seja provável que ele realmente tenha dado um
a literatura socrática. Xenofonte utiliza-a em con-
indício do que a constituía. Certamente havia
textos que não parecem ser derivados dos diálogos
alguns entre seus quinhentos juízes que mereciam
de Platão. Parece que Antístenes também a empre-
ser levados a sério. Porém, mesmo que ele não
gava, e ele dificilmente a teria tomado emprestado
tenha feito isso, Platão era obrigado a fazê-lo por
de Platão. Isócrates se refere a ela como algo fami-
ele se quisesse produzir o efeito que obviamente
liar.11 A Academia ateniense possuía um diálogo que
pretendia produzir. Na verdade, é bastante inequí-
fora evidentemente criado como um tipo de intro-
voco que ele tenha feito isso, e a única razão por
dução à filosofia socrática para iniciantes, colocado
que geralmente se negligencia esse ponto é a de
apropriadamente na forma de uma conversa entre
que achamos difícil nos colocar no lugar daqueles
Sócrates e o jovem Alcibíades. Eu acho que ele não
para quem tal doutrina era inédita e estranha.
é da autoria de Platão, mas vem de um período
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antigo. Nele, Sócrates mostra que, se alguém deve
12
A passagem que nos faz penetrar no segredo é
se preocupar consigo mesmo, deve antes de tudo
aquela em que Sócrates diz aos seus juízes que não
saber o que é isso que ele é; prova-se, então, que
desistirá daquilo que chama de “filosofia” e que
cada um de nós é uma alma, e que, portanto, cui-
mesmo assim eles deveriam absolvê-lo. É aqui que
dar de nós mesmos é cuidar de nossas almas. Tudo
buscamos, mais do que em qualquer outro lugar,
isso é posto da forma mais provocantemente sim-
uma exposição da verdade pela qual ele estava
ples, empregando as costumeiras analogias com a
pronto para morrer, e Platão com razão o faz forne-
arte do sapateiro, etc., e incrivelmente confirma o
cer a totalidade e substância de sua “filosofia” em
que é dito na Apologia.12 Porém, não explorarei esse
palavras obviamente escolhidas com o maior cui-
ponto, pois Maier admite, e na verdade insiste, que
dado e com toda ênfase possível para a solenidade
essa é uma fórmula caracteristicamente socrática.
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10. 29d, 4 sqq., e 30a, 7 sqq. 11. Como referência, cf. Maier, p. 333, n. 3. A alusão em Isócrates (Antid. § 309) foi observada por Grote (Plato, vol. I, p. 341). 12. [Platão] Alc. I. 127e, 9 sqq.
Vejamos, então, até onde essa suposição nos levará.
Sócrates, mas não há saída se realmente queremos
No começo, receio que ela parecerá não levar a
medir a importância do avanço que ele realizou.
lugar algum em particular. Através da repetição,
Ficará óbvio, no que se segue, que eu tive ajuda da
essa linguagem tornou-se insípida e nos exige
Psyche de Rohde, mas esta obra realmente grande a
algum esforço para ser avaliada. Quanto às pala-
meu ver parece não chegar à conclusão a que devia
vras, Sócrates fez muito bem seu trabalho. Trata-se
ter chegado. Não há nela absolutamente nenhum
de uma opinião ortodoxa e respeitável hoje em dia
capítulo sobre Sócrates.
a de que cada um de nós possui uma alma e de que a saúde dela é do nosso mais alto interesse, e de que já era assim no século IV a.C., como podemos ver com Isócrates. Supomos, sem questionamento, que também existia uma vaga ortodoxia semelhante sobre o assunto nos tempos de Sócrates, e que não havia nada de notável no fato de ele a ficar repetindo. É por isso que Maier, tendo chegado com segurança até esse ponto, contenta-se em não
A palavra ψυχή era usada, exatamente como o spiritus latino, para o que nós ainda chamamos de “destemor.”
avançar na investigação, declarando que Sócrates não foi um filósofo no sentido estrito, mas apenas
VI
um professor de moral com um método próprio.
Originalmente, a palavra ψυχή significava “respi-
Eu espero poder mostrar que ele parou exatamente onde deveria ter começado.
ração”, mas, em tempos históricos, ela já havia se
especializado em duas formas distintas, vindo a sigPois é aqui que se torna importante lembrar que
nificar, em primeiro lugar, coragem, e, em segundo,
Sócrates pertenceu à era de Péricles. Não podemos
sopro de vida. É claro que o primeiro sentido não
supor que suas palavras significassem tanto ou tão
tem nenhuma relação com nossa presente investi-
pouco quanto elas poderiam significar em Isócrates
gação, mas surgiu tanta confusão a partir da falha
ou em um sermão moderno. O que devemos per-
em distingui-lo do segundo sentido, que será bom
guntar é o que elas significariam na eclosão da
limpar o terreno definindo seu verdadeiro alcance.
Guerra do Peloponeso; e eu creio que, se fizermos
Há abundante evidência, em muitas línguas, de uma
essa pergunta, descobriremos que, longe de parecer
idéia primitiva de que o orgulho e a coragem natu-
um lugar comum, a exortação para “preocupar-se
ralmente se expressavam pela respiração difícil,
com a alma” deve ter sido um choque para o ate-
ou – sem querer exagerar aqui em detalhes – pelo
niense daqueles dias, e pode até ter soado um tanto
bufar. Talvez isso fosse observado nos cavalos. De
ridícula. Está implícito, cabe-nos observar, que há
qualque forma, a frase “respirar com dificuldade”
algo em nós capaz de atingir a sabedoria, e que esta esta coisa Sócrates chamava de “alma” (ψυχή). Ora, mesma coisa é capaz de chegar ao bem e à justiça. A
em que Sócrates dava. Não só a palavra ψυχή nunca
ninguém jamais havia dito isso antes no sentido
(πνεῖν μέγα) sobreviveu no sentido de “orgulharira” e “sopravam Ares.” Então a palavra ψυχή era
-se”, e se dizia que os guerreiros “sopravam de usada – exatamente como o spiritus latino – para o
que nós ainda chamamos de “destemor.”[high spirit]
havia sido usada dessa forma, como a existência do
Heródoto e os trágicos frequentemente a tomavam
que Sócrates chamava por esse nome jamais havia
nesse sentido, e Tucídides faz isso uma vez.13 A
sido percebida. Se puder se provar isso, será mais fácil compreender como Sócrates veio a ser tratado como o verdadeiro fundador da filosofia, e nosso uma investigação sobre a história da palavra ψυχή, problema estará resolvido. Isto envolve, é claro,
o que pode parecer nos levar para muito longe de
partir daí se deriva o adjetivo εὔψυχος, “animado”
μεγαλόψυχος, é propriamente o “homem de espí-
[spirited], “corajoso”, e o homem “magnânimo”, o Sócrates realmente queria dizer com ψυχή quando rito.” Está claro que, se quisermos descobrir o que
ele chamava a sede da sabedoria e do bem por esse
13. Tuc. II, 40, 3. Em Herod. v. 124 diz-se que Aristágoras era ψυχὴν οὐκ ἄκρος. Partindo do contexto, vemos claramente que isso significa que ele era acanhado. Menciono isso porque Lidell e Scott estão errados nesse ponto.
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___________________________________________________
13
FILOSOFIA
nome, devemos eliminar todos os casos da palavra
espelho.14 As almas que partiram são coisas tolas
que se enquadram aqui.
e fracas. Tirésias é a exceção que prova a regra, e na Nekya é só quando as sombras podem beber
Homero jamais atribui qualquer sentimento à ψυχή. O θυμός e o νοός, que sentem e percebem, tem sua sede no diafragma ou no coração.
O segundo significado de ψυχή é o “sopro de vida,” a presença ou ausência do que é a distinção mais óbvia entre o animado e o inanimado. É, em primeiro lugar, o “fantasma” que um homem “abandona” na morte, mas ele pode também deixar o corpo temporariamente, o que explica o fenômeno do desmaio (λιποψυχία). Sendo assim, parecia natural supor que era também a coisa que pode vaguear livremente quando o corpo está adormecido e mesmo aparecer no sonho de outra pessoa. Ademais, visto que podemos sonhar com os mortos, então o que aparece para nós deve ser justamente o que deixa o corpo no momento da morte. Essas considerações explicam a crença universal na “alma” como um tipo de “duplo” do homem corpóreo real, o ka egípcio, o genius italiano, e a ψυχή grega.
Ora, esse “duplo” não se identifica com aquilo que em nós, durante nossa vigília, sente e deseja. Geralmente se supõe que esse seja o sangue, e não
relação com a vida consciente quando ela estava no corpo, e portanto não pode ter consciência alguma quando separada dele. Alguns favoritos dos céus escapam desse destino sombrio ao serem enviados para as Ilhas dos Bem-Aventurados – mas esses não morrem mesmo. São levados ainda vivos e mantêm seus corpos, sem os quais seriam incapazes da bem-aventurança. Esse ponto também é bem percebido por Apolodoro.15 VII Há uma concordância geral de que essas visões vâncias do culto mortuário ( τά νομιζόμενα ), as dificilmente podem ser primitivas, e que as obser-
quais encontramos sendo praticadas em Atenas e outros lugares, realmente dão testemunho de um que em certa época a ψυχή tinha de habitar com estrato de crença muito anterior. Eles mostram o corpo no túmulo, onde ela tinha de ser mantida
mente por libações (χοαί) vertidas sobre o túmulo. através das oferendas dos sobreviventes, especialConcluiu-se razoavelmente que a imunidade do
mundo homérico com relação aos fantasmas tinha cremação. Quando o corpo é queimado, a ψυχή muito a ver com a substituição do enterro pela não tem mais um ponto de apoio nesta vida. Seja
como for, o antigo fantasma ateniense não era
sentimento à ψυχή. O θυμός e o νοός, que sentem e
de forma alguma tão fraco e desamparado como
percebem, tem sua sede no diafragma ou no cora-
manecesse sem vingança, ou se as oferendas em
Em um certo sentido, a ψυχή certamente continua
seu túmulo fossem negligenciadas, seu fantasma
a existir depois da morte, pois ela aparece para os
preservava a memória de uma época em que se
sobreviventes, mas em Homero ela dificilmente é
acreditava que as almas partidas revisitassem
sequer um fantasma, visto que não pode lhes apa-
recer senão em sonho. Ela é uma sombra (σκία) ou
seus antigos lares uma vez por ano. Não há aqui
imagem (εἴδωλον ), com tanta substância, como
nenhum traço do que possa ser chamado de louvor
Apolodoro coloca, quanto o reflexo do corpo em um
que isso. Embora menos desamparado e, portanto,
ção; eles pertencem ao corpo e perecem com ele.
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ψυχή algo que ela um dia teve; não tem nenhuma taneamente. Isso não é porque a morte roubou da
a respiração. Homero tinha muito a dizer a respeito dos sentimentos, mas ele jamais atribui qualquer
14
sangue que a consciência retorna a elas momen-
o homérico. Se o assassinato de um homem per-
poderia “perambular,” e o festival da Anthesteria
aos antepassados. É algo muito mais primitivo do
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14. Apolodoro περί θεῶν (Estob. Ecl. I, p. 420, Wachsm.) ὑποτίθεται τάς ψυχάς τοῖς εἰδώλοις τοῖς εν τοῖς κατόπτροις φαινομένοις ὁμοίας
καἰ τοῖς διά τῶν ὑδάτων συνισταμένοις, ἃ καθάπαξ ἡμῖν ἐξείκασται καἰ τάς κινήσεις μιμεῖται, στερεμνωδη δὲ ὑπόστασιν οὐδεμίαν ἔχει εις ἀντίληψιν καἰ ἁφήν. 15. Apolodoro, ib. (Estob. Ecl. I, p. 422) τούτοις μέν οὗν καἰ τά σώματα παρεῖναι.
mais formidável do que a “sombra” homérica, o
de sigilo se referia apenas ao ritual, e teríamos de
fantasma ateniense primitivo dependia das ofe-
saber algo mais definido quanto à vida futura se os
rendas dos sobreviventes, que sem dúvida faziam
Mistérios tivessem sido explícitos a esse respeito.
essas oferendas em parte por sentimentos de pie-
O coro em As Rãs de Aristófanes provavelmente
dade natural, mas principalmente para manter o
nos conta tudo o que há para contar, e isto se
fantasma quieto. Isso dificilmente pode ser cha-
resume apenas a uma visão de prados e banquetes
mado de culto.
– um tipo de piquenique glorificado. De uma coisa
Está claro, por outro lado, que essas crenças eram meras relíquias na Atenas do século V a.C. Não saberíamos quase nada acerca delas não fosse pelas observâncias mortuárias terem adquirido importância legal em casos de homicídio e herança, de
A justiça deve ser feita na terra, ou em nenhum outro lugar.
maneira que os oradores tinham de tratá-los com seriedade; além disso, elas prosseguiram muito confortáveis lado a lado com a crença totalmente inconsistente de que todas as almas partidas iam para o seu lugar próprio. Sabemos hoje que a representação que Luciano faz de Caronte em seu barco reproduz fielmente o imaginário do século VI a.C.; porque está em pleno acordo com a representação em uma peça de cerâmica de figura negra recém-descoberta.16 Ali não vemos as almas – criaturinhas miseráveis com asas – chorando sobre a praia e rezando para embarcarem, enquanto Caronte senta na popa e abre caminho remando. As pessoas que decoravam uma obra de cerâmica, de
podemos estar certos: de que nenhuma nova visão sobre a alma foi revelada nos Mistérios ; pois, do contrário, certamente encontraríamos algum traço disso em Ésquilo. Para falar a verdade, ele não nos diz nada sobre a alma, e sequer mal a menciona. Para ele, como para a maioria dos seus contemporâneos, o pensamento não pertence ao corpo; mas ao sangue ao redor do coração, que, com a morte, pára de pensar. Em seu esquema das coisas não há lugar para a vida futura, e é justamente por isso que ele se preocupa tanto com o problema dos pecados dos pais castigando os filhos. A justiça deve ser feita na terra, ou em nenhum outro lugar.
uso obviamente pretendido para o culto mortuá-
De qualquer modo, as promessas oferecidas nos
rio, evidentemente com tal cena não tinham crença
Mistérios são tão inconsistentes com as crenças
viva alguma na existência contínua da alma dentro
implícitas no culto mortuário quanto com Caronte
do túmulo. Encontramos a mesma contradição no
e seu barco, e o fato de que a Eleusínia tivesse sido
Egito, mas lá ambas as crenças eram levadas à sério.
apropriada pelo Estado como parte da religião
Os egípcios eram um povo comercial e saíram dessa
pública mostra mais uma vez quão pouca influên-
dificuldade ao assumir duas almas, uma das quais
cia tinham tais crenças sobre o ateniense comum.
(o ka) permanece no túmulo, enquanto a outra (o
Não quero dizer que ele ativamente duvidasse
ba) parte para o lugar dos mortos. Artifícios seme-
delas, mas eu suporia que ele pensava muito pouco
lhantes foram adotados em outros lugares, mas
a seu respeito. Afinal de contas, os atenienses
os gregos não sentiam necessidade de nada desse
eram criados com Homero, e suas crenças cotidia-
tipo. Podemos com segurança concluir que a antiga
nas derivavam dessa fonte. Além disso, Homero
crença havia perdido sua força entre eles.
já estava começando a ser interpretado alegoricamente, e no tempo de Sócrates a noção dominante era sem dúvida a de que as almas dos mortos aca-
nienses sobre a alma eram sombrias o bastante,
bavam absorvidas pelo ar superior, assim como
e não podemos nos surpreender com a popula-
os corpos o eram pela terra. Em As Suplicantes,
ridade dos Mistérios de Elêusis, que prometiam
Eurípedes nos fornece a fórmula “terra a terra, e
algum tipo de destino melhor aos iniciados depois
ar a ar”, e esta não é uma heresia sua.17 Era algo
da morte. No entanto, não parece de modo algum
tão natural que havia se incorporado ao epitáfio
que isso fosse claramente concebido. A obrigação
oficial daqueles que caíram em Potidéia alguns
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16. Furtwängler, Charon, eine altattische Malerei (Archiv für Religionswissenschaft, VIII (1905), pp. 191 sqq.)
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Seja de que modo for, as tradicionais crenças ate-
15
FILOSOFIA
anos antes (432 a.C.).18 Não há nada de anormal nisso. Não havia espaço na religião pública para nenhuma doutrina de imortalidade. Só os deuses são imortais, e seria escandaloso sugerir que os seres humanos também pudessem sê-lo. Os mor-
sua religião era assegurar a libertação (λύσις) da alma de sua escravidão, por meio de certas obser-
pecado original (καθαρμοί). As almas que fossem vâncias dirigidas à sua limpeza e à purificação do suficientemente purificadas retornariam mais uma
tos são apenas os mortos; como os mortos podem
vez aos deuses e recuperariam seus antigos postos
ser imortais? De fato, na era heróica, alguns seres
entre eles.
humanos haviam atingido a imortalidade ao se transformarem em deuses e heróis, mas ninguém esperava que essas coisas acontecessem agora. As honras heróicas prestadas a Brásidas em Anfípolis tinham uma motivação política e dificilmente foram levadas a sério. VIII Até aqui tratei das crenças do cidadão comum e com a religião oficial de Atenas, mas seria fácil
Não está tão claro que os órficos tenham ido muito além do espiritismo primitivo na explicação que davam acerca de natureza da alma.
encontrar pessoas que defendiam visões bem dife-
Essa certamente não é uma crença primitiva,
rentes sobre a alma. Em primeiro lugar, havia os
mas uma especulação teológica, como encontra-
membros das sociedades órficas, e havia também
mos entre os hindus e, de uma forma mais crua,
os partidários da ciência jônica, que tinham se tor-
entre os egípcios. O problema era ainda até recen-
nado bastante numerosos desde que Anaxágoras
temente o de que não havia espaço para uma era
introduzira-os aos atenienses. Em geral, os órfi-
de tal especulação dentro dos limites da história
cos seriam encontrados principalmente entre as
grega como a conhecemos, e muitos estudiosos
classes mais humildes, e os seguidores da ciência
modernos seguiram o exemplo de Heródoto de
jônica principalmente entre a aristocracia ilumi-
defender que ela vinha dos “bárbaros,” do Egito
nada. Mesmo na ausência de testemunho direito,
em particular. Por outro lado, o orfismo estava
devemos assumir que Sócrates, ao qual tudo
estreitamente ligado à veneração de Dionísio, que
interessava e o qual tudo colocava à prova, não
parece ter vindo da Trácia, e dificilmente podemos
ignorou os dois mais notáveis movimentos que
creditar os trácios com um dom para a teologia
aconteceram em Atenas em sua própria geração, e,
mística. Se, porém, tomarmos uma visão mais
se quisermos restitui-lo ao ambiente de sua pró-
ampla, descobriremos que doutrinas parecidas
pria época, certamente deveremos levá-los em
são encontradas em muitos lugares que nada tem
conta. O movimento religioso foi o primeiro no
a ver com a Trácia. Zielinski mostrou fundamen-
tempo e é o primeiro a exigir nossa atenção.
tos sólidos para se crer que a teologia hermética,
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importante em épocas posteriores, originou-se
16
O traço mais marcante da crença órfica é que ela
na Arcádia e especialmente na Mantinéia, o lar
se baseia na negação do que acabamos de ver ser
da profetisa Diótima, que certamente não deve
a doutrina cardinal da religião grega, isto é, de que
ser tomada como um personagem fictício.19 Havia
há um abismo intransponível, ou quase intrans-
muitos elementos místicos na veneração do Zeus
ponível entre deuses e homens. Ao contrário, os
cretense, e em épocas posteriores sobreviveu um
órficos defendiam que toda alma é um deus caído,
livro de profecias composto no dialeto do Chipre,
trancafiado na prisão do corpo como penalidade
que é praticamente idêntico ao árcade.20 A distri-
por um pecado pré-natal. O objetivo da prática de
buição geográfica da doutrina sugere fortemente
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17. Eur., As Suplicantes, 533 – πνεῦμα μὲν πρὸς αἰθέρα,τὸ σῶμα δ‘ ἐς γῆν. 18. C. I. A. i. 442 – Αἰθὴρ μὲν ψυχὰς ὑπεδέξατο, σώματα δὲ χθών. 19. Archiv für Religionswissenschaft, IX (1906), p. 43.
que estamos de fato diante de uma relíquia da era egéia, e que o período de especulação teológica que provavelmente devemos assumir foi justamente a época do poder de Cnosso. Se for assim, os sacerdotes de Heliópolis no delta podem muito bem ter emprestado isso de Creta, e vice-versa, se é que houve qualquer empréstimo. É desnecessário bus-
Não havia uma doutrina da alma na religião recebida, ou ninguém achava que valia a pena falar dela
car origens remotas. IX Como seja, é certo que essas doutrinas floresceram enormemente no século VI a.C., e que sua influência sobre o pensamento mais elevado da
A palavra ψυχή também havia sido usada nas
escolas científicas da Jônia em um sentido bem
Grécia não foi de forma alguma insignificante.
diferente do popular e tradicional. Ele parece ter
Contudo, devemos cuidar para evitar o exagero
se originado na doutrina de Anaxímenes de que
aqui; pois, enquanto é certo que os órficos deram uma importância à “alma” que ia muito além de
o “ar” (ἀήρ), a substância primária, era a vida do
mundo, assim como a respiração era a vida do
qualquer coisa reconhecida na religião pública ou
corpo. Essa doutrina estava sendo ensinada em
privada dos estados gregos, de forma alguma está
Atenas por Diógenes de Apolônia no início da fase
tão claro que eles tenham ido muito além do espi-
adulta de Sócrates, que é representado como seu
ritismo primitivo na explicação que davam acerca
seguidor em As Nuvens de Aristófanes. Contudo,
de sua natureza. Na medida em que se imaginava
toda a ênfase recai sobre o lado cósmico. Não há
que a alma revelaria sua verdadeira natureza no
um interesse especial na alma humana individual,
“êxtase”, que podia ser produzido artificialmente
que é exatamente aquela porção do ar ilimitado que
por drogas ou pela dança, isso é óbvio; mas, mesmo
vem a ser momentaneamente encerrada em nosso
em suas manifestações mais elevadas, a doutrina
corpo, e que explica nossa vida e consciência. Há
ainda tem traços que remetem à sua origem primi-
aqui um grande avanço sobre as visões primiti-
tiva. A mais antiga afirmação na literatura acerca da origem divina única da alma encontra-se em um
vas, na medida em que a ψυχή é identificada pela
primeira vez com a consciência normal em vigília,
fragmento de uma das lamentações de Píndaro,21
e não com a consciência em sonho. Esse ponto é
da vida” (αἰῶνος εἴδωλον) que sobrevive à morte,
especialmente enfatizado no sistema de Heráclito,
muito ao modo homérico, e nos é dito expressa-
vigília e sonho, vida e morte.23 A alma em vigília é
ativos” (εὕδει δὲ πρασσόντων μελέων) e exibe sua
aquela em que o fogo elemental queima brilhante
natureza profética apenas nos sonhos. Na verdade,
parcial ou total. Por outro lado, a alma se encontra
como disse Adam, ela é mais como o que tem se
em um estado de fluxo, assim como o corpo. Ela
chamado d’ “o eu subliminal” em tempos moder-
também é um rio no qual você não pode banhar-
nos, e está bastante dissociada da consciência
-se duas vezes; não há nada sobre o qual você
normal em vigília.22 Ela pode ser divina e imor-
possa falar como um “eu” ou mesmo um “isto.”
tal, mas realmente não nos diz respeito, exceto
ψυχή a origem do movimento que ele se obrigava
mas mesmo aí ela é chamada de uma “imagem
mente que ela “dorme quando os membros estão
durante o sonho e no momento da morte. Não está identificada com o que chamamos de “eu.”
que se baseava precisamente na oposição entre
e seco; o sono e a morte devem-se à sua extinção
Anaxágoras preferia chamar de νοῦς ao invés de a postular, mas, para nossos atuais propósitos, ele queria dizer praticamente a mesma coisa. O traço
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20. Sobre Euclos, o cipriano, ver M. Schmidt in Kuhns Zeitschrift, IX (1908), pp. 361 sqq. A identidade dos dialétos arcáde e cipriota é o fato mais certo e fundamental com respeito à era egéia.
22. Adam, The Doctrine of the Celestial Origins of the Soul (Cambridge Praelections, 1906). Adam destacou (p. 32) que Myers escolhera o fragmento pindárico como cabeçalho do seu capítulo sobre o Sono (Human Personalitiy, vol. I, p. 121). 23. Cf. meu Greek Philosophy, Part I, Thales to Plato, § 41.
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21. Píndaro, fr. 131 Bergk.
17
FILOSOFIA
comum em todas essas teorias é que nossa vida
consciente vem até nós “pela porta” (θύραθεν),
X
como Aristóteles coloca, empregando um termo
Na literatura ateniense do século V, a idéia de alma
que em outros lugares é usado para descrever a
é ainda mais desconhecida. Podíamos esperar que
respiração. Sua existência é de um tipo temporá-
ao menos a teoria órfica, se não a científica, dei-
rio e acidental, dependendo unicamente do fato de
xaria algum rastro, mas nem isso aconteceu. Em
que momentaneamente uma porção da substância
um assunto como esse, as impressões vagas e
primária está encerrada em um corpo em parti-
gerais são inúteis, e as observações que vou fazer
cular. Vê-se que isso encaixa-se bem o bastante
se baseiam no que eu creio ser uma enumeração
na visão geralmente aceita em Atenas e expressa na fórmula “terra a terra, ar a ar.” É por isso que
completa de todos os exemplos da palavra ψυχή
na literatura ateniense do século V que chegou até
ninguém se escandalizou com a visão científica. Os
nós, incluindo Heródoto, que escreveu especial-
“sofistas” eram acusados de quase tudo, mas não
mente para atenienses. Eu fiquei muito surpreso
me recordo de lugar algum onde eles fossem acu-
com o resultado dessa investigação, que mostrou
sados de falhar em “pensar com nobreza sobre a
que, até o final do século, não há praticamente
alma.” Não havia uma doutrina da alma na religião
nenhum exemplo da palavra em algum outro sen-
recebida, ou ninguém achava que valia a pena falar
tido distinto do puramente tradicional.
dela, e portanto não podia haver impiedade no que os sofistas ensinavam. Era muito mais provável que
Em primeiro lugar, como disse antes, ela geral-
a doutrina órfica ofendesse os preconceitos de então.
mente significa “destemor” ou coragem, mas isso não nos importa no momento. Em certo número
Na literatura ateniense do século V, a idéia de alma é ainda mais desconhecida.
de passagens, ela significa “fantasma,” mas os fantasmas não são muito mencionados. Em mais lugares, pode ser traduzida como “vida,” e aí notou que, na literatura desse período, ψυχή jamais
começam os possíveis enganos. Na verdade, não se significa a vida de um homem, exceto quando ele
Talvez os pitagóricos pudessem ter desenvol-
está morrendo ou em perigo de morte, ou, em
vido uma doutrina mais adequada da alma, pois
outras palavras, que até aqui o uso ático é igual ao
eles partilhavam ao mestmo tempo do interesse
homérico. Você pode perder ou “abandonar” sua
religioso dos órficos e dos interesses científicos dos jônicos. Contudo, o que aconteceu é que seus dela como uma “mistura” (κρᾶσις) ou “harmonia”
como Alcestis, ou prender-se a ela ignobilmente,
(ἁρμονία) dos elementos que compõem o corpo, do qual, portanto, ela é meramente uma função.
24
e φιλοψυχία é um termo comum para covardia. No
mesmo sentido, você pode dizer que uma coisa é
Demócrito chegou de fato a distinguir os prazeres
tão estimada quanto uma “vida estimada.” Quanto
náculo” (σκῆνος) ou corpo; mas, como ele defendia
-las ou vingá-las, e ψυχή neste caso claramente
como Admeto. “Amar a sua ψυχή” é temer a morte,
da alma como mais “divinos” do que os do “taber-
às ψυχαί das outras pessoas, você pode lamentá-
que a alma é corpórea, essa era apenas uma dife-
significa a vida perdida, podendo muito bem ser
que nem a religião nem a filosofia no século V a.C. sabiam qualquer coisa a respeito da alma. O que
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lutar ou falar em sua defesa; você pode sacrificá-la,
estudos musicais e médicos os levaram a tratar
rença de grau.25 Devemos concluir, como um todo,
18
ψυχή ou pode salvá-la; você pode arriscá-la, ou
“vida.” O que você não pode fazer com uma ψυχή é
traduzida tanto como “morte” quanto como viver por ela. Quando Teseu em Eurípides26 ordena
eles chamavam por esse nome era algo extrínseco e
a Anfítrion “fazer violência à sua alma,” ele quer
dissociado da personalidade normal, que era total-
dizer “force-se a viver,” e o sentido literal de suas
mente dependente do corpo.
palavras é “Mantenha à força o sopro da vida” e
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24. Cf. ib. § 75. 25. Cf. ib. § 155.
26. Eur., Herc. 1366 ψυχήν βιάζου. A interpretação que faz Wilamowitz disso é peculiarmente ruim.
não o deixe escapar. “Recuse-se a abandonar o a expressão “Mantenha sua ψυχή”27 propriamente fantasma” chega próximo disso. Da mesma forma, quer dizer “Faça um esforço para não desmaiar,”
e implica a mesma idéia de segurar a própria res-
dormentes.29 Isso explica, ademais, como a ψυχή
pode ficar “aflita” ao ser tocada de forma crua, e a ψυχή. Nós ainda falamos hoje em dia de um espetambém porque se diz que certas dores “atingem” táculo “tocante” ou de um apelo que “atinge” o
atenienses do século V por um único caso de ψυχή
coração, embora tenhamos esquecido a psicologia
maio ou morte.
Se seguirmos tal pista, descobriremos que os sen-
A ψυχή também é dita nos trágicos como a sede de
pertencem à nossa parte obscura mais afim à
piração. Vocês em vão buscarão nos escritores
primitiva na qual essas frases se baseiam.
significando “vida,” exceto em ligação com destimentos ligados à ψυχή são sempre aqueles que
certos sentimentos, caso em que naturalmente a
consciência do sonho. Assim são todos os estra-
traduzimos por “coração.” O que não se percebeu
nhos anseios, pressentimentos e pesares “grandes
muito especial. Vimos que Píndaro pensava a ψυχή
demais para pôr em palavras,” como dizemos.
como uma espécie de “eu subliminal” que “dorme
teza que acompanha os sentimentos de horror
quando os membros estão ativos,” mas que tem
e desespero, e que é expressa como um peso do
é que esses sentimentos são sempre de um tipo
visões proféticas enquanto o corpo dorme. Na tragédia ática, essa função é geralmente atribuída ao lugar onde a ψυχή parece definitivamente significar
coração e não à “alma,” mas há pelo menos um o “subconsciente.” Em As Troianas se lamenta que o menino Astíanax, quando está a ponto de morrer, não tenha tido a experiência consciente dos em tua ψυχή, porém tu não os conheces.”
privilégios da realeza. “Tu os vistes e os marcastes 28
Esse
Os sentimentos ligados à ψυχή são sempre aqueles que pertencem à nossa parte obscura mais afim à consciência do sonho.
Assim também é a sensação de opressão e trisqual buscamos livrar nossa ψυχή. A ansiedade e
[low spirits] – têm sua sede na ψυχή, e assim tama depressão – o que chamamos de “abatimento”
bém todos os medos e horrores irracionais. Diz-se sistível, como o amor de Fedra, ataca a ψυχή.30 Em uma ou duas vezes que a paixão estranha e irreamável (εὔνοια), mas isso vai muito além do seu
Sófocles, por duas vezes ela é a sede do sentimento alcance comum.31 É seguro dizer que a ψυχή jamais é tratada como tendo algo a ver com a percepção clara ou com o conhecimento, ou mesmo com a emoção articulada. Ela retém algo de misterioso
e estranho, bem distinto da nossa consciência comum. Uma ou duas vezes os dons da profecia e da habilidade mágica estão ligados à ela, mas nunca o pensamento ou o caráter. Portanto, ela ainda é essencialmente o “duplo” da crença primitiva, e é exatamente por isso que ela pode se dirigir a nós ou nós nos dirigirmos a ela como se fôssemos dis-
de conhecimento à ψυχή – e ele é expressamente
tintos. É claro que isso se tornou um maneirismo
negado como conhecimento. Trata-se apenas de
assim. A “alma” do guarda na Antígona, que tenta
uma percepção vaga do início da infância, que não
dissuadi-lo de dar seu relato a Creonte, pode ale-
deixa rastro na memória. Observamos a mesma
gar parentesco com a “consciência” de Launcelot
liar atinge a ψυχή, isto é, para despertar memórias
Gobbo no Mercador de Shakespeare.
parece ser o único lugar onde se atribui algum tipo
idéia em outro lugar, onde se diz que algo fami-
ou figura de linguagem, mas no começo não era
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27. Eur., Herc. 626 σύλλογον ψυχῆς λαβέ | τρόμου τε παῦσαι. Cf. As Fen., 850 ἀλλά σύλλεξαι σθένος | καὶ πνεῦμ᾽ ἄθροισον. 29. Sóf., Electra 902. 30. Eur., Hip. 504, 526. 31. Sóf., O. C. 498, fr. 98.
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28. Eur., As Tro. 1171. Cf. B. H. Kennedy na nota de Tyrrell.
19
FILOSOFIA
Agora seremos capazes de ver as relações com
alguns usos especiais da palavra ψυχή. Por exem-
“uma alma”, ao invés de “um sangue.”
plo, ela é expressa como a sede de uma consciência
Finalmente, devemos observar um uso curioso e
com culpa. Isso claramente vem à tona em uma
particularmente instrutivo da palavra, que sabe-
passagem notável em Antífon, 32 onde faz seu
mos derivar da linguagem popular. A ψυχή é a sede
estivesse consciente da culpa. “Uma ψυχή sem
dos humores e apetites instáveis, e especialmente
culpa”, diz ele, “frequentemente preservará a si
comida e bebida, que às vezes emergem da parte
mesma e também um corpo exausto, mas uma cul-
mais irracional e incontrolável da nossa natureza.
posa deixará à própria sorte até mesmo um corpo
O cíclope em Eurípedes, que não provava o sabor
vigoroso.” É pelo mesmo ponto de vista que a lei
da carne humana há muito tempo, diz que fará um
(ἡ δράσασα ou βουλεύσασα ψυχή), uma frase em
não despreza colocar o fantasma de Dario aconse-
cliente argumentar que jamais iria a Atenas se
de homicídio exige o confisco da “alma” culpada
que o uso de ψυχή como a sede da consciência com33
daqueles inexplicáveis anseios por certos tipos de
bem à sua ψυχή ao comer Odisseu.36 Mesmo Ésquilo lhando os anciãos persas a “dar todo dia algum
bina-se com o sentido da vida como uma coisa a
prazer a suas almas.”37 Desse modo, os romanos
ser perdida. Várias passagens dos trágicos devem
também falavam em animo ou genio indulgere, e de
ser interpretadas à luz disso. De fato, como era
agir animi causa. Trata-se de uma parte singular
de se esperar, Ésquilo faz a consciência residir no
de psicologia primitiva, e certamente é conve-
coração, mas ele é enfático em relacioná-la com a
niente fazer de um “duplo,” pelo qual você não é
consciência do sonho. É “durante a noite” que se
estritamente responsável, a fonte desses singula-
abre a ferida do remorso.34 Até o plácido Céfalos da
res anseios pela boa vida, aos quais estão sujeitos
República de Platão é vez ou outra desperto de seu
mesmo os melhores entre nós de vez em quando.
sono pelo temor de que possa ter em sua consci-
O ka egípcio possuía tendências semelhantes.
ência algum pecado contra os deuses ou homens.
Vista dessa forma, a ψυχή é meramente o elemento “animal” da nossa natureza.
Vista dessa forma, a ψυχή é meramente o elemento “animal” da nossa natureza.
vra ψυχή na literatura ateniense do século V. Mesmo
Agora já cobri praticamente todos os usos da palaem Lísias, que pertence ao séc. IV, há apenas um caso da palavra num sentido estritamente tradicional, o que é ainda mais notável, pois ele no mínimo pertenceu ao perímetro do círculo socrático. As poucas exceções que observei são todas do tipo que
Outro misterioso sentimento estritamente asso-
confirmam a regra. Quando Heródoto discute a
ciado com o elemento subconsciente em nossa
suposta origem egípcia da crença na imortalidade,
vida é o sentimento de parentesco, o que os franceses chamam de la voix du sang. Os gregos também
mas ele é no fundo uma figura órfica.39 De outro
Clitemnestra em Sófocles se dirige a Electra como
“nascida da minha ψυχή ,”
forma, a palavra é usada por Eurípedes de um modo
e ocasionalmente
puramente tradicional, mesmo em As Bacantes.
parentes próximos são chamados possuidores de
Ésquilo emprega-a muito raramente, e de maneira
32. De caede Herodis, § 93.
35
33. Antífon, Tetr. Γ. a, 7. Cf. Platão, Leis, 873a, 1. 34. Cf. Headlam, Agamemnon, p. 180.
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Hipólito em Eurípides fala de uma “alma virgem,”
geralmente falam do sangue nesse sentido, mas a
___________________________________________________
20
ele naturalmente utiliza ψυχή no sentido órfico.38
35. Sóf., Electra 775. 36. Eur., O Cícl., 340. 37. Ésq., Os Persas, 840. 38. Heród., II, 123.
muito simples. Sófocles, como se poderia esperar,
lembrar de Filoctetes; mas quem fala é um ora-
é bem mais sutil, mas não consigo encontrar mais
culista de Oreos, de modo que é outra exceção que
do que duas passagens onde ele realmente ultra-
confirma a regra.44 Eu acho que podemos imagi-
passe os limites que indiquei, e ambas aparecem
nar o espanto produzido pelo ensinamento de
em uma de suas últimas peças, a Filoctetes. Odisseu
Sócrates, se considerarmos o desconfortável sen-
vras a ψυχή de Filoctetes,”40 o que parece implicar
timento frequentemente suscitado pelas palavras
que ela seja a sede do conhecimento, e Filoctetes
em seu sentido antigo de “espírito” e “espiritual.”
fala da “alma má de Odisseu observando por fres-
Há algo não totalmente reconfortante na frase
tas,”
“advertência fantasmagórica.”
conta a Neoptólemo que vai “apanhar com pala-
41
o que parece implicar que ela seja a sede
“fantasma”[ghost] e “fantasmagórico”[ghostly]
do caráter. Esses exemplos pertencem ao final do século e antecipam o uso do próximo. Não há outro lugar onde sequer se sugira que a “alma” tenha algo a ver com conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade, e para Sócrates essa era a coisa mais importante a seu respeito. Ora, se até mesmo a mais alta poesia obser-
O poder de fundir o aparentemente discrepante é exatamente o que se quer dizer com originalidade.
vava esses limites, podemos ter certeza de que a linguagem popular o fazia ainda mais restrita-
XI
mente. Quando incitados a “cuidar da sua alma,”
A novidade desse uso socrático da palavra ψυχή
os homens simples de Atenas deviam supor estarem sendo exortados a ter prudência para com sua
também é indicada pelas frases curiosamente
segurança pessoal, a “cuidar da sua pele,” como
experimentais pelas quais ele às vezes a substitui,
dizemos, ou até que se lhe recomendava o que
frases como “Tudo que em nós possua conheci-
chamamos “divertir-se.” Caso possamos con-
mento ou ignorância, bondade ou maldade.”45 Pelo
fiar em Aristófanes, as palavras lhes sugeririam
mesmo princípio, eu explicaria a referência de
que cada um deles tinha de “preocupar-se com
Alcibíades no Banquete ao “coração, ou alma, ou
foi até Sócrates “querendo ver a ψυχή que o tinha
como quer que chamemos isso.”46 Esses retoques
abandonado enquanto ainda vivia,” onde há um
Alcibíades é natural, se Sócrates foi o primeiro
jogo de palavras com o duplo sentido de “cora-
a usar a palavra dessa forma. Ele negava, se não
gem” e “fantasma.” Sócrates é reconhecido
como a autoridade sobre as ψυχαί, é quem “con-
estou enganado, que a alma fosse qualquer tipo de
voca os espíritos” (ψυχαγωγεῖ) das profundezas.42
um misterioso segundo eu e a identificava aberta-
Em As Nuvens, os companheiros da sua fábrica de
pensamentos ( φροντιστήριον ) são jocosamente
outro lado, defendia que ela é mais do que parece
chamados de “sábias ψυχαί ”.
ser, e portanto exige todo o “cuidado” que os devo-
É verdade que
tos de Orfeu exortavam os homens a dar aos deuses
“almas astutas” ( δόλιαι ψυχαί ), que nos fazem
caídos dentro deles. Sem dúvida é possível para
seu fantasma.” As Aves nos conta como Pisandro
43
ouvimos falar uma vez em Aristófanes sobre as
históricos são muito platônicos, e a hesitação de
mente com nossa consciência ordinária; mas, por
qualquer um defender que, mesmo assim, Sócrates
___________________________________________________
39. Eur., Hip. 1006. 40. Sóf., Fil. 55. 41. Sóf., Fil. 1013. 42. Arist., As Aves 1555 sqq.
44. Arist. A Paz 1068.
45. Cf. Crito 47e, 8 ὅτι ποτ᾽ ἐστὶ τῶν ἡμετέρων, περὶ ὃ ἥ τε ἀδικία καὶ ἡ δικαιοσύνη ἐστίν. 46. Banq. 218a, 3 τὴν καρδίαν γὰρ ἢ ψυχὴν ἢ ὅτι δεῖ αὐτὸ ὀνομάσαι κτλ.
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43. Arist. As Nuvens 94.
21
FILOSOFIA
A doutrina socrática de que bondade é conhecimento equivale a negar que haja alguma distinção última entre teoria e prática.
aplicação do método dialético para a exortação moral. É por isso que ele diz que Sócrates não foi um filósofo no sentido mais estrito do termo. Se ele apenas quer dizer que Sócrates não expôs um sistema no curso de suas aulas, isso é verdade, sem dúvidas; porém, mesmo no pior dos tempos, a filosofia jamais significou apenas isso para os gregos. Nem é certo dizer que a sabedoria da qual Sócrates fala na Apologia e no Crito fosse mera-
não foi realmente original. Ele apenas combinou
mente a sabedoria prática. Nesse ponto, Maier
a doutrina órfica da purificação das almas caídas
comete um grande engano ao importar para a
com a visão científica da alma como consciência
e σοφία. É claro que essa distinção tem seu valor,
em vigília. Esse é o recurso favorito daqueles que tem como ocupação depreciar a originalidade dos grandes homens. Contra isso, pode-se insistir que o poder de fundir o aparentemente discrepante é exatamente o que se quer dizer com originalidade. A visão religiosa e a visão científica podiam
discussão a distinção aristotélica entre φρόνησις mas nesse tempo a φρόνησις e a σοφία eram termos
completamente sinonímicos e continuaram sendo sabedoria e à verdade (φρόνησις καί ἀλήθεια) que usados de maneira bem promíscua por Platão. É à
a alma deve se dirigir, e é anacronismo introdupalavra φρόνησις é geralmente preferida em lugar
ter continuado lado a lado indefinidamente, como
zir a idéia aristotélica de “verdade prática.” Se a
de fato as encontramos em Empédocles, onde
de σοφία é apenas porque a segunda evocava asso-
estão simplesmente justapostas. Teve de existir um Sócrates para perceber que elas se comple-
ciações consideravelmente ruins, como a nossa
mentavam, e, ao uni-las, chegar à idéia melhor
“esperteza.” De qualquer modo, dificilmente vale a
traduzida em nossa língua pelo velho termo
pena desperdiçar palavras sobre esse ponto, pois a
“espírito”[spirit]. Nesse sentido e nesse âmbito,
doutrina socrática de que bondade é conhecimento
ele foi o fundador da filosofia.
equivale a negar que haja alguma distinção última entre teoria e prática.
Estou certo de que só a partir da Apologia pode-se concluir que, para Sócrates, a imortalidade
XII
da alma era um corolário necessário dessa visão sobre sua natureza, mas o importante é perceber
As condições de nosso experimento não nos permi-
que esse não foi o seu ponto de partida nem o de
tiram admitir muitas evidências, e isto de início não
discussão em especial. Se, por um breve momento,
parecia nada promissor. No entanto, fomos capa-
eu puder ir além da Apologia e do Crito em busca
zes de chegar a um resultado de suma importância,
de um argumento negativo, não será desprezível
que agora temos de expressar com precisão. Nós
encontrar, tanto no Fédon quanto na República,
48
descobrimos que, se temos de confiar na Apologia
Platão representando os sujeitos mais íntimos de
sobre o assunto em questão, então Sócrates tinha
Sócrates espantados com sua profissão de fé na
o hábito de exortar seus concidadãos a “cuidar de
imortalidade. Não parece, então, que esse fosse o
suas almas.” Isto Maier admite. Vimos também
47
tema comum do seu discurso. O que ele realmente pregava como algo necessário para a alma era que ela devia lutar pela sabedoria e pela bondade.
que essa exortação implica um uso do termo ψυχή e uma visão sobre a natureza da alma bastante inéditos antes do tempo de Sócrates. De fato os órficos
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haviam insistido na necessidade de se purificar a
22
É claro que Maier se vê obrigado pela evidência
alma, mas para eles a alma não era a personali-
que admite como válida a reconhecer que Sócrates
dade normal;49 era um estranho de outro mundo
chamava sua obra em vida de “filosofia,” mas ele
que residia em nós por algum tempo. Os cosmólo-
defende que essa filosofia consistia apenas na
gos jônicos certamente haviam identificado a alma
___________________________________________________
47. Platão, Fédon, 70a, 1sqq. 48. Platão, Rep. 608d, 3.
com nossa consciência em vigília, mas isso também
acrescentar que ela fornece a explicação natural
veio de fora. Como afirma Diógenes de Apolônia,
de sua missão. Se Sócrates realmente defendia
ela era um “pequeno fragmento de deus,”50 com
que a alma era irresistivelmente levada a ir para
o que ele queria dizer uma porção do “ar” cósmico
além de si mesma da maneira ali descrita, não
que sucede animar momentaneamente nossos cor-
havia necessidade de um oráculo de Delfos para
pos. Sócrates, até onde pudemos ver, foi o primeiro
fazê-lo assumir a tarefa de converter os atenien-
a dizer que a consciência normal era o verdadeiro
ses. Contudo, isso já é transgredir os limites que
eu, e que ela merecia todo cuidado prestado pelos
impus a mim mesmo, e não pretendo prejudicar o
religiosos ao misterioso inquilino do corpo. As pia-
que eu creio ser o resultado sólido a que chegamos.
das de Aristófanes deixaram claro que Sócrates era
Ele em si basta para mostrar que importa muito
conhecido como um homem que falava estranha-
pouco se chamamos Sócrates de filósofo no sen-
mente acerca da alma antes de 423 a.C., e isto nos
tido próprio do termo ou não; pois agora podemos
remete a uma época em que Platão não tinha nem
ver como devemos a ele, nas palavras de Juliano,
cinco anos de idade, de modo que não pode haver
que “todos que encontraram a salvação na filosofia
dúvida quanto a ele ser o autor da visão que atribui
estão sendo salvos ainda agora.” Esse é o problema
a Sócrates. Penso que podemos concluir razoavel-
que nos propusemos a resolver. Eu queria apenas
mente que a “sabedoria” que tanto impressionou
dar algumas dicas para mostrar que Maier teria de
o menino Alcibíades e o impulsivo Querefonte era
escrever mais 600 páginas, pelo menos, para esgo-
exatamente essa.
tar as implicações de suas próprias suposições. Alguns de nós preferirão pensar que Platão já fez
Importa muito pouco se chamamos Sócrates de filósofo no sentido próprio do termo ou não.
isso melhor do que ele. Tradução por Renan Santos
Eu prometi não ir além da evidência permitida por Maier e, portanto, devo me deter no limiar da filosofia socrática. Contudo, não posso evitar sugerir as linhas em que se poderia prosseguir uma investigação posterior. Em um diálogo escrito trinta anos depois da morte de Sócrates, o Teeteto, Platão o coloca descrevendo seu método de dar à luz os pensamentos, em uma linguagem inspirada na ocupação de sua mãe, e podemos provar que isso é genuinamente socrático a partir da evidência de Aristófanes, que fazia graça disso mais de meio século antes.51 Por sua vez, o método maiêutico envolve a teoria do conhecimento expressa miticamente na doutrina da reminiscência. A doutrina do Amor, que Sócrates no Banquete professa ter aprendido com Diótima, é apenas uma extensão da mesma linha de pensamento, e podemos ___________________________________________________
dade. Por esta razão, não creio que Sócrates a acatasse nesse sentido. 50. A. 19. Diels, μικρόν μόριον του θεοῦ. 51. Arist., As Nuvens 137.
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49. A doutrina da παλλιγενεσία ou transmigração, em sua forma usual, implica essa dissociação da “alma” do restante de sua personali-
23
FILOSOFIA
Uma definição de cavalheiro, John H. Newman Tradução de trecho do Discurso VIII em“The Idea of a University” (1852)
um sobressalto ou choque nas mentes daqueles com os quais se mistura; — todo conflito de opinião ou colisão de sentimentos, toda repressão, ou suspeita, ou melancolia, ou ressentimento; sua grande preocupação sendo fazer todos sentirem-se à vontade e em casa. Ele observa a todos em sua companhia; é tenro com o tímido, gentil com o distante e misericordioso com o absurdo; ele é capaz de lembrar-se com quem está falando; ele protege-se contra as alusões inoportunas ou temas que possam ser irritantes; ele raramente arvora-se na conversa, e jamais é cansativo. Ele faz pouco dos favores enquanto os realiza, e parece ser quem os recebe quando os concede. Ele jamais fala de si mesmo, exceto quando exigido, jamais se defende por uma simples réplica, não dá ouvidos a calúnia ou fofoca, é escrupuloso ao imputar motivos aos que se intrometem, e a tudo interpreta com a melhor das intenções. Em suas controvérsias, jamais é mesquinho ou insignificante, jamais leva uma vantagem injusta, jamais confunde personalidades ou a língua afiada com argumentos, ou insinua uma maldade
N
a prática, define-se um cavalheiro
Ele conhece a fragilidade da razão humana, bem como sua força, seu domínio e seus limites.
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dizendo que ele é alguém que jamais
24
inflige a dor. Esta descrição é refinada
que não ousaria dizer em alto e bom som. Partindo
e, na medida do possível, precisa. Ele
de uma previdente prudência, ele observa a máxima
ocupa-se principalmente com a simples remo-
do sábio antigo, de que devemos sempre nos diri-
ção dos obstáculos que impedem a ação livre e
gir ao nosso inimigo como se ele um dia se tornasse
desembaraçada daqueles à sua volta, e contribui
nosso amigo. Ele possui bom senso demais para ser
com seus passos, ao invés de apenas por si tomar
afrontado por insultos, é muito ocupado para se
a iniciativa. Seus benefícios podem ser conside-
lembrar de ofensas, e indolente demais para com-
rados como paralelos ao que chamamos confortos
portar malícia. É paciente, tolerante e resignado a
ou conveniências nas disposições pessoais: como
respeito de princípios filosóficos; submete-se à dor,
uma poltrona ou um bom fogo, que fazem sua parte
porque é inevitável, à perda, porque é irreparável, e
para dissipar o frio e o cansaço, embora mesmo
à morte, porque é seu destino. Se entra em qualquer
sem eles a natureza forneça os meios de descanso e
tipo de controvérsia, seu disciplinado intelecto o
calor animal. Da mesma forma, o verdadeiro cava-
preserva da desajeitada descortesia de mentes pos-
lheiro cuidadosamente evita tudo que possa causar
sivelmente melhores, mas menos educadas: pessoas
que, como armas embotadas, rasgam e retalham ao invés de fazer um corte limpo, que confundem o ponto da argumentação, desperdiçam sua energia em ninharias, interpretam mal o adversário e deixam a questão ainda mais convoluta do que quando a encararam. A opinião do cavalheiro pode estar certa ou errada, mas ele é lúcido demais para o injusto; é tão simples quanto convincente, e tão breve quanto decisivo. Em nenhum outro lugar encontraremos maior franqueza, consideração e indulgência: ele joga-se para dentro da cabeça de seus oponentes e explica seus enganos. Ele conhece a fragilidade da razão humana, bem como sua força, seu domínio e seus limites. Se ele for um descrente, será profundo demais e generoso demais para ridicularizar a religião ou ir contra ela; ele é sábio demais para ser um dogmático ou fanático em sua infidelidade. Ele respeita a piedade e a devoção; até mesmo apóia como veneráveis, belas ou úteis as instituições das quais discorda; ele honra os ministros religiosos e julga agradável rejeitar seus mistérios sem ter de atacá-los ou denunciá-los. Ele é um amigo da tolerância religiosa, e isto não porque sua filosofia o tenha ensinado a ver todas as formas de fé com um olhar imparcial, mas também pela gentileza e feminilização do sentimento, que serve à civilização. Não que ele também não possa ter uma religião, ao seu próprio modo, mesmo quando não é um cristão. Nesse caso, sua religião é uma religião da imaginação e do sentimento; é a encarnação daquelas idéias do sublime, do majestoso e do belo, sem as quais não pode haver uma grande filosofia. Às vezes reconhece a existência de Deus, às vezes aplica um princípio desconhecido ou uma qualidade desconhecida com os atributos da perfeição. E essa dedução de sua razão ou criação de sua imaginação ele transforma na ocasião de excelentes pensamentos e o ponto de partida de um ensinamento tão variado e sistemático, que ele até parece um discípulo da próprio cristianismo. A partir da precisão e estabilidade mesmas de seus poderes lógicos, ele é capaz de ver quais sentimentos são consistentes naqueles que defendem alguma doutrina religiosa, e parece aos olhos dos outros sentir e defender um círculo inteiro de verdades teológicas, que existem em sua mente simplesmente
Tradução por Emílio Costaguá
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como uma série de deduções.
25
FILOSOFIA
Os doze tons do Espírito, Rosenstock-Huessy Tradução do Capítulo VI de “I Am an Impure Thinker” (1970)
O
amor o espírito são mais fortes do que a morte. Por isso, não há nada que possamos fazer sem os dois sem que nos condenemos à futilidade estéril. Pois
amar é ser fecundo, e estar inspirado significa superar e impor limites à morte. Quando o corpo morre, o espírito permanece. E o espírito revela-se divino sempre que as trilhas iluminadas por vidas criativas e adoráveis são exploradas por sucessores, herdeiros, pupilos e seguidores, ou quando sendas demoníacas são renunciadas e abandonadas por mensagens de alerta como NÃO ULTRAPASSE. Daí que o teste derradeiro do espírito seja a aquisição, pelas gerações futuras, de faculdades herdadas, gratamente recebidas e aceitas. Todas as várias expressões de nossa fé: a presença de Deus, o futuro, a regeneração, a adoção, os filhos de Deus e não os do Homem, os próprios termos “liberdade,” “Deus,” “Espírito,” “Demônio,” “história” – tentaram transmitir-nos a boa notícia de que tínhamos predecessores que dotaram-nos com faculdades adquiridas, adquiridas por eles e que serão concedidas a nós quando simplesmente lhes
criança. Deus é incalculável. Ele fez algumas crianças
respondermos com a aceitação. E mais: a boa notí-
e alguns adultos muito bons, de fato, e outros, idosos
cia era contrastada com a má notícia. Sem a má, a
ou crianças, bastante perversos. Ele é incalculável, e
boa é incompreensível. É provável que a boa notícia
certamente não faz diferença para Deus a data ou o
torne-se novamente audível se antes falarmos mais
ano em que nascemos. Em qualquer época, é igual-
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Nem a criança é melhor que o homem velho, e nem o homem velho é melhor que a criança. Deus é incalculável.
26
mente difícil viver uma vida boa. A boa notícia, ao enfatizar a total indiferença de Deus pelo ano de nosso nascimento ou de nossa morte, clama-nos também para que, seguindo o caminho trilhado pelo Primogênito de Deus, sejamos também o seu Povo Herdeiro. Daí que a boa nova seja relatada como uma relação contínua entre fundador e herdeiro, entre testamentário e sucessores. Hoje,
explicitamente da má. Esta diz que uma criança é
essa verdade está obscurecida, como até mesmo o
melhor que uma cabeça grisalha, que o novo é melhor
antigo termo “Imitação de Cristo” foi enfraquecido.
que o velho, que o estímulo e a sensação nos arras-
Freqüentemente, ele é entendido não como uma
tam dia após dia enquanto presumem nos garantir
herança da faculdade adquirida de Cristo, mas como
melhores valores. De fato, toda essa maldade é deve-
uma imitação pedante, uma macaqueação.
ras má. Eis a verdade: nem a criança é melhor que o homem velho, e nem o homem velho é melhor que a
Vamos, pois, reafirmar a boa nova.
Cristo adquiriu uma nova faculdade: a afinação do
junto ao balcão. A “inspiração” é propagandeada.
Espírito. Ele transmitiu-nos esse espírito afinado
Porém, poxa vida, inspiração leva tempo! Exige
com precisão, esse poder não só de falar, pensar,
noventa ou cem anos de uma vida inteira. Não é
escrever, proclamar ou cantar, mas também de
altamente provável que o Espírito sopre sobre nós,
obedecer às inspirações no momento de Deus, nem
ao longo da vida, de várias formas? Vocês sabem
cedo nem tarde demais.
tão bem quanto eu que o Espírito permeia nossos corpos carnais em pelo menos três fases. Primeiro,
Aqui, eu renuncio à tentação de acusar os natura-
ele entra em nós. Esse estágio é chamado infân-
listas de roubo e plágio. Eu poderia acusá-los de
cia. Nessa etapa, todas as coisas são recebidas pela
corromper todos os termos da vida no Espírito:
criança com o entusiasmo da estréia, e, nesse con-
“presença,” “futuro,” “hereditariedade,” “sobre-
texto, “novo” significa o mesmo que “inspiração”.
vivência,” “história,” “faculdades adquiridas.” Todos esses termos de Darwin têm sua origem na
Em seguida, porém, o espírito começa a trabalhar
Bíblia. Porque só Deus pode estar presente. Somente
em nós. Ele incita-nos. Permanece em nós e trans-
os filhos de sua herança podem ter um futuro.
forma-nos. Essa etapa pode ser chamada de fase
Somente os frutos do espírito podem sobreviver à
adulta. Por fim, o Espírito, sendo uma força, não
morte. E somente os apóstolos podem ter êxito em
pode isolar-se dentro de nós. Nesse estágio, pode-
transmitir as novas faculdades adquiridas do nosso
mos ser chamados de anciãos, ou, usando o termo
Salvador. Deixo para vocês as conclusões.
de origem grega correspondente, presbíteros.
Não é altamente provável que o Espírito sopre sobre nós, ao longo da vida, de várias formas?
De cima, vem o Espírito sobre cada filho de Adão. Dentro, opera em cada homem ou mulher que atinge a idade certa. Fora, na vida social, quando ganhamos um cargo. Hoje, essa tripartição não é suficiente. Nós devemos ser mais precisos. Os numerosos processos do Espírito não vêm sendo bem discernidos desde a Reforma Protestante. O segundo artigo do Credo,
Todavia, talvez eu precise recordá-los que, em
isto é, as sentenças que falam do Salvador, mono-
sociedade, em nossa comunidade histórica, nós
polizaram as cátedras dos teólogos. Os filósofos, por
movemo-nos como homens nascidos através da
sua vez, usurparam o primeiro artigo e isolaram-no,
palavra viva, para nossos tempos e lugares, em
tornando-o sem sentido. Mas o terceiro artigo do
direção ao nosso destino futuro. Temos o privilégio
Credo é o primeiro artigo de nossa experiência. Os
singular de contribuir para a sobrevivência perpé-
apóstolos tiveram a experiência do Pai através do
tua das faculdades adquiridas que abraçamos, como
Filho no Espírito Santo. Em outras palavras, antes
também o de contribuir para o banimento perpétuo
de Deus enviar o Espírito no Pentecostes, nem o Pai
ao inferno das faculdades adquiridas que desejamos
e nem o Filho eram-lhes acessíveis. Os estranhos
ver extirpadas. É desse modo que Criação acontece
anseios das seitas pentecostais dos nossos tempos
debaixo de nossos narizes. E ninguém pode perma-
devem alertar-nos que uma experiência do espí-
necer neutro na guerra espiritual entre legar as boas
rito deve preceder toda compreensão do Pai e do
qualidades através da fé ou, por desespero, desistir
Filho na Trindade. A igreja legítima deve combater
de eliminar as qualidades diabólicas.
a arrogância grega pela qual nossas assim chamadas “mentes” não são consideradas como o receptáculo,
O modo pelo qual nós somos encadeados na criação
o veículo ou o transmissor do Espírito Uno através
de Deus, dia após dia em sua história, dá-se atra-
das eras, mas como agentes livres de nossos atomi-
vés dos doze estágios ou tons do Espírito. Desde
zados, inumeráveis e distintos eus.
que os processos de Deus são conhecidos por todos, Quando abordamos os processos mentais em nós
belíssima ordem e inevitável sucessão. Nenhuma
mesmos como o processo do Espírito que vem dos
geração parece ser tão indiferente a esse processo
outros até nós, dentro de nós e de nós para os outros,
quanto a nossa. Impacientemente, com toda a
torna-se audível uma ordem de três vezes quatro
presssa do mundo, toda inspiração nos é vendida
atitudes. O moribundo, quando devolve o espírito
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ninguém parece prestar muita atenção em sua
27
FILOSOFIA
ao Criador, é autorizado por nossas leis a expri-
um professor ou educador;
mir uma última vontade e deixar um testamento. Essa é a mínima honra espiritual que a comunidade
um líder ou legislador;
concede-lhe. Por isso, a nossa vida espiritual deve ser traçada desde a hora de nossa morte para trás.
um sofredor ou perseverador;
Se, na “natureza”, o nascimento parece preceder à morte, e a vida é descrita como a soma de todos os
um manifestante ou rebelde;
processos do lado de cá da morte, o Espírito inverte essa ordem do naturalismo.
um crítico ou analista;
Na natureza, o nascimento precede à morte;
um cético ou desesperançado;
Na natureza, a vida tenta evitar a morte;
um instrumentista ou cantor;
No espírito, a morte precede à vida;
um aprendiz ou andarilho;
No espírito, a morte do fundador orienta a vida
um leitor ou idealizador;
dos seus herdeiros. um ouvinte ou cumpridor de ordens; Portanto, o primeiro comando espiritual é: deixe um testamento, um dote, um legado. Este é o primeiro
Esse ordenamento foi esquecido no secularismo.
comando porque direciona e dá sentido a todos os
Quando aplicada pelo pensador secular, a ordem
passos anteriores. Aquele que experimenta o dia
espiritual é invertida. Na psicologia secular que
de sua morte como o cumprimento de uma missão
começa com a própria criança, diz-se que ela deve
é abençoado. Essa pessoa, porque acreditou a vida
caminhar com os próprios pés e tornar-se auto-
inteira na bênção, projetar-se-á do dia de sua morte
-suficiente, expressando o próprio eu e vivendo por
para os dias anteriores. Ela desejará ter a satisfação
si mesma. A conseqüência inevitável é que ela tam-
do conjunto de sua vida. Uma vez que desobstruímos
bém viverá e talvez venha a morrer por si e para si
essa porta secreta da ordem espiritual no cristia-
mesma. É com certeza um espetáculo horrível.
nismo, subitamente entendemos porque de fato Cristo abriu as portas da morte para a nossa alma.
Quando aplicada pelo pensador secular, a ordem espiritual é invertida.
Encarando-se o aprendizado da fala como o décimo segundo tom espiritual, isto é, a primeira operação do Espírito quando Ele entra em uma alma recém-nascida, percebe-se que esse tom “jorra” na vida do homem quando fala de seu leito de morte. O primeiro sorriso de uma criança está na extremidade oposta, à maior distância das palavras de Jesus
O dia de nossa morte, junto com os nossos maiores
na cruz, ou do discurso de despedida de George
desejos e legados, dirige-se para as gerações vin-
Washington, ou do último discurso de Moisés. O
douras. Assim, podemos iluminar facilmente todos
tom do espírito reverbera primeiro em nós quando
os estágios anteriores da vida. Os últimos coman-
obedecemos. A criança que não é feita para obedecer
dos devem dominar todos os anteriores. No fim,
é alijada do poder de um dia comandar. Comandar,
são esses comandos que nos habilitam a realizar a
identificar-nos com a vontade de Deus: e essa é a
nossa vontade perfeita, a última vontade com a qual
nossa perfeição, esse é o nosso destino. Qualquer
a herança humana pode ser aumentada e tornar-se
pessoa que realiza uma vontade, em qualquer campo
o fruto das sementes de nossas vidas.
de atividade humana, está comandando, ou melhor,
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torna-se um comando. Lincoln, o cardeal Newman
28
Portanto, a etapa do testamentário será normal-
e Moisés estão comandando pessoas além da morte.
mente precedida por:
Todos os seus poderes parecem vir de alguma parte deles que, durante suas vidas, não poderia ser rea-
um profeta ou admoestador;
lizada. A grandeza de Moisés consiste justamente
nisso, de ele não ter entrado na Terra Prometida.
qualquer pessoa. O homem precisa ensinar. Uma
Nisso consiste a divindade de Cristo: Ele não usou
vez que esse dever for entendido, a formação de
o Espírito em seu tempo, mas doou esse espírito à
professores parecerá infinitamente mais dificul-
sucessão apostólica.
tosa que a educação de crianças ou a construção de prédios escolares. Também ficará claro que nós
Restaurado o décimo segundo comando (“ouvir” ou
ensinamos aos nossos alunos o que eles são chama-
“obedecer”) à sua posição de corolário do primeiro
dos a fazer, realizar, manter, quem se tornar, pelo
comando (“deixe o seu espírito para a posteridade”),
fato de que não podemos fazer tudo por nós mes-
não temos nenhum problema em dividir a tábua de
mos. Em outros termos, existe uma medida entre
tons entre o duodécimo comando e o primeiro em
ser governador e professor. O pai é governador, é
mais ou menos dez períodos de cerca de seis anos e
professor e é profeta, assim como é testamentá-
três períodos com cerca de vinte anos cada.
rio da próxima geração. Ele lidera em vista de um futuro, ensina sobre o futuro, profetiza as calami-
I. Infância ou juventude: na sociedade,
dades ou obstáculos que cruzarão seus caminhos
é representada pelo artista.
no futuro, e tenta deixar alguns meios para que os
12. obedecer / existencial / envolvido
herdeiros possam encarar esse futuro. Tudo isso
11. ler / mental / isolado
pertence ao seu sacerdócio.
10. aprender / seletivo / meio envolvido, meio isolado 9. cantar durante toda essa etapa, pois ainda não chegou sua hora II. Idade adulta: na sociedade, representada pelo guerreiro. 8. Duvidar e reter / meio envolvido, meio isolado 7. analizar e sintetizar / isolado
As crianças, os adultos, os anciãos ou artistas, os guerreiros e os sacerdotes estão em diferentes fases de afinação do espírito.
6. manifestar-se e insistir / envolver-se
Vemos, portanto, que os comandos 1, 2, 3 e 4 (deixar
5. esperar e perseverar / permanecer engajado
em testamento, profetizar, ensinar e governar) são um e o mesmo comando enunciado em seus qua-
III. Os anciãos: o sacerdócio universal dos
tro aspectos! O mesmo é verdadeiro para os quatro
que crêem.
comandos dos adultos guerreiros e para os quatro
4. liderar e legislar
comandos da infância.
3. ensinar e instruir 2. profetizar e admoestar
Além disso, o leitor, ao ouvir mais de perto, pode
1. “testamentar,” dotar e outorgar
perceber que as crianças, os adultos, os anciãos ou artistas, os guerreiros e os sacerdotes estão em
Todos os doze comandos ou tons do Espírito per-
diferentes fases de afinação do espírito. A criança
meiam todas as fases de nossa vida. É óbvio que o
brinca e ainda não é séria, pois não chegou a hora.
chefe de um acampamento pode ter dezenove anos
O significado da brincadeira é que ela mantém-se
e já ser capaz de agir nos tons 3 e 4. Isso não muda o
deste lado do processo pelo qual Deus procede nas
fato de que cada tom deve ser vivido em um deter-
guerras, calamidades, crises e revoluções.
minado período de vida para que seu cultivo seja pleno. Quando jovens de doze anos são treinados
Crianças possuem um tempo infinito, ou, mais
para liderar, dá-se a ver a toda uma multidão de
precisamente, “indefinido”. Por outro lado, os guer-
educadores, psicólogos e políticos o que é pôr car-
reiros exercem pressão. Eles tentam estar à frente
gos de adultos e idosos em jovens que perecerão sob
de seu tempo. São impacientes. Como um protes-
o peso desses fardos.
tante tentando adiantar o Dia do Senhor. Paulo é paciente, porque nós somos, ao mesmo tempo,
deveria) escrever um livro inteiro. Por exemplo:
crianças que jogam sob a guarda de Deus e guerrei-
“ensinar” é um “dever” na maturidade da vida de
ros que lutam por Deus. A relação do ancião com o
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quer que nós sejamos impacientes tanto quanto ele Sobre cada um desses períodos se poderia (e se
29
FILOSOFIA
tempo é diferente. Seu gênio está na afinação. Entre
empurrar, puxar, rasgar, erguer, responder, falar,
os abolicionistas (“os adultos”) e os indiferentes
escrever, mover, escalar, etc., a criança está rode-
(os playboys), Lincoln provou ser um bom gover-
ada de coisas mortas que reagem com um único e
nador graças à sua afinação. Ele assinou no tempo
repetido movimento.
perfeitamente exato a emancipação dos escravos, a perfeição profetizada por John Quincy Adams trinta
Não seremos eloqüentes, a menos que legali-
anos antes. Adams profetizou que a questão da
zemos as palavras que nos são pronunciadas
escravidão, após 1828, chegaria a um impasse que
existencialmente.
somente o comandante-chefe em tempo de guerra resolveria. Essa é, aliás, uma boa ilustração do papel genuíno da profecia no processo espiritual. A profecia não é uma predição ou previsão do tempo. A profecia fala desde o “Dia do Julgamento” até os nossos dias. Daí que ela sempre coloca, entre o dia de hoje e o último dia, alguma terrível calamidade. Pois o profeta reconhece que a geração atual não se move na direção de nosso destino. Julgando o presente à luz de nosso destino, o profeta sabe que os obstáculos surgidos com o nosso movimento para a direção errada precisam ser removidos. Profetas não prevêem como ficaremos ricos, profetas prevêem que nossos herdeiros serão visitados por nossa própria ganância ou transgressão.
Não seremos eloqüentes, a menos que legalizemos as palavras que nos são pronunciadas existencialmente. O profeta então está tão intimamente conectado com o futuro como os governantes, professores e testamentários. Moisés, Isaías, Rei Davi, Eclesiastes, Estêvão, João, Lucas e Pedro: os quatro primeiros no Antigo Testamento, os quatro últimos no Novo, estão unidos, embora sejam discerníveis entre eles reis, mestres, profetas e testamentários. Todos eles vivem do futuro, da solidariedade do Homem, criatura de Deus, em seu presente dia. Quando conseguirmos reconhecê-los nos tons 1, 2, 3 e 4 na harpa do Espírito, a puerilidade de nossa situação educacional facimente será vencida. Veremos então que não se aprende a falar engo-
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lindo substantivos, meras palavras, mas apenas
30
cumprindo ordens de modo existencial. Os verbos são os radicais que põem as crianças em ação. A nossa era industrial, com seus botões mecânicos, está ameaçando-as. Em vez de aprovar os verbos ir,
Tradução por Ricardo Santos de Carvalho
A essência do humanismo, William James Tradução do capítulo 7 (“The essence of humanism”)de “Essays in Radical Empiricism” (1912)1
O
humanismo é um fermento que “veio
profundas, é claro que não se dispensará nenhuma
para ficar.” Ele não é a hipótese única de
dor que os filósofos possam sofrer – em primeiro
um teorema e não depende de nenhum
lugar para defini-lo, e em segundo para promovê-
fato novo. Pelo contrário, é uma lenta
-lo, averiguá-lo ou dirigi-lo.
mudança da perspectiva filosófica, fazendo as coisas aparecerem como que a partir de um novo foco de interesse ou ponto de vista. Alguns escritores estão muito conscientes da mudança, outros semi-inconscientes, ainda que sua própria visão tenha passado por grande mudança. O resultado é uma confusão nada insignificante no debate, os humanistas semi-conscientes frequentemente tomando parte contra os radicais, como se desejassem contar com o outro lado.
É sempre bom num debate conhecer autenticamente o ponto de vista do seu adversário. Mas os críticos do humanismo jamais definem exatamente o que significa a palavra “verdade.”
Se “humanismo” é realmente o nome para essa mudança de perspectiva, é óbvio que, se o huma-
Atualmente, o humanismo carece muito de uma
nismo prevalecer, toda o cenário filosófico mudará
definição completa. Seus defensores mais siste-
de algum modo. A ênfase nas coisas, a ordem
máticos, Schiller e Dewey, publicaram soluções
entre primeiro e segundo planos, as suas magni-
apenas fragmentárias; e não foi traçada a sua rela-
tudes e valores, nada disso permanecerá o mesmo.
ção com muitos dos problemas filosóficos vitais,
Se o humanismo envolver essas conseqüências
exceto pelos adversários, que, farejando heresias
1. O texto apareceu pela primeira vez em forma de artigo no The Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Methods, 02/03/1905, e foi reimpresso em The Meaning of Truth: A Sequel to Pragmatism (1909).
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___________________________________________________
31
FILOSOFIA
com antecedência, despejaram golpes em doutri-
argumentação do idealismo transcendental, é
nas (subjetivismo e ceticismo, por exemplo) que
preciso uma explicação copiosa para torná-la ine-
nenhum bom humanista considera necessário aco-
quívoca. À primeira vista, ela parece limitar-se a
lher. Por sua vez, com reticências ainda maiores,
negar o teísmo e o panteísmo. Mas, na verdade, ela
os anti-humanistas desorientaram os humanistas.
não precisa negar nenhum dos dois; tudo depen-
Muito da controvérsia envolveu a palavra “verdade.”
deria da exegese, e se a fórmula algum dia fosse
É sempre bom num debate conhecer autenticamente
canônica, ela certamente produziria intérpretes de
o ponto de vista do seu adversário. Mas os críticos do
direita e de esquerda. Eu mesmo leio o humanismo
humanismo jamais definem exatamente o que sig-
teística e pluralisticamente. Se há um Deus, ele
nifica a palavra “verdade” quando eles mesmos a
não é um sujeito absoluto de todas as experiências,
usam. Os humanistas são obrigados a adivinhar a sua
mas simplesmente o sujeito de experiência com o
opinião; e o resultado certamente tem se limitado
maior alcance consciente real. Interpretado assim,
a dar murros em ponta de faca. Acrescente a tudo
o humanismo para mim é uma religião capaz de
isso as grandes diferenças individuais em ambos os
defesa racional, embora eu esteja muito ciente do
campos, e fica claro que nada é tão urgentemente
número de mentalidades para quem ele só pode
necessário, no estágio a que as coisas chegaram atu-
apelar religiosamente quando tiver sido traduzido
almente, do que uma definição mais precisa de cada
como um monismo. Eticamente, a sua configu-
parte a respeito do seu ponto de vista central.
ração pluralística para mim está mais atrelada à realidade do que qualquer outra filosofia que eu
Quem quer que contribua com a mais mínima
conheça – sendo ela essencialmente uma filosofia
precisão nos ajudará a ter certeza do que estamos
social, uma filosofia do “co,” onde as conjunções é
falando e de quem estamos falando. Qualquer um
que realizam o serviço. Mas minha razão primeira
pode contribuir com tal definição, e, sem ela, nin-
para defendê-la é sua incomparável economia
guém sabe exatamente onde se encontra. Se eu
intelectual. Ela se livra não apenas dos “proble-
oferecer a minha própria definição provisória de
mas” constantes que o monismo engendra (“o
humanismo aqui e agora, outros podem melhorá-
problema do mal,” “o problema da liberdade,” e
-la, algum adversário pode ser levado a definir sua
coisas do tipo), mas também de outros mistérios e
própria crença mais precisamente, por contraste, e
paradoxos metafísicos.
talvez isso resulte num certo aceleramento do processo de cristalização da opinião geral.
Se há um Deus, ele não é um sujeito absoluto de todas as experiências, mas simplesmente o sujeito de experiência com o maior alcance consciente real.
Ela se livra, por exemplo, de toda a controvérsia agnóstica, recusando-se plenamente a acolher a hipótese de qualquer realidade trans-empírica. Ela se livra de toda necessidade de um absoluto do tipo bradleiano (confessadamente estéril para fins intelectuais), insistindo que as relações conjuntivas encontradas na experiência são perfeitamente reais. Ela se livra da necessidade de um absoluto do tipo royceano (igualmente estéril) por meio de seu tratamento pragmático do problema do conhecimento [...] Como as visões sobre conhecimento, realidade e verdade imputadas ao humanismo
I
foram até agora as mais ferozmente atacadas, é sobre essas idéias que um ajuste do foco parece ser
O serviço essencial prestado pelo humanismo,
mais urgente. Destarte, a partir de agora colocarei
como eu entendo a situação, é ter visto que, embora
em foco, o mais resumidamente possível, a visão
uma parte da nossa experiência possa se apoiar sobre
que nesses aspectos eu imputo ao humanismo.
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outra parte para fazer dela o que ela é em qualquer um
32
dos seus vários aspectos possíveis, a experiência como
II
um todo é independente e não se apóia sobre nada. Se for aceita a tese humanista central, colocada Como essa fórmula também expressa a principal
acima em itálico, a conclusão será que, caso haja
algo como o conhecimento, então o cognoscente
pelo menos das possíveis. Chamar a idéia presente
e o objeto conhecido devem ambos ser porções da
que tenho do meu cão, por exemplo, de cognitiva
experiência. Portanto, uma parte da experiência
do cão real significa que, conforme constitui-se o
deve ou (1) conhecer a outra parte da experiên-
tecido atual da experiência, a idéia é capaz de levar
cia – em outras palavras, as partes devem, como
a uma cadeia de outras experiências minhas que
diz o prof. Woodbridge, representar uma a outra,
vão da seguinte à próxima e finalmente terminam
ao invés de representar as realidades fora da
em percepções sensíveis vívidas, como as de um
“consciência” – e esse é o caso do conhecimento
pulo, de um latido, de um corpo peludo. Estes são
conceitual; ou (2) elas devem, em primeiro lugar,
o cão real, a presença completa do cão para meu
simplesmente existir, como tantos entes ou fatos
senso comum. Se o suposto falante for um filósofo
últimos do ser; e então, como um embaraço secun-
profundo, embora aqueles dados possam não ser
dário, e sem dobrar sua singularidade entitativa,
para ele o cão real, eles significam o cão real, são
todo ente deve figurar alternativamente como uma
substitutos práticos do cão real, como a represen-
coisa conhecida e um conhecimento da coisa, em
tação era um substituto prático deles, aquele cão
razão dos dois tipos divergentes de contexto no
real sendo um monte de átomos, digamos, ou de
qual se tece a experiência em seu curso geral.
matéria mental, que se encontra onde se encon-
O filósofo representa o estágio mental que vai para além do estágio do senso comum.
tra a percepção sensível tanto na experiência dele como na minha. III O filósofo aqui representa o estágio mental que vai para além do estágio do senso comum; e a diferença é simplesmente que ele “interpola”
Esse segundo caso é o da percepção sensível. Há
e “extrapola” onde o senso comum não faz isso.
um estágio do pensamento que vai além do senso
Para o senso comum, dois homens vêem o mesmo
comum, sobre o qual já falarei mais; porém, o
cão idêntico. A filosofia, percebendo as diferenças
estágio do senso comum é a parada perfeitamente
reais em suas percepções, aponta sua dualidade e
definitiva para o pensamento, primeiramente
interpola entre elas algo como um terminus mais
para os fins da ação; e, enquanto permanecemos
real – primeiro, os órgãos, as vísceras, etc.; depois,
no estágio mental do senso comum, o objeto e o
as células; e então, os átomos últimos; e, por fim,
sujeito se fundem no fato da “presentificação” ou
talvez, a matéria mental. Os termini sensíveis ori-
percepção sensível – a caneta e a mão que eu vejo
ginais dos dois homens, ao invés de aderir-se entre
agora escrevendo, por exemplo, são as realidades
si e ao objeto do cão real, como primeiramente se
físicas que essas palavras designam. Neste caso,
supunha, são então considerados pelos filósofos
não há uma auto-transcendência implícita no
como separados por realidades invisíveis com as
processo de conhecer. O humanismo aqui é apenas
quais, no máximo, eles coincidem.
uma Identitasphilosophie fragmentada. Agora, elimine-se um dos percipientes, e a interNo caso (1), pelo contrário, a experiência represen-
polação converte-se em “extrapolação.” O terminus
tativa de fato transcende-se no conhecimento da
sensível do percipiente restante é tratado pelo filó-
outra experiência que é seu objeto. Ninguém pode
sofo como uma realidade sem muito alcance. Ele
falar do conhecimento de um pelo outro sem vê-los
apenas levou o processo das experiências – assim
como entes numericamente distintos, dos quais
pensa o filósofo – até uma parada definida (porque
um se encontra para além do outro e fora dele, em
prática), em algum ponto do caminho rumo a uma
alguma direção e com algum intervalo, que pode
verdade absoluta, que permanece para além.
ser precisamente indicado. Mas, se quem estiver No entanto, o humanista vê o tempo todo que não
esse intervalo da distância de maneira concreta e
há uma transcendência absoluta nem mesmo acerca
pragmática e confessar que ele consiste de outras
das realidades mais absolutas assim conjecturadas
experiências intervenientes – se não das atuais,
ou acreditadas. As vísceras e células são só perceptos
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falando for um humanista, ele também deve ver
33
FILOSOFIA
possíveis que seguem-se aos do corpo exterior. Os
concepção ou imaginação. Ambas são termini provi-
próprios átomos, embora talvez jamais cheguemos
sórios ou finais, a sensação sendo apenas o terminus
a um meio humano de percebê-los, são ainda defi-
no qual habitualmente se detém o homem prático,
nidos perceptualmente. A própria matéria mental é
enquanto o filósofo projeta um “além” na forma
concebida como um tipo de experiência; e é possí-
de uma realidade mais absoluta. Esses termini para
vel conceber a hipótese (tais hipóteses não podem
os estágios prático e filosófico do pensamento são
ser excluídas da filosofia por lógica alguma) de dois
auto-sustentados. Eles não são “verdadeiros”
cognoscentes de um pedaço da matéria mental e a
de nenhuma outra coisa, eles simplesmente são,
própria matéria mental tornando-se “confluentes”,
são reais. Eles “não se apóiam em nada”, como
no momento em que nosso conhecimento imper-
dizia minha fórmula em itálico. Ao invés disso,
feito poderia passar para um tipo de conhecimento
todo o tecido da experiência se apóia neles, como
concluído. Mesmo você e eu habitualmente repre-
todo o tecido do sistema solar, incluindo várias
sentamos nossas duas percepções e o cão real como
posições relativas, por sua posição absoluta no
confluentes, embora apenas provisoriamente e para
espaço, apóia-se em qualquer uma de suas estre-
o estágio mental do senso comum. Se minha caneta
las constituintes. Aqui, mais uma vez, temos uma
for internamente feita de matéria mental, não há
Identitatsphilosophie em forma pluralística.
agora confluência entre a matéria mental e minha visão perceptiva da caneta. Mas é concebível que
IV
possa haver tal confluência; pois, no caso da minha mão, as sensações visuais e os sentimentos inter-
Se consegui tornar claro tudo isso (embora eu
nos da mão, sua matéria mental, por assim dizer,
tema que a brevidade e a abstração nessas coisas
são agora mesmo tão confluentes quanto quaisquer
tenham-me levado ao fracasso), o leitor perceberá
duas coisas podem ser.
que a “verdade” das nossas operações mentais
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A sensação é apenas o terminus no qual habitualmente se detém o homem prático, enquanto o filósofo projeta um “além” na forma de uma realidade mais absoluta.
34
deve sempre ser um assunto intra-experimental. Uma concepção é considerada verdadeira pelo senso comum quando se pode fazer com que ela leve a uma sensação. A sensação, que para o senso comum não é tão “verdadeira” quanto “real,” é defendida pelo filósofo como sendo provisoriamente verdadeira, na medida exata em que cobre (tangencia, ou ocupa o lugar de) uma experiência ainda mais absolutamente real, em cuja possibilidade, para alguém que experimenta mais remotamente, o filósofo encontra razão para acreditar.
Portanto, não há brecha na epistemologia
Entretanto, o que realmente conta como verdadeiro
humanista. Seja o conhecimento tomado como
para qualquer pensador individual, seja ele um
idealmente perfeito, ou apenas como verdadeiro o
filósofo ou homem comum, é sempre um resul-
bastante para servir à prática, ele depende de um
tado de suas apercepções. Se uma nova experiência,
plano contínuo. Por mais remota que seja, a reali-
conceitual ou sensível, contradiz muito enfatica-
dade é sempre definida como um terminus dentro
mente nosso sistema pré-existente de crenças, em
das possibilidades gerais da experiência; e o que
noventa e nove por cento dos casos ela será tratada
a conhece se define como uma experiência que a
como falsa. Apenas quando as experiências mais
“representa”, no sentido de ser substituível por ela em
antigas e as mais novas são congruentes o bastante
nosso pensamento porque leva às mesmas associa-
para mutuamente aperceberem-se e modificarem-
ções, ou no sentido de “apontar para ela” através de
-se é que resulta aquilo que consideramos um
uma cadeia de outras experiências que intervêm ou
progresso na verdade [...] Porém, a verdade não
podem intervir.
precisa de forma alguma consistir de uma relação entre nossas experiências e algo arquetípico ou
A realidade absoluta aqui mantém a mesma rela-
trans-experimental. Se nós chegássemos a expe-
ção com a sensação que a sensação mantém com a
riências absolutamente terminais, experiências
sobre as quais todos concordássemos, que não fossem suplantadas por nenhuma correção posterior, elas não seriam verdadeiras, seriam reais, simplesmente seriam, e de fato seriam os ângulos, cantos e cavilhas de toda a realidade, na qual residiria a verdade de todo o restante. Apenas as outras coisas levadas por conjunções satisfatórias até aquelas seriam “verdadeiras.” Alguma conexão satisfatória com esses termini é tudo o que quer dizer a palavra “verdadeiro.” No estágio mental do senso comum, as representações sensíveis servem como tais termini. Nossas idéias, conceitos e teorias científicas passam por verdadeiros apenas na medida em que harmoniosamente levem-nos de volta para o mundo do sentido. Espero que muitos humanistas endossem esta minha tentativa de traçar as características mais essenciais de tal forma de ver as coisas. Tenho quase certeza de que os Srs. Dewey e Schiller farão isso. Se os críticos também a levarem um pouco em conta, pode ser que a discussão erre menos o alvo do errou até aqui. Traduzido por Bernardo Campella
JANEIRO 2014 35
FILOSOFIA
Fragmentos sobre o ceticismo, John. H. Newman Tradução de “Fragments on Cepticism”, 30 de abril de 1853.
Pouco a pouco perdemos toda aquela confiança que outrora fora tão simples, com ou sem o poder de vincularmo-nos a qualquer outra confissão. mas porque há em operação princípios <agentes> mais profundos e mais sutis de nossa natureza, os quais, no estado de guerra contra a religião que lhe é peculiar, fazem uso da livre investigação ou da obstinação irracional como seus instrumentos. Orgulho, sensualidade, egoísmo, mundanismo, desconfiança de Deus e semelhantes maus princípios são os verdadeiros inimigos da religião; e, como estes são o espírito dominante de todas as eras do mundo, a forma que sua hostilidade assume contra ela, numa era de ignorância, é a superstição; numa era de investigação, é o ceticismo. Começamos com o que recebemos quando crianças; aceitamos, apreciamos e defendemos o que nos foi ensinado; pode ser que deparemos com dificuldades que talvez não sejamos capazes de responder, que podem nos importunar, mas que não abalam nossa confiança. Tentamos responder às objeções,
JANEIRO 2014
A 36
as quais sentimos e contornamos para prosseguir tendência de uma era de pensamento,
sem grandes problemas intelectuais. Por fim, à
vista como divorciada da influência da
medida que nossa mente se desenvolve, acumu-
religião, é cair num estado de ceticismo,
lamos informações, conhecemos mais o mundo
assim como a tendência de uma era de
e exercitamos nosso espírito com mais liber-
ignorância, divorciada dessas tendências, é cair na
dade, surgem perguntas que realmente requerem
superstição. De fato, e mesmo do ponto de vista
uma resposta, as quais, se estamos fora da Igreja
histórico, tanto a estagnação quanto a atividade do
Católica, começam a abalar a confiança implícita
pensamento <intelecto> têm sido hostis à verdade
que nutríamos até então no credo que recebemos
divina; não decerto por algo que lhes é intrínseco
de nossos pais ou de nossos venerados instrutores.
– pois a religião realmente é favorecida pela livre
Pouco a pouco perdemos toda aquela confiança que
investigação, embora possa prescindir dela –,
outrora fora tão simples, com ou sem o poder de
vincularmo-nos a qualquer outra confissão. Talvez
conveniências políticas podem ser recrutadas em
às vezes pensemos que o fizemos; todavia, em
seu favor; pode converter-se de um dogma religioso
geral, nossa mente se abriu muito mais verdadeira-
numa instituição social e civil; pode desenvolver-se
mente ao vazio daquilo em que um dia acreditamos
como um establishment; e pode entrelaçar-se com as
do que para a verdade de qualquer outra coisa.
leis de um país. Dessa forma, uma mentira bem-
Entretanto, por algum tempo professamos outro
-sucedida <fraude> ou um sonho pode tornar-se a
credo e nos apegamos firmemente a ele. Mas o
joia mais radiante na coroa de um monarca, o palá-
mesmo processo se repete, a mente continua em
dio das liberdades de um país ou a pedra angular
ação e se enche de objeções a que não pode respon-
de sua filosofia; até que a estrutura social e política
der. Vê o abismo sem fim que se encontra diante
se rompa, e a opinião religiosa desapareça junto
dela, mas não está disposta a ceder nem por um
com ela. Ou pode ser cerceada ou combinada com
segundo; sente estar virtualmente a um passo de
sanções de natureza terrível, com anátemas con-
alcançar a verdade. Tenta modificar e emendar sua
cernentes a sua negação, com bênçãos aos seus
teoria da melhor maneira possível; torna-se eclé-
apoiadores, com a voz de um grande partido reli-
tica ou tenta projetar-se nalguma autoridade. Uma
gioso, e assim perpetuar-se no mundo.
tentativa ou outra a faz manter-se em sua posição; mas no que diz respeito a atividade, clareza, honestidade e vigor intelectual, a tentativa se mostra desesperada; e, conforme o tempo passa, lenta e calmamente paira sobre a superfície aberta de um oceano sem litoral a morte profunda do interminável e desesperado ceticismo, o estado em que não se crê em nada, não se professa nada e talvez nem se conjeture nada. O ceticismo não pode satisfazer-se sem uma teoria
A religião supre uma carência na natureza humana; sem ela um homem não é perfeito e completo na perfeição e na totalidade de suas potências.
ou visão positiva para expressar e então justificar suas determinações, e a visão que ele adota da ver-
É tão necessária uma fé permanente para o bem-
dade religiosa e do dever do homem é a seguinte:
-estar nacional e temporal, tão desejável estar
que na religião não podemos ir além da opinião e
livre de controvérsias, tão adequado ter um senso
que as opiniões estão sempre em formação e des-
moral e religioso implantado num povo, tão difícil
truição – tal como bolhas de ar, que são brilhantes e
de imprimir na população, que mentes judiciosas e
promissoras, até que estouram. Ou como as ondas,
filantrópicas sem uma centelha de fé em sua ver-
que conferem movimento à superfície monótona
dade ainda podem regozijar-se com seu sucesso,
do mar e parecem estar aumentando e construindo
olhar com assombro e com ódio para aqueles que
algo de forma e substância permanentes, mas que
a subverteriam – ainda que lhes pareça falsa – e
rui e desaparece tão rápido quanto se ergue. Por
podem tolerar uma fraude piedosa melhor do que
toda parte, em toda mente ativa (continuarão a
uma verdade irreligiosa. Por isso eles a incentivam,
dizer) essas criações sempre estão vindo à existên-
a apoiam, fazem qualquer coisa, mas no recôndito
cia, conforme o acidente do tempo; e, conquanto
de seus corações eles mesmos a reconhecem, e isto
sejam normalmente evanescentes, ainda assim as
por pura benevolência, uma vez que a religião supre
circunstâncias podem conferir-lhes uma consis-
uma carência na natureza humana; sem ela um
tência temporária e uma aparência de durabilidade.
homem não é <perfeito e completo> na perfeição
O poder do governo, a influência dos poderosos, os
e na totalidade de suas potências (Vide o lamento
interesses de classe, a imaginação popular, o cará-
de Carlyle sobre a loucura da Revolução Francesa).1
ter nacional, tudo pode conspirar para estabelecer Se questionadas quanto a sua fé em Deus, ou se
seguintes. Então educação, hábito, associação e
estão contentes de levar seu ceticismo às últimas
___________________________________________________
1. Capítulo final de The French Revolution. [Disponível em vários formatos, aqui: http://www.gutenberg.org/ebooks/1301].
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e fossilizar a vida efêmera e legá-la às gerações
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FILOSOFIA
consequências, algumas dessas pessoas <homens> sustentarão até o fim que não têm certeza de nada; outras não terão seriedade suficiente para responder a pergunta de jeito nenhum; outras serão felizmente incoerentes e admitirão a verdade; e estas têm encontrado uma moral ou uma utilidade na incerteza melancólica que confessam. Dirão que a busca pela verdade nos proporciona maior benefício moral que a sua posse; que não devemos possuí-la nunca, mas sempre buscá-la; que jamais seremos condenados por [não] possuí-la, porque não a podemos possuir, ou porque não há verdade religiosa ou porque uma verdade religiosa não é mais verdadeira do que outra, mas estaremos totalmente condenados se não a buscarmos adequadamente. [Dirão que] sinceridade, imparcialidade, honestidade e perseverança são as virtudes que nos trarão sãos e salvos ao céu, não a fé. Outros vão além e dizem que a busca do conhecimento é muito mais agradável e melhor que o próprio conhecimento – e alguns deles, por isso mesmo, descartando a noção católica de recompensa futura do bem, que consiste na visão beatífica <visão de Deus>, consideram que esta consiste numa vida assim: ocupada, inquisitiva <aquisitiva> e diversificada. Estou dando um relato genérico da escola em questão, que não pertence como um todo a nenhum indivíduo, mas numa medida mais plena ou mais restrita <parcial> a esta ou aquela pessoa.
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Traduzido por William Campos da Cruz
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Trechos de “Ethik und Volkswirtschaft” (1908), com revisão do alemão por Henrique Garcia.
D
urante a Primeira Guerra Mundial, houve
desse desafio, ele teria de se basear num funda-
muita discussão sobre o que se via então
mento mais profundo e mais sólido do que aquele
como o pleno colapso do direito inter-
que a filosofia do direito dominante poderia for-
nacional. O que transpirava durante a
necer. Sua força vinculante não pode derivar
Guerra deixava claro que importantes áreas e prin-
exclusivamente da vontade arbitrária dos Estados,
cípios subjacentes ao direito internacional eram,
da tradição, da força ou dos interesses dominantes.
na melhor das hipóteses, ainda fragmentários.
Pelo contrário, ela deve se enraizar num imperativo
Ficou ainda mais evidente que, sob a pressão dos
moral muito mais básico, isto é, numa lei natural
perigos que surgiram para enfrentá-los, muitos
universalmente válida que derive do próprio Deus.
Estados recorreram na prática a políticas que esta-
Na verdade, o direito das nações só pode se tor-
vam em flagrante violação das exigências do direito internacional. No entanto, cada vez mais esse comportamento evocava ou confirmava a convicção, mesmo entre especialistas, de que o direito internacional, longe de ter perdido sua importância, era de especial relevância para o período de transição entre a Primeira Guerra Mundial e uma nova ordem em tempos de paz, quando o mundo encararia tarefas vitais e desafiadoras, de uma magnitude com a qual talvez jamais tivesse lidado antes na história.
nar uma força vital, fértil, cultural e durável para a liberdade e para a civilização se, associando-se com
Para que o direito internacional estivesse à altura
nossas mais sagradas tradições, for de novo mais
JANEIRO 2014
As leis morais possuem validade universal. Elas ordenam simplesmente toda atividade livre do homem.
HISTÓRIA
A Ética e a Economia Nacional, Heinrich Pesch
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HISTÓRIA
intimamente unido às idéias e princípios do direito
cristã e destacar todo seu valor, porque apenas
e da soberania, do trabalho e da sociedade, do amor
segundo eles é que a lei humana será capaz de se
ao próximo e da paz entre as nações – e todos estes
desenvolver de uma maneira vital e duradoura.”
têm seu fundamento mais seguro no cristianismo. […] [...] Essas idéias incitaram o Comitê do Trabalho para a Defesa dos Interesses Alemães e Católicos na Primeira Guerra, em novembro de 1917, a estabelecer uma Comissão do Direito Cristão Internacional e preparar uma série de artigos sobre a reconstrução da ordem da lei e da paz entre as nações. Obviamente, o campo de atuação da Comissão abstinha-se do envolvimento direto nas atividades relacionadas à estruturação dos tratados de paz à época. Contudo, a Comissão e seu trabalho eram também motivados por um reconhecimento
O homem não é só um apêndice do mundo material em que vive. Ele também tem obrigações morais para com as pessoas e a comunidade nacional da qual faz parte como indivíduo.
de que os católicos em outros países nas últimas décadas haviam dedicado mais atenção ao direito
INTRODUÇÃO
internacional do que os católicos na Alemanha. Naturalmente, dadas as condições dominantes
1. Há obrigações morais na vida econômica? Como
de então, tal negligência da parte dos católicos
dizia George von Mayr,1 a pergunta pode parecer
alemães poderia levar a conseqüências unilate-
tola, pois não é fácil atinar com uma boa razão por
rais e prejudiciais para a Alemanha. Ademais, há
que os mandamentos morais não se aplicariam
também a importante consideração de que as con-
justamente nesse importante setor da vida social
tribuições científicas derivadas da cultura católica
a que chamamos atividade econômica.
JANEIRO 2014
nos últimos séculos, como respeitáveis estudiosos
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reconhecem, proporcionam importantes rique-
As leis morais possuem validade universal. Elas
zas frequentemente ainda não apreciadas, que
ordenam simplesmente toda atividade livre do
unicamente carecem de reconhecimento e desen-
homem. Por conseguinte, são válidas também para
volvimento entre os interesses universais da
aquele setor particular da atividade humana que
ciência e da cultura.
diz respeito à vida econômica.
Nós consideramos um presságio especialmente feliz
Porém, não é de todo supérfluo recordar os homens
para o futuro de nossa empreitada que um dos maio-
dessa verdade simples e auto-evidente, pois os
res promotores e aliados da unidade cristã entre as
seguidores de uma visão de mundo materialista
nações, o Papa Bento XV, em 30 de dezembro de
– míopes admiradores do desenvolvimento eco-
1917, tenha oferecido suas felicitações à fundação
nômico moderno –, em seu projeto temerário de
da Comissão depois de ter sido notificado sobre
eliminar todos os obstáculos que possam inibir a
essa empreitada pelo cardeal V. Hartmann. Ele
aceleração desse desenvolvimento, não hesitam
também ofereceu suas bênçãos para que o esforço
em excluir da vida econômica qualquer conside-
proposto tivesse, em suas palavras, “um efeito mais
ração de ordem moral. Até Sombart2 sugeriu que
significativo e benéfico no meio do presente caos
todos os impulsos morais e expressões de um
internacional, onde é especialmente urgente apre-
senso de justiça teriam de se conformar ao dado de
sentar à luz adequada os princípios da moralidade
uma ordem social economicamente avançada. Só
___________________________________________________
1. Die Pflicht im Wirtschaftsleben (1900), 8f. 2. Schriften des Vereins für Sozialpolitik, 88 (1900), 253f.
nesse âmbito é que a moral conseguiria enraizar-
material e interage com a civilização. A ativi-
-se. Deveríamos adotar,primeiramente, as formas
dade econômica é uma parte componente da vida
mais eficientes de organização econômica, e só
humana e da vida sócio-política da comunidade. É
então nos preocuparíamos com a moral ou qual-
importante destacarmos, em primeiro lugar, quão
quer coisa do tipo. Segundo essa visão, a moral,
importante é a moral cristã para o progresso cul-
em última análise, não tem nenhuma influên-
tural, para a estruturação correta daquele estado da
cia decisiva sobre a fisionomia do progresso, e a
perfeição civil, política e social a que normalmente
ordem social não está fundamentada na moral;
nos referimos como civilização, e para o completo
ao contrário, a moralidade que tentasse impor-se
desenvolvimento e ordenamento da vida social
às custas daquilo que uma concepção materialista
como um todo.
entende por progresso chegaria mesmo a impedir todo desenvolvimento social.
Se realmente foi uma tolice de Schleiermacher e Ziegler, entre outros, supor na realização da
Nós temos uma concepção diferente. A moral é,
prosperidade temporal e no progresso cultu-
sim, compatível com todo tipo de progresso téc-
ral constante da raça humana o “sumo bem”,
nico e econômico enquanto tal. Ela não inibe nem
contudo o progresso da cultura e da civilização é
atrapalha a eficiência e a realização que sirva para
realmente um bem importante na visão cristã, um
promover o genuíno bem-estar humano. Ao con-
bem querido pelo próprio Deus, e por isso semear
trário, ela promove esse bem-estar. Porém, as
e compartilhar cultura entre as pessoas permanece
relações econômicas não se reduzem à mera uti-
uma missão da raça humana em seu desenvolvi-
lidade técnica e econômica, nem são reguladas por
mento histórico. No fim, não se trata senão da
esta tão-somente. O homem não é só um apêndice
gradativa manifestação da imagem divina encer-
do mundo material em que vive. Ele também tem
rada na natureza humana e da participação no
obrigações morais para com as pessoas e a comu-
domínio de Deus sobre a natureza – participação
nidade nacional da qual faz parte como indivíduo.
que, conquistada e afirmada conforme as exi-
Na verdade, a prosperidade material das nações é
gências da lei moral, implica simultaneamente a
essencialmente condicionada pela vigência prática
consumação e a promoção dos objetivos mais ele-
da lei moral e pelo grau de moralidade existente na
vados do homem e da humanidade.
vida econômica da nação. Essa é a tese que queremos desenvolver nas páginas seguintes; e, quando falarmos em ética, teremos em mente a moral cristã. “Se eliminarmos todos os valores e poderes éticos, e se instalarmos no seu lugar o instinto puramente natural do amor-próprio como a força que orienta a economia, e se dermos um passo adiante e exigirmos uma liberdade completa para essa força orientadora na busca dos indivíduos pelo lucro, então não deveremos nos surpreender com as conseqüências. Um sistema
A noção de personalidade e de direitos subjetivos está diretamente ligada aos objetivos individuais próprios do homem e em particular aos objetivos mais elevados da existência humana.
que parta de premissas falsas – como faz o sistema da livre-iniciativa – e que seja auto-contraditório só
3. Uma idéia que se tornou cada vez mais mani-
pode levar a conseqüências absurdas quando entrar
festa como resultado do impacto da moral cristã
em operação. E quais são essas conseqüências absur-
no curso da história, ainda que às vezes se perca a
das? Elas podem ser resumidas em duas palavras:
visão disso, é a noção da verdadeira natureza humana
capitalismo e socialismo.”
– o conceito de humanidade. É pelo bom cultivo, educação e ordenamento interior de sua própria natureza, das suas faculdades
A vida econômica incide no campo da cultura
intelectuais e da sua vontade, pelo controle dos
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I. A VIDA ECONÔMICA E A VIDA EM SOCIEDADE
41
HISTÓRIA
instintos e paixões inferiores e pela submissão
opressão nas áreas coloniais. A grande lei da cari-
deles à razão e à consciência, e, finalmente,pelo
dade cristã transcende as fronteiras de cada Estado,
direcionamento destes à moderação e ao seu fim
fornecendo um critério de Justiça e de Direito para
próprio, que o homem se torna um ser humano no
além delas. Mesmo o viajante solitário no deserto,
sentido pleno do termo. É dessa forma que ele se
na medida em que é um ser humano, preserva seus
eleva acima do nível animal, ao qual ele mergulha
direitos e reinvidicações de auxílio, que ninguém
sempre que perde de vista suas obrigações morais
pode violar sem incorrer em delito moral. Todas
e,com isso, também a dignidade de sua própria
as pessoas, tanto as da Judéia como as da Samaria,
natureza. É assim que ele se torna capaz das rela-
e todos aqueles que demonstraram tanta hostili-
ções sociais com outros seres humanos.
dade contra nós alemães, como os russos, ingleses,
Em nenhum outro lugar essa unidade da raça humana encontra sua expressão mais claramente do que na vida da Igreja de Cristo.
franceses, americanos – todos esses permanecem filhos da grande família de Deus. Quando rezamos o Pai Nosso, pedimos que eles também possam ter seu pão de cada dia, assim como o perdão pelos seus erros; e, mais ainda, não podemos esperar ganhar o perdão de nossos próprios pecados se não estivermos preparados para perdoar os pecados deles contra nós.
Ao mesmo tempo, a moral cristã salvaguarda o
Em nenhum outro lugar essa unidade da raça humana
valor próprio do indivíduo humano no âmbito
encontra sua expressão mais claramente do que na
externo, seja ele operário ou empresário, subordi-
vida da Igreja de Cristo. Aí, os ricos e pobres têm a
nado ou supervisor, livre ou escravo. A noção de
mesma origem, o mesmo fim, o mesmo Pai em
personalidade e de direitos subjetivos está direta-
comum no céu, o mesmo Redentor, e a mesma
mente ligada aos objetivos individuais próprios do
condição natural e sobrenatural como filhos de
homem e em particular aos objetivos mais eleva-
Deus. Quando os mais pobres dos pobres vêm até a
dos da existência humana. Em virtude do seu fim
casa de Deus, eles se sentem em sua própria casa.
último – seu destino eterno, que é um princípio
Há alguns anos, em Ems, o Rei Jorge da Saxônia
que transcende toda evolução histórica –, o ser
ajoelhava-se junto com os trabalhadores comuns
humano, diferente do que respeita ao mundo exte-
na mesma fila da comunhão e recebia o mesmo
rior em que vive, permanece autônomo. Por isso
Salvador das mãos do mesmo padre. Enquanto
ele não pode se tornar um simples meio a serviço
estive em Berlim, ministrei os sacramentos der-
de algum poder terreno.
radeiros a um pobre alfaiate. O coroinha que me
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auxiliou era descendente de uma nobre família de
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Sem perder sua individualidade, o homem traba-
príncipes. É porventura incomum que filhas de
lha e luta em meio à sociedade. Aí ele se encontra
príncipes ofereçam suas vidas a serviço dos pobres
ao lado de outros homens que podem reivindi-
e enfermos? Na verdade, a freira franciscana que
car os mesmos direitos em virtude de objetivos e
limpa o suor da testa do operário moribundo faz
propósitos idênticos. Tal como ele, essas pessoas
mais e se sacrifica mais por ele do que o agitador
também possuem direito aos meios necessários
socialista que lhe promete o Eldorado em algum
para realizarem seus objetivos de vida, o direito de
lugar no futuro, mas que, nesse ínterim, furta-
trabalhar, de desenvolver e realizar seus destinos,
-lhe sua fé e, junto com isso, a paz de sua alma.
tanto os terrenos quanto os eternos. É a ordem
Na verdade, a Igreja Católica é uma Igreja de
moral que aponta caminhos autenticamente
todas as pessoas, não só uma Igreja para os ricos
humanos aos indivíduos e às nações em suas rela-
e poderosos; não é uma igreja de classes e cas-
ções uns com os outros. É também a ordem moral
tas. Há muito tempo ela conseguiu, segundo suas
que impõe limites a toda arbitrareidade na esco-
próprias constituições, o que os socialistas lutam
lha dos meios e fins específicos. É a solidariedade
tanto para conseguir: a abolição das diferenças de
universal humana que une tudo o que se chama
classe. É na Igreja, onde reina o espírito de Cristo,
humano, que coloca o trabalhador junto do empre-
que todos são abraçados pelo mesmo amor; e há até
gador e que protege o negro contra a exclusão e a
um amor especial pelos pequenos e pobres, para
quem em primeiro lugar é pregado o Evangelho. E
por exemplo, pelo dom da linguagem e seu anseio
nem a Igreja cristã é uma igreja nacional, mas uma
por relações sociais, fica claro que o homem é por
igreja mundial e uma igreja de todas as nações, que
sua própria natureza um ser social. Ele vem a este
abarca toda a raça humana. Para o cristão genuíno,
mundo como um membro de sua família, de sua
o estrangeiro não é algum tipo de inimigo ou bár-
tribo, de seu clã e de sua comunidade nacional. Ele
baro. Ele é seu amigo e seu irmão.
se beneficia por ser membro de uma comunidade,
A unidade nuclear original da sociedade humana é a família.
sem ter sua individualidade por isso suprimida. Mas ele também precisa conformar-se à sociedade e até subordinar-se a ela como uma comunidade mais alta e determinante; e deve servir aos fins da comunidade e do bem-estar das pessoas com que se associa na vida da comunidade. A essa noção de
Theodore Meyer3 disse que a irmandade entre os
serviço a ser realizado por dever está relacionado o
homens baseia-se num vínculo natural onímodo,
pensamento cristão acerca da profissão ou função na
a saber, a nobreza comum que vem das mãos de
sociedade. A personalidade ética da pessoa humana
Deus, a solidariedade daqueles que dividem o
se desenvolve ao cumprir com seu dever de estado
mesmo e elevado destino sobrenatural último, a
e, sem dedicar-se a uma profissão definida, a vida
solidariedade daqueles que participam da mesma
virtuosa se torna impossível. Assim, a ética cristã
peregrinação humana em direção ao mesmíssimo
não cultiva o ser humano apenas para um mundo
fim, compartilhando todos os auxílios, perigos,
mais alto na vida que está por vir, mas também,
lutas, esperanças e alegrias que ela envolve. É isso
em um sentido muito específico, para a coopera-
que constitui na consciência humana o quadro
ção nas tarefas que tem diante de si aqui na terra.
moral universal da sociedade humana. Sempre que
Como F. W. Foerster observou,4 ela transforma o
o vínculo ético da caridade humana universal perde
indivíduo centrífugo em um indivíduo centrípeto;
sua efetividade, os interesses privados puramente
e nos recônditos mais íntimos do indivíduo, dá a
egoístas inevitavelmente passam ao primeiro
luz um tipo de vida que transcende a mera indi-
plano e se tornam dominantes. O ódio, a inveja e
vidualidade, para tornar possível a sobrevivência
a força bruta então se tornam as forças motivacio-
e o progresso da vida em comunidade com outros
nais que determinam a forma pela qual a sociedade
seres humanos.
se desenvolve. Essa era claramente a condição do mundo pagão após a sua rejeição pecaminosa de
5. A unidade nuclear original da sociedade humana
Deus, o único ponto focal social possível para todas
é a família. É na família que a religiosidade deve
as nações e todas as eras. Mas o novo paganismo,
encontrar sua raiz mais funda e irradicável, como
um grave e pecaminoso afastamento de Deus em
disse A. M. Weiss5, ou então ela jamais prosperará.
nossos próprios dias, como refletido na horrenda
É aí que os fundamentos primeiros e mais seguros
Primeira Guerra, não trouxe o mesmo estado de
da fé, da obediência, do respeito pela autoridade,
coisas? O que Jesus Cristo teria a dizer sobre esse
de um senso de sacrifício pelo bem comum – os
manifesto impulso que as nações exibem para se
cinco fundamentos da estrutura social – se estabe-
destruírem umas as outras?
lecem. É aí também que são nutridas as sementes de uma mentalidade conservadora genuína que
4. Os indivíduos não são simples átomos dis-
respeite os costumes e as tradições e que sirva
persos. A justaposição kantiana entre o “eu” e
de muro protetor para os traços, peculiaridades e
“o mundo” não pode nos levar a um relaciona-
costumes dos sexos, tribos e nações. Aí encontram
mento moralmente correto do indivíduo com a
sua salvaguarda e sua proteção a propriedade, os
comunidade na qual ele vive. O homem é capaz e
hábitos e os modos de trabalho tradicionais para
ao mesmo tempo necessita de realização. Assim,
se adquirirem as coisas. Aí também se formam
3. Die Arbeiterfrage und die christlich-ethischen Sozialprinzipien (1895), 31f. 4. Christentum und Klassenkampf (1906), 106, 108, 112, 115. 5. Soziale Frage und soziale Ordnung, I (1904), 463.
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43
HISTÓRIA
sempre novos laços entre as pessoas, que são na
Muitas das tarefas que costumavam fazer parte da
verdade os laços mais fortes de todos – os laços
economia doméstica agora são feitas também fora
da relação de sangue. Aí elas se unem, e pessoas
de casa, como cozinhar, lavar, abater animais, etc.
cujos caminhos normalmente iriam em direções
Mas significa isso que a família esteja destinada
diferentes são unidas pela amizade e interesses
a ser inteiramente abolida e colocada de lado por
sociais em comum. Só onde a família se estabelece
essa restruturação cultural do campo econômico da
de maneira segura e ordeira podemos esperar a
atividade dentro da família? Pelo contrário, há um
garantia da paz social.
número suficiente de tarefas importantes deixadas
O futuro das nações e a emancipação genuína da mulher devem ser encontrados não na destruição do domicílio familiar e da economia doméstica, mas em sua conveniente restauração.
a cargo da família, que agora podem ser feitas de maneira ainda melhor conforme os entraves econômicos forem sendo suspensos. Schmoller6 dizia que aqueles que mandassem cada pessoa faminta para um restaurante, cada mulher grávida para uma clínica, cada criança desde o nascimento até a idade adulta para uma sucessão de instituições educacionais, teria conseguido simplesmente transformar a sociedade em um agregado de vagabundos interesseiros e egoístas, cujas neuroses e tensões resultariam em um excedente de candidatos aos hospícios. Quanto mais agitada se torna a vida em nossa época, mais importante é garantir
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um laço de amor que seja exclusivo e que envolva
44
Originalmente, a ênfase da vida econômica tam-
o tipo de confiança e respeito que apenas a famí-
bém se encontrava na economia doméstica, que
lia pode dar. O futuro das nações e a emancipação
tinha de servir diretamente como a unidade
genuína da mulher devem ser encontrados não na
econômica que proporcionava a auto-suficiên-
destruição do domicílio familiar e da economia
cia garantidora das necessidades e carências da
doméstica, mas em sua conveniente restauração.
família. Então, conforme as economias de troca
Mas é possível a restauração da vida familiar
gradualmente se espalharam e tornaram-se a
onde prevalece a degradação moral, onde a rela-
regra, atingindo a estabilidade necessária, a antiga
ção sexual se torna um fim em si mesmo, onde o
unidade entre o polo produtivo e o consumidor da
amor é meramente uma paixão, ao invés do verda-
economia desapareceu mais e mais, ao menos de
deiro e genuíno amor baseado no respeito mútuo
forma geral. O homem de nossos tempos busca
e combinado com um senso de responsabilidade
seu rendimento principalmente fora de casa. As
e fidelidade entre cônjuges unidos e devotados à
mulheres e crianças não estão, via de regra, envol-
criação dos filhos? Não foi sem uma boa dose de
vidas na mesma atividade econômica dos homens;
extravagante imaginação que Engels e Bebel tenta-
muitas vezes vão trabalhar em outros lugares.
ram ensinar aos pobres operários que as mulheres
Nas famílias onde se administra algum negócio
em tempos primitivos eram dotadas de liberdade
familiar, como é o caso das pequenas indústrias
sexual e econômica, e que com o desaparecimento
de classe média e famílias agrárias, o significativo
dos direitos da maternidade elas se tornaram pro-
papel econômico da família foi melhor mantido. De
priedade do homem. É claro que as mães de família
outro modo, é só consumo o que se dá em casa. Pai
em grandes cidades metropolitanas e industriais
e filho sentam à mesa para consumir o que a mãe
atualmente não gozam da igualdade de direitos
coloca diante deles. Certos artigos de vestuário e
própria a uma companheira de vida no sentido da
outros bens têxteis talvez possam ainda ser fei-
moral cristã. Pelo contrário, elas servem como ins-
tos em casa, e,com mais freqüência, sua limpeza e
trumentos para satisfazer a luxúria e como escravas
reparo ainda o são. Na verdade, mesmo o lar que se
dos homens. Sem o amor maternal, sem o amor
limite ao consumo hoje corre o risco de ficar vazio.
entre cônjuges, a vida casada é muitas vezes, como
___________________________________________________
6. Grundriss der allgemeinen Volkswirtschaftslehre, I, 255ff.
se alega ter sido em tempos primitivos, apenas um
lealdade de ambos os lados, com uma preocupa-
breve interlúdio de liberdade sexual e econômica,
ção altruísta pelos interesses presentes e futuros
e até pior do que isso! Qualquer um que observe a
da outra parte tamquam sua, em especial pelo seu
vida em nossas cidades e áreas metropolitanas sabe
destino eterno.
bem que é precisamente a destruição da vida em família cristã que constitui o mal difuso que ame-
Agora, desloquemos nossa atenção para outro pro-
aça nossa cultura em seus fundamentos. Ninguém
blema econômico muito importante.
conhece e aprecia o valor da familia cristã melhor do que um capelão em uma das grandes institui-
Há uma relação inegável entre o progresso econô-
ções sociais de nossas áreas metropolitanas.
mico e o aumento populacional. Onde há progresso
7
Há uma relação inegável entre o progresso econômico e o aumento populacional.
econômico, via de regra, a população também aumenta; e, reciprocamente, o fator da população crescente indica um aumento da produtividade, uma maior intensidade na divisão do trabalho, ou na atividade industrial e comercial. Uma população crescente também indica que há mais consumo, sendo esta uma condição do crescente progresso econômico em uma nação. Assim, aumentando a
A restauração da vida familiar também exige uma
população, é possível aumentar a riqueza nacio-
regulação do relacionamento entre os criados e
nal; e o aumento da riqueza nacional proporciona a
seus empregadores. Todos os esforços para resol-
base econômica para uma população em expansão.
ver esse problema serão em vão, a menos que o serviço doméstico novamente venha a ser tratado
Os sábios antigos (como Platão e Aristóteles) já
como uma profissão digna e ocupação honrosa. A
haviam destacado o perigo que representaria um
Imperatriz da Áustria8 nos dá um bom exemplo a
aumento muito rápido na população, com um
esse respeito, sendo que ela carrega o nome de uma
consequente desequilíbrio entre a população cres-
santa que trabalhou como criada: Santa Zita. É uma
cente e os meios de subsistência; e eles também
questão da mais alta importância que a posição dos
sugeriam alguns métodos extremos para lidar com
criados continue a ser uma parte integrante da uni-
o problema. Alguns escritores franceses e ingle-
dade familiar. Não podemos remunerar os criados
ses, junto com Justus Möser, também trataram
simplesmente com dinheiro. Devemos também
do problema mais recentemente. Mas foi Thomas
aprender a tratá-los adequadamente, aliviando o
Robert Malthus quem se dedicou a determinar
fardo associado a uma posição subserviente pelo
como poderia se manter o equilíbrio entre a popu-
respeito e pelo amor, bem como por uma retribui-
lação e os meios de subsistência. Malthus defendia
ção psíquica e por um cuidado familiar condizentes
a restrição moral, ou seja, a abstinência moral do
com a responsabilidade moral. Roscher dizia que o
casamento, seja permanente ou temporária. Onde
ideal a ser buscado no que tange o trabalho domés-
esse método falhasse, a pobreza e a miséria entra-
tico é uma situação em que o trabalho se encaixe e
riam em operação como medidas repressivas. O
se torne parte da estrutura familiar e seja tratado
Neomalthusianismo considerava o método mal-
como tal tanto por patrões como criados. Isso em
thusiano da restrição moral (celibato, casamento
última análise significa que deve haver gentileza
tardio e continência no casamento) no mínimo
por um lado e dedicação pelo outro, assim como
impraticável. Ele exigia intervenções artificiais
9
___________________________________________________
7. Na função de padre jesuíta, Heinrich Pesch serviu por muitos anos como capelão no Convento do Bom Pastor em Berlim, que fornecia abrigo para mães solteiras e mulheres que fugiam de uma vida de prostituição.
exemplar. Depois da sua deposição, eles foram exilados para Madeira, onde Charles morreu em 1º de Abril de 1922. Seu corpo está incorrupto. Ele foi declarado “Venerável” pela Igreja em 12 de abril de 2003, e está em andamento seu processo de beatificação. A imperatriz Zita morreu em 14 de março de 1989, aos 97 anos. 9. Grundlagen der Nationalökonomie, I, Ch. 4, §76.
JANEIRO 2014
8. Pesch se referia à Imperatriz Zita, esposa do último monarca reinante de Habsburgo, Carlos da Áustria. Ambos levaram uma vida cristã
45
HISTÓRIA
no ato procriativo (“paternidade responsável”,
lamentando o fato de que, se a taxa de natalidade
”esterilidade voluntária”, etc.). Kautsky e outros
francesa não aumentar, a França estará perdida.
escritores socialistas também defendiam que,
Contudo, deve estar claro que todas as tentativas
na sociedade do futuro, seria necessária a “rela-
de impressionar as pessoas com a seriedade do pro-
ção sexual contraceptiva”. O Neomalthusianismo
blema não surtiram efeito algum. O processo de
buscou em vão desenvolver uma justificação
descristianização dessa infeliz nação, que começou
teórica para a “política de dois filhos,” e ainda
no período que vai até a grande Revolução, é res-
tenta fazer isso. Fahlbeck disse que esse sistema
ponsável por seu declínio; e essa descristianização
persiste atualmente. 10 Ele se esconde em toda
é a verdadeira causa por trás da aceitação da política
civilização avançada, como o verme se esconde
de dois filhos ali vigente. Acabe-se com a política de
na fruta. Nós preferimos dizer que ele se encon-
dois filhos e as igrejas da França hoje vazias amanhã
tra onde quer que tenha se instalado a decadência,
voltarão a encher. Nem se discute que as errôneas
tendo a cultura moral de uma nação falhado em
disposições de herança do Code Civil também tor-
acompanhar suas conquistas materiais. A causa
nam indesejável possuir um grande número de
mais direta e óbvia por trás da ruína do mundo
filhos. Contudo, a verdadeira razão por trás do sui-
grego e, subsequentemente, do romano foi a cres-
cídio nacional encontra-se alhures: na decadência
cente escassez da população. Mas, como Fahlbeck
moral que muitas vezes acompanha a prosperidade
Se a taxa de natalidade francesa não aumentar, a França estará perdida.
puramente material, que dá ensejo à busca irrestrita do prazer. E essa decadência moral é também sutil o bastante para promover, pela atividade sexual ilícita, os apetites sexuais mais baixos, bem como outros modos de egoísmo indignos de companheiros de casamento e de vida familiar. Essa é a ferida
apontou, esse foi simplesmente o resultado de uma
que debilita a França, e é a raiz do horrendo mal que
falha na procriação: as pessoas cessaram de garan-
lá se difundiu, não só nas grandes cidades e entre as
tir o prosseguimento de sua raça. Por mais que a
classes mais altas, como até mesmo entre trabalha-
doença e a guerra em várias épocas tenham dizi-
dores rurais e a população camponesa. Julius Wolf11
mado a população, especialmente em meados do
contava que, segundo Leroy Beaulieu, a escassez
séc. II d.C., esses déficits teriam sido rapidamente
de crianças é uma conseqüência da “Ecole laique” e
compensados, se a reprodução tivesse perma-
do iluminismo político e religioso. Um excesso de
necido forte, ou pelo menos num nível normal.
nascimentos sobre mortes continua a acontecer
Em nações dinâmicas, o crescimento populacio-
apenas nos departamentos católicos (e de frequen-
nal depois de tais adversidades tende a ser ainda
tadores da igreja) de Vendée, Bretagne, e outros no
maior, de modo que a população retorna ao seu
norte da França. Entre os Walloons na Bélgica, o sis-
nível original em 15 a 20 anos. Portanto, aqueles
tema estatal de ensino que excluiu a religião teve o
infortúnios talvez não tivessem tido consequências
mesmo efeito, porque minou a influência da Igreja.
mais graves, se a procriação não tivesse começado
A taxa de natalidade alemã também caiu conside-
a decair. Nesse caso como em outros, foi a falta de
ravelmente em tempos recentes, e tanto aqui como
procriação que se se tornou uma ameaça fatal para
em outros lugares se prevê um declínio geral. Qual a
culturas em declínio.
verdadeira razão última para isso? Nenhuma outra senão o declínio da fé cristã e da moralidade cristã.
Em nossa época, as conseqüências da política de
Bornträger12 observou nas Veröffentlichungenausdem
dois filhos aparecem de forma especial na deca-
Gebiete der Medizinalverwaltung (Publicações
dência da França. O diretor do Bureau Estatístico
no Campo da Administração Médica) prus-
de Paris, Jacques Bertillon, há muitos anos vem
sianas como em geral é verdade que a crença
JANEIRO 2014
___________________________________________________
46
10. “Der Neomalthusianismus,” in Zeitschrift für Sozialwissenchaft, 6 (1903), 623ff. 11. Der Geburtenrückgang (1912), 95. 12. Citado por Krose, “Geburtenrückgang und Konfession,” in Fassbender’s Des Deutschen Volkes Wille Zum Leben (1917), 215f. Cf. também as contribuições de Walter e Rademacher, e o Geburtenrückgang und Sozialreform (1917) de Hitze.
genuinamente religiosa exerce uma influência
Num país onde não há uma ligação com a casa e
restritiva,impedindo o vício da prevenção contra-
com a terra, há pouco espaço para o amor genuíno
ceptiva, e que, visto que a fé incondicional é mais
pelo lar, pela nação ou pela pátria. Quando a reli-
comum entre católicos do que entre protestantes,
gião cristã consagra e abençoa a casa e a terra, os
e que na Alemanha a influência do clero católico
prados e o pátio da igreja, ela liga o que há de mais
sobre a população é consideravelmente maior do
sagrado com o que são também os sentimentos
que a do clero protestante, o católico sincero está
humanos mais naturais. Como Lagarde indicou, a
mais protegido contra a tentação da prevenção
religião também precisa de um domicílio terreno,
natal do que o protestante.
um lar pacífico no qual se vive e no qual as leis
A filosofia cristã rejeita a tentativa de Rousseau de traçar a origem do Estado a um contrato social. Na verdade, o Estado se baseia em um fundamento muito mais sólido.
da vida são conhecidas, ou pelo menos sentidas, porque se tem diante de si um desenvolvimento progressivo indo de seus ancestrais até seus netos, num processo contínuo. A piedade pede por banquetes por meio dos quais a luz do sol invada os corações humanos. Ela precisa de túmulos onde o amor possa oferecer seus lamentos, onde a esperança suporte a dor, onde o senso de eternidade venha à tona. Ela exige uma idade sagrada anterior da qual absorva o que há de melhor, presevando-a e dando-lhe continuidade, e cuja reverência lhe sirva de pano de fundo para um futuro que espera
Os pais que tentam evitar os fados e sacrifícios
não ter fim.
acarretados pela manutenção de grandes famílias não tem um amor genuinamente saudável
[...]
por crianças. Wendland13 dizia que os filhos provenientes de grandes famílias estão muito mais
II. O Estado e a Economia Nacional: o propósito e
preparados para viver no mundo. Eles cobram
a unidade da economia nacional
menos da vida; eles aprendem desde cedo a ter consideração pelos outros; todo o espírito de casa os
7. A filosofia cristã rejeita a tentativa de Rousseau
inclina a ajudar os outros e a aplicar suas energias
de traçar a origem do Estado e sua autoridade a um
ao máximo. Também nesses lares provavelmente
contrato social, mesmo quando se entende isso no
existe uma vida intelectual mais rica, pois é muito
sentido de um constructo idealizado, ao invés de
grande a influência do incentivo entre as próprias
uma origem histórico-genética genuína. Na ver-
crianças, bem como na interação com os amigos
dade, o Estado se baseia em um fundamento muito
que elas levam para casa. As crianças tendem a ser
mais sólido. Os Estados particulares são, de fato,
menos mimadas, e a queixa de uma velhice soli-
produto direto da história. Contudo, esse desen-
tária é ouvida com menos freqüência entre os pais
volvimento sempre recorrente em direção a uma
que tenham muitas crianças e netos. Devemos nos
sociedade política e ao próprio Estado permanece-
perguntar se não foi a “esperteza matrimonial” a
ria inexplicável se não voltássemos às causas que
responsável por tantas lágrimas amargas durante a
transcendem as meramente históricas, que dão
Guerra, quando a morte tão frequentemente privou
origem a Estados individuais específicos: a saber, a
os pais de alguém que, por ação deles, permanecera
necessidades universais que encontramos na natu-
o fils unique.
reza humana. O homem, sendo quem ele é, exige outros laços sociais além da família e outras formas
[...]
sociais mais restritas derivadas da família, para se desenvolver plenamente e assegurar um modo digno de existência humana. É sua natureza social,
sem um lar é um homem sem uma base firme.”
com sua capacidade e necessidade de realização,
___________________________________________________
13. Handbuch der Sozialethik (1916), 54.
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6. O cardeal Manning observava que “um homem
47
HISTÓRIA
que constantemente o move para além da família
Seja como for, qualquer política social autêntica
em direção àquela poderosa associação mais alta e
que deva conseguir não apenas a ascensão tem-
mais abrangente – o Estado. Pois é pelo Estado que
porária ao poder de uma determinada classe, mas
ele realiza todos seus objetivos temporais humanos
que se dirija também a elevar os relacionamen-
que sem ele seriam inatingíveis. Por sua vez,aquilo
tos entre os vários grupos de interesse a um nível
que constitui a base para a existência e o desen-
permanente de reciprocidade social e comunidade
volvimento da sociedade a que chamamos Estado
vital genuína, encontrará um apoio fundamental e
também impõe limites ao seu fim. O Estado deve
sólido no princípio cristão de solidariedade e do dever
fazer por seus membros o que eles, por suas pró-
comum para com as causas públicas, em outras pala-
prias capacidades pessoais e pelas capacidades de
vras, a responsabilidade solidária de todos pelo
sociedades inferiores dentro do Estado, não podem
bem comum da nação.
realizar; e isto inclui a proteção ordeira e garantida de seus direitos, da efetiva assistência e da
A justiça distributiva exclui toda a arbitrariedade da
verificação de que suas deficiências sejam supri-
parte das autoridades estatais na maneira pela qual
midas pelo poder que os cidadãos de um Estado
distribui os benefícios e responsabilidades públi-
possuem quando agem em concerto. Em resumo, o
cas. Os benefícios devem ser distribuídos com
fim do Estado consiste em fornecer, salvaguardar
base no merecido e no necessário. Foi segundo
e complementar a soma dessas condições sociais,
esse princípio que Leão XIII, na encíclica Rerum
instituições e estruturas que sozinhas forne-
Novarum, pediu por uma proteção especial à classe
cem e preservam a todos os membros do Estado a
trabalhadora. Por outro lado, as responsabilida-
capacidade mais plena de assegurar e manter sua
des também devem ser distribuídas com base nas
prosperidade temporal por conta própria e pelo
capacidades. No que tange às cargas tributárias, os
uso de suas próprias capacidades. A realização
cidadãos individuais não tem apenas um tipo de
direta do bem-estar dos indivíduos particulares
relação de troca com o Estado, como se sua carga
pelo Estado ocorre apenas em casos excepcionais,
tributária fosse determinada segundo os benefícios
em que outros auxílios apropriados para esses fins
que cada cidadão deriva do Estado (conforme a teo-
estejam em falta ou sejam inadequados. Então o
ria liberal de juros respectivos e de seguro). Não: há
envolvimento por parte do Estado se torna neces-
uma obrigação genuína para se pagarem os impos-
sário para a prevenção ordeira e efetiva da miséria
tos, obrigação que não se baseia em benefícios
e da pobreza entre as pessoas que são incapazes de
particulares recebidos do Estado pelo indivíduo,
ajudar a si próprias.
mas no fato de que a pessoa é um membro do corpo
Podemos continuar a perceber as vantagens da monarquia sem ver a democracia como o “ápice da impiedade.”
político. Especialmente em nossa época, diante da necessidade de se distribuírem encargos cada vez maiores e dos esforços para se adquirirem novas fontes de renda aumentando o direito à propriedade – uma tendência que pode se tornar ainda mais dominante depois da Guerra –, o Estado deve não apenas tomar cuidado para evitar todo tipo de injustiça contra indivíduos e unidades econômicas individuais, mas também contra grupos inteiros de interesses comerciais e grupos ocupacionais den-
[...]
tro da economia, para que o eventual dano a toda a economia nacional seja desproporcional a qualquer
Benjamin Kidd atribui o avanço vitorioso do
vantagem material que o Estado pudesse adquirir.
JANEIRO 2014
movimento trabalhista na Inglaterra ao impacto
48
centenário da religião cristã que penetrou nos
Podemos continuar a perceber as vantagens da
recônditos da consciência e também permeou
monarquia sem ver a democracia como o “ápice
toda a literatura, de modo que o clamor das clas-
da impiedade.” De qualquer modo, não é possível
ses mais baixas por dignidade humana e direitos
deduzir da religião cristã nem uma forma par-
iguais veio a ser associado com as convicções mais
ticular de Estado ou governo nem a necessidade
nobres e profundas de todas as pessoas decentes.
de algum tipo particular de sistema econômico.
Contudo, para todas as formas de Estados e gover-
vínculos morais, não de um modo que a comuni-
nos, o propósito do Estado se soma ao tipo de
dade nacional ou o Estado acabe sendo o sujeito
imperativo que se impõe às vontades de todos os
do processo econômico, mas porque os cidadãos,
membros do Estado, cidadãos e autoridades públi-
no que diz respeito às suas atividades econômi-
cas, e disso surgem importantes obrigações morais
cas, estão também subordinados aos propósitos
na área econômica. Em todos os casos, o cidadão
do Estado, para que também devam servir à pros-
deve subordinar seus interesses privados aos inte-
peridade geral, que é comum a todos. Esse tipo de
resses da comunidade, conforme o princípio dos
unidade não acaba com a independência econômica
direitos conflitantes. Ele deve assumir sua parte no
das unidades econômicas individuais no sentido
encargo comum segundo a medida de suas capaci-
em que o comunismo ou o socialismo estatal faria.
dades, e deve obedecer às regras das autoridades
Ela não elimina a pluralidade de economias. O
legítimas estabelecidas com vistas à prosperidade
Estado não se torna co-extensivo com a sociedade
de toda a comunidade. Por outro lado, as autorida-
e não elimina a atividade individual por parte de
des estatais são obrigadas a apoiar o bem comum
seus cidadãos e as atividades das organizações de
Mas também não há espaço para o absolutismo das autoridades estatais. Os direitos do Estado não vão além do seu fim.
cidadãos na área econômica. A socialização não se justifica pelo simples fato de que pareça ser técnica e economicamente possível e útil; também se deve provar que ela seja financeira e economicamente necessária em cada caso individual. Como Schäffle coloca: tenhamos uma política econômica expandida, porém apenas em casos extremos uma economia estatal! Em suma, a independência e a autonomia de unidades econômicas individuais
da comunidade no máximo que permitirem seu
devem continuar. Contudo, a economia nacional
conhecimento e capacidades. Não há espaço aqui
transforma a pluralidade dessas unidades econô-
para o conceito de um Estado vigilante, para um
micas em uma unidade social genuína pelo fim que
tipo puramente utilitário-econômico de Estado que
todos os cidadãos devem cooperar para realizar. O
tenha como seu fim único proteger as liberdades de
homo oeconomicus é um cidadão, e continua a sê-lo
competidores egoístas e a propriedade de um tipo
também quando age como uma pessoa econômica.
de criatura bípede que não possui um fim mais alto
Mesmo nas relações econômicas internacio-
na vida do que comprar com o preço mais barato
nais que se estendem para além das fronteiras
possível e vender com o preço mais alto possível.
do Estado, ele não é um cidadão do mundo que
Mas também não há espaço para o absolutismo das
não tem responsabilidades para com o Estado. Se
autoridades estatais. Os direitos do Estado não vão
“economizar” significa trabalhar para adquirir
além do seu fim. Dentro do Estado persiste uma
bens materiais para a satisfação das necessidades
esfera de liberdade individual inviolável, não só
humanas, então é tarefa da “economia nacional”
para os direitos mais altos da pessoa moralmente
como unidade social, controlada pelos fins para os
livre, como também para os negócios, atividades e
quais o Estado existe, realizar o tipo de satisfação
fins mais estritos da área econômica, contanto que
das necessidades da nação que esteja de acordo
não infrinjam o bem-estar público. Para realizar o
com o nível cultural dado, e que possa ser tratada
seu fim último, o Estado pode limitar a liberdade
nesse sentido como riqueza nacional derivada da
onde isso for necessário, mas jamais eliminá-la.
prosperidade pública e das ações de seus cidadãos. O conceito orgânico reconhece que o Estado possui
[...]
certas tarefas que lhe são peculiares e que transcendem os indivíduos que compõe o Estado. Assim, o fim da economia nacional também se eleva acima
a simples soma das unidades econômicas indivi-
dos fins subjetivos dos indivíduos econômicos. Mas
duais cujo único elo sejam as relações contratuais
ele não põe de lado e suprime esses fins, contanto
estabelecidas entre si, assim como o Estado não é
que eles estejam em harmonia com o fim eco-
a mera soma de cidadãos-átomos. Ao invés disso,
nômico nacional. Pois, assim como o Estado não
a economia nacional é uma unidade mantida por
é um organismo físico, onde os membros sejam
JANEIRO 2014
A economia nacional não pode ser tratada como
49
HISTÓRIA
meramente membros e nada mais do que isso,
[...]
sem nenhum grau de autonomia e independência próprias, a unidade da economia nacional também
…segundo nossa abordagem, a noção de comuni-
possui o mesmo caráter moral-orgânico. Os cida-
dade que encontrou expressão tão clara durante
dãos engajados na atividade econômica não servem
a [primeira] Guerra Mundial tem seu firme apoio
apenas ao fim comum; eles também têm seus pró-
em Deus e na vontade de Deus, na qual em última
prios fins. Eles permanecem seres humanos livres,
análise se baseia a ordem no mundo – um fun-
e a melhor garantia de sua liberdade repousa no
damento totalmente distinto de pensamentos e
fato de que esta não é um absoluto para cada indi-
sentimentos do capricho humano, do entusiasmo
víduo, mas se vê limitada pelas reinvidicações e
patriótico, ou da mudança constante das circuns-
interesses legítimos dos seus concidadãos – assim
tâncias extrínsecas. Vemos os indivíduos não
como a liberdade civil política é limitada pelos fins
como simplesmente deixados soltos para seguir
da comunidade nacional organizada na forma de
suas próprias inclinações egoístas, mas como uni-
um estado político.
dos a toda a comunidade por obrigações, respeito
Isso só faz sentido se o todo é algo mais elevado e precioso do que a simples soma de muitos indivíduos.
e auxílio mútuos; enquanto a comunidade é vista como algo dotado de grande valor por seus próprios méritos, que transcende os indivíduos não só devido ao seu poder, mas em virtude do seu lugar na ordem moral e do fim que realiza. Se, por outro lado, a nação e o Estado não são nada mais do que uma soma de todos os indivíduos, então, como dizia Otto Gierke14, o brilho de uma elevada
O conceito integral da comunidade como um orga-
idéia moral empalidece, fenômeno que sempre
nismo moral também normalmente inclui, além da
prefigurou a morte da pátria. De fato, por que um
unidade e da ordem, alguma estratificação social.
indivíduo desejaria sacrificar-se pelo bem-estar de
Fazer o mesmo tipo de trabalho ou envolver-se
muitos outros que na verdade não são diferentes
na mesma ocupação constitui o vínculo unificante
dele? Nós temos um mandamento que governa a
interno para as organizações que vêm a ser órgãos
conduta de um indivíduo com relação a outro: ama
do corpo social em geral, e cuja realização opera-
teu próximo como a ti mesmo. É sobre esse manda-
tiva emerge como uma “função social” em virtude
mento que individualistas extremos como Tolstoy,
do papel delas em satisfazer as necessidades das
com todas as boas intenções, querem basear a vida
pessoas. Uma estrutura corporativa baseada nesses
da sociedade humana; e, percebam, são pessoas
vínculos unificantes não constitui um Estado den-
que demoliriam o Estado e que pregam a anarquia!
tro de outro Estado. O interesse geral da sociedade
O complemento religioso que acompanha o man-
transcende os interesses grupais, e é promovido e
damento de amar ao próximo será encontrado na
preservado, novamente, pela indispensável solida-
lei: amar a Deus acima de todas as coisas. Esse é
riedade mais elevada da comunidade econômica e
o mandamento que constrói o reino de Deus que
política nacional, e salvaguardada pela ação regu-
não é deste mundo. Mas mesmo para a comunidade
latória e harmonizante da parte das autoridades
temporal, dizemos aqui, mantendo a lei de Deus:
públicas. Contudo, o conceito vocacional-ocu-
ame o todo mais do que você ama a si mesmo! E isso
pacional – a idéia de serviço para o todo – como
só faz sentido se o todo é algo mais elevado e precioso do
compreendida aqui serve para fortalecer a comu-
que a simples soma de muitos indivíduos.
nidade econômica nacional. O conceito de classe, por outro lado, que se baseia apenas em quanta propriedade as pessoas possuem, tomado em si mesmo rasga o tecido social, na medida em que
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injecta partidos, mesmo na área econômica, onde
50
deveria haver órgãos. ___________________________________________________
14. Das Wesen der menschlichen Verbände (1902), 34f.
Traduzido por Hugo de Santa Cruz
Tradução da dedicatória em “The Diaboliad” (1777)
LITERATURA
Dedicatória ao pior dos homens nos domínios de Sua Majestade, William Combe
Pois mesmo a carreira compulsória, por assim dizer, não o impediu de lograr alguns prodígios editoriais. É o caso da sátira em versos The Diaboliad, de 1777, no qual a escolha do sucessor ao trono infernal é o ponto de partida para um desfile de caricaturas inspiradas em personagens de ficção e personalidades em voga. Graças ao sucesso de vendas, o poema foi objeto de reedições e continuações, mas lamentavelmente não escapou ao mesmo destino da restante volumosa produção literária do autor: a indiferença de acadêmicos e editores, que raro debruçam-se sobre ela. E mesmo entre aqueles que o fazem, as divergências são muitas, uma vez que a delimitação da bibliografia de Combe e o acompanhamento de seu percurso biográfico são dificultados pela estratégia por ele adotada para fugir ao assédio dos credores: jamais assinar suas obras, ou assinálas sob pseudônimo, nem tornar manifesta a motivação de suas críticas ou a identidade de seus alvos. Sobre o Diaboliad, a hipótese corrente, desde quando aventada pelo poeta Thomas Campbell, é a de que se trata de uma réplica a um fidalgo que teria descumprido a promessa de remunerar o satirista com uma régia pensão anual, Nota do tradutor
em troca do compromisso deste de contrair matrimônio com sua amante; só o que restaria controversa seria a
O gosto pela ostentação foi a ruína do inglês William
identidade do fidalgo, ora atribuída a Simon Luttrell,
Combe (1741–1823). Ainda em sua juventude, já o
famigerado libertino, ora a um amigo do autor, Francis
pai lhe custeava, além dos estudos, uma que outra
Seymour-Conway. Outros poucos, no entanto, descartam
excentricidade; mas estas só fizeram acentuar-se
essa hipótese, sob o argumento de que um contrato nesses
quando a fortuna transmitida pelo padrinho garantiu-
termos jamais receberia o endosso de quem, embora
lhe ainda maior penetração na sociedade londrina—à
não se alçando à nobreza por meios financeiros, ainda
qual sua elegância, inteligência e jovialidade já
cultivava nos modos seu ideal.
tinham franqueado o acesso, mas cujas exigências não demoraram em deixá-lo à míngua e, ademais,
Mas apesar das dúvidas e imprecisões, elas em nada
mergulhado em dívidas que o condenariam ao regime
comprometem a apreciação da verve de William Combe—
da prisão de King’s Bench, reservada a insolventes. Não
da qual se tem uma pequena amostra na tradução a seguir.
que o repugnasse trabalhar para o próprio sustento; a necessidade batendo-lhe à porta, não se furtou a nenhuma ocupação: soldado, professor, garçom, oportunidade de debochar da sociedade que ele culpava por sua penúria, e que, destarte, ironicamente, acabaram por lhe restituir o prestígio social.
N
ão tenho a honra de conhecer pessoalmente Vossa Senhoria; e não sendo de meu desejo que haja qualquer tentativa de violação de minha propriedade,
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cozinheiro. Mas foram as letras que lhe deram a
Meu Senhor,
51
LITERATURA
alienação do afeto de minha esposa, sedução de
íntimo ou um personagem de comédia; contudo,
minha filha ou corrupção de meu filho, não ter
se menciono um provérbio de Salomão, o Sábio,
estabelecido vínculo algum convosco é-me causa
de imediato Vossa Senhoria perceberá, mercê da
de verdadeira satisfação.
peculiaridade de tão característico apelativo, que
Muitos há no mundo para os quais o aperfeiçoamento de suas habilidades consiste em fazer dos vícios um meio de chamar a atenção dos homens.
a pessoa a quem me refiro é ninguém menos que o Rei de Israel. Quão inexpressivos não nos soam General Sir Jeffery e até Lorde Amherst, se comparados a Conquistador da América!2 E quão insípidos não nos parecem os títulos de General, Sir William e até Lorde Howe, em comparação ao de seu Reconquistador— tivessem as pretensões da Grã-Bretanha sido satisfeitas!3 Entre os antigos, Cícero e muitos outros deveram seus nomes a alguma peculiaridade ou defeito pes-
Dirigir-me a vós, meu Senhor, pelo nome que
soal,4 e o infortúnio de um par de pernas arqueadas
herdastes de vossos antepassados seria dispen-
conferiu sabida alcunha a um de nossos próprios
sar-vos igual tratamento ao dispensado àqueles
monarcas. 5 Não me consta, meu Senhor, que a
que não ostentam qualificativos que os distingam
Natureza tenha sido culpada de alguma desatenção
da multidão dos comuns. Os mais eminentes bar-
para com vossa aparência; mas ainda que o tenha,
dos, oradores, filósofos e estadistas colheram
pouco se me dá: confio que é do espírito que vertem
mais prazer e obtiveram mais subida reputação de
os melhores nomes e cognomes. Embora, tivesse eu
alcunhas características de sua excelência que dos
tempo e fosse pertinente ao assunto, é possível que
títulos outorgados pelo favor imperial. Não será
nos parecesse motivo de curiosa especulação inquirir
verdade, meu Senhor, que a reputação de que des-
por que ao mais desvalido e ignóbil dos homens na
fruta a pessoa do Sr. Garrick provém da atribuição
face da terra, tendo a caprichosa Natureza assentado
daqueles apelidos que tanto fez ele por merecer:
em suas costas uma corcunda, caberia a honra de
Reformador dos Palcos, Grande Exemplo Teatral, Ator
receber o mesmo título de Vossa Senhoria—e sem
Britânico, etc., etc., e aos quais seu nome próprio
as formalidades de uma patente real.6
1
relaciona-se tão pouco quanto a qualquer outro porventura adotado com fins de distinção social?
Mas prossigamos.—O grosso da humanidade, que
Referisse eu um juízo atribuído a Salomão, e é
é incapaz de uma observação mais sutil e que,
de se crer que Vossa Senhoria o imaginasse um
fosse dotada dessa capacidade, não lhe veria ser-
especulador judeu, um parente próximo, um criado
ventia, não leva em consideração o estado mais
___________________________________________________
1. David Garrick (1717–1779) exerceu profunda influência na cena teatral inglesa do século XVIII, principalmente como ator (graças ao tratamento realista que imprimia a suas interpretações), mas também como diretor, dramaturgo, gestor e produtor. 2. Jeffery Amherst (1717–1797), 1º Barão Amherst, atuou como comandante-em-chefe das forças britânicas na Guerra dos Sete Anos, que opôs franceses e ingleses na disputa pelos territórios do continente norte-americano. 3. William Howe (1729–1814), 5.o Visconde Howe, atuou como comandante-em-chefe das forças britânicas na Guerra da Independência dos Estados Unidos. A ele é atribuído o fracasso na Campanha de Saratoga, que estimulou a adesão da França à causa dos colonos e a derrota definitiva dos ingleses. 4. Segundo o historiador Plutarco (c. 46–120), o nome Cícero teria origem na peculiaridade física de um antepassado do célebre cônsul romano: uma protuberância no nariz, em forma de grão-de-bico (em latim, cicer). 5. De fato, o hábito da equitação teria resultado no arqueamento das pernas de Henrique II da Inglaterra (1133–1189), do mesmo modo como
JANEIRO 2014
a predileção por capas de menor comprimento lhe teria valido a alcunha de Curtmantle, ou manto curto. A associação entre um e outro, no
52
entanto, vai da invenção do autor. 6. Robert Cecil (1563–1612), figura de proa no governo de Isabel I, auxiliou secretamente o rei Jaime VI da Escócia a subir ao trono inglês, como Jaime I, em seguida à morte da rainha. Suas cavilações políticas inspiraram os desafetos a correlacionar sua deformidade física (ao que parece, uma escoliose severa) a uma deformidade moral—como o filósofo Francis Bacon, seu primo, que, sem mencioná-lo abertamente, escreveu: “do mesmo modo como a natureza fez mal [às pessoas deformadas], assim fazem elas por natureza”.
intermédio das reputações; mas, transitando de
Em o fazendo, perdoar-me-eis, por estar eu ora
uma vez de um extremo a outro, fixa sua atenção
obrigado a desviar-me de um assunto tão impor-
nos melhores e piores entre os homens. Não é o
tante quanto Lorde ———— para um indivíduo
caso, portanto, de Vossa Senhoria preocupar-se
tão insignificante quanto eu mesmo.8
em que se lhe esquive a celebridade que pretendo outorgar com esta dedicatória. Entretanto, para
Não é de meu natural refinar e lapidar minhas
nada omitir capaz de formar vosso convencimento,
próprias criações! Em razão do hábito longamente
peço licença, meu Senhor, para esclarecer que, faz
cultivado de traçar esboços ligeiros de homens e
muitos anos, quando os homens em geral não eram
coisas, sou absolutamente incapaz de rematar um
tão ilustrados e informados quanto hoje, mais
desenho com aquelas efetuosas manchas de luz
particularmente no que respeita às reputações,
e de sombra, e aquela acertada mistura de cores,
publicou-se uma carta endereçada Ao mais despu-
cuja harmonia distingue o fruto de uma aplicação
dorado dos homens vivos, cognome infinitamente
judiciosa. Bem sei, meu Senhor, que sou um escri-
mais vago e indefinido que este, que me concedi a
tor negligente: receio que as inexatidões desta
honra de atribuir a Vossa Senhoria. Não obstante,
dedicatória, bem assim das páginas que se seg-
de imediato a opinião pública descobriu a quem se
uem, darão prova cabal de minha afirmação. Não
destinava aquele medíocre feito—que de fato era
obstante, como resultado deste feito—por menor
assaz medíocre—, mesmo o destinatário estando
o esforço nele empenhado—, sinto uma auto-
abrigado onde não se imaginaria que o despudor
complacência que estou certo ser desejo de Vossa
achasse abrigo: no seio da Igreja.
Senhoria que dela eu desfrute, como forma de con-
7
Não posso permitir que seja mortificada minha justa vaidade. Muitos há no mundo para os quais o aper-
solo e recompensa. Eis que, portanto, não posso permitir que uma satisfação assim seja minorada, nem que seja mortificada minha justa vaidade, antepondo a esta obra um nome que há de ser visto costumeiramente nas páginas anuais do vexatório Register,9 e que jamais permitis seja apagado dos livros contábeis de vossos credores.
feiçoamento de suas habilidades consiste em fazer dos vícios um meio de chamar a atenção dos
Eu sou, meu Senhor, com o devido respeito,
homens. Em vosso próprio coração, meu Senhor, haveis de reconhecer que sois um entre eles; e
um amigo sincero de Vossa Senhoria,
mesmo qualquer argumentação ulterior sobre o assunto decerto parecendo-vos nugatória e
** ***.
impertinente, asseguro que vosso sucesso tem correspondido a vossos desejos.
Traduzido por Luiz Otávio Talu
Entretanto, acaso não estejais convencido de meus argumentos, e a propriedade do cognome que minha pena vos outorgou deixe margem a dúvidas em vosso íntimo, far-me-á meu Senhor a mercê de avançar algumas poucas linhas e atender às justificativas que apresento para a liberdade que tomei?
___________________________________________________
7. A Familiar epistle to the most impudent man living, escrita em 1749 pelo filósofo Henry St. John Bolingbroke, teve por alvo o bispo anglicano William Warburton.
Register. (Ver nota a seguir.) 9. Numa paródia ao Annual Register—publicação em que Edmund Burke compendiava ano a ano os principais eventos nos campos da história, da política e da literatura—, em 1777–1784 Combe escreveu e editou o Royal Register, com sátiras que desfaziam de personalidades da Igreja, do Estado e da Corte.
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8. No ano em que escreveu o Diaboliad, Combe esteve atarefado com pelo menos outros nove livros, além do primeiro número do Royal
53
LITERATURA JANEIRO 2014 54
Estudo de uma Consciência Claustrofóbica Pequeno ensaio de Johny Nery sobre “Hamlet”, de Shakespeare.
O
u li em algum crítico ou notei por expe-
divisão da tragédia de Bradley, isto é, a exposição
riência própria que a primeira cena de
do problema. Talvez a aparição do fantasma logo
qualquer peça de Shakespeare é sempre
na primeira cena nos tenha feito não perceber algo
muito significativa para o entendimento
importante.
do todo, às vezes contendo seu sentido na forma de uma imagem. A primeira cena de Hamlet, ao
Mas como ter a medida do que é importante, se
contrário, pelo menos aparentemente, parece
a maioria dos críticos não está de acordo sequer
ater-se a completar o objetivo da tripartida
quanto ao tema principal da peça? Hazlitt é claro
ao dizer que “his ruling passion is to think, not to
esclarecer melhor a diferença entre a nossa inter-
act”, endossando com Bradley a visão de uma
pretação e as outras interpretações. O fantasma
incapacidade de Hamlet de agir eficazmente. Essa
faz questão de ressaltar que “a serpent stung me, so
visão é um pouco corrigida ao supor-se, com base
the whole ear of Denmark”; há portanto uma cor-
nos estudos das imagens poéticas, que se trata de
respondência entre o estado físico do rei e de seu
um estudo do caráter melancólico de Hamlet, que
reino. Essa correspondência é comum nessa peça e
por vezes pensa sem agir e por outras (como no
em outras, como em Ricardo II, em que o rei diz que
assassinato de Polônio) age sem pensar. Goethe
os próprios elementos naturais da Inglaterra hão
sugere que é a peça que fala sobre um homem que
de defendê-lo contra Bolingbrook. Isso significa
recebeu uma tarefa maior que si mesmo. Martin
que – excluído Cláudio, porque golpista e traidor,
Lings diz que é sobre a Purificação por meio da
e portanto falso rei – a definição das fronteiras da
Vingança. Dr. Freud interpreta-a usando o con-
Dinamarca corresponde a movimento semelhante
ceito de complexo de Édipo, que explica o desejo
de Hamlet filho. O tema principal de Hamlet é a
de vingança de Hamlet contra um homem que fez
descoberta existencial de seu caráter finito e de sua
tudo o que ele próprio quis fazer: matar o pai e
reação a essa descoberta. “Cuando no hay alegría, el
casar-se com a mãe. Soellner defende que Hamlet
alma se retira a un rincón de nuestro cuerpo y hace de él
é um homem em busca de autoconhecimento.
su cubil”, nos explica Ortega y Gasset, e continua:
De qualquer forma, não há espaço para todas as interpretações aqui e nenhuma delas conseguiu
Y; además, cuando no hay alegría, creemos hacer un
ser satisfatória para todos: cada homem tem seu
atroz descubrimiento. Muy especialmente si la falta
próprio Shakespeare.
de alegría proviene de un dolor físico percibimos con extraña evidencia la línea negra que limita cada ser y
O tema principal de Hamlet é a descoberta existencial de seu caráter finito e de sua reação a essa descoberta.
lo encierra dentro de sí, sin ventanas hacia fuera, como Leibniz decía, pero sin el infinito que este hombre contento metía dentro de cada uno. Este es el descubrimiento que hacemos por medio del dolor como por medio de un microscopio: la soledad de cada cosa.
Quão semelhante não é com o
Para explicar melhor o meu ponto de vista, tento
O God, I could be bounded in a nut-shell, and count
montar a primeira cena: começaria com uma
myself king of infinite space
neblina, e, aos poucos, apareceria a silhueta ainda borrada do vigia (Bernardo), que se delinearia cada
Não fosse a continuação: “were it not that I have bad
vez mais, finalmente perguntando “quem está
dreams”. Um personagem titânico, sem dúvidas.
aí?”; donde seguiria do mesmo modo o segundo
O mundo é uma prisão, ele deseja que seu corpo
vigia (Francisco), exigindo “revele-se”. O mesmo
tivesse um estado fluido; o homem, a suprema
para Marcelo e Rodrigo, até entrar no palco o fan-
criação de Deus, não o agrada (nem mesmo as
tasma que, por sua vez, é, no dizer de Rosencratz,
mulheres!). Ele tem uma consciência claustrofó-
“a shadow’s shadow”. Parece acabar por aí, mas a
bica, e o único remédio é a ação. A ação que trará
introdução do fantástico mexe conosco e não nos
morte, que manchará a consciência, a vingança.
deixa ver um outro personagem: Marcelo perA vingança aqui é importante, mas é apenas o modo
tem que estreitar seus hábitos e vestir armaduras?
pelo qual Hamlet expressa o lado pessoal de sua
Por que, indiferente se é dia ou noite, se labora e
reação à descoberta universal da limitação humana.
descansa por turnos? Devido à guerra, a então des-
Quando se põe ênfase muito forte na vingança como
cuidada Dinamarca tem que definir suas fronteiras.
o centro da peça, geralmente se cai em dois erros.
O último personagem assoma da indefinição da
O primeiro é quanto à natureza e ao propósito do
neblina: é a própria Dinamarca.
fantasma. “Não há porta-voz incontestável nas peças”, já diria Harold Bloom, e Hamlet se pergunta
É importante ressaltar essa imagem, para
se a aparição não seria na verdade um demônio.
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gunta qual a razão da guarda. Por que os homens
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LITERATURA
Segundo todo o discernimento dos espíritos da era
Reconhece também a legitimidade da causa de
elizabetana, tratava-se mesmo de um demônio; o
Laertes:
que é muito harmônico com o fato do rei mecenas de Shakespeare – a quem ele dedica suas obras –, Jaime
For, by the image of his cause, I see
I, ser um notável demonólogo. Embora o fantasma
The portraiture of his
estivesse certo quanto ao assassinato de Hamlet pai, isso não deve nos bastar para afastarmos a hipótese
Fortinbrás, o filho, também procura vingar seu
de que ele seja um demônio, porque ele pode falar
pai com a conquista da Dinamarca. Há corres-
a verdade para enganar melhor e assim alcançar
pondência no perdão entre Laertes e Hamlet e
um objetivo oculto. Dr. Johnson, assumindo que é
a concessão da coroa de Hamlet para Fortinbrás
mesmo o espírito de Hamlet pai, observa que “The
e o enterro solene de Hamlet por Fortinbrás.
poet [Shakespeare] is accused of having shewn little
Ademais, se olharmos as figuras de linguagem,
regard to poetical justice, and may be charged with equal
Hamlet, chamado de melancólico por outros e por
neglect of poetical probability. The apparition left the
si mesmo, corresponde ao elemento terra; Laertes
regions of the dead to little purpose; the revenge which
(“fiery Laertes”) e Fortinbrás (“unimproved mettle
he demands is not obtained but by the death of him that
hot and full”) são do tipo colérico, que corresponde
was required to take it”. A vingança acaba é por termi-
ao fogo. Terra e fogo são o destino dos cadáveres
nar de matar o vingado, já que o filho é considerado
e tem a função de destruir a podridão do reino da
a continuação do pai. A morte de Hamlet filho não
Dinamarca.
deixa nada de Hamlet pai vivo. Também não digo convictamente que era um demônio, mas prefiro
A platéia deve ter visto a vingança como algo posi-
deixar na incerteza o que a própria peça deixa na
tivo, como se os vingadores fossem instrumentos
incerteza.
de Deus e a vingança como um tipo de justiça
Outro erro é fazer de Hamlet a representação do vingador. Nem há uma só vingança, e nem mesmo ele chega a ocupar o papel de vilão
para reestabilizar a ordem. Vejo a peça como o processo dessa instrumentalidade por Hamlet, desde o debater-se da descoberta até o quinto ato, quando ele diz “readiness is all”. Vejo um paralelo entre o príncipe da Dinamarca e o príncipe Hal: ambos enfrentaram inimigos que os circunstantes julgaram superiores (Laertes e Hotspur, respectivamente) e venceram porque souberam que seu tempo tinha chegado (embora Hamlet seja ambí-
O outro erro é o que faz de Hamlet a representação
guo, dizendo a Rosencratz que deixou de lado os
do vingador. É um erro, porque nem há uma só vin-
exercícios e a Horácio que praticou esgrima desde
gança, e nem mesmo ele chega a ocupar o papel de
que Laertes partiu, Hal treinou esgrima em taver-
vilão contra Laertes. Ele é ao mesmo tempo vilão e
nas troçando com Falstaff). De qualquer modo,
herói: “I must be cruel only to be kind”. Polônio, bom
Hamlet aprendeu a esperar, porque “a Vingança
e justo homem, embora refratário da ordem antiga,
é de Deus”. O tempo de espera é o de atravessar
é assassinado por Hamlet, que na hora reconhece
– para usar termos hinduístas – o “samsara” e
que tem de pagar por aquilo:
atingir superação, descobrindo o verdadeiro eu.
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Shakespeare representa isso usando a “cadeia de
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I do repent: but heaven hath pleas’d so,
vinganças” que aparece tanto na guerra das rosas
To punish me with this, and this with me,
de Henrique VI quanto em Romeu e Julieta. Para
That I must be their scourge and minister.
uma vingança acontecer tem de haver um vin-
I will bestow him, and will answer well
gado (vd), um assassino (a) e um vingador (vr).
The death I gave him
Northrop Frye esquematiza da seguinte forma:
O resultado exterior é zero. Horácio exprime bem esse fato ao resumir a história de Hamlet para Fortinbrás: So shall you hear Of carnal, bloody, and unnatural acts, Of accidental judgments, casual slaughters, Of deaths put on by cunning and forced cause, And, in this upshot, purposes mistook Fall’n on th’ inventors’ heads.
O racionalista Horácio, contudo, não percebeu a conquista espiritual de Hamlet.
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