Revista Terminal #2 - Nov 2013

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REVISTA TERMINAL Número 2 - Novembro de 2013 EDIÇÃO Renan Santos ARTE Renan Santos TRADUTORES Alexandre Müller Emílio Costaguá Henrique Garcia Luis Fernando Alves Renan Felipe dos Santos Renan Santos Robertson Frizero William Campos da Cruz ESCRITORES Ricardo Almeida

A Revista Terminal é um projeto sem fins lucrativos que busca simplesmente reunir e divulgar bons trabalhos de tradução, ensaios, poemas e contos. Entre em contato conosco e envie o seu: http://revistaterminal.com.br contato@revistaterminal.com.br

© Revista Terminal 2013


#2

Novembro de 2013



ÍNDICE

FILOSOFIA O reacionário autêntico, Nicolás Gómez Dávila.............................................................................................................................................................................6 Royce investiga Hegel...........................................................................................................................................................................................................................................10

HISTÓRIA A História versus os historiadores, Chesterton.........................................................................................................................................................................37 O declínio da gramática na escolástica..........................................................................................................................................................................................40

LITERATURA O Pai, Bjornstjerne Bjornson.........................................................................................................................................................................................................................52 Deus não pede tanto, León Bloy...........................................................................................................................................................................................................55 A Igreja e o escritor de ficção, Flannery O’Connor........................................................................................................................................................................57 Dois sonetos de Gabriela Mistral.........................................................................................................................................................................................................62 Paisagem Arcádica, Ricardo Almeida............................................................................................................................................................................................63

OUTUBRO 2013 5


FILOSOFIA

O Reacionário Autêntico, Nicolás Gómez Dávila Tradução do artigo “El reaccionario auténtico”, publicado na Revista de la Universidad de Antioquia, (Abril–Junho de 1995), p. 16-19.

OUTUBRO 2013

A

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existência do reacionário autêntico

Que o reacionário proteste contra a sociedade

escandaliza o progressista. Sua presença

progressista, julgue-a e condene-a, mas que se

vagamente o incomoda. Ante a atitude

resigne, entretanto, ao seu atual monopólio da

reacionária, o progressista sente um leve

história, parece-lhe uma posição extravagante. O

menosprezo, acompanhado de surpresa e desas-

progressista radical, por um lado, não compreende

sossego. Para aplacar seus receios, o progressista

como o reacionário condena um fato que admite, e

costuma interpretar esta atitude intempestiva e

o progressista liberal, por outro, não entende como

chocante como disfarce de interesses ou como sin-

admite um fato que condena. O primeiro lhe exige

toma de estultícia; mas só o jornalista, o político

que renuncie a condenar, se reconhece que o fato é

e o tolo não se embaraçam, secretamente, ante a

necessário, e o segundo que não se limite a se abs-

tenacidade com que as mais altas inteligências do

ter, se confessa que o fato é reprovável. Aquele o

Ocidente, já há cento e cinquenta anos, acumulam

incita a render-se, este a agir. Ambos censuram sua

objeções contra o mundo moderno. Um desdém

passiva lealdade à derrota. O progressista radical e

complacente não parece, de fato, a contestação

o progressista liberal, de fato, repreendem o rea-

adequada a uma atitude onde podem se irmanar

cionário de maneira distinta, porque um sustenta

um Goethe a um Dostoievski. Mas se todas as teses

que a necessidade é razão, enquanto o outro afirma

do reacionário surpreendem ao progressista, a mera

que a razão é liberdade. Uma distinta visão da his-

postura reacionária o desconcerta.

tória condiciona suas críticas. Para o progressista


radical, necessidade e razão são sinônimos: a razão

servidões que o oprimem.

é a substância da necessidade, e a necessidade é o processo em que a razão se realiza. Ambas são uma

O progressista liberal exige que a história se com-

só torrente de existências.

porte de acordo com o que sua razão postula, posto

A história do progressista liberal não é um processo necessário, mas a ascensão da liberdade humana à plena posse de si mesma.

que a liberdade a cria; e como sua liberdade também engendra as causas que defende, nenhum fato pode predominar contra o direito que a liberdade estabelece. O ato revolucionário condensa a obrigação ética do progressista liberal, porque romper o que a estorva é o ato essencial da liberdade que se realiza. A história é uma matéria inerte moldada por uma vontade soberana. Para o progressista liberal, pois, resignar-se à história é uma atitude imoral e estú-

A história do progressista radical não é a soma do

pida. Estúpida porque a história é liberdade; imoral

meramente acontecido, mas uma epifania da razão.

porque a liberdade é nossa essência.

Mesmo quando ensina que o conflito é o mecanismo vetor da história, toda superação resulta de um ato

O reacionário, no entanto, é o estulto que assume

necessário, e a série descontínua dos atos é a senda

a vaidade de condenar a história, e a imoralidade

que traçam, ao avançar sobre a carne vencida, os

de resignar-se a ela. Progressismo radical e pro-

passos da razão indeclinável. O progressista radi-

gressismo liberal elaboram visões parciais. A

cal só adere à idéia que a história assegura, porque

história não é necessidade, nem liberdade, senão

o perfil da necessidade revela os traços da razão

sua integração flexível. A história, de fato, não é um

nascente. Do próprio curso da história emerge a

monstro divino. A cortina de poeira humana não

norma ideal que o nimba. Convencido da raciona-

parece levantar-se como que sob o hálito de uma

lidade da história, o progressista radical se atribui o

besta sagrada; as épocas não parecem ordenar-

dever de colaborar com seu sucesso. A raiz da obri-

-se como estágios na embriogenia de um animal

gação ética jaz, para ele, na nossa possibilidade de

metafísico; os fatos não se imbricam uns aos

impulsionar a história a seus próprios fins. O pro-

outros como escamas de um peixe celeste. Mas, se

gressista radical se inclina sobre o fato iminente

a história não é um sistema abstrato que germina

para favorecer sua vinda, porque, ao atuar no sen-

sob leis implacáveis, tampouco é o dócil alimento

tido da história, a razão individual coincide com a

da loucura humana. A gana e vontade gratuita do

razão do mundo. Para o progressista radical, pois,

homem não são seu reitor supremo. Os fatos não se

condenar a história não é só um esforço vão, mas

moldam, como uma pasta viscosa e plástica, entre

também uma esforço estúpido. Esforço vão porque

dedos afanosos.

a história é necessidade; esforço estúpido porque a história é razão.

De fato, a história não resulta de uma necessidade impessoal, nem de um capricho humano, e sim de uma dialética da vontade onde a livre opção se

pura contingência. A liberdade, para ele, é subs-

desenvolve em conseqüências necessárias. A his-

tância da razão, e a história é o processo em que

tória não se descortina como um processo dialético

o homem realiza sua liberdade. A história do pro-

único e autônomo, que prolonga em dialética vital

gressista liberal não é um processo necessário, mas

a dialética da natureza inanimada, mas em um plu-

a ascensão da liberdade humana à plena posse de

ralismo de processos dialéticos, numerosos como

si mesma. O homem forja sua história impondo

os atos livres e atados à diversidade de seus solos

à natureza a decisão de seu livre-arbítrio. Se o

carnais. Se a liberdade é o ato criador da história,

ódio e a cobiça arrastam o homem entre labirin-

se cada ato livre engendra uma nova história, o

tos sangrentos, a luta se realiza entre liberdades

livre ato criador se projeta sobre o mundo em um

pervertidas e liberdades retas. A necessidade é,

processo irrevogável. A liberdade secreta a histó-

meramente, o peso opaco de nossa própria inércia,

ria como uma aranha metafísica a geometria de

e o progressista liberal estima que a boa vontade

sua teia. A liberdade, de fato, se aliena no próprio

pode resgatar o homem, a qualquer instante, das

gesto em que se assume, porque o ato livre possui

OUTUBRO 2013

O progressista liberal, por outro lado, se instala na

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FILOSOFIA

uma estrutura coerente, uma organização interna,

se frustra se não se insere nas fendas cardeais de

uma proliferação normal de seqüelas. O ato se des-

uma vida.

dobra, dilata e expande de acordo com seu caráter íntimo e com sua natureza inteligível. Cada ato

Frente à história, só surge a obrigação ética de

submete uma parte do mundo a uma configuração

atuar quando a consciência aprova a finalidade que

específica.

momentaneamente impera ou quando as circuns-

As épocas se estendem como trechos entre dois instantes: seu instante germinal, e o instante onde encerra o ato incoativo de uma nova vida.

tâncias culminam em uma conjuntura propícia à nossa liberdade. O homem que o destino coloca em uma época sem fim previsível, e cujo caráter fere os mais profundos nervos de seu ser, não pode sacrificar, atropeladamente, sua repugnância a seus brios, nem sua inteligência à sua vaidade. O gesto espetacular e vão merece o aplauso público, e o desdém daqueles a quem a meditação reclama. Nas paragens sombrias da história, o homem deve resignar-se a minar com paciência as soberbas humanas. O homem pode, assim, condenar a

A história, portanto, é uma liga de liberdades

necessidade sem contradizer-se, ainda que não

endurecidas em processos dialéticos. Quanto mais

possa agir senão quando a necessidade se der-

fundo for o estrato de onde brota o ato livre, mais

ruba. Se o reacionário admite a atual esterilidade

variadas serão as zonas de atividade que o processo

de seus princípios e a inutilidade de suas censuras,

determina, e maior sua duração. O ato superficial

não é porque lhe baste o espetáculo das confusões

e periférico se esgota em episódios biográficos,

humanas. O reacionário não se abstém de agir

enquanto o ato central e profundo pode criar uma

porque o risco o espanta, mas porque estima que

época para uma sociedade inteira. A história se

atualmente as forças sociais inclinam-se rapida-

articula, assim, em instantes e em épocas: em atos

mente para uma meta que desdenha. Dentro do

livres e em processos dialéticos. Os instantes são

atual processo, as forças sociais cavaram seu curso

sua alma fugitiva, as épocas seu corpo tangível. As

na rocha, e nada mudará seu rumo enquanto não

épocas se estendem como trechos entre dois ins-

deságüarem no raso de uma planície incerta. A

tantes: seu instante germinal, e o instante onde

gesticulação dos náufragos só faz fluir seus corpos

encerra o ato incoativo de uma nova vida. Sobre

paralelamente à outra margem. Mas se o reacio-

dobradiças de liberdade giram portas de bronze.

nário é impotente em nosso tempo, sua condição o

As épocas têm uma duração irrevogável: o encontro

obriga a testemunhar seu asco. A liberdade, para o

com processos surgidos desde uma maior profun-

reacionário, é submissão a um mandato.

didade pode interrompê-las, a inércia da vontade pode prolongá-las. A conversão é possível, a passi-

De fato, ainda quando não seja nem necessidade,

vidade familiar. A história é uma necessidade que a

nem capricho, a história, para o reacionário, não

liberdade engendra e a casualidade destroça.

é, entretanto, dialética da vontade imanente, mas

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aventura temporal entre o homem e aquilo que

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As épocas coletivas são o resultado de uma

lhe transcende. Suas obras são traços, sobre a

comunhão ativa em uma decisão idêntica, ou da

areia revolvida, do corpo do homem e do corpo do

contaminação passiva de vontades inertes; mas

anjo. A história do reacionário é um farrapo ras-

enquanto dura o processo dialético para o qual as

gado pela liberdade do homem, que oscila ao sopro

liberdades se inclinaram, a liberdade do incon-

do destino. O reacionário não pode calar-se, por-

forme se retorce em uma ineficaz rebeldia. A

que sua liberdade não é meramente o asilo onde o

liberdade social não é opção permanente, mas

homem escapa ao tráfego que o aturde, e onde se

brandura repentina na conjuntura das coisas. O

refugia para assumir-se a si mesmo. No ato livre,

exercício da liberdade supõe uma inteligência sen-

o reacionário não toma, tão-somente, posse de

sível à história, porque, ante a liberdade alienada

sua essência. A liberdade não é uma possibilidade

de uma sociedade inteira, o homem só pode ouvir o

abstrata de escolher entre bens conhecidos, mas a

ruído da necessidade que se quebra. Todo propósito

concreta condição dentro da qual nos é outorgada


a posse de novos bens. A liberdade não é instância que decide pleitos entre instintos, senão a montanha desde a qual o homem contempla a ascensão de novas estrelas, entre o pó luminoso do céu estrelado. A liberdade coloca o homem entre proibições que não são físicas e imperativos que não são vitais. O instante livre dissipa a vã claridade do dia, para que se erga, sobre o horizonte da alma, o imóvel universo que desliza suas luzes transeuntes sobre o tremor de nossa carne. Se o progressista se inclina ao futuro, e o conservador ao passado, o reacionário não mede seus desejos com a história de ontem ou com a história de amanhã. O reacionário não conclama o que há de trazer a próxima alvorada, nem se aferra às últimas sombras da noite. Sua morada se levanta neste espaço luminoso onde as essências o interpelam com suas presenças imortais. O reacionário escapa à servidão da história, porque persegue na selva humana a pegada de passos divinos. Os homens e os fatos são, para o reacionário, uma carne servil e mortal que alentam sopros tramontanos. Ser reacionário é defender causas que não rodam sobre o tabuleiro da história, causas que não importa perder. Ser reacionário é saber que apenas descobrimos o que cremos inventar; é admitir que nossa imaginação não cria, e sim desnuda corpos brandos. Ser reacionário não é abraçar determinadas causas, nem advogar por determinados fins, e sim submeter nossa vontade à necessidade que não constrange, render nossa liberdade à exigência que não compele; é encontrar as evidências que nos guiam adormecidos à margem de lagoas milenares. O reacionário não é o sonhador nostálgico de passados abolidos, é o caçador de sombras sagradas sobre as colinas eternas. Traduzido por Renan Felipe dos Santos

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FILOSOFIA

Royce investiga Hegel Tradução da transcrição da aula VII (“Hegel”) da série “Spirit of Modern Philosophy (1892)”, de Josiah Royce

É

extraordinariamente difícil ter ou forne-

é meramente prática. Ele é essencialmente uma

cer qualquer impressão geral que não seja

miragem da vida interior. O verdadeiro universo é

seriamente enganosa a respeito de Hegel,

o universo do espírito. Nossa relação mais profunda

que constitui nosso tema em especial nesta

não é com a ordem natural, mas com o verdadeiro

aula. Portanto, eu assumo essa tarefa com uma noção

eu, a saber, a própria vida de Deus.

muito forte de sua importância e dificuldade. A conclusão do que nós discutimos até aqui nessas aulas é

Tal era a posição a que chegaram Fichte e os

resumidamente a seguinte: o pensamento moderno

românticos, como vimos. Mas eles divergiram em

começou como uma empreitada para encontrar uma

seu pensamento posterior. Para Fichte, o centro

doutrina verdadeira e racional sobre o universo real

do universo, como seu idealismo o concebe, é a

exterior e colocar essa doutrina de forma clara, até

lei moral. O eu infinito anseia pela posse racional

mesmo matemática. A redescoberta da importância

e ativa de si. Por isso, ele se diferencia em mui-

da vida interior levou, contudo, no século XVIII, a

tas formas, como a vinha cresce em seus diversos

um escrutínio cético dos poderes da própria razão

ramos. Essas ramificações da grande vinha do

humana, e aqueles magníficos sistemas dos pri-

espírito formam nossos eus finitos e essencial-

meiros pensadores pareciam, quando examinados

mente incompletos.

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à luz de tal escrutínio, dogmáticos e incertos. No

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entanto, o pensamento se esforçou para reconquis-

Mas, para os românticos, como vimos, o centro do

tar sob uma nova forma as suas grandes certezas. A

mundo é menos a lei moral do que o interesse que

verdade, disse o idealismo, é essencialmente uma

cada espírito tem por uma certa riqueza divina da

questão de vida interior. O mundo da verdade é o

emoção e da experiência. O mundo é o mundo das

mundo como pareceria para um sujeito completo

idéias; as coisas existem porque os espíritos têm

totalmente auto-consciente. O universo exterior é

experiência delas; e os espíritos tem a experiência

somente um mundo da aparência, e sua realidade

porque, como partes da vida divinamente completa,


é do seu interesse serem os mais variados e abun-

eu absoluto, o livre-arbítrio do verdadeiro Eu, que

dantes possíveis em suas auto-realizações.

é a fonte de toda verdade. Quando eu, como um cognoscente, reconheço a verdade, isto é porque

I.

eu como criador primeiro criei essa verdade. Esta visão Schelling também aceita. Mas agora, como

Antes de passarmos agora diretamente para Hegel,

vemos, um eu consciente é ao mesmo tempo o

é necessário dizer ainda algo sobre as especulações

criador do seu ato presente e o contemplador dos

mais técnicas de Schelling, a respeito de quem,

resultados dos seus atos passados. Conforme eu

em seu caráter romântico, ouvimos alguma coisa

olho para o mundo da natureza, eu vejo cristali-

na última aula. O desenvolvimento de Schelling,

zado diante de mim a expressão do que meu eu

como vocês já sabem, foi muito rápido; seus escri-

verdadeiro e absoluto já estava fazendo. A mesma

tos desde cedo eram muito volumosos, e ele era um

atividade que essa consciência presente exem-

O que Hegel defendia, e logo impressionou a Schelling, era que deveria ser dado um fim, se possível, à imprecisão romântica

plifica para mim esteve aí desde a eternidade, e a natureza é a encarnação concreta para o espectador dos resultados dos seus feitos eternos. A natureza, então, não é meramente, como Fichte havia dito, minha responsabilidade tornada manifesta para os meus sentidos; ela também é minha eterna vida espiritual passada, — não a minha vida passada finita, ou individual e privada, é claro, mas a vida do meu eu mais profundo, do espírito divino uno e absoluto. Assim, essa autobiografia do espírito, manifesta aos nossos olhos, é a ordem natural. Por outro lado, a vida interior enquanto tal aceita um

em que havia chegado aos seus 23 anos. Parecia aos

tratamento filosófico: porque isso não é o registro

seus leitores que suas visões sistemáticas durante

do passado do espírito, por assim dizer, mas a ple-

o período de juventude se alteravam com uma

nitude da atualidade consciente do espírito. Temos

facilidade e velocidade perigosamente mágicas.

então uma filosofia dual para ser desenvolvida, e

Por sua vez, ele mesmo negou, nos anos até 1809,

Schelling em 1799 e 1800 publica seus dois esboços,

que houvesse qualquer mudança significativa em

como se eles cobrissem completamente o terreno

suas doutrinas essenciais em seus primeiros tra-

– se não na execução, ao menos ba temática. Mas,

balhos. Ele dizia que acrescentara ao que já pensara

em 1801, surge um novo tratado, chamado por

em princípio. Havia lhe aparecido mais da verdade,

Schelling simplesmente de “Exposição do meu

não a contradição de uma intuição anterior. Mas os

Sistema de Filosofia,” e aqui a doutrina parece

leitores achavam suspeito que cada novo livro de

assumir uma nova forma, que os leitores só com

Schelling parecesse suplantar todos seus esforços

muita dificuldade poderiam reconciliar com o que

anteriores. Em 1797, ele publicou suas “Idéias para

havia se passado anteriormente. Na medida em

uma Filosofia da Natureza”. Durante os próximos

que, no inverno de 1800-1801, Schelling expunha

três anos, apareceria seu “Sistema do Idealismo

esse sistema em aulas, antes de publicar o tratado,

Transcendental” e seu “Primeiro Esboço de um

os ouvintes afirmavam, como o próprio Schelling

Sistema da Filosofia da Natureza”. Estes dois

relata, que ele havia mudado completamente sua

últimos trabalhos deveriam ser uma primeira afir-

doutrina. “Pelo contrário,” diz Schelling, em seu

mação, como declarou seu autor, dos dois grandes

prefácio ao novo livro, “esse é o sistema que eu

e aparentemente opostos aspectos da filosofia. Era

defendi o tempo todo, e simplesmente mantive

preciso mostrar o mundo exterior como a mani-

comigo até agora, porque ele era profundo demais

festação do espírito, no fim das contas; era preciso

para expor antes da hora.” O sistema em questão

exibir o mundo interior do eu como inevitavel-

era chamado por seu autor de Identitäts System.

mente expressando-se a si mesmo em relação a

Mais profundo do que a natureza e o espírito, trata-

uma ordem exterior e natural. A idéia fundamental

-se agora de algo que Schelling chama por vários

de toda a doutrina era, em substância, a seguinte:

nomes misteriosos, o “Absoluto”, a “Identidade”,

Fichte havia declarado que é a auto-afirmação do

a “Indiferença de Sujeito e Objeto”, a “Unidade

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homem de destaque e professor em Jena na época

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FILOSOFIA

da Natureza e do Espírito.” É uma curiosa cria-

e o mundo do universal, estejam ligados por laços

ção metafísica esse novo princípio. Lembra a

espirituais muito próximos. A filosofia deve se tor-

Substância de Spinoza e aparenta ser mais elevada

nar um sistema, ou então desaparecer. Schelling

do que o Eu Divino de Fichte. É algo ainda mais obs-

encontrou esse pensamento na mente de Hegel,

curo e vago do que o Gigante Espírito da Natureza,

e então forçou por ora suas especulações poéticas

de quem os versos de Schelling nos falavam na

a assumirem uma feição espinozística. Porém, os

última aula. Hegel, alguns anos depois, chamou

melhores esforços de Schelling a partir de então

grosseiramente essa “Identidade” schellingiana,

permaneceram em grande parte ineficazes. Assim,

esse “Absoluto”, em cuja indescritível natureza

nós faríamos bem em passar de uma vez para o

toda verdade devia estar de algum modo escon-

sistematizador de maior sucesso do esquema idea-

dida, de “a noite infinita, na qual todas as vacas são

lista, isto é, Hegel.

pretas.” Sua natureza era o tipo de coisa que você pensa quando não pensa em nada em particular.

II.

Porém, essa natureza do absoluto devia ser a mais profunda de toda verdade, mais profunda do que o

Hegel de fato tinha muito em comum com os

eu, mais profunda do que a natureza exterior, mais

idealistas da escola romântica, mas deles diferia

profunda do que qualquer coisa jamais conhecida

profundamente no temperamento. Eles haviam

antes na filosofia.

chegado ao seu eu absoluto por vários métodos

A filosofia deve se tornar um sistema, ou então desaparecer.

místicos ou então muito simples, os quais não precisamos expor mais ainda. Hegel detestava os caminhos fáceis em filosofia e abominava o misticismo. Assim, em seus estudos privados, ele havia primeiro abraçado fortemente o modo original de Kant de tratar os problemas da nova filosofia até que tivesse encontrado a sua própria

Não tenho a intenção aqui de perturbá-los com

forma de reflexão. Para entender no que consistia

uma explicação mais completa do Identitäts-System

essa forma, precisamos nos voltar para o próprio

de Schelling, cuja exposição, por acaso, é realmente

homem.

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muito profunda e sugestiva, mesmo com toda sua

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imprecisão. A idéia de que, no fim das contas, fosse

Porém, como agora vou falar do temperamento

necessário haver algum tipo de síntese possível

de Hegel, preciso de imediato ressaltar que, entre

entre Kant e Spinoza era de fato uma idéia impor-

todos os pensadores de primeira grandeza, ele é

tante. E historicamente o Identitäts-System mantém

pessoalmente, de fato, um dos menos imponen-

uma relação muito significativa com o pensamento

tes em seu caráter e vida.1 Kant foi um homem cujo

de Hegel. Pois Schelling escreveu esse novo tratado

poder intelectual e elevação moral heróica con-

sob a influência direta do seu relacionamento com

trastavam com a fraqueza da sua presença física,

Hegel, que então havia aparecido em Jena, onde

o que, no fim das contas, tinha algo de sublime em

Schelling dava aulas. O que Hegel defendia, e logo

si mesmo. A altivez solitária, quase principesca

impressionou a Schelling, era que deveria ser dado

do intelecto de Spinoza une-se com o seu misti-

um fim, se possível, à imprecisão romântica em

cismo religioso para dar uma graça à sua forma e

todo esse devaneio sobre as relações do indivíduo e

uma nobreza ao seu próprio isolamento. Mas Hegel

do eu absoluto, e sobre as concepções do finito e do

não é de modo algum gracioso ou heróico em seu

infinito em geral. O que a filosofia precisava era de

comportamento. Sua dignidade é meramente a

uma análise e uma prova mais exata da afirmação

dignidade de sua obra. À parte de sua realização e

de que a consciência individual e a ordem exterior,

de seu temperamento que a fez possível, há pou-

o eu finito e o eu infinito, o mundo do momento

quíssimo a se destacar no homem. O incrível nele

___________________________________________________

1. O leitor especialista facilmente perceberá a influência das apreciações de Haym e do Dr. Hutchinson sobre a personalidade de Hegel no que se segue. O leitor que desejar uma explicação mais elogiosa encontrará um, e também por uma grande autoridade, na discussão do professor Edward Caird sobre Hegel no volume acerca deste pensador nos Philosophy Classics da Blackwood.


está em seu aspecto profissional, não no humano.

em toda a história da filosofia. Se suas aulas são

Ele era um arguto suábio, um intelectual de nasci-

mais fluentes e geniais, elas no fim, e como um

mento, um professor de sucesso, um senhor de si,

todo, dificilmente são mais compreensíveis. Ele

decididamente astucioso, impiedoso com seus ini-

faz pouco para atrair seu leitor e tudo para tornar

migos, por ocasião briguento, à maneira bastante

o caminho longo e doloroso para o aluno. Tudo

crua do intelectual germânico, e calmo e metódico

isso não é falta de jeito; é uma escolha deliberada.

no restante de sua vida oficial; um disciplinador

Ele se orgulha de seu barbarismo. E, porém — eis

bem afiado quando tinha de lidar com jovens ou

o milagre — essa pessoa pouco atraente e pouco

subordinados; um pouco servil quando tinha de

heróica é um dos instrumentos mais notáveis de

lidar com os superiores, oficiais ou sociais. Por

todos os escolhidos pelo espírito para se pronun-

Um homem investigativo, determinado, laborioso, crítico, desafetuoso e fiel ao seu dever e à sua casa, leal aos seus empregadores, e cruel com seus adversários.

ciar em nossos tempos. Não nos cabe compreender esse vento que sopra onde quer. Nós só temos que ouvir o seu som. Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em agosto de 1770, em Stuttgart. Sua família era de um tipo suábico bem representativo; seu próprio ambiente inicial favorecia um estilo de aprendizagem industriosa, mas altamente pedante. No gymnasium em Stuttgart, que ele frequentou desde os sete anos, foi um menino extraordinário, mas, num todo,

meio de seu biógrafo, Rosenkranz, conhecemo-

muito saudavelmente estudioso. Dos seus quinze

-lo em suas muitas competências privadas, mas

até os seus dezessete anos, mantém um diário, do

ele dificilmente nos interessa em qualquer uma

qual Rosenkranz publicou grandes fragmentos, e

delas. Não era um patriota, como Fichte; não era

que contrasta bastante com os diários sentimen-

um sonhador romântico, como Novalis; não era um

tais que se esperaria, naqueles dias, da juventude

profeta poético de esplêndidas visões metafísicas,

característica do gênio. Na verdade, não havia a

como Schelling. Sua carreira é absolutamente des-

promessa de um gênio no jovem Hegel até então.

provida de romance. Nós até possuímos uma ou

Seu diário segue em grande parte este padrão:

duas das suas cartas de amor, e elas são desajeita-

“Terça, 28 de junho (1785), Hoje eu observei que

das e sombrias além da medida. Sua vida interior

diferentes impressões uma mesma coisa pode ter

ou não tinha crises, ou ele as escondia obstina-

em diferentes pessoas… Eu estava comendo cere-

damente. Em seu trato com os amigos, como, por

jas com um enorme apetite, e me divertindo,…

exemplo, Schelling, ele era astuto e dominador,

quando uma outra pessoa, sem dúvida mais velha

usando os homens para sua vantagem enquanto

do que eu, olhou com indiferença e disse que na

precisasse deles, e voltando-se contra eles sem

juventude pensamos que não é possível passar por

escrúpulos quando não mais servissem a seus fins.

uma cerejeira sem ficar com água na boca (como

Sua vida, em seu caráter oficial, de fato não carre-

nós suábios dizemos), enquanto, nos anos mais

gava culpas. Ele foi um servo fiel dos seus vários

avançados, pode-se deixar passar uma primavera

mestres e inquestionavelmente colheu seu prêmio

inteira sem sentir a mesma ânsia por essas coisas.

mundano. Seus alunos o lisonjeavam, e por isso ele

Ao que pensei no seguinte princípio, bem doloroso

os tratava bem; mas com os oponentes ele mos-

para mim, mas ainda muito profundo, a saber,

trava uma débil cortesia. No fim, ele resta como um

de que na juventude… não podemos comer tanto

homem investigativo, determinado, laborioso, crí-

quanto queremos, enquanto, com mais idade, não

tico, desafetuoso e fiel ao seu dever e à sua casa, leal

queremos comer tanto quanto podemos.”

aos seus empregadores, e cruel com seus adversáEsse era o filósofo Hegel aos quinze anos de idade.

doutrina. Seu estilo nos livros publicados não deixa

Seu diário jamais registra um evento genuíno.

de conter sua profunda genialidade e maravilhosa

Nada parece ter acontecido a esse jovem devorador

precisão, mas, por outro lado, é também notoria-

de cerejas e de ensino, exceto maravilhas como a

mente um dos mais bárbaros, técnicos e obscuros

daquele dia na igreja em que ele aprendeu a data da

OUTUBRO 2013

rios. Na controvérsia, ele não poupava pessoa ou

13


FILOSOFIA

Confissão de Augsburg; ou aquela quando, durante

no registro do jovem Hegel aparecem vislumbres

uma caminhada, um dos seus professores lhe con-

de um certo prazer profundo pelo paradoxal, um

tou como todas as coisas boas têm seu lado ruim;

prazer por vezes meramente seco e engraçado, por

e, ainda, durante outra caminhada, quando ten-

vezes afiadamente intelectual, que pouco signifi-

tou explicar-lhe por que julho e agosto são mais

caria em outro temperamento, mas que é, afinal, a

quentes do que junho. Seu diário está repleto de

tendência determinante da mentalidade de Hegel.

tais assuntos, — jamais ficamos sabendo de uma experiência interior de alguma importância. As

Na verdade, se tivermos olhos para ver, o tempera-

aspirações estão banidas. O menino é suficien-

mento hegeliano, embora ainda não a profundidade

temente pedante, para não dizer um completo

hegeliana, já nessa época revela-se quase que

presunçoso; mas, de qualquer forma, isso aparece

completamente. Do gênio filosófico posterior,

como a característica distintiva do seu tempera-

como eu disse, até então não temos promessa

mento: ele é totalmente objetivo. Ele quer conhecer

alguma; mas a atitude geral que esse gênio tor-

a vida tal como ela é em si mesma, não como ela é

naria tão significativa já é assumida pelo menino

OUTUBRO 2013

Aqui e acolá no registro do jovem Hegel aparecem vislumbres de um certo prazer profundo pelo paradoxal

14

Hegel. Os traços presentes são, em primeiro lugar, uma enorme capacidade de aquisição intelectual, que acha extremamente interessante todo tipo de aprendizagem, mas, acima de tudo, todo tipo de aprendizagem literária e humana. Enquanto isso, o pedantismo que oprime o ginasiano alemão daquela época é mitigado por esse humor suábio, seco e sarcástico, que observa as estranhezas e as imbecilidades da natureza humana com uma aguda

para ele; ele quer os verdadeiros princípios das coi-

apreciação. O humor envolve um amor do grotesco,

sas, não sua interpretação privada e sentimental.

do paradoxal, do eternamente auto-contraditório

Enquanto isso, ele é ao mesmo tempo bem instru-

na vida humana. O Hegel maduro descobriria o sig-

ído na fé religiosa e dado ao racionalismo popular

nificado mais profundo de tais paradoxos; por ora

e bastante superficial de então, que adorava fazer

ele simplesmente os anota. De resto, há um traço

pouco caso dos mistérios de todos os tipos e gra-

já manifesto que também não é de pouca impor-

dações. Ele dedica algum espaço à explicação das

tância na obra de vida de Hegel: trata-se de uma

histórias de fantasma, e até registra, entremen-

certa sensibilidade observadora de toda forma de

tes, algumas doses do humor seco da Suábia, como

processos conscientes nas outras pessoas, unida a

depois, numa forma bem aperfeiçoada, encontrou

uma postura singularmente fria e impessoal para

lugar em suas aulas acadêmicas e que seriam tão

criticar esses processos. Aqui, de fato, está uma

características do seu estilo, para não dizer do seu

característica de Hegel que depois, em sua sabedo-

sistema. A forma pueril desse interesse pelo gro-

ria madura, assumiu um lugar muito proeminente,

tesco pode ser exemplificada do seguinte modo:

e que sempre o torna, mesmo sem levar em conta

8 de janeiro, 1787. — Eclipse total da lua; instru-

seu estilo, muito difícil de ser compreendido por

mentos preparados no gymnasium, onde alguns se

algumas pessoas. Acustomamo-nos na literatura

reuniram para ver o céu, mas ele estava nublado

ao homem que se simpatiza pessoalmente com as

demais. Então o reitor “nos contou o seguinte:

paixões dos seus companheiros e que conhece seus

quando menino, ele mesmo saiu com outros meni-

corações por causa do calor do seu próprio coração.

nos, à noite, com a intenção de olhar as estrelas.

Conhecemos algo do tipo tragicamente cínico do

Na realidade, eles só ficaram perambulando. A

homem que, como Swift, não por ser insensível,

polícia os encontrou e os levaria em custódia;

mas por ser amargurado, vê ou escolhe descre-

mas os meninos do gymnasium disseram, ‘Nós

ver com paixão somente suas loucuras. Ademais,

saímos para ver as estrelas.’ ‘Não’, respondeu o

temos à nossa volta os simplesmente insensíveis,

policial, ‘vocês garotos deveriam ir para a cama à

para quem a paixão é um mistério impenetrável,

noite, e sair para ver as estrelas durante o dia!’”

porque eles são naturalmente cegos para seu valor

Eu comento essa bobagem porque, no fim das

e profundidade. Mas Hegel é dos tipos mais raros,

contas, ela diz mais do que se pensa. Aqui e acolá

isto é, um tipo cujo homem representativo


Seu primeiro grande livro, a “Phänomenologie

coisas; ele não está expressando nada sério a res-

des Geistes,” concluído mais ou menos na época

peito de sua própria piedade ou grau de interesse.

da batalha de Jena, e publicado no início de 1807,

Ele ainda é o crítico. Sua admiração era a aprovação

completava sua separação de Schelling

do espectador. Em sua privacidade, ele permanece o que era antes, intocado pelo ardor do coração dos

lhe dirá tudo o que você fez, em poucas palavras

próprios serafins.

sobrenaturalmente precisas, por assim dizer, embora talvez altamente técnicas, um homem que

No ano de 1788, Hegel entrou na universidade de

parecerá auscultar seu coração exatamente como

sua província em Tübingen. Lá ele estudou até

um habilidoso especialista em doenças nervosas

1793, sendo interrompido um bocado em seu tra-

sondaria as misteriosas e secretas profundezas

balho acadêmico por problemas de saúde. Seu

da consciência de um paciente mórbido; mas um

principal estudo era a teologia. Um certificado

homem que é por si só aparentemente tão livre das

dado na conclusão de seu curso declarava que ele

profundas experiências pessoais de tipo emocio-

era um homem de alguns dons e industriosidade,

nal quanto o médico é livre da cogitação mórbida e

mas que não prestara uma atenção muito séria à

nervosa do seu paciente. Hegel é dotado desse tipo

filosofia. No entanto, sua leitura tinha sido muito

semiprofissional de sensibilidade em toda sua ati-

variada. Além da teologia, ele demonstrara um

tude diante da vida.

grande carinho pelos escritores de tragédia gre-

Seu primeiro grande livro, a “Phänomenologie des Geistes,” concluído mais ou menos na época da batalha de Jena, e publicado no início de 1807, completava sua separação de Schelling.

gos. Seus amigos e colegas mais íntimos e dignos de nota foram o jovem poeta Hölderlin e o próprio Schelling. Ninguém ainda havia detectado qualquer elemento de grandeza em Hegel. A amizade com Scheling agora continuava na forma de uma correspondência, que durou enquanto Hegel, como um obscuro tutor familiar, passou os anos de 1793 a 1796 na Suíça, e então, numa função semelhante, trabalhou em Frankfurt am Main até o final de 1800, quando, com a ajuda de Schelling, encontrou uma oportunidade de começar uma carreira acadêmica na universidade de Jena. Durante todos esses anos, Hegel amadureceu lentamente e não

ativo e atento do que ele para compreender, mas

escreveu nada. As cartas para Schelling são todas

também ninguém mais impiedoso para dissecar

escritas num tom bajulador e receptivo. A filo-

as mais sábias e mais tenras paixões do coração.

sofia se torna mais proeminente no pensamento

E, no entanto, não se trata apenas de inclemência

e na correspondência de Hegel conforme passa o

no seu caso. Quando ele analisa, ele não condena

tempo. Ele apela a Schelling como o líder eleito

da maneira cínica. Depois da dissecação, vem a

da mais nova evolução do pensamento, e diz que,

reconstrução. Ele separa o que considera ser o

a partir da filosofia kantiana, deve-se desenvol-

verdadeiramente humano na paixão, descreve

ver um novo grande movimento criativo, e a idéia

os interesses artísticos ou religiosos do homem,

central desse novo movimento será a doutrina do

retrata as formas mais admiráveis da auto-

eu absoluto e infinito, cujos processos construtivos

-consciência; e agora, de fato, seu discurso pode

deverão explicar as leis fundamentais do mundo.

assumir em certos momentos um tom religioso,

Hegel expressa essa noção já em 1795, quando

quase místico. Ele louva, representa com apro-

tem apenas vinte e cinco anos e Schelling ape-

vação e admira o valor absoluto dessas coisas.

nas vinte. Mas, quanto ao desenvolvimento desse

Você sente que, enfim, encontrou o coração dele

novo sistema em sua própria mente, ele pouca ou

também pulsando. Mas não; isso também é uma

nenhuma dica dá até 1800, exatamente antes de

ilusão. Uma palavra logo abre seus olhos quanto à

se unir a Schelling em Jena. Então, como confessa

postura pessoal de Hegel. Ele só está preocupado

a seu amigo, “o ideal de minha juventude teve de

com seu ofício de um professor sagaz; ele apenas

tomar uma forma reflexiva, e tornou-se um sis-

está lhe contando o valor verdadeiro e objetivo das

tema; e agora pergunto como posso retornar à vida

OUTUBRO 2013

Ninguém mais penetrante e mais delicadamente

15


FILOSOFIA

e começar a influenciar os homens.” Na verdade,

daquela descrição tradicional do seu sistema que

nessa época ele tinha escrito um esboço da sua

foi repetida nos manuais até o ponto em que prati-

futura doutrina, que já estava completamente defi-

camente todo mundo esqueceu o que ela quer dizer

nida em todos seus aspectos essenciais. Porém, em

e veio a aceitá-la assim como verdadeira. Nós, por-

sua primeira aparição em Jena, ele se contentava

tanto, precisamos restringir nossa atenção à teoria

em parecer um colega de trabalho e mesmo parcial-

de Hegel sobre a natureza da auto-consciência,

mente um expositor de Schelling, e é provável que

deixando de lado todo o estudo pormenorizado

deliberadamente exagerasse a concordância com

do restante do seu elaborado sistema. E, final-

seu amigo, na medida em que considerava a repu-

mente, precisamos ser duros com nosso pensador,

tação e a ajuda de Schelling uma valiosa introdução

como ele era com todo mundo; precisamos remo-

ao mundo intelectual, no qual o jovem romântico

ver aquilo que consideramos seu “segredo” (para

já era uma grande figura, enquanto o próprio Hegel

emprestar o termo do Dr. Stirling) para fora

ainda era desconhecido. Em 1801, Hegel começava

da linguagem peculiar na qual Hegel escolheu

suas palestras como Privat-Docent na universidade.

expressá-lo, e para fora da tumba sistemática

Em 1803, Schelling deixava a universidade, e Hegel,

onde ele insistiria em enterrá-lo. Assim tratada,

agora dependente só de si mesmo, logo não dei-

a doutrina de Hegel surgirá como uma análise do

xaria em segredo o fato de que tinha sua própria

paradoxo fundamental da nossa consciência.

filosofia relativamente independente e que até então não pudera achar nada definido e conclusivo sobre os escritos de seu amigo. Seu primeiro grande livro, a “Phänomenologie des Geistes,” concluído mais ou menos na época da batalha de Jena, e publicado no início de 1807, completava sua separação de Schelling, cuja imprecisão romântica ele ridicularizava impiedosamente, sem nomear o próprio Schelling, no longo prefácio que abria o livro. Numa carta a Schelling que acompanhava

Toda filosofia então se volta, como Kant havia mostrado, para o entendimento de quem e do que eu sou, e quem é o meu eu mais profundo.

uma cópia da “Phänomenologie”, Hegel na verdade explicava que essa ridicularização deveria

Em termos desse paradoxo, ele tentará primeiro

ser entendida como dirigida contra o mau uso

definir a relação do eu finito com o eu infinito, e

que os seguidores daquele estavam fazendo do

depois a relação entre a mente e a realidade.

método romântico em filosofia; mas a linguagem do prefácio era inequívoca. Schelling respondeu

III.

OUTUBRO 2013

secamente, e a correspondência terminou. Depois

16

do período de confusão que se seguiu à batalha de

O mundo da nossa vida cotidiana, dizia Kant, pos-

Jena, Hegel, que havia sido temporariamente for-

sui uma ordem e conexão não porque a ordem

çado a abandonar a vida escolástica, encontrava

absoluta das coisas exteriores em si mesma nos

um posto de diretor do gymnasium em Nürberg,

seja conhecida, mas (da maneira que reformulei

onde casaria em 18 . Em 1816, era chamado para

Kant) porque somos sãos, porque nosso enten-

uma cadeira de filosofia em Heidelberg e já havia

dimento, então, possui sua própria coerência e

publicado sua “Lógica”. Em 1818, era chamado a

precisa ver sua experiência à luz dessa coerência.

Berlin, e aí rapidamente atingiria o maior sucesso

O idealismo já tirou a conclusão óbvia de tudo isso.

acadêmico. Ele teve um grande número de segui-

Se é assim, se é o nosso entendimento que na ver-

dores, recebeu favores especiais da corte, atingiu

dade cria a ordem da natureza para nós, então o

uma posição quase despótica no mundo do pensa-

problema “Como devo compreender meu mundo?”

mento filosófico germânico, e morreu de cólera, no

acaba não passando do problema “Como devo

auge de sua fama, em novembro de 1831.

entender a mim mesmo?” Já sugerimos a quais extravagâncias românticas o esforço de conhe-

Se agora nos propormos a caracterizar em poucas

cer exaustivamente a vida interior havia levado

palavras a doutrina de Hegel, devemos em pri-

nessa época. Sentia-se que alguma relação, pro-

meiro lugar nos desligar quase que inteiramente

funda, mas ainda vaga, existia entre meu próprio


eu e um eu infinito. A filosofia estava acostumada

empreende uma análise que devemos reformular

a apelar a essa relação vaga, que Fichte concebia

aqui da nossa maneira e em grande parte com nos-

em termos puramente éticos, e que os românticos

sas próprias explicações.2

tentaram captar de diversas formas arbitrárias e fantásticas. O meu verdadeiro eu é mais profundo

Examine-se a si mesmo em qualquer instante:

do que meu eu consciente, e esse eu real é ilimi-

“Eu”, você diz, “conheço exatamente agora isto

tado, abrangente, romântico, divino. Só mesmo

que está presente agora para mim, este senti-

os poetas e outros gênios podem devanear sobre

mento, este som, este pensamento. Do passado e

ele. Mas ninguém pode dizer de forma reta e sim-

do futuro, das coisas remotas, de outras pessoas,

ples, mit dürren Worten, o que ele significa. Ora, o

eu posso conjecturar isso ou aquilo, mas exata-

próprio Hegel, como um suábio de um malicioso

mente aqui e agora eu conheço tudo que é aqui e

sangue frio e um austero não-romantismo, de fato

agora para mim.” Sim, de fato, mas o que é aqui

acreditava no eu infinito, mas via com maus olhos,

e agora para mim? Vejam, mesmo quando eu tento

e mesmo com um certo riso indelicado, toda essa

dizê-lo, o aqui e agora já passou. Eu conheço esta

imprecisão dos românticos. É claro que em sua

nota de música que toca, essa onda que quebra na

própria forma exterior apreciava todo esse entu-

praia. Não, não é assim, mesmo quando eu tento

siasmo; ele próprio podia até falar dessa moda de

dizer o que eu sei agora, a nota tocou e se foi, a onda

devaneios, e certa vez, não por reputação à sua

quebrou, e outra onda se ergue para uma próxima

sabedoria, e talvez não exatamente por reputação

queda. Não posso dizer “eu sei.” Devo sempre dizer

à sua honestidade, ele fez isso, num ensaio prema-

“eu acabei de saber.” Mas o que era que eu acabei

turo, publicado, como devemos observar, enquanto

de saber? Já foi e já é passado? Então como eu posso

ele ainda era uma acadêmica criança de colo de

conhecê-lo agora? Vemos esse paradoxo inesgotá-

Schelling em Jena. Mas desprezava a imprecisão,

vel da consciência, essa eterna fuga de mim para

O meu eu momentâneo tem conhecimento na medida em que conhece, reconhece, e aceita outro eu, o eu do momento recém passado.

longe de mim. Afinal de contas, eu realmente sei alguma coisa permanente ou mesmo momentaneamente terminada e claramente presente? De fato não. Eu estou eternamente modificando minha mente. Tudo o que sei, então, não é qualquer momento presente, mas o momento que recém passou, e a mudança desse momento para este. Assim, o meu eu momentâneo tem conhecimento na medida em que conhece, reconhece, e aceita outro eu, o eu do momento recém passado.

ainda a grande questão da filosofia estava justa-

E, ainda, o meu eu momentâneo é conhecido pelo

mente onde os românticos a haviam encontrado,

eu do momento seguinte, e assim por diante, numa

sim, bem onde o próprio Kant a havia deixado.

fuga eterna e fatal. Tudo isso é um velho paradoxo.

O meu eu consciente e presente não sou eu por

Os poetas o valorizam muito. Você pode ilustrar

completo. Eu constantemente me refiro ao meu

sem fim as suas várias formas e gradações. Que eu

próprio passado, ao meu próprio eu futuro, e tam-

não conheça a minha mente presente, mas possa

bém ao meu eu mais profundo, como ele é agora.

apenas rever minha mente passada é a razão, por

De tudo que eu afirmo, ou duvido, ou nego, sem-

exemplo, por que eu jamais sei com precisão que

pre busco minha própria mente para provar, para

estou feliz no instante mesmo em que estou feliz.

sustentar, para guiar. Essa busca constitui, num

Depois de uma noite alegre, posso meditar sobre

certo sentido, toda minha vida mental ativa. Toda

ela toda e dizer “Sim, eu estive feliz. Foi tudo bom.”

filosofia então se volta, como Kant havia mostrado,

Só então, vejam, a felicidade termina. Mas, vocês

para o entendimento de quem e do que eu sou, e

podem dizer, ainda sei que a memória da minha

quem é o meu eu mais profundo. Hegel reconhece

felicidade passada em si mesma é algo feliz. Não,

isso; mas não fará devaneios a respeito. Assim, ele

nem mesmo isto conheço diretamente agora. Se eu

___________________________________________________

2. O que se segue imediatamente é sugerido, é claro, pelo início do argumento na Phänomenologie.

OUTUBRO 2013

e quando chegou a hora disse isto. Porém, para ele

17


FILOSOFIA

refletir sobre minha memória da alegria passada,

não conhece sua própria mente profunda. A vida

mais uma vez vejo, mas numa segunda memória

adulta ou idosa descobre reflexivamente uma

refletida, que minha memória anterior de alegria

parte do que significava a juventude e agora se

era em si mesma alegre. Mas, como vocês vêem,

lamenta que o sentido só seja conhecido quando

cada nova alegria eu tenho como minha só quando

o jogo acabou. Todo sentimento, toda caracterís-

ela se esvaneceu no ser. É minha memória que

tica, todo pensamento, toda vida, existe para nós

constitui o meu conhecimento de minha alegria.

só na medida em que pode ser refletido, visto desde

Esse é um paradoxo um tanto triste. Eu sinto minhas

fora, olhado à distância, reconhecido por outro que

melhores alegrias exatamente quando menos eu as

não si próprio, reformulado nos termos de uma

conheço, ou seja, nos meus momentos menos refle-

experiência recente. Permaneça onde você está,

tidos. Saber que eu me alegro é refletir, e refletir é

fique sozinho, isole sua vida, e a partir de então

lembrar de uma alegria passada. Mas certamente,

você não será nada. Adentre relações, exista para

então, pode-se dizer “quando eu sofro eu posso

o pensamento reflexivo de si mesmo, ou de outras

saber que sou miserável.” Sim, porém, mais uma

pessoas, critique-se e seja criticado, observe-se e

vez apenas reflexivamente. Cada tormento é pas-

seja observado, exista, e ao mesmo tempo veja a

sado quando eu venho a saber agora mesmo que

si próprio e seja visto desde fora, e então de fato

ele era meu. “Isso acabou”, eu digo, “e agora?” E

você será alguém, — um eu com uma consistência

é esse horror do “e agora?”, essa busca por meu

e uma vitalidade, um ser com uma vida genuína.5

sofrimento num lugar distinto do presente, isto é, no fatal futuro temido e contínuo, que constitui a mais profunda dor da solidão, da derrota, da vergonha ou da privação. Estas são ainda minhas explicações, não as de Hegel.3 Não é difícil ver o resultado de toda essa nossa cogitação provavelmente elaborada demais. Nós queríamos saber quem é que cada um de nós é em qualquer momento; e a resposta para a pergunta

Eu me conheço apenas na medida em que sou conhecido ou posso ser conhecido por outro distinto do meu eu presente ou momentâneo.

é: cada um de nós é o que algum outro momento de sua vida refletivamente descobre que ele é. É

Em suma, então, veja a mim momento a momento,

um fato misterioso e embaraçoso, mas verdadeiro.

ou veja a mim em toda minha vida, e isso surgirá

Nenhum de nós sabe o que é agora; só pode saber

como o paradoxo da minha existência, isto é, eu me

o que foi. No entanto, cada um de nós é agora só

conheço apenas na medida em que sou conhecido

o que doravante ele deverá descobrir ser. Este é o

ou posso ser conhecido por outro distinto do meu

paradoxo mais profundo da vida interior. Nós con-

eu presente ou momentâneo. Deixe-me só com a

quistamos o auto-controle, a auto-valorização e o

auto-consciência deste momento, e eu encolherei

auto-conhecimento só ao fugir infindavelmente

até um mero átomo, um sentimento incognoscível,

de nós mesmos e então voltar-se para olhar o

um nada. Minha existência está num tipo de pro-

que éramos.4 Mas esse paradoxo não se refere só

paganda consciente da minha vida interior.6

a momentos. Refere-se à vida toda. A juventude

___________________________________________________

3. As explicações de Hegel mais usualmente partem de estágios mais altamente reflexivos da consciência. Porém, a chave para o “movimento” de toda a “Lógica” está justamente nesse modo de ver os fatos da vida e do pensamento. 4. Cf. Logik, vol. I (Werke, vol. III), pp. 99, 114, 152, 283 e 285, para uma série de expressões, numa forma muito abstrata, da natureza desse

OUTUBRO 2013

processo como manifestado no caso de várias construções e categorias lógicas. O termo técnico mais comum para o processo é Negation

18

der Negation (l. c. p. 99), explicado mais adiante na página 114. Na página 152, emprega-se o verbo zurückkehren para nomear o mesmo ato; sc. p. 288. 5. O Kampf des Anerkennens da Phänomenologie. 6. As descrições gerais do processo e do paradoxo da auto-consciência como tal são: Phänomenologie, p.125; Logik, Werke, vol. III p. 66, e vol. V p. 13; Encyklopädie, Werke, vol. VI pp. 47, 91.


Deixem-me imediatamente traçar uma analogia

que me ama (e então me regozijo) ou não me ama

entre esse fato da vida interior e o fato bem conhe-

(e então me dominam a tristeza ou o ciúme)? O que

cido da vida social ao qual acabei de me referir. Essa

é o auto-respeito, senão um apelo consciente para

analogia evidentemente chocou Hegel com muita

que outros respeitem meu direito ou meu valor? E

força, pois ele freqüentemente alude a ela. Todos

se vocês falam do coração secreto de uma pessoa, o

estamos cientes, se testamos isso ao menos uma

que é ele senão aquela meditação interior sobre sua

vez, do quão vazia e fantasmal é uma vida vivida por

própria vida consciente, que ilustra em grau ainda

muito tempo em absoluta solidão. Liberte-me dos

maior, como dissemos, a própria impossibilidade

meus companheiros, deixe-me trabalhar sozinho

de conhecer a mim mesmo exceto olhando para

pela salvação do meu próprio eu glorioso, e agora

trás, para o meu eu passado. Vejam, então, que

certamente (assim posso imaginar) pela primeira

não faz diferença a forma com que você olha para

vez mostrarei quem eu sou. Não, não é assim; pelo

mim: você sempre encontra a mesma coisa. Toda

contrário, nesse caso eu apenas mostro quem eu

consciência é um apelo a outra consciência.7 Essa é a

não sou. Não sou mais um amigo, um irmão, um

essência dela. A vida interior é, como Hegel ado-

companheiro, um colega, um servidor, um pai, um

raria expressá-la, ebensosehr uma vida exterior. A

filho; eu não existo para ninguém; e logo, talvez

espiritualidade é apenas a relação, a comunhão de

para minha surpresa, geralmente para meu horror,

espíritos. Essa é a propaganda essencial da consci-

descobro que eu sou ninguém. Uma coisa significa

ência, pela qual são conhecidos todos os segredos

a outra. Na masmorra da minha auto-consciência

de nossos corações.8

isolada eu apodreço despercebido e aterrorizado. A idiotia está diante de mim, e meu verdadeiro eu está lá para trás, bem distante, naqueles dias claros e amargos quando eu trabalhava e sofria com meus companheiros. Minha liberdade dos outros é minha sina, a mais insuportável forma de escravidão. Se eu pudesse falar com uma alma vivente! Se alguém soubesse sobre mim, olhasse para mim, pensasse em mim, sim, até mesmo odiasse a mim, quão abençoada seria a libertação! Observem agora a analogia aqui entre a vida interior em cada um de

Eu preciso, assim, sobreviver a uma série indefinidamente numerosa de atos e momentos. Eu preciso me tornar muitos eus e viver na união e na coerência deles.

nós e a vida social que cada um de nós leva. Dentro de mim, vale a regra de que eu vivo consciente-

Aqui, então, Hegel chegou à trilha de um pro-

mente apenas na medida em que sou conhecido e

cesso na consciência pelo qual o meu eu privado

refletido por minha vida subsequente. Contudo,

e aquele eu mais profundo dos românticos podem

para além daquilo que se chama de meu eu privado,

ser conectados de algum modo mais definido.

vale uma regra parecida. Eu existo num sentido

Vamos colocar esse processo de forma um pouco

vital e humano apenas em relação aos meus ami-

abstrata. Um ser consciente deve pensar, ou sentir,

gos, minhas questões sociais, minha família, meus

ou fazer algo. Muito bem, então, alguém diria: ele

colegas de trabalho, meu mundo de outros eus.

com certeza deve pensar ou fazer isso em algum

Essa é a regra da vida mental. Temos o costume de

momento. Que seja; mas, como um ser consciente,

falar de consciência como se ela fosse plenamente

ele também deve conhecer que pensa ou faz isso.

uma questão interior, que cada um tem em cada

Para este fim, no entanto, ele deve existir em mais

momento apenas em si e por si mesmo. Mas, afi-

de um momento. Ele deve primeiro agir, e então

nal, a que consciência nos referimos, então? O que

viver para saber que agiu. O eu que age é um, o eu

é o amor, senão a consciência de que existe alguém

que sabe do ato é outro. Aqui, então, há pelo menos

7. Phänomenologie, p. 135. 8. A palavra “propaganda” é uma representativa muito justa da Allgemeinheit como aplicada à auto-consciência por Hegel no altamente importante § 436 da Encyklopädie, Werke, vol. VII 2, p. 283. Aqui já aparece a natureza do verdadeiro universal do sistema de Hegel. O interrelacionamento orgânico dos indivíduos é a condição mesmo da sua identidade relativamente independente.

OUTUBRO 2013

___________________________________________________

19


FILOSOFIA

dois momentos, já dois eus. Vemos de imediato

As explicações acima do paradoxo de Hegel, algu-

como o mesmo processo pode ser indefinidamente

mas das quais nesses últimos parágrafos eram

repetido. Para sequer conhecer a mim mesmo, eu

as dele próprio, não começaram a indicar ainda o

preciso, assim, sobreviver a uma série indefinida-

quanto, de acordo com ele, suas manifestações são

mente numerosa de atos e momentos. Eu preciso

variegadas. No entanto, tão paradoxal e tão ver-

me tornar muitos eus e viver na união e na coerên-

dadeiro isso lhe parece, que Hegel busca por mais

cia deles. Mas mais ainda: suponhamos que nosso

analogias do mesmo processo em outras regiões da

ser auto-consciente tenha de provar uma proposi-

nossa vida consciente. O que encontramos é que,

ção de geometria. Conforme ele prova, ele apela a

se eu devo ser eu, “como eu penso que eu seja,”

alguém, seu outro eu, por assim dizer, para obser-

eu devo ser mais do que meramente eu. Eu me

var que sua prova é sólida. Ou, ainda, suponhamos

torno eu mesmo ao abandonar meu isolamento

que o que ele faz é amar, odiar, suplicar, lamentar,

e entrar na comunidade. Meu domínio de mim

pedir piedade, sentir orgulho, desprezar, exortar,

mesmo é sempre e em toda parte auto-entrega aos

sentir-se caridoso, ansiar por simpatia, conversar,

meus relacionamentos. Mas, ora, esse paradoxo

fazer, em suma, qualquer um dos atos sociais que

do espírito não se aplica mais ainda a toda a vida?

formam, tomados em conjunto, o todo da nossa

Não vigora uma lei parecida sobre tudo que faze-

mais íntima auto-consciência. Todos esses atos,

mos num sentido ainda mais profundo? Se você

como vemos, envolvem pelo menos o apelo a mui-

quer sobrepujar algum fim, não apenas o fim de

tos eus, à sociedade, a outros espíritos. Não temos

conhecer-se a si mesmo, mas, digamos, o fim de

uma vida sozinhos. Não há simplesmente um eu

se tornar santo, não é verdade que, muito curio-

interior. Há o mundo dos eus. Vivemos em nossa

samente, você luta em vão para se tornar santo

A santidade é uma consciência do pecado com uma consciência da vitória sobre o pecado. Só os tentados são santos, e só quando vencem a tentação.

se você apenas luta pela santidade? O que seria a santidade pura e simples? Jamais ter um pensamento mundano, ser pacífico, imperturbável, absolutamente puro de espírito, sem uma mancha ou nódoa sequer, — isso de fato seria nobre, não seria? Mas, pensem, se alguém fosse tão espiritual assim, justamente porque jamais tivesse tido um pensamento espiritual, o que seria isso, senão simples impassibilidade, inocência, vazio puro? Um pequeno e inocente querubim, que, recém-

OUTUBRO 2013

-nascido numa luz pura, não tenha jamais ouvido

20

coerência com outras pessoas, em nossos rela-

falar que há um mundo, certamente seria espiri-

cionamentos. Para resumir: ao fim e ao cabo, a lei

tual nesse sentido. Mas é tal santidade a santidade

da existência consciente é essa auto-diferenciação

triunfante daqueles que realmente distinguem-se

paradoxal, mas real, pela qual eu, o chamado eu

pela força? É claro que se eu nunca tivesse ouvido

interior, sou inteiramente um dos muitos eus, de

sequer falar do mundo, eu não amaria o mundo.

maneira que meu eu interior já é um exterior, um

Mas isso seria por causa da minha ignorância.

revelado, um eu expresso. A única mente então é o

E todos os tipos de coisas podem ser igualmente

mundo das muitas mentes relacionadas. É da essên-

ignorantes, — querubins, jovens tigres, pequenos

cia da consciência encontrar sua realidade interior

Napoleões, ou Judas. Sim, os próprios demônios do

ao se perder em relacionamentos exteriores, mas

abismo poderiam ter começado sendo ignorantes

espirituais. Quem sou eu então neste momento? Sou

do universo. Se fosse assim, eles seriam santos

só esse nó de relacionamentos com outros momen-

até hoje. Mas, no fim das contas, essa santidade

tos e com outras pessoas. Estou conversando de

vale tanto quanto a santidade? De fato vale bas-

maneira ativa e absorvida? então agora eu não sou

tante como inocência, apenas para ser olhada. Um

senão esse centro da consciência total de todos os

jovem tigre ou um pequeno Napoleão dormindo,

que estão absorvidos nessa conversação. E, assim,

ou um novo demônio criado que não tivesse ainda

é da essência do espírito sempre diferenciar-se em

crescido além do estágio de querubim — todos

muitos espíritos, e viver em seus relacionamentos,

deveríamos gostar de olhar para tais insignifican-

ser um em virtude apenas de sua coerência.

tes criaturas. Mas essa santidade não é um ideal


para nós como agentes morais. Aqui estamos com

aqui, mais uma vez, como antes, se diferencia em

o mundo em nossas mãos, assaltados já pela ten-

várias formas e vidas em contraste em seus rela-

tação e todas as dores da nossa finitude. Para nós,

cionamentos, seus conflitos, suas contradições, e

santidade significa não a abolição da mundani-

em seu triunfo sobre estas. Assim como o guerreiro

dade, não a inocência, não o virar as costas para o

regozija-se com um inimigo digno da sua espada,

mundo, mas a vitória que vence o mundo, a bata-

e regozija-se exatamente porque quer superá-lo e

lha, a coragem, o vigor, a resistência, a luta ardente

matá-lo; assim como a coragem existe pelo triunfo

com o pecado, o enfrentamento com o demônio, o

sobre o terror, e como não há coragem num mundo

poder de tê-lo ali conosco para pegá-lo pelo pes-

onde não há nada terrível; assim como a força con-

coço, a presença viva e sinistra do inimigo, e com

siste no domínio dos obstáculos; assim como até

ele a luta triunfante e sua manutenção para sempre

mesmo o amor é provado apenas através do sofri-

como um servo e escravo ofegante, furioso e imor-

mento e aprofunda-se apenas quando a tristeza

tal. Essa é toda a santidade que podemos esperar.

antes estava com ele, e frequentemente torna-se

Sim, é a única santidade verdadeira. Esse triunfo só

mais tenro porque é ferido pela falta de compre-

o supremo espírito conhece, ele, que é tentado em

ensão; assim também, em suma, em toda parte da

todas as ocasiões como nós somos, mas sem pecar.

vida consciente, a consciência é uma união, uma

A santidade, como vocês podem ver, existe em vir-

organização, de fins, propósitos, pensamentos e

tude do seu oposto. A santidade é uma consciência

agitações conflitantes. E isso, de acordo com Hegel,

do pecado com uma consciência da vitória sobre

é a própria perfeição da consciência. Não há nada

o pecado. Só os tentados são santos, e só quando

simples nela, nada unmittelbar, nada ali até você

vencem a tentação.

vencê-la, nada conscientemente conhecido ou

A espiritualidade vive pela auto-diferenciação em forças mutuamente opostas, e pela vitória nas oposições e sobre essas oposições. Essa lei é a que Hegel destaca e transforma na base do seu sistema.

possuído até que você prove isso pelo conflito com seu oposto, até que você desenvolva suas contradições internas e triunfe sobre elas. Essa é a lei fatal da vida. Esse é a pulsação do mundo espiritual. Pois vejam, mais uma vez: nossas explicações passaram das esferas mais altas para as mais inferiores da vida. Em toda parte, desde os jogos mais banais, onde os jogadores estão sempre arriscando perder para desfrutar do triunfo, desde as mais baixas cruezas da existência selvagem, onde os guerreiros provam seu heroísmo lacerando a própria carne, até os mais altos conflitos e triunfos do espírito, vigora essa lei. A espiritualidade vive pela auto-diferenciação em forças mutuamente opostas, e

creia nisso, embora eu realmente creia, mas porque

pela vitória nas oposições e sobre essas oposições.

o frio diagnóstico hegeliano da vida adora apontar

Essa lei é a que Hegel destaca e transforma na base

sintomas exatamente como esse. “Die Tugend”, diz

do seu sistema. Essa é a lógica da paixão que ele

ele numa passagem da sua “Lógica”, “die Tugend

tão habilmente diagnostica e tão incansável, e até

ist der höchste, vollendete Kampf.”9 Então, a san-

impiedosamente, aplica a toda vida. Ele dá a essa

tidade é o próprio apogeu da luta com o mal. Tudo

lei diversos nomes técnicos, chamando- a de lei

isso é um paradoxo, mais uma vez o mesmo para-

da Negativität universal da vida auto-consciente; e

doxo da consciência. Você quer a consciência da

Negativität significa simplesmente aquele princí-

virtude; você a conquista não pela inocência, mas

pio da auto-diferenciação, pelo qual, para possuir

pelo seu próprio oposto, isto é, pelo encontro com o

qualquer forma de vida, virtude, ou coragem, ou

inimigo, resistindo-o e vencendo-o. A consciência

sabedoria, ou auto-consciência, você joga, por

___________________________________________________

9. Werke, vol. IV, p. 63. O espírito da exposição acima da essência da santidade se encontra expresso em muitos lugares, especialmente na Religionsphilosophie.

OUTUBRO 2013

Tudo isso exponho aqui, não meramente porque eu

21


FILOSOFIA

assim dizer, o jogo da consciência, você impõe con-

Hegel, ele equivale simplesmente a mostrar como o

tra si mesmo o oponente, — o impulso perverso

conflito e o domínio ativo ampliam continuamente

que sua bondade pega pelo pescoço, a covardia que

nossos eus finitos. Agora, ele nos permite provar

sua coragem conquista, o problema que sua sabe-

que em qualquer parte do mundo há esse eu abso-

doria resolve, — e então vive ao vencer o seu jogo

luto que abrange e vence todos os conflitos? Hegel

contra esse oponente. Tendo encontrado essa lei,

nos conta como o eu individual se relaciona com o

Hegel ocupa-se, por um tipo de indução exaustiva,

eu mais profundo, como a vida interior se encontra

de aplicá-la à explicação de toda relação cons-

através de sua própria realização nas contradições

ciente, e de construir, nos termos desse princípio

da vida exterior, mas ele mostra em algum lugar

da auto-diferenciação do espirito, a massa inteira

que Deus existe?

das nossas relações racionais uns com os outros, com o mundo e com Deus. Seu princípio é, para

Mostrar isso é precisamente seu objetivo. Não

falar de outra forma, o seguinte: que o eu mais

estou aqui para julgar o quão bem ele conseguiu

profundo que os românticos buscavam deve ser

isso. Ele acha que a pressuposição mais profunda

encontrado e definido apenas pela luta, estafa,

de toda nossa paradoxal vida consciente é a exis-

conflito espiritual; contrapondo aos nossos eus

tência do eu absoluto, que certamente não existe à

privados o mundo das nossas tarefas, dos nossos

parte do mundo, mas em toda essa nossa batalha

relacionamentos, e desenvolvendo, definindo e

humana organizada. Mas Hegel de modo algum se

dominando essas tarefas e relacionamentos, até

satisfaz em afirmar essa pressuposição mistica-

que descubramos, através da própria tensão, vasti-

mente. Ele deseja usar esse segredo, — sua fórmula

dão, necessidade e espiritualidade do conflito, que

da própria essência da consciência, sua lei funda-

nós estamos no próprio mundo infinito da bata-

mental da racionalidade, para resolver problema

lha espiritual e da auto-consciência incansável de

após problema, até chegar à idéia do eu absoluto.

Deus. Quanto mais eu sou eu, mais contradições

Sobre a forma sistemática na qual ele atacou essa

há em minha natureza, e mais completa minha

tarefa em sua “Lógica”, em sua “Enciclopédia” e

conquista sobre essas contradições. O eu absoluto

nos cursos de várias aulas, não posso dar nenhuma

com o qual busco elevar minha alma, e que logo eu

noção muito satisfatória. Contudo, a meu ver, ele

descubro ser um eu genuíno, sim, o único eu, existe

fez seu melhor trabalho naquele que é seu livro

pela própria potência do seu controle sobre todas

mais profundo e mais difícil, a “Fenomenologia do

essas contradições, cuja infinita variedade provém

Espírito.” Aí, ele busca mostrar como, quando você

o próprio coração e conteúdo de sua vida.

principia somente desde você mesmo, e pergunta

OUTUBRO 2013

Para perceber o que eu sou, preciso, conforme descubro, tornar-me mais do que eu sou ou do que eu sei que sou.

22

quem você é o que você sabe, você é levado, passo a passo, por um processo de uma auto-amplificação ativa que não pode evitar o reconhecimento do Espírito Absoluto mesmo como o próprio coração e alma da sua vida. Esse processo consiste em toda parte numa repetição do paradoxo fundamental da consciência: para perceber o que eu sou, preciso, conforme descubro, tornar-me mais do que eu sou ou do que eu sei que sou. Preciso me expandir,

Hegel, como vemos, torna seu Absoluto, o Senhor,

conceber-me como em relacionamentos exter-

o mais incontestavelmente um guerreiro. A cons-

nos, ir além do meu eu privado, pressupor a vida

ciência é paradoxal, incansável, lutadora. As almas

social, penetrar no conflito, e, ao vencer o conflito,

frágeis se cansam dessa luta, e desistem de ten-

ficar mais perto de perceber minha unidade com

tar adquirir sabedoria, habilidade, virtude, porque

meu eu mais profundo. Mas o real entendimento

todas estas se conquistam apenas na presença

desse processo só ocorre, segundo Hegel, quando

do inimigo. Mas o eu absoluto é simplesmente o

você observa que, ao tentar expandir-se desse

espírito absolutamente poderoso que suporta as

modo, pelo fim mesmo da auto-compreensão,

contradições da vida e conquista a vitória eterna.

você repete idealmente em sua própria pessoa a evolução da civilização humana. Esse processo

Porém, ainda se pode dizer, se esse é o princípio de

da auto-expansão é o processo em larga escala


na história da humanidade. A “Fenomenologia”

categorias essencialmente práticas adquiram uma

é, assim, um tipo de relato de filosofia da histó-

profunda importância teórica. Por exemplo,

ria. Ela começa com o Espírito num estágio cru e sensual; segue seus paradoxos, sua expansão social, suas perplexidades, suas rebeliões, seu ceticismo, todas suas andanças, até que ele aprende, através das dificuldades, da angústia e da coragem, como as que representam toda a estafa da humanidade, que ele é, afinal de contas, em sua própria essência, o próprio espírito absoluto e divino, que já está presente no estágio selvagem

O talismã da lógica do ardor fará com que se abram as portas das mais ricas casas do tesouro da investigação teórica.

nas brutalidades mesmas do senhor e do escravo; que atinge uma vida mais elevada na família; que

pensem nesses problemas do mundo exterior, do

busca incessantemente a liberdade na sentimen-

espaço e do tempo, da causa e do efeito, da lei e

talidade romântica ou na independência estóica;

dos fenômenos, da substância e da aparência, da

que, contudo, sempre aprende de novo que, nessa

natureza e do homem, de que a filosofia anterior

liberdade, não há verdade; que, portanto, retorna

tratou. Como surgem esses problemas, e qual é

voluntariamente à escravidão da boa cidadania e

seu caráter universal? Eles não são sempre proble-

da moralidade social; e que, finalmente, na cons-

mas sobre alguma oposição paradoxal que parece

ciência religiosa, chega a uma apreciação da lição

existir na natureza da realidade e que desconcerta

que ele aprendeu mediante todo seu processo de

o entendimento humano, precisamente porque

auto-expansão da civilização, —isto é, a lição de

ambos os termos opostos, — digamos, por exem-

que toda consciência é uma manifestação da lei da

plo, o sujeito cognoscente e o objeto conhecido;

vida espiritual, e então, finalmente, do Espirito

ou a realidade verdadeira e a realidade aparente;

Eterno. O Absoluto da “Fenomenologia” de Hegel

ou as coisas em si e os fenômenos; ou o finito e

não é o desfile do absoluto, por assim dizer, — não

o infinito, — precisamente porque, digo eu, esses

um Deus que se esconde por detrás das nuvens e

dois termos opostos em cada par parecem estar

da escuridão, nem também um Ser Supremo que

separados, divididos, mutuamente irredutíveis,

se mantém cuidadosamente puro e imperturbável

inacessíveis entre si, enquanto, porém, ambas as

nos recônditos de uma infinitude inacessível. Não,

coisas opostas continuamente compelem-se sobre

o Absoluto de Hegel é, repito, um guerreiro. O pó e

nós e exigem-nos uma explicação. A filosofia é

o sangue das eras da vida espiritual da humanidade

uma abrigo para tais problemas. Eles molestam o

assomam sobre ele; ele se nos apresenta perfurado

homem sem fim; eles deram a Kant seus proble-

e ferido, mas triunfante, — o Deus que conquistou

máticos pares de afirmações contraditórias sobre

as contradições e que é simplesmente a consciên-

o espaço e o tempo; eles deram a Fichte o enigma

cia espiritual total que expressa, abraça, unifica,

sobre o eu e o não-eu; eles deram a Hume o pro-

e desfruta da riqueza completa da nossa lealdade,

blema sobre os fatos e leis, sobre a experiência

resistência e paixão humanas.

que não podia jamais encontrar a necessidade, e a necessidade que continuamente fingia impor-

IV.

-se sobre a experiência. Um sistema lógico de tais problemas e suas soluções seria uma filosofia teórica completa, uma explicação do absoluto, como a

dá as condições de um genuíno sistema filosófico?

com a qual Schelling sonhou. Bem, em nossa fór-

Isso explica a natureza exterior e a causação física?

mula da Negativität universal da vida espiritual, não

Explica a percepção e o conhecimento? Explica a

encontramos precisamente a fórmula que afirma e

verdadeira natureza das coisas? Em suma, como

resolve enigmas como esse? O Espírito é o que cria

vocês vêem, toda essa doutrina de Hegel parece

o mundo: isto, vocês se lembram, é, desde Kant,

essencialmente ética, prática, uma exposição da

o pressuposto de toda esta era. O espírito, então,

espiritualidade, — não uma explicação teórica da

por causa de sua Negativität, irá se diferenciar por

natureza. Bem, o próprio Hegel crê estar em posse

toda parte, e, assim, por todo seu universo, desde

dos recursos pelos quais pode fazer com que suas

os átomos aos arcanjos, criará supostas oposições,

OUTUBRO 2013

Mas vocês ainda podem se perguntar: isso tudo nos

23


FILOSOFIA

tomará o fardo de uma riqueza de paradoxos mag-

substância. A definição, simples, positiva, difícil

níficos; e fará isso de forma igual e obstinada no

e ágil como ela é, jamais conta a verdade inteira

mundo da teoria, bem como no mundo da prá-

acerca de uma concepção; pois toda concepção

tica. Portanto, se temos a chave para o processo

fundamental deve realmente ser compreendida

pelo qual o espírito conquista a unidade no meio

apenas ao ser vista na relação verdadeira e, porém,

das suas oposições, então o enigma de Hume e os

paradoxal, com seu próprio oposto, que, como pro-

problemas de Kant, os conflitos da investigação

duto da auto-consciência, essa concepção precisa

empírica e da especulação a priori — sim, todos os

ter. Já vimos como a virtude e o vício, a consciên-

enigmas que a história da filosofia nos mostra —

cia presente e a consciência passada, a consciência

podem ser colocados e resolvidos; pois todos eles

individual e a consciência social, a vida interior

serão casos do mesmo paradoxo fundamental da

e a vida exterior, são indefiníveis, incompreen-

auto-consciência. O talismã da lógica do ardor fará

síveis, exceto em virtude de uma intuição sobre

com que se abram as portas das mais ricas casas do

aquela união maravilhosa de tendências confli-

tesouro da investigação teórica. É com essa noção

tantes, mediante as quais cada uma das concepções

em mente que Hegel, influenciado pelo exemplo

opostas adquire seu sentido para nós. É o fluxo, a

de Schelling, assim como Schelling mesmo havia

mudança, o conflito do pensamento que o filósofo

sido, parte para expor não meramente a história

tem de seguir. Por exemplo, em vão você tenta

do espírito humano ou mesmo do absoluto, mas a

definir a substância da forma de Spinoza como

natureza e a solução de todo problema filosófico a

uma verdade meramente eterna, fixa, congelada e

respeito do absoluto da maneira que a história da

imóvel. A substância deste mundo, deste universo

filosofia nos apresentou tais problemas, seja em

do eu, deve ser uma verdade que vive na própria

questões fundamentais de lógica, seja nas inves-

corrente e conflito da existência finita e apa-

tigações da filosofia da natureza. Não preciso dizer

rente. A verdadeira substância do mundo não está

que essa estupenda empreitada foi apenas indife-

escondida, mas revelada pela fervorosa mudança

rentemente executada.

e o fluxo e refluxo dos fenômenos; pois a verdadeira substância é o eu, o sujeito; e ele se preserva

No entanto, é exatamente essa empreitada que

ao viver, pois é o Deus vivo. Como tal, a filosofia

dá ao sistema hegeliano sua formulação singular-

tem de mostrá-lo. portanto, você não pode defi-

mente técnica e abstrusa.

nir abstratamente sua natureza, à parte das coisas e relações finitas. Você deve perceber concre-

O próprio sistema é estabelecido sobre três divi-

tamente, mesmo em sua noção de substância, a

sões: a “Lógica,” a “Filosofia da Natureza,” e a

unidade orgânica na interminável diferenciação da

“Filosofia do Espírito.” A “lógica” é uma expo-

qual seu universo é a incorporação. Mesmo com as

sição, na forma mais ordenada e técnica, dos

outras categorias é assim. Você as compreende em

pensamentos fundamentais, ou “categorias”, que

virtude de seus paradoxos. A “Lógica” se compro-

devem se encontrar exemplificadas em todos os

mete a ser uma análise exaustiva de tais paradoxos

fatos deste nosso mundo do eu. Quanto às próprias

das concepções fundamentais.

categorias, a história da filosofia as fornece para Hegel. São as idéias fundamentais, como as do Ser e do Algo; do Múltiplo e do Uno; da Qualidade, e Quantidade, e Relação; da Essência e do Fenômeno; da Forma e Matéria; do Interior e Exterior; da Lei e Substância; do Sujeito e Objeto; do Pensamento e o Absoluto. Você não pode avançar em filosofia sem usar tais concepções. Elas são a moeda cor-

OUTUBRO 2013

rente do reino espiritual. Se você está tentando

24

O que os cidadãos são para o Estado as categorias individuais do pensamento são para a Idee lógica absoluta.

estabelecer a verdade, deve empregá-las; se quer

O método da “Lógica,” então, é o que Hegel chama

entender a verdade, deve compreendê-las. E con-

de método dialético. É o método do que nós cha-

tudo a compreensão dessas categorias não ocorrerá

mamos a lógica do fervor, aplicada às concepções

ao meramente defini-las de uma maneira abstrata,

mais teóricas e aparentemente menos fervorosas.

como Euclides deine um círculo, ou Spinoza a sua

Tomem qualquer noção que quiserem. Hegel vê


de imediato nessa noção o traço da luta da auto-

Ademais, através desse método dialético, Hegel

-consciência da qual ela é a prole, ou, se preferir,

procura não apenas mostrar cada categoria lógica

a incorporação cristalizada. É da quantidade que

como um organismo em si mesma de elementos

você está falando? Então você de imediato observa

opostos e ainda assim mutuamente complemen-

que há duas formas de olhar a quantidade. Uma,

tares, mas também mostrar todas essas noções

à qual nos acostumamos na aritmética elementar,

fundamentais como formando um sistema, em

trata a quantidade como aquilo que chamamos de

que as idéias mais aparentemente diversas e

“discreta”, isto é, como feita de unidades separa-

disparatadas são realmente inter-relacionadas

das. A outra forma, à qual nos acostumamos em

enquanto partes da categoria superior e inclusiva,

geometria e física, trata a quantidade como contí-

a Idee divina, ou o pensamento total do mundo,

nua. Um modo conta por unidades, o outro mede

cuja realização completa é o eu absoluto em sua

por padrões. Agora, na visão comum, pensa-se que

totalidade espiritual. A Idee absoluta é a noção do

essa diferença nos métodos de ver a quantidade

eu completo, tomado como uma categoria lógica.

corresponde a uma diferença existente nos tipos

Como eu verdadeiro, ela se nos aparece depois,

de quantidade que o mundo contém. Há quanti-

na filosofia do espírito. Na “Lógica” ela é apenas

dades discretas e há quantidades contínuas. Mas,

esse pensamento da natureza total das coisas como ser

para Hegel, a noção de quantidade, da forma que

no sentido auto-determinado hegeliano. Esse pensa-

ela realmente existe, é uma noção resultante da

mento contém todas as categorias subordinadas

auto-consciência, e não um mero dado dos sen-

como partes orgânicas do total, e como partes

tidos. Como uma criação da auto-consciência,

cuja relação orgânica é precisamente como essa

a verdadeira quantidade revela-se, defende ele,

natureza dialética, essa natureza paradoxal que a

a um só tempo tanto contínua quanto discreta,

auto-consciência exige. O que os cidadãos são para

assim como a virtude revela-se der höchste Kampf,

o Estado as categorias individuais do pensamento

e assim envolve tanto o bem quanto o mal. A quan-

são para a Idee lógica absoluta. Em si mesmas, elas

tidade é uma coisa matemática, uma categoria

são interminavelmente conflitantes, e no entanto

aparentemente fria e sem vida, enquanto a virtude

são complementares entre si. Em sua totalidade,

é obviamente uma criatura de um fervor santo.

elas formam a categoria mais alta, a categoria da

Apesar disso, o paradoxo da auto-consciência

unidade orgânica de todos os pensamentos em um.

está presente na idéia de quantidade, exatamente

A Idee é também chamada por Hegel de um objecti-

como na vida prática. A quantidade discreta con-

ver Begriff,11 a verdadeira lei das leis, o pensamento

siste de unidades separadas e unidades desunidas.

da relação orgânica de todas as coisas e pensamen-

A quantidade contínua resiste e até mesmo desa-

tos em uma ordem universal.

fia a descrição em termos de unidades últimas disjuntas, como, por exemplo, uma linha se recusa

Assim, obviamente pode-se definir a “Lógica”

a ser feita de pontos. Porém, como o próprio Hegel

como um esforço para estabelecer todos os pensa-

pensa ser capaz de mostrar, cada um desses tipos

mentos humanos fundamentais como formadores

de quantidade é tal que, quando você tenta meditar

de um sistema orgânico. Esse caráter da “Lógica”

sobre sua natureza, ele aflige a si mesmo, por assim

mesmo o leitor mais superficial percebe. O que

dizer, com as características do outro, admite-os,10

o leitor superficial não capta da “Lógica” é uma

como Hegel adora dizer, em todos esses casos,

intuição daquilo que, de acordo com a noção de

assim como a boa vontade admite para si o impulso

Hegel, constitui a unidade orgânica, uma intuição

do mal, para que possa viver ao superar o mal. Eu

sobre qual é a articulação que une os membros do

realmente não tenho tempo de expor como é que

seu tipo de organismo. Essa articulação, como nós

Hegel tenta mostrar isso no caso da quantidade.

agora sabemos o bastante, é a que somente a natureza da auto-consciência explica. Ela é, portanto,

10. Uma sugestão do uso técnico de Hegel de an ihm ou an ihr. Cf. Logik, Werke, vol. III, p. 221: “In gewöhnlichen Vorstellungen von continuirlicher und discreter Grösse wird es übersehen, dass jede dieser Grössen beide Momente, sowohl die Continuität als die Discretion, an ihr hat.” 11. Logik, Werke, vol. V p. 230.

OUTUBRO 2013

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25


FILOSOFIA

ao fim e ao cabo, uma articulação de membros

a atividade da ciência é lidar com a verdade, e a

opostos e complementares em razão de suas oposi-

verdade é sempre universal, é conhecida por nós

ções mesmas. Essa é a fonte da análise perplexa da

como a noção das coisas, a lei das coisas, a essên-

contradição da qual a “Lógica” está repleta. Assim,

cia do mundo. E, por outro lado, a ciência deve ser

o sucesso ou insucesso da “Lógica” depende do

verdadeira quanto aos fatos, porém os fatos, em

direito do autor de ler os processos da espirituali-

todos os eventos nos quais os sentidos os captam,

dade prática superior nas criações do pensamento

não são universais, mas apenas fatos individuais.

puramente teórico. Eis a crux do sistema.

Essa oposição entre a forma da ciência, que é a

O homem como mera abstração não existe; os homens individuais sim. Eis aqui um dos mais terríveis paradoxos do senso comum.

universalidade, e a matéria da ciência, que é o fato individual, deu muito trabalho já para Aristóteles,12 em cujo sistema ela introduzia uma contradição fundamental. Hegel estava bem ciente dessa contradição entre o ideal aristotélico de conhecimento universal e a teoria real da relação entre universais e indivíduos, como Aristóteles desenvolveu em seus tratados lógicos.13 Mas esse paradoxo antigo, que tinha aberto terreno para uma das mais famosas controvérsias da filosofia da Idade Média, era precisamente o tipo de paradoxo do qual o método

Ainda devemos mencionar uma consideração

de Hegel estava peculiarmente apto para caracte-

fundamental que caracteriza a “Lógica”. A lógica

rizar e tratar. Assim, ao tentar sua própria solução

antiga chamava a si própria de formal. Ela discutia

do problema, ele estava plenamente consciente

as categorias e os métodos do pensamento, mas

de sua dificuldade, e da relativa novidade de sua

não se comprometia a construir verdades concre-

própria teoria. “O universal em seu sentido verda-

tas. Para ela, suas formas de pensamento jamais

deiro e inclusivo é um pensamento,” ele diz certa

foram coisas reais. Mas as categorias de Hegel são

vez,14 “que custou milhares de anos para chegar

mais do que isso, é claro. As leis do pensamento

à consciência humana, e que só foi reconhecido

não são meras abstrações; são a alma das coisas.

totalmente com a ajuda do cristianismo. Os gre-

Na “Lógica” se está construindo a própria essência

gos não conheciam nem a Deus nem ao homem em

do eu do mundo.

sua verdadeira universalidade.” É claro que a for-

OUTUBRO 2013

mulação filosófica desse pensamento é, segundo

26

Ora, Hegel mais adiante expressou esse aspecto

Hegel, posterior à sua realização concreta; sim,

do assunto através de sua notável doutrina sobre

essa formulação filosófica da natureza “inclusiva”

a relação entre os Begriffe, ou noções universais,

do universal será uma das contribuições peculiares

e os fatos individuais inclusos nessas noções. Há

ao próprio Hegel para a teoria filosófica. Isto é, o

uma velha controvérsia sobre se as coisas indivi-

verdadeiro universal, como Hegel chama, o Begriff,

duais ou as classes que correspondem a concepções

cuja expressão mais elevada é a Idee absoluta, é a

gerais são as realidades mais profundas no mundo.

união orgânica da verdade universal e dos fatos

Aristóteles dizia que a ciência é sempre do geral.

individuais, uma união determinada pelo princí-

Quando pensamos, pensamos sempre em classes,

pio de que toda verdade é uma verdade construída

categorias, universais, em suma. Por outro lado,

pelo pensamento do eu do mundo, e que, como tal,

os fatos do mundo sempre parecem ser individuais

exemplificará precisamente essa multiplicidade

aos nossos sentidos. O homem como mera abstra-

dos fatos individuais na unidade abrangente e

ção não existe; os homens individuais sim. Eis aqui

universal da auto-consciência, que agora já exem-

um dos mais terríveis paradoxos do senso comum:

plificamos completamente. O verdadeiro universal

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12. Veja a Philosophie der Griechen de Zeller, parte II, seção 2, pp. 304-313 (3d edition), para uma exposição técnica das dificuldades. 13. Compare as duas explicações do método de trabalho de Aristóteles nas próprias palestras de Hegel na História da Filosofia, Werke, vol. XIV, pp. 279, 282. Veja também a caracterização da lógica de Aristóteles, id., p. 368. 14. Em uma aula, como relatado por um dos seus alunos, Werke, vol. VI, p. 321.


do mundo inteiro é, então, a Idee divina, ou a natu-

totalidade da vida individual. Pois a natureza do

reza “envolvente” das coisas, o verdadeiro gênero

universal é a natureza do eu, e o eu é um mundo de

dentro do qual se encontram todos os fatos indivi-

eus organicamente inter-relacionados, momentos

duais. Esse universal não é de forma alguma uma

do organismo infinito, fases da sua infinitude.16

abstração, mas um todo perfeitamente concreto, já

Não poderíamos mencionar uma fórmula mais

que os fatos são, todos juntos, não meros exem-

característica da doutrina hegeliana do que essa

plos dele, mas abrangidos nele, produzidos por

explicação daquilo que Hegel chama de “universal

ele como seus momentos, e existem somente em

concreto,” que constrói, produz, no interminá-

relação entre si e com ele. Ele é a vinha; eles, os

vel jogo e estafa da racionalidade, suas próprias

indivíduos, são os ramos. Ele é o eu na natureza.

“diferenças,” os indivíduos do mundo da experi-

Eles são os pensamentos, aspectos, expressões

ência. É isto que, para ele, explica como na igreja

finitas e incorporações individuais do eu. “Toda

ou no Estado nós, os indivíduos, achamo-nos

realidade”, diz Hegel, em uma passagem surpreen-

“membros uns dos outros.” É isso que nos mos-

dente, “é a Idee… O ser individual é algum aspecto

tra todo o mundo como um organismo. Onde quer

(Seite) da Idee. Como tal, ele precisa portanto de

que esse tipo de universalidade não se encontre,

outras realidades [além dela], que parecem tam-

como é o caso no mundo dos fatos sensíveis não

bém existirem todas por si mesmas; porém apenas

compreendidos, onde, por exemplo, só os homens

nelas em conjunto e em seu relacionamento o universal

enquanto indivíduos parecem existir, e o homem

se realiza. O indivíduo por si mesmo não incorpora seu

nos aparece como uma abstração morta, nós não

universal.”

estamos lidando com o mundo da verdade. O pri-

15

Não há para Hegel uma coisa como um objeto meramente individual do pensamento existindo totalmente isolado por si mesmo.

meiro sinal de que estamos lidando com a própria verdade é nosso sucesso em descobrir uma conexão orgânica entre as coisas. Pois o organismo é a individualidade ou personalidade vista em sua manifestação extrínseca. Há, então, para Hegel uma forma inferior de pensamento que atinge apenas uma Verstandes-Allgemeinheit. Tal pensamento se acha na presença dos fatos individuais e trata o universal como uma simples abstração, ou como presente apenas em cada indivíduo enquanto sua natureza interior e separada. Para tal pensamento

Assim, o paradoxo da relação do universal e do

a única verdade concreta é o mundo das coisas indi-

individual será resolvido de uma maneira pecu-

viduais enquanto tal. Mas a intuição mais profunda

liarmente característica de todo o sistema. A

do mundo revela-se para nós através de uma refle-

verdadeira lei será a totalidade orgânica dos fatos

xão sobre a natureza da auto-consciência, onde o

inclusos nela. A verdadeira classe geral, o verda-

universal, ou o eu, é a totalidade orgânica dos fatos

deiro objeto da ciência, não é uma coisa abstrata

da consciência, que não existem senão enquanto

exemplificada pelos indivíduos, nem também uma

relacionados entre si e com esse universal. O ver-

essência que deva ser encontrada em cada indiví-

dadeiro Universal da teoria de Hegel é, então, o que

duo. Não há para Hegel uma coisa como um objeto

nosso Shelley tão bem descreveu quando nos falou

meramente individual do pensamento existindo

no “Prometeu” da

totalmente isolado por si mesmo. O mundo total dos indivíduos inter-relacionados é tudo o que

“Alma indivisa de muitos uma alma

existe. Portanto, o universal é realizado nessa

cuja natura é seu próprio divino controle,

___________________________________________________

16. A primeira exemplificação de Hegel dessa doutrina estava na já mencionada teoria da Allgemeinheit des Bewusstseins, como exposta na Phänomenologie. Na Logik, a doutrina é exposta de uma maneira mais intricada e elaborada. Nos escritos posteriores constrói-se uma base para a doutrina de Estado e de consciência religiosa de Hegel, embora quase certamente ela tivesse sido alcançada em primeiro lugar através de um exame justamente desses exemplos. Para mais citações, veja o Apêndice C.

OUTUBRO 2013

15. Werke, vol. VI, p. 385.

27


FILOSOFIA

Onde tudo flui a tudo, como os rios ao mar.”17

sua compreensão vital da nossa vida ficará para sempre.

Não é nossa função aqui tratar da filosofia da natureza (a empreitada mais inacabada e mais fraca de Hegel), nem da filosofia do espírito (cuja sugestão

APÊNDICE C

já estava contida no exposto acima). Esses assuntos em sua plenitude são próprios a exposições

A TEORIA HEGELIANA DOS UNIVERSAIS

técnicas, em cujo domínio eu sem dúvida já fui longe demais.

No texto, pp. 222-226, eu mostrei brevemente a teoria de Hegel quanto à realidade do universal

E, com isso, tenho de encerrar esta explicação.

“concreto.” O verdadeiro gênero, segundo ele, é a Idee divina, na qual, segundo Hegel, toda reali-

Seu grande erro filosófico e sistemático estava não em introduzir a lógica no ardor, mas em conceber a lógica do ardor como a única lógica.

dade individual genuína tem seu lugar orgânico. Mostramos no texto que essa teoria do universal orgânico como a Totalität que contém e determina todos os indivíduos inter-relacionados e verdadeiros, que posteriormente têm seu ser genuíno apenas como membros do corpo organizado do seu universal, é um resultado necessário da metafísica hegeliana da auto-consciência. A importância histórica da questão justifica aqui o acréscimo de algumas citações e referências para proveito do

Talvez já tenha ficado óbvio para vocês todos que há uma grande parte na análise hegeliana da auto-consciência que me parece de um valor óbvio e permanente. Quanto à finalidade da doutrina filosófica como um todo, essa é outra questão que não

aluno mais técnico.

O mundo real é o mundo do Eu Absoluto.

vamos discutir aqui. Ainda assim, talvez seja bom, ao encerrar, sugerir o seguinte pensamento: as

A teoria hegeliana dos universais pretende, é claro,

pessoas geralmente chamam Hegel de um siste-

como o texto também mostrou, oferecer uma solu-

matizador frio que reduzia todas nossas emoções

ção à antiga questão da realidade dos universais.

a termos puramente abstratos e concebia seu

Que validade objetiva têm nossos conceitos gerais?

absoluto somente como uma encarnação do pen-

“Eles devem ter validade, eles devem corresponder

samento morto. Eu, pelo contrário, defino-o como

à verdade objetiva,” disseram alguns pensadores,

alguém que conhecia maravilhosamente bem,

“porque toda ciência é do geral, e toda ciência é

com toda sua frieza, o segredo do ardor humano,

também sobre a verdade.” “Eles não podem ter,

e que, portanto, descrevia, como poucos, os para-

enquanto idéias gerais, validade objetiva,” disseram

doxos, os problemas e as glórias da vida espiritual.

outros pensadores, “porque tudo o que verdadeira-

Seu grande erro filosófico e sistemático estava não

mente existe no mundo é individual. Pois não há

em introduzir a lógica no ardor, mas em conceber

algo como um cachorro em geral. Há no mundo

a lógica do ardor como a única lógica; de maneira

apenas cachorros individuais. Portanto, o univer-

que você em vão se empenharia em satisfazer-se

sal existe apenas enquanto realizado no individual

com o tratamento de Hegel da natureza exterior,

singular.”

OUTUBRO 2013

da ciência, da matemática, ou de qualquer tema

28

friamente teórico. Sobre todas essas coisas, ele

Diante dessa antinomia da discussão tradicional,

é imensamente sugestivo, mas jamais final. Seu

Hegel oferece sua solução característica. O mundo

sistema, enquanto sistema, desmoronou, mas

real é o mundo do Eu Absoluto. Sua verdade é

___________________________________________________

17. É bem esboçada a teoria hegeliana dos universais na Filosofia da Religião de Caird, pp. 229-232. Veja também a p. 241, onde o reitor Caird explica o verdadeiro universal pelo exemplo de uma família com muitos membros.


orgânica, é allumfassend, é uma Totalität, e é, na for-

formas inferiores do universal; e nós precisamos

mulação lógica, a Idee universal. Ora, a Idee não é

primeiro nos referir brevemente à principal entre

um “universal abstrato,” nem uma idéia geral que

elas.

seja meramente exemplificada pelos objetos individuais do mundo. Pelo contrário, eles estão nele;

I.

pois nele vivem, movem e são; e ele, por outro lado, está neles apenas na medida em que primeiro

No particular, então, a teoria dos universais de

eles estão nele. Nenhum indivíduo finito, em seu

Hegel não pode ser compreendida sem uma clara

isolamento, incorpora a Idee, ou corresponde a esse

distinção entre a forma inferior do que ele chama

verdadeiro Universal. Somente a totalidade orgâ-

de Verstandes-Allgemeinheit, e a forma verda-

nica do finito incorpora o Universal. E neste sentido

deira ou mais elevada da Vernunft-Allgemeinheit

o gênero é real. A teoria de Hegel, expressa em suas

ou Allgemeinheit des Begriffes. O entendimento,

próprias palavras, é:

segundo Hegel, é a primeira forma de atividade do pensamento.19 Enquanto tal, ele produz não os

“Alles Wirkliche, in sofern es ein Wahres ist, ist die

Begriffe no sentido próprio, mas o que Hegel tecni-

Idee, und hat seine Wahrheit allein durch und kraft

camente chama de Gedanken.20 Os Gedanken dessse

der Idee. Das einzelne Seyn ist irgend eine Seite

primeiro tipo são os universais do entendimento,

der Idee; für dieses bedarf es daher noch anderer

idéias como homem, ou casa ou animal. Estes são

Wirklichkeiten, die gleichfalls als besonders für sich

geralmente chamadas de Begriffe, mas equivoca-

bestehende erscheinen; in ihnen zusammen und in

damente.21 Nesse estágio, elas são o produto da

ihrer Beziehung ist allein der Begriff realisirt. Das

análise e abstração; e a abstração é tão necessária

Einzelne für sich entspricht seinem Begriffe nicht;

no princípio do nosso pensar quanto falsa do ponto

diese Beschränktheit seines Daseyns macht seine

de vista mais elevado. A tarefa mesma da filosofia

18

Endlichkeit und seinen Untergang aus.”

é transformar os Gedanken em Begriffe.22 O Gedanke, como é conquistado primeiro, incorpora as qualida-

No entanto, para ilustrar essa teoria vale a pena

des ou característias universais presentes em cada

dedicar um pouco mais de espaço. Com seu trata-

um dos muitos indivíduos. Destes indivíduos ele

mento multifacetado de costume, é claro que Hegel

então retira uma classe ou Gattung abstratamente

se esforça em mostrar como as teorias anteriores

definida. Esta classe ou gênero do entendimento se

do universal têm uma justificação relativa e histó-

refere às subclasses e indivíduos que são inclusos

rica enquanto estágios no caminho até a verdadeira

em seu Umfang da maneira que a lógica aristotélica

intuição, e enquanto corporificações de formas

originalmente definia.23 Ou seja, a Gattung contém

inferiores e parcialmente falsas das formas uni-

espécies ou Arten, que, como classes subordina-

versais, que nos são apresentadas nas aparências

das, são subsumidas nela, cada uma formando uma

fenomênicas do mundo finito.

parte do seu Umfang, enquanto os indivíduos por sua vez são subsumidos nas várias Arten. Tanto a

Hegel dedica uma longa e paciente atenção a essas

Gattung quanto a Art, para esse estágio do pensar,

___________________________________________________

18. A passagem dada aqui por completo é referida e traduzida em grande parte no texto, p. 224. 19. Encycloped. § 467, Werke, vol. VII, 2, p. 355. 20. Phänomenol., Werke, vol. II, pp. 24-25. 21. Encyclop., Werke, vol. VI p. 324. 22. Phänomenol., Werke, vol. II, p. 26. Sobre a definição de Verstand, veja também Werke, vol. VII, 2, p. 356. O entendimento aí é “formal.” Sua atividade depende de Abstrahiren. “Trennt er das Zufällige vom Wesentlichen ab, so ist er durchaus in seinem Rechte und erscheint als

23. “Aristóteles”, diz Hegel, em sua Gesch. d. Philos., Werke, vol. XIV, p. 368, “ist der Urheber der verständigen Logik; ihre Formen betreffen nur das Verhältniss von Endlichen zu einander, und in ihnen kann das Wahre nicht gefasst werden.” Esta observação aparece em conexão com uma discussão da teoria aristotélica dos universais, que aí se diz envolver o método usado “in den endlichen Wissenschaften,” isto é, “das Subsumiren des Besondern unter das Allgemeine.” É exatamente esse tipo de universalidade e esse tipo de subsunção que a teoria de Hegel pretende suplantar.

OUTUBRO 2013

Das was er in Wahrheit seyn soll.” Das Wesentliche, assim abstraído, o entendimento usa para definer seus universais.

29


FILOSOFIA

expressam apenas das Gemeinsame encontrada em

O Begriff, ou o pensamento verdadeiramente obje-

todos e cada um dos muitos indivíduos. Enquanto

tivo da inteira natureza das coisas, será “mehr als

isso, na experiência, só os indivíduos podem ser

nur die Angabe der wesentlichen Bestimmtheiten,

mostrados, não a Gattung. Pois a Gattung não é

d. i., der Verstandesbestimmungen einer Sache.”25

ainda o Begriff, que virá a ser muito mais do que

O universal do entendimento, aplicando-se a uma

ein Gemeinschaftliches. Essa Gattung do entendi-

natureza que só é exemplificada por cada indiví-

mento não possui Existenz. Pois até agora ela é, em

duo e que não existe em parte alguma senão em

seu lado subjetivo, o Gedanke do observador, que,

tais exemplos individuais (como a animalidade

sendo formal, não explica nem o conteúdo da coisa

existe apenas nos animais individuais), nada nos

individual nem a totalidade das relações reais dessa

diz acerca do inter-relacionamento dos indivíduos

coisa individual para com outras no mundo real.24

mesmos, e portanto não nos dá Einheit des Begriffes.

Para falar em termos objetivos, já podemos de fato dizer que o Gedanke corresponde a uma allgemeine

Hegel nos dá muitas explicações acerca desse

Natur, presente como das Wesentliche, ou como die

universal do entendimento. Nenhum estudante

bestimmte Wesentlichkeit dos indivíduos finitos que

inteligente dessas obras pode confundir esse tipo

pertencem à Gattung. Pois os pensamentos mes-

de universalidade com a verdadeira Vernunft-

mos do entendimento possuim um tipo inferior de

Allgemeinheit, cuja exposição forma a contribuição

verdade. Tudo que há no mundo é a

peculiar de Hegel à teoria dos universais. Para

O próprio Aristóteles em sua teoria metafísica realmente transcendia as limitações de sua teoria lógica, e implicava a existência de um tipo de universalidade mais profundo e verdadeiro na natureza das coisas.

resumir até aqui: o universal do entendimento é a primeira descoberta do nosso pensamento quando este último é aplicado às coisas. É sobre esse universal que a lógica de Aristóteles fornecia a teoria tradicional. Sem dúvidas o próprio Aristóteles em sua teoria metafísica realmente transcendia as limitações de sua teoria lógica, e implicava a existência de um tipo de universalidade mais profundo e verdadeiro na natureza das coisas. Mas ele fez isso hesitantemente.26 Seu instinto metafísico é mais verdadeiro que sua lógica, ele utiliza o universal superior, mas tem uma teoria lógica apenas do inferior. E quanto a esse inferior, ele aparece como objetivamente existente

incorporação do pensamento; e, na medida em que

para o entendimento apenas em cada indivíduo,

os Gedanken do entendimento sejam também pro-

enquanto constituindo sua essência ou wesentliche

duto do pensamento, eles correspondem à natureza

Bestimmtheit. Subjetivamente, ele é representado

interior das coisas, exceto que os universais do

pelo Gedanke, que é o pensamento de alguma

entendimento só contam uma parte da verdade real

essência-classe abstratamente definida. E tais

acerca dos objetos presentes na experiência. E exa-

essências-classe parecem para o entendimento

tamente nessa medida esses universais são falsos.

não ter Existenz enquanto tal à parte dos indivíduos

___________________________________________________

24. É desse estágio do pensamento que Hegel fala quando, na Encyclop., Werke, vol. VI, p. 46, ele diz: “Das Thier als solches ist nicht zu zeigen, sondern immer nur ein Bestimmtes. Das Thier existirt nicht, sondern ist die allgemeine Natur der einzelnen Thiere.” Thier, até aqui, não é Begriff, não é um universal verdadeiro. E a Existenz, com seu verbo existiren, possui um significado especial na lógica de Hegel. O Begriff, quando chegarmos a ele, terá um tipo superior de realidade, isto é, o que Hegel chama de Objektivität, algo muito maior do que a

OUTUBRO 2013

mera Existenz.

30

25. Logik, Werke, vol. III, p. 274. Compare a Encyclop., Werke, vol. VI, p. 65, onde a atividade do entendimento na captação do wesentlichen Inhalt das coisas finidas, na classificação abstrata e na aplicação de predicados é melhor explicada. As expressões técnicas wesentliche Bestimmtheit, bestimmte Wesentlichkeit, etc., referem-se, então, apenas à universalidade como concebida pelo entendimento. 26. Gesch. d. Phil., Werke, vol. XIV, p. 283: “Hat Aristoteles aber auch . . . die allgemeine Idee nicht logisch herausgehoben, (denn sonst wäre seine sogenannt Logik, die etwas Anderes ist, für die Methode als der eine Begriff in Allem zu erkennen), so erscheint doch andererseits bei Aristoteles die Idee Gottes, selbst auch als ein Besonderes an ihrer Stelle neben den Andern, obzwar sie alle Wahrheit ist.”


nos quais elas são exemplificadas. É por isto que

tomando as várias partes e membros, despindo de

nos acostumamos a dizer, do ponto de vista do

todas suas diferenças e formando uma noção daquilo

pensamento comum, que as idéias gerais não

que eles têm em comum. Aquilo no que eles diferem

representam realidades concretas, e que apenas o

é, pelo contrário, exatamente aquilo do qual surge sua

indivíduo é real.

unidade e no qual se encontra a própria vida e o ser do organismo; aquilo que eles têm em comum eles têm

A verdade é que a mente individual precisa renunciar sua própria independência isolada, precisa parar de afirmar-se a si mesma, precisa perder-se no objeto, antes de poder adquirir qualquer conhecimento verdadeiro da natureza.

não como membros de um organismo vivo, mas como matéria morta, e o que você tem de abstrair para consegui-lo é a própria vida. Ademais, o universal, nesse caso, não é o último, mas o primeiro. Nós não chegamos até ele por primeiro pensar os particulares, mas, ao contrário, chegamos às verdadeiras noções dos particulares apenas através do universal. O que as partes ou membros de um organismo são, — sua forma, lugar, estrutura, proporção, funções, relações, todo seu ser e natureza, é determinado pela idéia do organismo que eles comporão. É ele que os produz, não o inverso. Nele se encontra sua razão e fundamento. Eles são suas manifestações ou especificações. Ele se realiza neles, completa-se em sua diversidade e harmonia… Você não pode determinar o membro ou órgão particular salvo por referência ao que é seu

II.

limite ou negação. Ele não existe em si e por si, mas naquilo e através daquilo que é distinto de si, — atra-

O reitor Caird, em sua “Filosofia da Religião,”27

vés dos outros membros e órgãos que são a uma só

depois de descrever o tipo inferior de universali-

vez extrínsecos e intrínsecos a ele, além dele, e ainda

dade descrita acima e apontar sua inadequação à

assim parte e porção de seu ser… Aqui, então, temos

expressão da verdade do mundo real, prossegue,

um tipo de universalidade que é totalmente diferente

num espírito confessadamente hegeliano, para

da universalidade estéril e formal da generalização,

mostrar a natureza da Vernunft-Allgemeinheit e sua

e a indicação de um movimento do pensamento cor-

aplicação na compreensão das relações entre Deus

respondente a uma relação interior de coisas, que o

e o mundo, como segue:

entendimento abstrativo e generalizante é totalmente inadequado para captar.”

“Mas o pensamento é capaz de um movimento mais

Ao aplicar a noção de universalidade assim alcan-

não seja estranha, mas a própria natureza íntima das

çada às relações do nosso próprio pensar com

coisas em si mesmas, não o universal de uma abstra-

realidade acerca da qual pensamos, o reitor Caird

ção a partir do particular e diferente, mas a unidade

depois avança, na p. 233, sqq., para “uma breve

que é imanente a eles e neles encontra sua própria

consideração da relação da natureza com a mente

expressão necessária; não uma invenção arbitrária da

finita.” Ele se detém sobre a conhecida oposição

mente que observa e classifica,… mas uma idéia que

entre matéria e mente, que, para o entendimento,

expressa sua dialética interior, o movimento ou pro-

são duas realidades separadas e opostas. Ele coloca

cesso em direção à unidade, que existe em nos objetos

o problema familiar sobre a como a mente pode

e constitui o ser dos próprios objetos. Essa universa-

conhecer a ordem natural fora de nossas mentes,

lidade mais profunda e verdadeira é o que pode-se

mostra que esse problema é o mesmo em princípio

designar universalidade ideal ou orgânica. A idéia

com o problema acerca da relação entre a mente

de um organismo vivo… não é um elemento comum

finita e Deus, e sugere, como solução de ambos

que possa ser atingido por abstração e generalização,

os problemas, que o pensamento, a “Natureza,”

___________________________________________________

27. Página 229, sqq.

OUTUBRO 2013

profundo. Ele pode elevar-se a uma universalidae que

31


FILOSOFIA

a mente finita, e Deus ou a mente infinita, não

um auxílio para compreender a unidade orgânica

são idéias discordantes ou irreconciliáveis, mas

mencionada primeiro, “a relação do indivíduo com

idéias que pertencem a um todo ou sistema de

outros indivíduos” no “caso das nossas relações

conhecimento orgânico. Após dedicar um espaço

sociais.” “A concepção ordinária da auto-identi-

considerável para explicar essa visão e deter-

dade isola o indivíduo dos seus companheiros.”

-se mais sobre o “princípio da unidade orgânica”

Porém, diz o autor, isso está errado. “O indivíduo

(p. 238), ele destaca (p. 239) que o problema do

abstrato não é realmente homem, mas apenas um

conhecimento deve ser resolvido na base da teo-

fragmento da humanidade, um ser tão despro-

ria do próprio universal orgânico. “Não passa de

vido de elementos morais e espirituais, que são

um falso idealismo tornar o mundo exterior ape-

a essência da vida do homem, quanto um mem-

nas a criação ilusória da mente individual. Ao

bro amputado da participação na existência vital

contrário, a verdade é que a mente individual pre-

do organismo. As relações sociais são uma parte

cisa renunciar sua própria independência isolada,

necessária do ser do indivíduo… Não é por supor em

precisa parar de afirmar-se a si mesma, pre-

primeiro lugar um número de seres humanos indi-

cisa perder-se no objeto, antes de poder adquirir

viduais, cada um completo em si mesmo, e então

qualquer conhecimento verdadeiro da natureza…

combinando esses indivíduos, que nós chegamos à

Portanto, para alcançar a vida universal da razão

idéia da família; mas primeiro precisamos pensar a

que há no mundo, é uma condição indispensável

família para conhecer o indivíduo… Aqui, como em

que eu renuncie minha própria individualidade e

outros lugares, o universal é o prius do particular.

meu pensamento e opinião particulares, e encon-

Porém, o universal não deve ser concebido como

tre a verdadeira realização de minha própria razão

tendo qualquer realidade à parte dos particulares,

naquela razão ou verdade absoluta que a natureza

mais do que o corpo à parte dos seus membros.

manifesta… O princípio in fine que resolve a dife-

A verdadeira idéia só é alcançada ao se sustentar

rença entre a natureza e a mente finita é que sua

juntos ambos naquela unidade superior que num

realidade e exclusividade isolada é uma ficção, e

só ato os compreende e os transcende, aquela uni-

que a vida orgânica da razão é a verdade ou reali-

dade orgânica, seja da família ou do Estado, que é

dade de ambos.”

a viva integração dos membros individuais que a

As relações sociais são uma parte necessária do ser do indivíduo.

compõe.” “Da mesma forma,” continua o reitor Caird, “o verdadeiro Infinito não é a negação do finito, mas aquilo que é a unidade orgânica entre infinito e finito.” III.

Na página 240, o reitor Caird continua sua discus-

As citações acima do reitor Caird servirão tanto

são aplicando o mesmo princípio à “solução do

para fornecer um excelente resumo de certos

maior problema da religião, ou da relação da mente

aspectos da teoria hegeliana dos universais quanto

finita com Deus.” “Aqui também veremos que o

para mostrar que a própria teoria não é novidade

entendimento, que se prende à identidade dura e

para os leitores ingleses.28 Ela tornou-se um lugar-

independente de qualquer lado… torna impossível

-comum de discussão para uma escola inteira de

qualquer solução verdadeira… Só se pode chegar a

neo-hegelianos.

OUTUBRO 2013

uma verdadeira solução ao apreender o divino e o

32

humano, o infinito e o finito, como os momentos

Mas passemos para a própria explicação de Hegel

ou membros de um todo orgânico, no qual existe

acerca do assunto. “O pensamento”, diz Hegel,

ao mesmo tempo sua distinção e sua unidade.” O

“é em primeiro lugar pensado segundo o modo

reitor Caird então mais adiante dá uma explica-

do entendimento; mas o pensamento não per-

ção da verdadeira teoria dos universais, e, como

manece nesse estágio, e o Begriff não é uma mera

___________________________________________________

28. Cf. também Filosofia Social de Augusto Comte, do professor Edward Caird, p. 199: “O universal da ciência e da filosofia é… não meramente um nome genérico, sob o qual as coisas são congregadas, mas um princípio que as une e determina sua relação entre si.”


Verstandesbestimmung”.29 O movimento superior da

no qual se unem organicamente os particulares e

Vernunft depende da conhecida Dialektik do pensa-

indivíduos.”33 Por exemplo, no caso de qualquer

mento, que toma as qualidades e fatos abstratos

homem, como Caio ou Tito, Hegel diz: 34 “Was

que o entendimento separou, as Bestimmungen,

der einzelne Mensch im Besonderen ist, das ist

ou Seiten, ou Individuen do mundo finito, e des-

er nur in sofern, als er vor allen Dingen Mensch

cobre “die Einheit der Bestimmungen in ihrer

als solcher ist und im Allgemeinen ist, und diess

Entgegensetzung.”30 Essa Dialektik tem um “resul-

Allgemeine ist nicht nur etwas ausser und neben

tado positivo,” a saber, a descoberta das Vernünftige,

andern abstrakten Qualitäten . . . sondern vielmehr

que não é meramente ein Abstraktes, mas “zugleich

das alles Besondere Durchdringende und in sich

ein Konkretes,

weil es nicht einfache, for-

Beschliessende.” Ademais, como ele nos conta,

melle Einheit, sondern Einheit unterschiedener

das Allgemeine é aqui, no caso da humanidade, e

Bestimmungen ist. Mit blossen Abstraktionen oder

em sua verdade mais profunda, algo a mais do que

formellen Gedanken hat es darum überhaupt die

todos os homens.35 Ela faz mais do que incluir indi-

Philosophie ganz und gar nicht zu thun, sondern

ferentemente os indivíduos. Ela não é para todos

allein mit konkreten Gedanken.”

eles um “bloss etwas denselben Gemeinschaftliches,”

31

ela é seu Grund, seu Boden, sua Substanz. Agora, A Allgemeinheit des Verstandes é, portanto, trans-

aqui a humanidade é tratada como algo universal

formada no Begriff sempre que os dois seguintes

e konkret. Como tal, ela é ao mesmo tempo todos

processos relacionados tiverem sido executados:

os homens e é algo mais. Ela é algo que pervarde e

(1) Quando as abstrações formais ou wesentliche

determina todas as características de cada homem

Bestimmungen, que o entendimento seapara uma

e que une todas suas besondere Qualitäten. Ela é,

da outra, e opõe uma à outra, — abstrações como

assim, konkret em dois sentidos, a saber, na medida

direita e esquerda, interior e exterior, substância e

em que nela todos os homens estão juntos, e na

acidente, — tiverem sido mais uma vez unidas

medida em que através dela as Qualitäten de cada

por laços orgânicos, e provadas como inter-rela-

homem estão unidas. Porém, nem mesmo nessa

cionadas e inseparáveis ; e (2) quando se tiver

passagem Hegel expõe o universal completamente

mostrado, pelos mesmos meios, que as coisas do

orgânico, mas apenas uma forma no caminho para

mundo finito são membros da totalidade orgânica.

a realização dele. Notaremos, no entanto, que aqui

O relacionamento íntimo desses dois processos

ele declara distintamente que o indivíduo está

para Hegel é uma das características mais proe-

im Allgemeinen, “no Universal,” que é, portanto, a

minentes de todo o método. Das Wahre ist konkret

Substanz inclusiva dos indivíduos.

32

significa igualmente para ele “A verdade é uma união orgânica dos aspectos, qualidades e caráte-

A noção da Vernunft-Allgemeinheit assim intro-

res inter-relacionados,” e “A verdade é o universal

duzida é objeto de grande desenvolvimento na

___________________________________________________

29. Encycl., Werke, vol. VI, p. 147. As páginas seguintes contêm uma repetição da explicação dada acima sobre a natureza e as limitações da Verstandes-Allgemeinheit. 30. Loc. cit., p. 157. 31. Sobre uso hegeliano de konkret, veja a excelente definição da Gesch. d. neueren Philosophie, de Falckenberg, p. 478: “O Begriff concreto de Hegel é um universal que tem o particular em si mesmo, e que produz seus próprios particulares (sich besondert).” 32. Logik, Werke, vol. IV, pp. 63, 64. 33. “Das einzelne Seyn ist irgend eine Seite der Idee,” disse Hegel na passagem citada acima. Em várias passagens ele identifica Seite com Bestimmung; então, por exemplo, na Religionsphilosophie, Werke, vol. XII, p. 422, onde ele fala do Zusammenhang zweier Seiten oder bestimmungen. A partir dessas e de muitas outras passagens fica facilmente evidente que para Hegel tanto os caráteres abstratos quanto os indivíduos abstratos devem ser tratados da mesma forma, na medida em que eles contêm sua verdade apenas no todo orgânico do qual contido no universal também é expressamente dito por Hegel (Werke, vol. VI, p. 323; compare p. 316). 34. Encyclop., Werke, vol. VI, p. 340. 35. Id., p. 339. No caso da forma do juízo lógico que Hegel está discutindo na passagem ora citada, ele dá um destaque especial sobre o fato de que já aqui, embora a verdadeira Vernunft-Allgemeinheit não tenha sido plenamente alcançada, o indivíduo fica em relação com outros e não é concebido por si mesmo, ou à parte de suas relações.

OUTUBRO 2013

são elementos. Compare mais uma vez a definição de Falckenberg do uso de “concreto” de Hegel, como dado acima. Que o indivíduo está

33


FILOSOFIA

“Logik.” O caminho para essa Allgemeinheit des

si suas auto-determinações”. Essa totalidade é das

Begriffes é preparado na “Logik” maior, por ela-

Allgemeine, que, junto a suas categorias correlatas,

boradas discussões sob o título de Wesen (isto é,

das Einzelne e das Besondere, produz o Begriff, para o

na segunda parte da obra). Na segunda divisão de

qual Hegel então passa.

Wesen, ao discutir a Erscheinung, Hegel mostra, de um modo que ele apreciava usar em outros luga-

A intricada exposição do Begriff, na terceira parte da

res, que as qualidades ou Eigenschaften de toda coisa

“Logick,” torna-se mais clara pelas notas de aula

finita são seus Weisen des Verhaltens zu Andern; de

que foram acrescentadas pelos editores de Hegel aos

modo que todas as coisas do mundo finito são o que

parágrafos correspondentes da “Encyklopädie.”

são em virtude de suas relações umas com as

Destas, uma ou duas citações foram colocadas no

36

texto. Basta talvez destacar que veremos melhor

O mundo como “máquina” é o mundo cujas partes possuem de fato interrelacionamentos, mas apenas aqueles da lei abstrata.

e mais facilmente o que se quer dizer com Begriff se passarmos imediatamente para o lugar onde sua natureza está “em larga escala”, no mundo da Objektivität,40 ao qual ele “passa por alto”, e no qual se expressa a si mesmo. Aqui temos uma repetição de um estágio superior do que ocorreu no Wesen. Mais uma vez lidamos com um mundo de objetos, só que sabemos que eles incorporam o Begriff, cuja verdadeira universalidade eles mostram nas três fases ascendentes, o mecanismo, o quimismo e a

outras. Elas estão em Wechselwirkung, e é da sua

teleologia. O mundo do mecanismo, ou, como pode-

natureza estar. Por isso o mundo dessas coisas fini-

mos dizer, o mundo como “máquina” é o mundo

tas é um mundo de uma Gesetz, ou lei abrangente, da

cujas partes possuem de fato inter-relacionamen-

qual as coisas e qualidades são a aparência, enquanto

tos, mas apenas aqueles da lei abstrata. No mundo

essa Gesetz ou Reich der Gesetze é uma Totalität auto-

das “afinidades” ou do “quimismo”, os indivíduos

-determinada. No entanto, como a lei na base do

existem apenas enquanto inter-relacionados, e

mundo finito é expressa completamente, mas ape-

apenas em virtude de suas afinidades e dos resul-

nas expressa nos próprios fenômenos, o resultado

tados destas. No mundo ainda mais verdadeiro e

aí é uma Einheit des Innern und des Aeussern, onde,

mais inclusivo da “Teleologia,” ou, como pode-

como diz Hegel, o Begriff já está presente numa

mos dizer, no mundo enquanto “Organismo,” a

forma latente; pois nosso mundo de coisas finitas

inter-relacionalidade dos objetos individuais e sua

é uma totalidade de indivíduos inter-relacionados que

cooperação enquanto instrumentos de um pro-

incorporam uma lei e a tornam manifesta. Contudo,

pósito imanente, que é seu verdadeiro universal,

é justamente essa Totalität que im Begriffe als sol-

prepara o caminho para a união completa do Begriff

chem aparece como das Allgemeine. No mundo do

e do Objekt que nos é dada pela Idee. A Idee na ver-

Wesen essa unidade do interior e exterior é até aqui

dade é o mundo como “Pessoa” na medida em que

chamada die Wirklichkeit.

37

38

A verdadeira natureza

as categorias da “Logik” permitirem introduzir a

da Wirklichkeit aparece na exposição da categoria

noção de pessoalidade. A noção completa de pes-

da Substanz ao fim do Wesen, onde finalmente die

soalidade é desenvolvida mais tarde no sistema, na

absolute Substantz, ou a natureza geral das coisas,

filosofia do espírito.

39

aparece como uma “totalidade” que é como um “todo simples”, que determina a si “e contém em

Essas formulações hegelianas da teoria dos

OUTUBRO 2013

___________________________________________________

34

36. Logik, Werke, vol. IV, p. 125. 37. Id., p. 128. 38. Logik, Werke, vol. IV, p. 174. 39. Id., p. 178. Die Wirklichkeit aparece primeiro como das Absolute, que corresponde (loc. cit. pp. 187-190) à Substância de Spinoza. 40. Logik, Werke, vol. V., pp. 167-228; Encyclop., Werke, vol. VI, pp. 365-384.


universais sem dúvida possuem muitos traços

o mundo aparece no final da “Encyklopädie.” A

antiquados. Sua presença e importância no sistema

“Naturphilosophie” está também repleta dessas

As expressões mais interessantes de toda a doutrina aparecem nas obras éticas e teológicas de Hegel.

aplicações: assim, por exemplo, a explicação das relações entre os sexos e da luta entre várias espécies de animais pela existência como devendo-se ao fato de que o universal não pode em lugar algum realizar-se completamente em nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos.[2] Como, segundo Hegel, a Idee não pode ter uma expressão completa na natureza exterior, o universal em todos esses casos se nos mostra apenas imperfeitamente, como uma

é indubitável. Como apontado em meu texto, as

série interminável de esforços rumo ao comple-

expressões mais interessantes de toda a doutrina

tamente orgânico, que se realiza perfeitamente

aparecem nas obras éticas e teológicas de Hegel. É

apenas no mundo do espírito.

impossível uma coleção completa das passagens no presente espaço, mas podemos fornecer algumas a

Para retornar, finalmente, por um momento, à

mais. Trata-se de uma aplicação explícita e delibe-

teoria lógica em si: é a natureza imanentemente

rada da teoria do universal orgânico quando Hegel

orgância do verdadeiro universal que na doutrina

diz, em sua “Rechtsphilosophie,” que o homem

do subjektiven Begriff força o Begriff a desenvol-

individual não é uma pessoa “ohne Relation zu

ver seus vários Seiten no Urtheil, já que apenas

anderen Personen.” 41 Esta noção, intimamente

em virtude da relação dos aspectos ou indivíduos

ligada à de Allgemeinheit des Bewusstseins mencio-

aparentemente divisos, mas real e organicamente

nada no texto, surge de forma muito proeminente

inseparáveis, pode se realizar alguma universali-

em toda estrutura da “Rechtsphilosophie.” É uma

dade. Entre os Urtheile, o tipo mais elevado, antes

outra aplicação da mesma teoria quando Hegel diz,

que se atinja propriamente os Urtheile des Begriffes,

na “Religionsphilosophie,” ao descrever a vida da

é o dos juízos disjuntivos, porque eles representam

igreja, que a consciência religiosa subjetiva tem

os Unterschiede ou Besonderungen dos seus sujeitos,

de ser percebida por ein Vielheit von Subjekten und

como, em todo caso, um grupo inter-relacionado

Individuen, mas que, como essa consciência deve

de espécies ou indivíduos. 43 Pois “das Allgemeine

ser universal no sentido mais profundo, “so ist die

ist das Einfache welches ebensosehr das Reichste

Vielheit der Individuen durchaus zu setzen als nur

in sich selbst ist,”44 e essa riqueza do universal

ein Schein, und eben dieses, dass sie sich selbst als

desdobra-se no juízo disjuntivo. O universal é die

diesen Schein setzt, ist die Einheit des Glaubens.

Negativität überhaupt;45 e essa auto-diferenciação

. . . Das ist die Liebe der Gemeinde, die aus vielen

adquire uma expressão no juízo disjuntivo. É o

Subjekten zu bestehen scheint, welche Vielheit

próprio Begriff que sich disjungirt no verdadeiro juízo

aber nur ein Schein ist.”

“Muitos membros”,

disjuntivo.46 Mas o genuíno Urtheil des Begriffes é

então, mas apenas um corpo, um Senhor, uma

algo ainda mais elevado, já que não só o fato, mas a

fé. Mais adiante, Hegel discute no mesmo espí-

necessidade e a auto-determinação internas dessa

rito a relação dos indivíduos com seu universal,

diferenciação devem ser evidenciadas, uma coisa

como ilustrada pela relação do fiel com a pessoa

que só pode ser feita por formas de juízo que nos

de Cristo. A aplicação da mesma teoria dos uni-

conduzam ao Schluss.47 O Schluss passa por uma série

versais ao problema geral da relação de Deus com

de formas sucessivas entre as quais a mais elevada

42

___________________________________________________

41. Werke, vol. VIII., p. 417. Cf. p. 110: “Es ist durch die Vernunft ebenso nothwendig dass die Menschen in Vertrags-Verhältnisse eingehen als dass sie Eigenthum besitzen”.

Compare p. 309. 43. Werke, vol. V., pp. 102-107. 44. Id., p. 36.

OUTUBRO 2013

42. Werke, vol. XII., pp. 313, 314. O importante aqui é que Hegel considera isso expressamente como uma aplicação da sua teoria lógica.

35


FILOSOFIA

é a conclusão disjuntiva,48 onde uma vez mais a razão

como o XVIII volume dos “Werke”, e que contém

para o resultado alcançado pela conclusão reside na

o âmago da instrução de Hegel para os garotos em

relação de um membro incluso ou Moment de algum

Nürnberg, encontramos apenas algumas poucas

universal com o próprio universal, e com os outros

dicas da teoria hegeliana dos universais. Se esse

membros ou Momente do mesmo todo orgânico e

pequeno volume na verdade fosse nosso único

auto-diferenciado. Com a conclusão disjuntiva,

registro de Hegel, todas as suas teorias peculia-

faz-se a transição para o mundo da Objektivität,

res, fosse quanto ao idealismo em geral ou quanto

onde, como mostrado antes, o universal é reali-

à natureza da auto-consciência, ou aos universais,

zado numa forma explicitamente orgânica como a

permaneceria quase que totalmente desconhecida

totalidade dos indivíduos ou Momente relacionados,

para nós; e essas teorias não devem ser buscadas

cuja perfeição e verdade é a Idee.

lá, mas nas próprias expressões deliberadas por

A lógica do mero entendimento está contida na lógica da razão, e pode imediatamente partir dela.

Hegel, e, acima de tudo, nas obras que ele mesmo publicou em vida. Traduzido por Emílio Costaguá

Uma palavra ainda para concluir, sobre a relação entre a forma aristotélica inferior do “universal do entendimento” e o “universal da razão” de Hegel. O próprio Hegel diz:49 “A lógica do mero entendimento está contida na lógica da razão, e pode imediatamente partir dela. Não é preciso nada nesse sentido além da omissão do elemento racional dialético e tão distintivamente racional por parte da segunda.” É bom observar que, como o próprio Hegel confessava, em uma de suas cartas a Niethammer,50 foi de acordo com esse método que ele se sentiu obrigado a prosseguir na exposição de sua lógica, o que fez para os garotos no gymnasium de Nürnberg. Só die verständige Logik, diz ele a Niethammer, é adequada para a instrução ginasial. A juventude nesse estágio precisa de um positiven Inhalt puro e não está madura para das Spekulative. A dialética aqui e acolá só pode ser sugerida, e jamais corretamente apresentada num tal trabalho elementar. Por isso ocorre que na chamada Propaedeutik, que Rosenkranz editou a partir dos manuscritos póstumos e publicou em 1840

___________________________________________________

45. Id., p. 39. Os leitores dessa discussão da Negativität no texto verão a significância dessa consideração.

OUTUBRO 2013

46. Id., p. 105.

36

47. Id., p. 115, sqq. 48. Id., p. 162, sqq. 49. Encyclop., Werke, vol. VI, p. 158: ”In der spekulativen Logik ist die blosse Verstandes-Logik enthalten, und kann aus jener sogleich gemacht werden; es bedarf dazu Nichts als daraus das Dialektische und Vernunftige wegzulassen.” 50. Veja o volume recém lançado XIX dos Werke, editado Karl Hegel (Leipzig, 1887), parte I, p. 340.


Tradução do capítulo “History versus the Historians”, em “Lunacy and Letters” (1958), coleção póstuma.

E

m minha inocente e ardente juventude eu tinha uma fantasia fixa. Eu defendia que às crianças na escola se deveria ensinar história, e que nada mais se deveria ensinar.

HISTÓRIA

A História versus os historiadores, Chesterton

Não há história; há somente historiadores.

A história da sociedade humana é, além da religião,

Desde aquela época de inocência eu percebi, entre-

a única estrutura fundamental na qual tudo pode

tanto, que há uma certa dificuldade nesse ensino

encontrar o seu lugar apropriado. Um menino é

de história. E a dificuldade é a de que não há his-

incapaz de ver a importância do latim simplesmente

tória para se ensinar. Isto não é uma amostra de

aprendendo latim. Mas ele poderia vê-la ao estudar

cinismo – é o resultado genuíno e necessário dos

a história dos latinos. Ninguém pode ver sentido

muitos pontos de vista e separações mentais vigo-

algum em aprender geografia ou em aprender

rosas de nossa sociedade, posto que em nossa época

aritmética – ambos são estudos obviamente sem

cada homem tem seu próprio cosmo e se encontra,

sentido. Mas na ávida véspera de Austerlitz, quando

portanto, terrivelmente sozinho. Não há história;

Napoleão combatia uma força superior num país

há somente historiadores. Agora contar uma coisa

estrangeiro, alguém poderia notar a necessidade

é claramente muito mais difícil do que contá-la de

que Napoleão conhecesse um pouco de geografia e

maneira enganosa. Deixar os fatos em paz é antina-

um pouco de aritmética. Tenho pensado que, se as

tural; pervertê-los é instintivo. As próprias palavras

pessoas só aprendessem história, elas aprenderiam

que aparecem nas crônicas – “Pagão”, “Puritano”,

a aprender tudo o mais. A Álgebra pode parecer feia,

“Católico”, “Republicano”, “Imperialista” – são

porém o próprio nome dela está ligado a algo tão

palavras que nos fazem saltar de nossas cadeiras.

romântico quanto as Cruzadas, pois a palavra vem Nenhum bom historiador moderno é imparcial.

se conheçam os gregos, mas certamente não depois

Todos os historiadores modernos são divididos em

disso. A História é simplesmente a humanidade. E

duas classes –os que contam metade da verdade,

a história humanizará todos os estudos, até mesmo

como Macaulay e Froude, e os que nada con-

a antropologia.

tam da verdade, como Hallam e os Imparciais. Os

OUTUBRO 2013

dos Sarracenos. A Grécia pode parecer feia até que

37


HISTÓRIA

historiadores raivosos vêem só um lado da questão.

errantes e princesas raptadas. De acordo com esta,

Os historiadores calmos não vêem coisa alguma,

a Idade das Trevas não era assim tão obscura, como

nem mesmo a própria questão.

se iluminada exclusivamente pelo luar. Esta visão

A minha proposta é a seguinte: a de que não deveríamos ler os historiadores, mas a história.

era fictícia, mas não falsa; pois, como o amor e a aventura existiram em todas as épocas, eles de fato existiram na Idade Média. 2 A Visão Barata de Manchester, na qual Dickens chafurdou em sua feliz ignorância, que possibilitou o comerciante presunçoso dizer, com um riso, que sem dúvida alguma era muito romântico para um judeu ter seus dentes arrancados; e até mesmo

Mas há uma outra atitude possível com relação aos

sugerir que os heróis feudais cuidassem em se

registros do passado, e eu nunca consegui enten-

cobrir de aço e ferro antes de se aventurar em uma

der por que ela não foi adotada mais vezes. Para

batalha.

colocar do modo mais seco, a minha proposta é a seguinte: a de que não deveríamos ler os historia-

Para esta, uma resposta óbvia seria perguntar ao

dores, mas a história. Vamos ler os textos atuais das

comerciante se o cavaleiro já esteve tão ingloriosa-

épocas. Vamos recusar, por um ano, ou um mês,

mente seguro quanto o seu armeiro, e se até mesmo

ou uma quinzena, a ler qualquer coisa sobre Oliver

o seu armeiro não foi um homem mais corajoso do

Cromwell, exceto o que foi escrito enquanto ele

que o comerciante que, na moderna Birmingham,

estava vivo. Há material de sobra: de minha própria

vive de fazer ferramentas de morte.

memória (que é tudo que tenho em que confiar no lugar onde eu escrevo) eu poderia mencionar sem

3 A Visão de Rossetti, de que aquela época foi de

dificuldade muitos longos e famosos esforços da

delicadas transparências e sagrados perfumes;

literatura inglesa que cobrem o período. A história

para isto, poderia se recomendar uma forte dose do

de Clarendon, o diário de Evelyn, a vida do Coronel

Miller de Chaucer, como um remédio desesperado.

Hutchinson. Acima de tudo, vamos ler todas as cartas e discursos de Cromwell, como Carlyle os

4 A Visão Condescendente; como quando Macaulay

publicou. Vamos apagar em cada memória escrita

disse dos Peregrinos, com a maior solenidade, que

toda e qualquer nota crítica e parágrafo moderno.

numa época em que os homens eram ignorantes

Por um tempo, deixemos por completo de ler os

demais para viajar por curiosidade, “ou por desejo

homens vivos em seus temas mortos. Leiamos

de ganho”, era natural que viajassem por supers-

somente os homens mortos em seus temas vivos.

tição. Sempre me encantou essa ideia de que o viajante extasiado e o viajante heróico fossem

Acabo de chegar por acidente a um caso contundente

meras prefigurações e profecias do viajante comer-

do que quero dizer. A maioria das noções modernas

cial. O romeiro beijou a Terra de Cristo, e o cruzado

da mais antiga e melhor Idade Média é tirada ou

caiu com quarenta feridas em Ascalão para que eles

de historiadores ou de romances. Entre ambos, os

pudessem aplainar no deserto uma via expressa

romances são muito mais confiáveis. O romancista

para o caixeiro viajante.

ao menos tem que tentar descrever seres humanos, algo que o historiador frequentemente nem

Agora, Dickens e Rossetti e Macaulay foram homens

tenta. Mas, falando em geral, é primeiramente aos

realmente grandes, e, apesar de nenhum deles saber

romances e depois aos historiadores partidários que

muito sobre a Idade Média, suas visões sobre aquele

devemos nossas impressões dessa época.

período devem ser interessantes. Mas há uma outra

OUTUBRO 2013

classe de homens humildes que poderia ter a per-

38

A ideia que o inglês comum tem da Idade Média

missão de nos contar algo sobre a Idade Média.

é uma estratificação de muitas visões modernas

Falo dos homens que viveram na Idade Média. As

acerca dela, que podem ser resumidas assim:

memórias medievais existem –e são quase tão divertidas quanto as de Pepys, e muito mais verda-

1. A Velha Visão Romântica, com seus cavaleiros

deiras. Na Inglaterra elas são quase inteiramente


desconhecidas. Mas estou muito contente em

facilmente”, podemos sentir a época que fala sobre

descobrir que as Crônicas de Joinville e a Crônica

fatos, e não sobre modas. Havia muito romance,

de Villehardouin foram traduzidas em um inglês

de fato; não apenas vemos São Luís emitindo jul-

excelente. Qualquer um que abrir a errante histó-

gamentos engraçados sob uma árvore do jardim,

ria de Joinville sentirá a Idade Média de Macaulay e

também vemos São Luís pulando de seu navio ao

Rossetti e Dickens e da srta. Jane Porter cair como

mar com o escudo ao pescoço e a lança na mão. Mas

uma capa desajeitada. Então

não é um romance de trevas, nem um romance ao

As flechas do julgamento de São Luís voam através das épocas e acertam as articulações em qualquer armadura.

luar, e sim um romance do sol ao meio-dia. Traduzido por Luiz Fernando Alves

se encontrará entre homens tão humanos e sensíveis quanto si próprio, um pouco mais corajosos e muito mais convictos de seus primeiros princípios. Joinville revela-se tão inocentemente quanto Pepys, e revela-se um camarada muito melhor. O leitor achará impossível não respeitar o sujeito; sua opressiva meticulosidade acerca da verdade, quando explica qual parte de uma cena ele viu com os próprios olhos e de qual ele ouviu dizer; sua diligente e instintiva veracidade, como quando São Luís lhe pergunta, “é melhor ser um leproso ou cometer um pecado mortal?”, e ele responde, “preferiria cometer cinquenta pecados mortais”; seu perpétuo e generoso louvor dos outros em batalha; sua afeições arraigadas e seu orgulho simples na afeição dos outros por ele; sua leve irritabilidade com respeito à sua dignidade enquanto cavalheiro, que São Luís repreendeu nele, mas que é, por pouco que seja, a exata irritabilidade de Coronel Newcome. Acima de tudo, devemos agradecê-lo por seu retrato do Grande Rei no qual o leão deita-se com o cordeiro. As flechas do julgamento de São Luís voam através das épocas e acertam as articulações em qualquer armadura. Eu pretendia contar algumas fábulas desses livros, mas devo no mínimo adiá-las. Todas elas estariam ao som da mesma melodia, a melodia sob a qual caminhavam os peregrinos de Chaucer quando o Moleiro com sua gaita de fole os conduziu para fora século XIII foi a Idade do Senso Comum. Quando São Luís disse que vestidos extravagantes eram mesmo pecaminosos, mas que os homens deveriam se vestir bem “para que suas esposas os amassem mais

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da cidade. Se o século XVIII foi a Idade da Razão, o

39


HISTÓRIA

O declínio da gramática na escolástica Tradução do capítulo II (“Grammar. Decline of the study of the language”) de “The Arts course at Medieval universities (1910)”, de Louis J. Paetow.

institutionum grammaticorum libri XVIII. Esta gramática destinava-se aos estudantes avançados, e os primeiros dezesseis livros ficaram conhecidos como Priscianus maior. Eles lidam com as oito partes do discurso. Os últimos dois livros, que tratam da sintaxe, eram chamados de Priscianus minor.

Até a ascensão das universidades, a gramática era a mais importante das sete artes liberais. A partir deste e de outros manuais, as regras da língua latina haviam sido ensinadas nas escolas medievais de um modo muito parecido com aquele pelo qual os romanos as aprenderam. Donato e Prisciano às vezes eram modificados e adaptados às necessidades e ideais das escolas cristãs, mas não de uma maneira relevante. Com a chegada do século XII, sobreveio uma mudança tão marcante, que, a partir de então, podemos com justiça distinguir entre a “gramática antiga” e a “nova”. Era natural que a gramática tivesse sua parcela na elevação intelectual ocorrida nesse século em geral. Em certos aspectos, ela tirou vantagem das mudanças que já estavam acontecendo. Donato e Prisciano tinham escrito para

OUTUBRO 2013

A 40

estudantes cuja língua nativa era o latim. Portanto, té a ascensão das universidades, a gra-

eles tratavam muitas coisas de uma maneira que

mática era a mais importante das sete

não seria apropriada para meninos que a apren-

artes liberais. Por séculos ela fora ensi-

diam como uma língua estrangeira, e pouco havia

nada principalmente com base nos

sido feito para suprir as necessárias regras gerais

famosos manuais de Donato e Prisciano. Donato foi

de sintaxe. Uma das melhores contribuições da

um professor de gramática em Roma em meados de

“nova gramática” foi um sistema de sintaxe tão

350 d.C. Ele escreveu dois manuais, um de gramá-

bem construído que seus princípios foram adota-

tica primária, o ars minor, e um tratado maior, o ars

dos pelos humanistas e ainda hoje em dia estão em

grammatica, do qual, contudo, só a terceira parte,

voga. Deu-se maior amplitude também à prática de

a chamada Barbarismus, era lida amplamente.

explicar as regras latinas no vernacular. Isto ocor-

Prisciano ensinou gramática em Constantinopla

reu especialmente em trabalhos inferiores, mas foi

em meados de 500 d.C., e publicou suas aulas nos

igualmente empregado no ensino dos textos usados


nas universidades. Os italianos foram os primeiros

a gramática por todos os meios possíveis, o valor

a popularizar esse modo de instrução.

de seus livros fica em grande parte reduzido. Com efeito, ele fornece muitas construções sem atribuir-

Um novo elemento um tanto curioso era a forma

-lhes suas razões, confiando apenas na autoridade

versificada na qual se escreviam agora as gramá-

dos gramáticos antigos. Portanto, ele não deve

ticas. Prevaleceu então uma verdadeira mania de

ensinar, porque só devem ensinar aqueles que dão

versificação durante os séculos XII e XIII. Seria cer-

razões daquilo que dizem”. A influência do método

tamente tão difícil explicar esse fenômeno quanto

dialético foi tão longe que às vezes até mesmo

expor por que a dialética se tornou tão popular no

disputas de gramática eram travadas nas universi-

mesmo período. Quaisquer que tenham sido as

dades. De fato, Duns Scotus (c. 1300) escreveu uma

causas para tal, sabe-se que praticamente todo

“grammatica speculativa”.

tipo de produção literária ocasionalmente aparecia em verso. No século XII encontramos documentos rimados. As crônicas eram escritas cada vez mais frequentemente em forma metrificada. Mateus de Vendôme (morto c. 1200) compôs um formulário métrico para a escrita epistolar. Os sermões eram às vezes colocados em forma poética ou prosa rítmica. A Aurora de Pedro de Riga (morto em 1209), geralmente referida como a Bíblia versificada, era extremamente popular. Muito naturalmente, a gramática logo foi arrastada pela mesma corrente, especialmente porque se acreditava que a rima e a métrica eram auxiliares da memória. Em 1150,

Com a ascensão das universidades, os afãs puramente literários foram deixados de lado, e a gramática foi cortada e mutilada até que nada restasse, exceto as regras técnicas da linguagem.

Pedro Helias, um professor em Paris, escreveu um breve resumo da gramática latina em hexâmetros.

Porém, a maior calamidade que se sucedeu à gra-

Praticamente todos os novos manuais que sur-

mática nessa época foi o lamentável declínio

giam agora vinham em forma versificada. Prisciano

da literatura. No primeiro capítulo [desta obra]

começou a perder espaço em parte porque sua

demonstramos o quão amplamente a lógica foi res-

obra era em prosa – assim, fizeram-se tentativas

ponsável por isso, mas vimos também que houve

de atualizá-lo a esse respeito. Um manuscrito da

muitas outras causas. A gramática perdia agora

Bibliothèque Nationale contém um Priscianus maior

a herança que os romanos haviam lhe concedido

em verso que era utilizado em Sorbonne. A seguinte

quando passaram-na adiante aos bárbaros como a

glossa, encontrada em uma das novas gramáticas,

mais importante das sete artes liberais. Por toda a

claramente expõe as exigências daqueles tempos:

Alta Idade Média, ela havia preservado esse direito

“A forma métrica que esse autor segue é melhor do

de nascimento, e algumas vezes fora ensinado um

que a prosa que Prisciano utiliza, e pelas seguintes

curso muito abrangente e liberal de literatura clás-

razões: a forma métrica pode ser mais facilmente

sica e cristã como parte da “gramática” nas escolas

compreendida, é mais elegante, mais breve, e pode

medievais. Mas, com a ascensão das universidades,

ser lembrada com mais facilidade”.

os afãs puramente literários foram deixados de lado, e a gramática foi cortada e mutilada até que nada restasse, exceto as regras técnicas da linguagem –

pela influência da escolástica, que gradualmente

e mesmo estas eram mal ensinadas. Era deplorável

transformou a gramática num estudo especulativo.

que mesmo um homem como Vincente de Beauvais

Ao invés de se referir a exemplos da melhor lite-

(morto em 1264), tão bem versado nos clássicos,

ratura latina para explicar uma questão duvidosa,

considerasse o uso deles em união com a gramática

os gramáticos agora preferiam resolver o pro-

como algo meramente acidental, para ser desfru-

blema através das regras da lógica. Prisciano não

tado como um passatempo por quem escolhessem

podia satisfazer essas novas exigências. A situação

lê-los. No entanto, esse declínio da gramática foi

é resumida numa glossa de um dos novos manuais

muito gradual, e há alguns interessantes episódios

da seguinte forma: “Como Prisciano não ensinava

no curso dessa história.

OUTUBRO 2013

Uma mudança muito mais importante foi realizada

41


HISTÓRIA

Sem mencionar os vários trabalhos menores que

Europa. Reichling descreve 250 cópias manuscri-

jamais foram prescritos nas universidades, as

tas e 295 impressas que ainda existem, e sua lista

novas e históricas gramáticas foram a Doctrinale de

não é de forma alguma exaustiva. Só isso já reve-

Alexandre de Villedieu e o Graecismus de Eberardo de

laria a enorme popularidade da obra. Perto do fim

Betúnia.

do século XVI, no entanto, os humanistas come-

Nos séculos XIV e XV, a Doctrinale era a gramática universal de praticamente toda a Europa.

çaram a dirigir sua atenção para essa menina dos olhos das escolas. O movimento começou na Itália e então se espalhou para a Alemanha, França e os países setentrionais. No início, houve tentativas de se corrigir o antigo manual padrão. Alguns dos seus críticos davam crédito a Alexandre por seu considerável gênio, mas logo ele foi condenado sem rodeios em toda parte, e na entrada do século XVI o reinado

Como seu nome indica, Alexandre nasceu na

da Doctrinale, o rex barbarorum, tinha terminado.

pequena vila de Villedieu, próxima de Avranches, na Normandia. A data de seu nascimento é des-

Embora Alexandre escrevesse outras obras gramá-

conhecida. É bastante certo, no entanto, que ele

ticas, nenhuma delas jamais atraiu muita atenção.

estudou em Paris por um tempo considerável, pro-

É bem provável, contudo, que ele fosse o autor de

vavelmente em algum período das últimas duas

um manual chamado Alexander, que era lido em

décadas do século XII, bem quando a universidade

Toulouse e outras universidades do sul da França e

estava sendo moldada. Junto com outros dois com-

que até hoje foi totalmente ignorada.

panheiros, Alexandre assistia diligentemente às aulas, especialmente aquelas sobre Prisciano e os

O Graecismus de Eberardo de Betúnia é geralmente

outros gramáticos, e assim ia acumulando volu-

mencionado junto com a Doctrinale e foi utilizado

mosas notas, que os três estudantes começaram a

quase tão amplamente, tendo aparecido em 1212.

colocar em forma metrificada. Quando um de seus

Como a Doctrinale, ele também foi escrito em verso

companheiros morreu e o outro foi chamado à

hexâmetro. Seu nome peculiar derivava do capítulo

Inglaterra, Alexandre ficou na posse do material que

que trata da etimologia grega. Embora o próprio

os três haviam reunido. Logo ele foi chamado para

Eberardo não soubesse grego, ele supria assim uma

fora de Paris para ensinar os sobrinhos do Bispo de

necessidade que havia surgido do fato de que, atra-

Dol. Contente com o progresso das crianças, o bispo

vés da Vulgata e dos Santos Padres, muitas palavras

sugeriu a Alexandre que ele escrevesse um manual

e construções gregas e hebraicas haviam penetrado

sistemático de gramática para a instrução dos dois

no latim medieval e precisavam ser elucidadas.

meninos. Ele seguiu esse conselho e, extraindo dos

O Graecismus também contém um material gra-

materiais que ele havia reunido em Paris, escreveu

mático ordinário, como as partes do discurso e as

sua famosa Doctrinale, em 1199. Ela é totalmente

regras de métrica. Foram feitos muitos acréscimos e

escrita em verso, totalizando 2.645 hexâmetros leo-

interpolações, de modo que é difícil determinar exa-

ninos. O próprio autor a dividiu em doze capítulos,

tamente o quanto foi originalmente obra do próprio

que no século XIV geralmente eram agrupados em

Eberardo. De um modo geral, o Graecismus é mais

três partes: 1) etimologia, 2) sintaxe, 3) quantidade,

avançado do que a Doctrinale, que ele suplementa

acentuação e figuras de linguagem. Ela aperfeiçoava

especialmente em seus capítulos sobre palavras

a de Prisciano especialmente em seus capítulos de

gregas e sinônimos latinos.

OUTUBRO 2013

sintaxe. Sua forma versificada por si mesma lhe deu

42

popularidade nessa época tão parcial na expressão

Eis a história das novas tendências na gramática

poética. Já no século XIII ela se espalhou rapida-

e os novos manuais. Sua influência foi impor-

mente, embora tenhamos muito pouca informação

tante para dar forma ao exercício da gramática nas

definida a respeito até o século XIV. Ela gradual-

universidades.

mente penetrou nas universidades, onde pretendia diminuir a importância de Prisciano ou removê-lo completamente. Nos séculos XIV e XV, a Doctrinale

Para a Universidade de Paris, os estatutos dão

era a gramática universal de praticamente toda a

muito pouca informação a respeito do assunto da


gramática. Em 1215, ele havia prescrito os “dois

e considerável na gramática em Paris durante a pri-

Priscianos ou pelo menos um deles”. Depois disso,

meira metade do século XIII. Que a Doctrinale e o

até 1366, a mera menção do Prisciano, geralmente

Graecismus fossem bem conhecidos fica claro a partir

tanto o maior e quanto o minor, é tudo que se pode

do fato de que João da Garlândia se esforçou tenaz-

vislumbrar. Apesar disso, a história da gramática

mente em suplantá-las ou pelo menos corrigi-las e

mesmo em Paris não é tão morta e estéril como um

suplementá-las com seus próprios livros.

exame dos estatutos indicaria. Sabemos por Geraldo de Barri que, perto do final do século XII, a gramática

Uma glossa ao Accentarius (Ars lectoria) explica que

ainda ocupava um posto de importância em Paris.

esta obra foi escrita por causa da ignorância que

Durante a primeira metade do século XIII, havia

prevalecia devido à negligência dos antigos clássi-

ainda interesse o bastante sobre o assunto para

cos; dois livros modernos, o Graecismus e a Doctrinale,

causar algum agito em Paris quando a Doctrinale e

haviam sido escritos para ensinar a gramática cor-

o Graecismus começavam a chamar atenção. Nossas

reta, mas eles o fizeram de forma tão ineficiente que

fontes de informação são os escritos do gramático

o autor tomara para si a tarefa de suplementá-los,

João de Garlândia.

e por isso havia escrito o Compendium, a Clavis com-

Ninguém jamais estudou essas obras de cabo a rabo.

pendii e esse Accentarius. A verdade dessa glossa (que pode, é claro, ter sido escrita pelo próprio autor) é mais do que corroborada em várias passagens de suas obras. Em sua Morale

Já fornecemos uma breve esboço de sua vida. Entre

Scholarium, descrita no capítulo anterior, há um

suas muitas obras, o que deve agora dirigir nossa

longo parágrafo de precaução contra certos livros

atenção são seus principais tratados gramáticos.

modernos inúteis, que por acaso são a Doctrinale e o

Eles são a Clavis compendii, o Compendium gramma-

Graecismus. Ele diz que o primeiro fecha o caminho

tice, e o Accentarius, todos em forma metrificada.

para o verdadeiro conhecimento, que sua dicção é

O Compendium grammatice contém cerca de 4.000

equívoca e prolixa, que obstrui os perspicazes e não

linhas, sendo, portanto, muito mais longo do que

ensina aos estudantes as verdadeiras dificuldades

a Doctrinale de Alexandre de Villidieu, que tinha

da linguagem; quanto ao Graecismus, trata-se de um

apenas 2.645. A Clavis compendii, que, como seu

guia mendaz de palavras gregas, já que mesmo o seu

título indica, destinava-se a ser uma introdução ao

latim é tão túrgido quanto a montanha de um istmo.

Compendium, equivale a cerca da metade, enquanto

Fazendo-se passar por leite aos meninos, ambos

o Accentarius é ainda mais breve.

oferecem-lhes veneno.

Ninguém jamais estudou essas obras de cabo a

Na Clavis compendii empreende-se uma crítica siste-

rabo. Para quem passou os olhos por sobre elas ou

mática da Doctrinale e do Graecismus. A terceira parte

leu seus excertos, elas pareceram excessivamente

da obra é dedicada a esse propósito, e aí encon-

pedantes e obscuras. Essa crítica certamente tem

tramos capítulos como “Hic ostendum mendacia

sua razão de ser; porém, antes de se decretar o juízo

grecismi,” e “De correctionibus super doctrinale.”

final sobre esses livros, eles deveriam ser cuidado-

E outra vez João alerta seus alunos contra os equívo-

samente cotejados com obras como a Doctrinale e o

cos de Alexandre de Villedieu e promete corrigi-los.

Graecismus. Espera-se que isso seja feito em breve.

Seu epíteto favorito para o Graecismus é “mendax.” Em uma passagem obscura ele até chama a

Qualquer que possa ser o veredito quanto ao

Doctrinale e o Graecismus de “macaquinhos gêmeos.”

valor das obras gramáticas de João da Garlândia, O Compendium grammatice também dedica grande

sua época como professor nas universidades de

atenção aos novos manuais de Alexandre e Eberardo.

Paris e Toulouse. Roger Bacon escutara-o dando

É verdade que o autor diz aos seus leitores que se

aula e escreveu o aprovando, enquanto achava

deve dar algum crédito à Doctrinale e ao Graecismus

que Alexandre de Villedieu não fosse uma auto-

pelas poucas coisas boas que fizeram pela gra-

ridade digna. Suas atividades como escritor e

mática; mas que quando uma velha árvore tiver

professor mostram que há ainda um interesse vivaz

morrido, ela deve ser arrancada com raízes e tudo,

OUTUBRO 2013

é seguro dizer que ele deve ter se destacado em

43


HISTÓRIA

de modo que as obras de uma geração não possam

humanista): “Por isso ele foi considerado um

impedir o progresso da próxima. Isto é o que João

famoso retórico e poeta naquele século de irreme-

propõe fazer, e em seu novo Compendium ele pro-

diável cegueira, quando as artes degeneraram toda

mete semear uma semente aceitável de gramática e

pureza de sua expressão.”

corrigir os antiquados manuais acima.

OUTUBRO 2013

A Doctrinale em seu roupagem quase original logo encontraria espaço em praticamente toda escola e universidade da Europa; enquanto aquela edição corrigida, bem como as próprias obras gramáticas de João foram quase totalmente esquecidas.

44

Sulpício, o primeiro gramático humanista, expressou sua surpresa com o fato de que em épocas passadas ninguém houvesse buscado escrever uma nova gramática, mas que todos tivessem preferido seguir cegamente a imprestável Doctrinale. Tal tarefa na verdade havia sido empreendida por João da Garlândia, mas ele parece não ter despertado nem mesmo um único crítico ou rival. Seus contemporâneos simplesmente perderam todo interesse num estudo profundo e apreciativo da linguagem e da literatura. Uma outra voz bradava no deserto. Não é estranho que devesse ser a de Roger Bacon, cujo destino foi lutar por tantas causas dignas, mas perdidas. Escrevendo por volta de 1270, ele deplorava que,

Não contente em criticar a Doctrinale em suas

apesar da atividade mental quase febril dos qua-

próprias obras, João tomou para si a tarefa de cor-

renta anos anteriores, o erro e a ignorância nunca

rigi-las. Pelo menos três cópias dessa Doctrinale

haviam sido tão grandes. Com uma notável ampli-

corrigida existem ainda hoje – todas em manus-

tude de visão, ele clamava por uma reforma no

critos do século XIII. De acordo com Reichling, essa

estudo da gramática em seu sentido mais amplo,

correção foi muito completa e abrangente, mais

pela melhoria do estilo e por uma melhor aprecia-

ainda do que as várias tentativas parecidas feitas

ção da literatura antiga. Ele chegou a ir muito mais

pelos humanistas do século XV. Apesar de tudo, ela

longe do que isso e insistiu que o estudo do grego,

nunca se tornou popular. A Doctrinale em seu rou-

do hebraico, do árabe e do caldaico era absoluta-

pagem quase original logo encontraria espaço em

mente necessário para um completo conhecimento

praticamente toda escola e universidade da Europa;

do latim e para a compreensão de Aristóteles e das

enquanto aquela edição corrigida, bem como as

Escrituras. Porém, não há indício de que suas idéias

próprias obras gramáticas de João foram quase

nessa linha tiveram a mais mínima impressão sobre

totalmente esquecidas.

a atividade universitária.

Talvez os escritos de João da Garlândia sejam tão

Após a morte de João da Garlândia (um pouco depois

inúteis que eles mereçam completamente um

de 1252), muito pouco pode-se dizer a mais sobre

esquecimento até mais profundo do que acabou

a gramática na grande universidade da França. A

sendo sua sina. Não é possível se decidir sobre isso

lógica e a filosofia agora tinham domínio total no

até que estudiosos capacitados o tenham examinado

curso de artes. Até 1366, nenhuma outra referên-

detidamente. Mas, mesmo que João fosse declarado

cia à Doctrinale e ao Graecismus pode ser encontrada

em definitivo um mau poeta e gramático quando

em ligação com Paris. Nenhuma palavra mais sobre

comparado com seus contemporâneos, ele ainda

as obras de João da Garlândia. Não há um só traço

sempre permanecerá uma figura interessante do

dos clássicos antigos até a segunda metade do

começo da história da Universidade de Paris. Ele

século XIV. Aparentemente, o Prisciano permane-

ao menos batalhou pela reforma e pelo avanço na

ceu só. Seus livros são o único texto de gramática

forma e na expressão literária numa época que

prescrito nos estatutos de 1252 e 1255. Mas mesmo

rapidamente tornava-se totalmente indiferente ao

o Prisciano não foi estudado seriamente, como evi-

bom estilo e à boa literatura. John Bale (1495-1563)

denciam os juramentos, datados de algum tempo

dizia sobre ele (porém, talvez com algo do sarcasmo

depois de 1366, o qual os bacharéis em artes eram


obrigados a prestar quando se apresentavam para

Na Itália, o declínio da gramática deveu-se prin-

receber sua licença. Entre outras coisas, eles tinham

cipalmente à popularidade do direito e da ars

de jurar que haviam lido ambos os Priscianos, mas tal

dictaminis, como iremos mostrar em detalhes no

juramento podia ser dispensado. Da mesma forma,

próximo capítulo. Enquanto a ars dictaminis esteve

eles precisavam prestar juramento de que haviam

no seu auge na primeira metade do século XIII,

estudado em Paris na faculdade de artes por três

a gramática foi lamentavelmente eclipsada em

anos, mas se entendia que isso significava as artes

Bologna, embora mesmo naquele tempo ela não

sem a gramática. Assim, a gramática era conside-

fosse inteiramente negligenciada. Assim, um certo

rada como pertencendo precariamente à atividade

mestre Bene foi empregado em 1218 para ensinar

mais séria do curso de artes. Os estatutos de 1366

gramática em Bologna. Embora ele estivesse muito

são ainda mais claros: o Prisciano não é mencionado

interessado na popular ars dictaminis, e até tenha

de forma alguma; estipula-se que os candidatos

escrito um manual sobre ela, ele ganhou fama

para o grau de bacharel em artes devesse ser bem

como gramático, principalmente. Pelos estatutos da

versado em gramática e tivesse ouvido lições da

cidade de Bologna em 1250, os mestres em gramá-

Doctrinale e do Graecismus – a primeira menção des-

tica eram eximidos do serviço militar, assim como

ses livros nos estatutos da universidade. Contudo,

o eram os doutores em direito. Durante a segunda

era o bastante caso os candidatos tivessem lido-os

metade daquele século, quando a ars dictaminis havia

em qualquer universidade ou mesmo em qualquer

perdido algo do seu prestígio, havia muitos distintos

outra escola onde se ensinasse gramática. De fato,

professores de gramática em Bologna. Uma prova

a maior parte dessa instrução era feita nas escolas

adicional de um interesse bastante saudável em gra-

menores de Paris. Assim, agora a gramática era difi-

mática no norte da Itália foi fornecida recentemente

cilmente mais do que um requerimento de entrada

pela descoberta do Compendium Grammaticae, escrito

para a atividade mais importante do curso de artes,

na última metade do século XIII por um italiano

que consistia da lógica e da filosofia.

chamado César. Diferente das novas gramáticas

Já perto de meados do século XIII, os lógicos de Paris haviam sido escarnecidos pelo autor da Batalha das Sete Artes por seu estilo corrompido.

do norte da Europa, o Compendium está em prosa. Todo ele, em método e frequentemente em forma, baseia-se no Prisciano. As ilustrações são tiradas de Salusto, Virgílio, Horácio, Ovídio, Lucano e Juvenal. O autor conhecia a Doctrinale e o Graecismus muito bem, mas raramente os seguia, e superou o primeiro de muitas formas; de fato, seu livro se destinava a competir com ele. O Compendium era até usado na Universidade de Paris, e o fato de que várias cópias suas tenham chegado até nós mostra que ele deve ter sido bem popular. O manual de César ilustra

Paris e em outras universidades do norte natural-

bem as tendências práticas de gramática ensinadas

mente produziu um declínio proporcional na pureza

pelos italianos. Os métodos dos escolásticos jamais

e na elegância do latim falado e escrito. Já perto de

fincaram o pé firme na península, e por isso lá a

meados do século XIII, os lógicos de Paris haviam

gramática especulativa não encontrou a aprovação

sido escarnecidos pelo autor da Batalha das Sete Artes

que teve no norte da Europa. Infelizmente, não se

por seu estilo corrompido. Denifle mostrou como

pode saber muito sobre a verdadeira atividade em

a negligência da gramática, incluindo os clássicos

gramática realizada nas universidades italianas.

antigos, levou a uma marcante deterioração no

Os estatutos de Bologna revelam que ela era con-

estilo dos documentos que saíam da Universidade de

siderada um ramo distinto do curso de artes, como

Paris, especialmente durante os primeiros setenta

eram a filosofia, a astrologia, a lógica e a retórica. Os

anos do século XIV. Giry fez a mesma observação a

estudantes podiam se formar em qualquer um des-

respeito da linguagem dos documentos em geral. No

ses cursos, ou em vários, ou em todos; por isso havia

norte da Europa, exatamente no século que vai de

estudantes especiais e até doutores em gramática.

1250 a 1350, o estudo da linguagem e da literatura

No começo do século XV, os candidatos à promo-

esteve no seu mais baixo patamar.

ção em gramática eram examinados a respeito do Priscianus maior e do minor. Isso pode ter sido tudo

OUTUBRO 2013

Esse lamentável declínio no estudo da gramática em

45


HISTÓRIA

o que se fazia em gramática em Bologna, mas pro-

Até 1328, nada mais definido pode se saber a res-

vavelmente, tanto aqui como em outros lugares, a

peito da gramática em Toulouse. Neste ano, era

história da atividade do curso de artes não deve ser

lançado um estatuto contendo um programa de

lida só pelos estatutos. No entanto, com segurança

aulas para os mestres em gramática, que propunha

podemos dizer que não havia nada de extraordi-

simplesmente regular os costumes já existentes.

nário, nada que não tivesse sido superado em boas

Portanto, os livros prescritos haviam sido lidos

escolas durante o século anterior à ascensão das

em Toulouse antes de 1328, mas o quanto antes é

universidades. No geral, parece que a gramática

impossível dizer.

teve um destino tão ruim nas universidades italianas quanto naquelas do norte da Europa.

O programa era o seguinte:

Tanto os mestres quanto os bacharéis eram também obrigados a compor provérbios e explicar os acidentes gramaticais dos substantivos e verbos encontrados neles.

Pela manhã, durante o inverno, depois de ter conduzido uma lição de gramática sobre provérbios, os mestres em gramática tinham de dar uma aula sobre o Priscianus maior, e imediatamente depois sobre a Doctrinale e o Alexander. Depois da refeição do meio-dia, quando tivera lugar uma recitação pelo principal bacharel e as aulas haviam sido repetidas, os mestres deviam ensinar no inverno Ebrardus, as Historiae Alexandri, os Hympni e a Metrificatura.

Nas universidades do sul da França encontramos algumas condições excepcionais interessantes no

Durante as férias de Natal, deviam ensinar os Actores

estudo da gramática. Aqui a influência de Aristóteles

e o Compotus.

não era tão dominante quanto no norte, e o direito e a medicina ocupavam uma posição mais elevada.

No verão, no lugar do Priscianus maior, tinham de

Talvez também nessa terra dos trovadores um

ler o oitavo, nono e primeiro capítulos da Doctrinale,

instinto literário mais forte tenha ajudado a impe-

ou seja, o de Regimine, o de Constructione e o de

dir que a metafísica dominasse completamente o

Declinationibus. Ademais, tinham de continuar o

estudo da linguagem. Qualquer que tenham sido

Alexander e terminar o Ebrardus.

as causas, a gramática floresceu aí mais do que em qualquer outro lugar da Europa.

Muito depois, os estatutos da Universidade de Toulouse datados de 1426 e 1489 ainda mencionam

Os estatutos da universidade de Toulouse forne-

a Doctrinale, o Ebrardus, o Alexander e o Priscianus

cem os melhores dados. Quando essa instituição foi

maior como os livros de gramática de uso comum na

fundada em 1229, uma interessante carta circular

universidade.

OUTUBRO 2013

foi enviada a título de propaganda. Ela meramente

46

menciona os diferentes assuntos que deveriam ser

Em Perpignan, por volta de 1380-1390, foi dado

ensinados, mas entre eles a gramática é nome-

um curso de gramática muito similar ao esboçado

ada separadamente junto com a teologia, a lógica

acima. Os livros padrões aí, como em Toulouse, eram

e a filosofia aristotélicas, a música sacra, o direito

a Doctrinale, o Ebrardus, o Alexander e o Priscianus,

civil e a medicina. Concediam-se quatorze mes-

se houvesse por este alguma demanda. Ademais,

tres; em teologia quatro, dois em direito, seis nas

os mestres ensinavam o Compotus e os Hymni. Os

artes liberais (i. e. em lógica e filosofia), e dois em

bacharéis que liam o “lectorio minori” ensinavam

gramática. O salário dos mestres em lógica era de

os auctores definidos como “Cathonem, Contentum

vinte “marcos” por ano, o dos mestres em gramá-

et Tobiam”. Tanto os mestres quanto os bacharéis

tica dez “marcos.” Desse modo, bem no princípio,

eram também obrigados a compor provérbios e

a gramática obtinha uma posição independente em

explicar os acidentes gramaticais dos substantivos

Toulouse, de uma maneira que provavelmente não

e verbos encontrados neles. Previam-se recitações

teve em Paris até essa data.

diárias, e duas ou três vezes por semana os alunos,


na presença dos mestres, eram obrigados a travar

era tão impopular em Perpignan que era lido ape-

disputações sobre assuntos de gramática.

nas “se houvesse algum ouvinte.” Um pouco mais adiante no mesmo documento se prescreve que os

Muito provavelmente, um curso bastante pare-

alunos de gramática travassem disputações, mos-

cido com esse de Toulouse e Perpignan era dado em

trando o quão completamente a gramática tinha

outras universidades do sul da França. Os estatu-

sido dominada pela dialética. O Prisciano não forne-

tos fornecem pouca informação, mas os mestres

cia alimento para o método especulativo, enquanto

de gramática são mencionados nas universidades

nas gramáticas de Alexandre de Villedieu e Eberardo

de Cahors e Orange, e, nos inventários dos bens

de Betúnia havia uma abundância disso. Acrescente

de alunos em Avignon, a maioria dos livros de gra-

que o antigo manual era em prosa, enquanto os

mática acima são listados. Mesmo na universidade

novos vinham na forma popular do verso, e então

de Orleans, ao norte, os mestres e especialistas em

não surpreende que o Prisciano rapidamente tenha

gramática são mencionados num estatuto do ano de

perdido terreno, mesmo nessas universidades do

1312. Mais ou menos na mesma época, a Doctrinale e

sul, onde a gramática era estudada mais seriamente.

o Cato eram usados aí.

Os principais livros eram os famosos Doctrinale e Graecismus.

Segundo o costume antigo, fazia-se alguma leitura junto com o estudo da técnica gramática. Os estatutos de Toulouse simplesmente mencionam os “Actores” ou autores. Nos documentos do século XII, actores ou auctores podem seguramente ser traduzidos como “autores clássicos”, mas no decurso

Os detalhes acima mostram que pelo menos nas

do século XIII o termo adquiriu um sentido muito

universidades de Toulouse e Perpignan o estudo de

restrito. Alguma luz é jogada sobre os “Actores” de

gramática era um ramo importante do currículo. É

Toulouse pelo programa de Perpignan, no qual os

verdade que não se liam os clássicos antigos, mas

“auctores consuctos” são listados como “Cathonem,

a quantidade de instrução gramática era relativa-

Contentum et Thobiam.” Provavelmente os actores de

mente grande. É necessário um resumé explicativo

Toulouse fossem os mesmos que os de Perpignam.

para tornar o curso perfeitamente claro.

Por toda a Idade Média actores geralmente significavam os livros de leitura elementar, Cato, Aesopus e Avianus. O Cato era uma pequena coleção de máximas

Graecismus. Eles tinham sido provavelmente intro-

e provérbios feitos por volta de 300 d.C. e ordenados

duzidos em Toulouse bem antes de 1328, quando

na forma de dísticos em hexametro. O Aesopus e o

os estatutos os mencionam pela primeira vez.

Avianus eram coleções de fábulas. O Aesopus era uma

Um manuscrito em Amiens (No. 327) contém um

seleção baseada nas de Fedro (século I d.C.), cada

comentário sobre a Doctrinale copiado em Toulouse

uma consistindo de três a oito dísticos. O Avianus

em 1291. O terceiro texto de gramática padrão era

(séculos IV-V d.C.) compunha 42 fábulas de Esopo

o Alexander, que provavelmente era o “Glossário”

em metro elegíaco, cada uma consistindo de sete ou

de Alexandre de Villedieu destinado a suplemen-

oito dísticos. Essas obras, que, somadas, formavam

tar sua Doctrinale. O quarto manual regular era o

a leitura introdutória nas escolas medievais, eram

Priscianus maior. Contudo, há indicações claras de

geralmente reescritas, rearranjadas e aumentadas

que o Prisciano estava se tornando secundário. No

para se encaixar no gosto e gênio das sucessivas

programa de Toulouse (1328) constava que ele não

gerações. Assim, nós ainda temos um fragmento

deveria ser lido no período do verão, mas ser aí

de um Novus Avianus de Alexandre Neckam (morto

substituído pelos primeiro, oitavo e nono capítulos

em 1227). Às vezes outros livros também são desig-

da Doctrinale. Ora, o oitavo e nono capítulos tratam

nados de actores. É o caso de Tobias de Mateus de

da sintaxe, e vimos que exatamente na sintaxe é

Vendôme, mencionado no estatuto de Perpignan.

que o Prisciano era fraco e a Doctrinale especialmente

O título Contentum parece ser errôneo; talvez se

forte. Essa é uma boa amostra da forma pela qual o

devesse ler Cornutum. O Cornutum ou Distigium

antigo manual padrão foi preterido pelo novo, em

Cornuti era uma pequena coleção de dísticos reple-

parte porque o segundo supria melhor as exigências

tos de palavras grecolatinas e estranhas palavras

de então. Perto do final do século XIV, o Prisciano

latinas, com longas explicações marginais. Ele é

OUTUBRO 2013

Os principais livros eram os famosos Doctrinale e

47


HISTÓRIA

geralmente atribuído a João da Garlândia. Esse

na cidade de Toulouse. A partir de então, nenhum

pequeno tratado oferecia o melhor material possível

dos pedagogi, como eles eram chamados, deveriam

para especulações sobre certos pontos da gramá-

ensinar em Toulouse ou seus subúrbios aqueles

tica, e por isso pode muito bem ter sido estimado

livros que os mestres de gramática estavam acos-

pelos mestres e alunos em Perpignan que travavam

tumados a utilizar, a saber, a Doctrinale, o Ebrardus,

disputações sobre gramática duas a três vezes por

o Alexander e o Priscianus, a menos que eles primeiro

semana. Em Toulouse davam-se aulas também “de

tivessem obtido uma licença das autoridades apro-

Historiis Alexandri”, que provavelmente significam

priadas. Isto mostra a importância da gramática na

as Alexandreis de Gautier de Lille, o popular poema

universidade e ao mesmo tempo a organização da

épico sobre os feitos de Alexandre, o Grande.

faculdade de gramática em um corpo de autoridade.

Assim, nessas universidades do sul não só a gramá-

Depois do pleno desenvolvimento do sistema de

tica técnica era ensinada melhor do que em qualquer

gradações, os três graus eram: bacharel, licenciado

outro lugar, mas junto com ela se lia mais literatura

e mestre. Todos estes eram conferidos pela facul-

do que em qualquer outra universidade. Certamente

dade de gramática em Toulouse no mínimo desde a

é um triste sinal da negligência dos clássicos antigos

primeira metade do século XIV.

que os actores designassem agora livros como os que descrevemos, mas era melhor lê-los do que não ler

Os mestres em gramática eram mencionados pelo

nenhum. Além disso, o curso de gramática incluía

menos desde 1229, mas isso não chega a justificar

a Metrificatura, a arte da composição em verso;

a conclusão de que uma grau de mestre regular no

também música e o Compotus, a arte de calcular as

assunto fosse conferido já então. Provavelmente

datas dos festivais de igreja, que era uma relíquia do

nessa época ele fosse meramente um título assu-

antigo quadrivium.

mido sem as formalidades que cabiam às gradações.

Os mestres de gramática eram bem distintos dos de artes.

Mas quando a faculdade de gramática havia tomado uma forma definitiva no século XIV, eram oferecidas gradações regulares nessa matéria em Toulouse. A licença é claramente mencionada num estatuto do ano de 1311. Outro, datado de 1329, fala dos licenciados em gramática indo fazer o principium, a entrada

O fato mais incrível sobre a gramática nessas uni-

solene na condição de mestre. Encontram-se fre-

versidades do sul da França é que ela constituía uma

quentemente os mestres de gramática. Vimos que

faculdade separada em algumas delas e que elas fre-

somente eles podiam conferir aos pedagogi a licença

quentemente ofereciam gradações em gramática.

para ensinar. O grau de bacharel em gramática

Na carta circular remetida pela nova Universidade

também era dado pelo menos desde 1328. No pro-

de Toulouse em 1229 já havia sido feita uma distin-

grama daquele ano há uma menção de um “bacharel

ção entre os “lógicos que ensinam as artes liberais”

principal” em gramática, que deveria conduzir as

e os meros gramáticos. Da mesma forma, no docu-

recitações nas aulas que os mestres haviam dado.

mento prevendo os salários dos vários mestres era

Um estatuto do ano seguinte novamente se refere

feita a mesma distinção entre mestres de artes e os

de maneira distinta aos bacharéis em gramática.

de gramática.

Isto basta para mostrar que em Toulouse, pelo menos desde o princípio do século XIV, havia uma

Em 1309, a faculdade de artes em Toulouse redigia um

sucessão ordenada de gradações em gramática –

elaborado programa de estudos sem fazer referência

bacharel, licenciado e mestre.

OUTUBRO 2013

à gramática. Um pouco depois, em 1328, por uma

48

convocação geral de toda a universidade, as aulas

Vários pequenos fragmentos de evidência espalha-

dos mestres de gramática eram reguladas separa-

dos dão indício de que outras universidades no sul

damente, como vimos. Evidentemente, os mestres

da França possuíam distintas faculdades de gramá-

de gramática eram bem distintos dos de artes. Um

tica e conferiam gradações nesta matéria da mesma

estatuto de 1329 na verdade menciona uma faculdade

forma que em Toulouse. Em Perpignan, havia

de gramática. O mesmo estatuto dava aos mestres

bacharéis em gramática que repetiam as aulas dos

de gramática um monopólio do ensino de seu ramo

mestres, e vimos que certos bacharéis ensinavam


os “autores” de costume. Em Orange, em 1365, há

exceto aqueles quatro sagrados, poderiam ser ensi-

uma menção expressa de uma faculdade de gra-

nados livremente, sem uma licença.

mática. Da mesma forma, em Cahors em 1365, nós lemos a respeito de mestres nessa arte; e de novo

Uma disputa parecida surgiu em 1489 entre dois

em 1367. Próximo do final do século XIV, Avignon

mestres regentes, um em gramática, o outro em

deve ter tido um florescente departamento de gra-

artes. O mestre em artes havia pretendido ensinar

mática, pois em duas listas de alunos enviados para

sobre a Doctrinale, o Ebrardus, etc., em sua própria

o Papa em 1394 aparecem os nomes de 115 estu-

casa. O mestre regente em gramática reclamava

dantes de artes e 79 de gramática. Aparentemente,

disso. Novamente se decidiu, depois de se refe-

todas essas universidades viam a Toulouse como um

rir às antigas previsões de 1309, 1328 e 1329, que

modelo.

todo mestre de artes ou lógica deveria garantir uma

Que estranho espetáculo numa universidade medieval! Os mestres de lógica do poderoso Aristóteles implorando por permissão para ensinar a Doctrinale!

licença antes que pudesse lecionar sobre aqueles quatro livros mencionados nos antigos estatutos. Que estranho espetáculo numa universidade medieval! Os mestres de lógica do poderoso Aristóteles implorando por permissão para ensinar a Doctrinale! Aqui pelo menos o terreno que a gramática havia perdido no século XII lhe havia sido restituído pela lógica. Mas a gramática já não era mais o que havia sido mesmo naqueles últimos dias quando reunía muitos autores clássicos entre os muros de Orleans e deflagrava uma luta perdida contra a lógica de

Assim, numa época em que a gramática dificil-

Paris na “Batalha das Sete Artes”. Apesar do crescente

mente era considerada uma parte séria da atividade

interesse em gramática no sul da França, não houve

da Universidade em Paris, ela se encontrava na

avanço no método. Quando o humanismo estava

condição mais florescente em Toulouse e outras uni-

irrompendo sobre eles, quando teria sido tão fácil

versidades do sul da França. Nada poderia ser mais

melhorar o ensino da gramática voltando a ler os

instrutivo do que uma lista de alunos de Toulouse

antigos poetas e historiadores, como Quintiliano,

enviada ao Papa em 1378. Contra apenas 246 alunos

Rabano Mauro e João da Salisbúria haviam advogado,

de artes, havia 295 de gramática. Há toda razão para

essas universidades aferraram-se passionalmente

se acreditar que os segundos devotassem seu tempo

aos desgastados Doctrinale e Graecismus, que mesmo

inteiro a um curso tal como esboçado em 1328. Isto

um João da Garlândia havia condenado no século

mostra que a faculdade de gramática em Toulouse

XIII. Estranho conservadorismo o dessas escolas!

havia firmemente crescido em importância. Isto também aparece pelo resultado de uma contenda que surgiu em 1426 entre dois mestres regentes de

Conforme nos aproximamos do período de Petrarca,

gramática e um certo mestre de artes que ensinava

nossa curiosidade naturalmente desperta para

lógica. Este último defendia que tinha direito de dar

ver se alguma universidade teve algum papel no

aula sobre o Priscianus minor sem uma licença dos

renascimento do ensino e se o ensino da gramá-

mestres regentes em gramática, apesar do estatuto

tica avançou em algum lugar por um estudo mais

de 1329 a respeito da licença aos pedagogi. Dois árbi-

profundo da filologia e uma melhor apreciação da

tros foram apontados e eles decidiram que o referido

literatura clássica.

mestre de artes podia ensinar sobre o Priscianus Olhemos primeiro para a Itália. Em 1321, em

artes haviam recebido o direito de lecionar sobre

Bologna, revivia o estudo da retórica formal. Um

esse livro de gramática; mas ninguém, mesmo que

professor ensinava Cícero e ao mesmo tempo a arte

fosse um mestre de artes, tinha o direito de ensi-

de composição em latim, incluindo a escrita epis-

nar a Doctrinale, o Ebrardus, o Alexander e o Priscianus

tolar. No mesmo ano, os alunos solicitavam um

maior sem uma licença dos mestres regentes em

doutor em poesia, e então Antonio de Virgilio era

gramática. Quaisquer outros livros de gramática,

indicado com um grande salário para ensinar sobre

OUTUBRO 2013

minor porque, pelo estatuto de 1309, os mestres de

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HISTÓRIA

Virgílio, Estácio, Lucano e Ovídio. Três anos depois,

Virgílio, Ovídio, Horácio, Juvenal, Sêneca, Terêncio,

fornecia-se salário para um certo mestre Vitale,

Salusto, Quintiliano, Lívio, Valério Máximo, Marcial

doutor em gramática, para ensinar sobre Cícero e

e Macróbio.

as Metamorfoses de Ovídio. Esse foi um bom começo de acordo com as linhas da reforma que Petrarca

Em 1367, Petrarca, numa carta ao Papa Urbano V,

logo advogaria; mas a bela promessa não fora cum-

depreciara os franceses como bárbaros entre os

prida. Depois desse fulgor da restauração das letras

quais não poderia haver oradores ou poetas. Esse

clássicas na universidade de Bologna, a escuridão

insulto foi imediatamente respondido por um certo

se instalou novamente. Os estatutos do princípio

Jean de Hesdin, que em sua carta dava evidência de

do século XV revelam que Cícero era ainda a base

uma grande carga de ensino clássico. Na mesma

do ensino na retórica; mas isto é tudo. O que valia

carta, Petrarca também emitira outra opinião, mais

para Bologna também geralmente valia para outras

branda, a de que a oratória e a poesia eram ensina-

universidades italianas. Ao traçar a história da

das de formas mais extensivas na Itália do que em

restauração do ensino na Itália, as grandes univer-

qualquer outro país. Mesmo contra isto, um huma-

sidades podiam ser quase que totalmente ignoradas.

nista francês mais jovem, Nicolas de Clemanges

Em 1367, Petrarca, numa carta ao Papa Urbano V, depreciara os franceses como bárbaros entre os quais não poderia haver oradores ou poetas.

(1360-1440?), protestou um pouco depois nestas palavras: “Respondo que eles também são ensinados de forma bem geral em outros lugares. Eu mesmo vi muitas vezes que a retórica de Cícero e Aristóteles eram lidas na universidade de Paris em público e privado; da mesma forma, Virgílio, o maior dos poetas, e Terêncio.” Denifle mostrou o quão claramente as mãos dos humanistas franceses podem ser identificadas no estilo improvisado dos documentos que brotavam da universidade naquele tempo. Todos os escritos de Nicolas se distinguem

Nas universidades da Inglaterra e Alemanha, a

por um estilo o mais excelente. Mais tarde em sua

história é muito parecida. Em Oxford, em 1431,

vida, contudo, ele se afastou dos estudos clássicos

recomendavam-se os seguintes livros em retórica:

da juventude e dedicou-se totalmente à teologia.

as retóricas de Aristóteles e Cícero, as Metamorfoses

Com seu temperamento alterado, ele frequente-

de Ovídio e a “Poetria Virgilii.” Estes, contudo, eram

mente alertava Jean de Montreuil a não se permitir

somente elementos menores do curso de artes que

ser arrastado pelo louvor de Apolo e das musas.

ainda mantinha os mesmos traços gerais do curso convencional do século XIII. Mesmo nas novas

Assim que Nicolas de Clemanges abandonou os

universidades da Alemanha, que não estavam tão

autores antigos que tinha amado na juventude, no

arraigadas na tradição, as tendências humanísticas

século XV a Universidade de Paris caiu de novo na

demorariam a ter sua entrada admitida.

velha rotina e o movimento humanista chegou a

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um fim repentino. Mesmo antes de 1400, as cartas e

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Em Paris, houve uma restauração esporádica da

estatutos da universidade eram novamente escritos

literatura clássica em meados do século XIV, bem

num estilo deplorável. Na segunda metade do século

independente daquela da Itália. O primeiro indí-

XV, William Fichet, que era reitor da universidade

cio de um novo espírito foi a tradução francesa de

em 1467, destacou-se como um defensor bastante

Lívio e outros clássicos por Pierre Bersuire. Jean

solitário dos clássicos e do bom latim. Pela manhã

de Montreuil (nasc. 1354) foi o primeiro verdadeiro

ele ensinava teologia e filosofia, à tarde retórica e

humanista da França. Pierre d’Ailly (1350-1420), que

as humanidades. O seu manual de retórica foi um

com seu humanisticamente inclinado amigo Gerson

livro que marcou uma época na França. Ele vislum-

representou a universidade de Paris no Concílio de

brava um futuro muito promissor. Escrevendo a um

Constance, deixou uma lista muito interessante de

amigo em 1472, ele descrevia como todo mundo em

autores que eram conhecidos em Paris no final do

Paris tinha ignorado Cícero e o bom latim quando

século XIV. Pierre escreve como se ele tivesse de fato

ele chegou na universidade, mas que agora uma

recebido instrução nas obras dos seguintes autores:

nova época havia começado. Naquele ano, Fichet


saiu para a Itália, e com ele partiu o entusiasmo

Villedieu, embora nessa época os humanistas na

pelas belles lettres. Diz-se que o teólogo Dullardus

Itália e Alemanha estivessem travando uma guerra

queria falar para Fichet: “Quanto melhor gramático

amarga contra ele. No entanto, Dionysius propu-

você for, pior dialético e teólogo”. Um édito do Rei

nha suplementá-lo a partir de Prisciano e Donato,

Luís XI em 1473 relembrava aos mestres e alunos de

e também dos tratados de Laurêncio Vala, que

Paris que o Papa Gregório o Grande há muito aler-

recentemente atacara com violência a latinidade

tara a juventude contra o doce feitiço das orações de

do escolasticismo. A principal inovação nesse pro-

Cícero, um alerta ao qual, segundo o Rei, ainda se

grama era a ênfase dada sobre a ars oratoria, que era

deveria prestar atenção. Como um todo, a univer-

em grande parte a arte de ensinar a elegância no

sidade de fato prestou atenção e fechou suas portas

falar e escrever em latim. Terêncio, Virgílio, Cícero,

às influências da Itália. Em Paris não temos uma

Juvenal e Boécio eram propostos como base para

maré alta de humanismo até a fundação do Collège

essa atividade, bem como Peroto sobre a arte da

de France em 1530.

escrita epistolar. A língua latina deveria ser ensi-

As universidades medievais tinham muito pouco a ver com movimento humanístico dos séculos XIV e XV. Muito pouco pode se dizer sobre as universidades do

nada por métodos diretos, detendo-se sobre as partes do discurso, as declinações, conjugações e para avaliar a leitura correta dos autores. Este programa particular, chegando tão tardiamente no século XV, está permeado de um genuíno sabor humanístico; mas é uma exceção quase isolada que comprova a regra de que as universidades medievais tinham muito pouco a ver com movimento humanístico dos séculos XIV e XV.

sul da França, apesar do fato de que a gramática formal tenha se tornado cada vez mais popular por lá.

Traduzido por Renan Santos

Em Perpignan, próximo do final do século XIV, mencionam-se “poetas” em acréscimo aos gramáticos e artistas. Mais ou menos na mesma época, num inventário dos bens de um aluno da mesma universidade são listados uma cópia de Dante e várias obras de Ovídio e Salusto. Num inventário semelhante dos bens de um aluno de Avignon, datado de 1459, aparecem várias obras de Ovídio, cópias de Virgílio, Juvenal e Sêneca e as Sobre as Mulheres Famosas de Boccaccio. Perto do fim do século XV, em 1496, nos deparamos longamente com um verdadeiro curso humanista de artes na Universidade de Montpellier. É um esboço da atividade que era oferecida por John Dionysius, um mestre de artes. Em filosofia e lógica, ao invés de uma longa lista das obras de Aristóteles, encontramos o que parecem ser meros comentários sobre suas obras de Física, da Alma, e a Meteórica por um certo Jorge, provavelmente Jorge de Trebizonda (c. 1395-1484), junto com um livro de lógica talvez do mesmo autor. Além Ockham, junto dos seus seguidores John Dorp, Pierre D’Ailly e Alberto da Saxônia que revolucionaram o pensamento escolástico no século XIV. A gramática ainda era ensinada pela Doctrinale de Alexandre de

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disso, há para serem lidas as obras de William de

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LITERATURA

O Pai, Bjornstjerne Bjornson Tradução do conto “Faderen”(1860), a partir de uma tradução inglesa de R. B. Anderson (1907)

“Gostaria muito de batizá-lo eu mesmo,” disse, finalmente. “Quem sabe em um dia de semana?” “No próximo sábado, ao meio-dia.” “Algo mais?” inquiriu o padre. “Nada mais”, e o camponês apanhou o chapéu, fazendo menção de sair. Então o padre ergueu-se. “Falta ainda uma coisa, porém”, disse, e, dirigindo-se a Thord, tomou-lhe as mãos e olhou-o gravemente nos olhos: “Deus permita que a criança se torne uma bênção para ti!” Um dia, dezesseis anos depois, Thord era surpreendido mais uma vez no escritório do padre.

O

“Não há dúvida de que enfrentas a idade de forma

homem cuja história se contará aqui

excelente, Thord”, disse o padre, pois não via alte-

era a pessoa mais próspera e influente

ração alguma no homem.

de sua paróquia. Chamava-se Thord Overaas. Ele apareceu no escritório do

“É que não tenho preocupações”, replicou Thord.

padre um dia, sério e altivo. Quanto a isto o padre não comentou nada; porém,

“Ganhei um filho,” disse ele, “e gostaria de apre-

após breve instante, perguntou: “A que deverei tua

sentá-lo ao batismo.”

visita esta noite?”

“Qual será o nome dele?”

“Venho pedir a publicação do anúncio de casamento para meu filho”

“Finn, em homenagem a meu pai.” “Vim aqui esta noite por causa de meu filho que “E os padrinhos?”

será crismado amanhã.”

Thord mencionou-os. Tratava-se dos melhores

“É um ótimo rapaz.”

homens e mulheres com quem se relacionava na

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paróquia.

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“Pois não gostaria de lhe pagar antes de saber em que lugar o garoto ficará, quando tomar assento na

“Algo mais?” inquiriu o padre, e olhou para cima.

igreja amanhã.”

O camponês hesitou um pouco.

“Ele ficará no primeiro lugar.”


“Pois bem. Aqui estão os seus dez dobrões.”

bolso, disse adeus e foi embora.

“Haverá algo mais que possa fazer por ti?” inquiriu

Os homens lentamente o seguiram.

o padre, fixando os olhos em Thord. Quinze dias depois, pai e filho encontravam-se “Não, nada mais.”

remando no lago, num dia calmo, bom para que Storliden cuidasse dos preparativos do casamento.

Thord retirou-se. “Este assento não é seguro”, disse o filho, e Mais oito anos se passaram, e então se ouviu um

ergueu-se para retesar o banco em que estava

dia certo barulho fora do escritório do padre, pois

sentado.

muitos homens acudiam juntos, e à testa deles Thord, que entrou primeiro.

Simultaneamente, a tábua sobre a qual estava firmado escapou-lhe sob os pés. Ele abriu os braços,

O padre ergueu a vista e reconheceu-o.

soltou um guincho e caiu para fora.

“Estás vindo bem acompanhado esta noite,

“Segura o remo!” gritou o pai, esticando-se para

Thord,” disse ele.

alcançar-lhe o remo.

“Venho pedir a publicação do anúncio de casa-

Mas quando o filho já tinha feito bastante esforço,

mento para meu filho: ele está pronto para se casar

começou a enrijecer-se.

com Karen Storliden, filha de Godmund, que se encontra aqui ao meu lado.”

“Espera aí!” gritou o pai, e começou a remar em direção ao filho. O filho tombou para trás, lançou

“Bem, essa é a moça mais rica da paróquia.”

para seu pai um longo olhar, e afundou.

“É o que dizem”, replicou o camponês, contendo

Thord não acreditava. Parou o bote e ficou olhando

uma mecha de cabelos com a mão.

para o lugar onde seu filho submergira, como se

Thord não acreditava. Parou o bote e ficou olhando.

ele houvesse certamente de voltar à tona. Subiram algumas bolhas, então outras mais, e finalmente uma última grande, que estourou. E o lago voltou a ficar tão liso e brilhante como um espelho. Por três dias e três noites a gente avistava o pai

O padre permaneceu um instante meditabundo.

remando ao redor daquele ponto, sem comer nem

Então, sem fazer nenhum comentário, deu entrada

dormir. Ele se arrastava pelo lago procurando o

aos nomes no livro, e os homens assinaram

corpo de seu filho. Estava já na manhã do terceiro

embaixo. Thord deitou três dobrões sobre a mesa.

dia quando o encontrou e, carregando-o nos braços, levou-o montanha acima para a sua propriedade.

“Um é quanto me basta”, disse o padre. Deve ter sido mais ou menos um ano depois desse “Sim, sei perfeitamente; mas ele é meu único filho,

dia que o padre, tarde numa noite de outono, ouviu

e por isso quero ser generoso.”

alguém do lado de fora de sua porta procurando cuidadosamente o trinco. O padre abriu a porta

O padre apanhou o dinheiro.

e viu entrar um homem alto, magro, de postura arcada e cabelos brancos. Depois de observá-lo longamente, o padre enfim o reconheceu. Era

causa de teu filho.”

Thord.

“Sim, mas agora já acertei minhas contas com

“Estás caminhando tão tarde?” disse o padre, e

ele”, declarou Thord, e, fechando seu livro de

pôs-se diante dele.

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“Esta já é, Thord, a terceira vez que vens aqui por

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LITERATURA

“Ah, sim! Está tarde”, disse Thord, e tomou assento. O padre sentou-se também, como se esperasse. Um longo, longo silêncio se seguiu. Finalmente Thord falou:

Eles lá se mantiveram sentados por um instante, Thord com os olhos baixos, o padre com os seus fixos em Thord. “Trouxe uma doação para os pobres. Gostaria que fosse investida como um legado, em nome de meu filho.” Ele se ergueu, deitou algum dinheiro sobre a mesa, e voltou a sentar. O padre contou o dinheiro. “É uma soma considerável”, disse o padre. “É metade do preço da minha fazenda. Eu a vendi hoje.” O padre permaneceu em profundo silêncio. Por fim perguntou, gentilmente: “Que pretendes fazer a partir de agora, Thord?” “Algo melhor.” Eles lá se mantiveram sentados por um instante, Thord com os olhos baixos, o padre com os seus fixos em Thord. Então o padre disse, devagar e suavemente: “Acho que teu filho te trouxe, enfim, uma verdadeira bênção.” “Sim, também acho,” disse Thord levantando os olhos, enquanto duas grossas lágrimas desciam-

OUTUBRO 2013

-lhe lentamente pelas faces.

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Traduzido por Henrique Garcia


Deus não pede tanto, Léon Bloy Primeiro capítulo de “Exégèse des Lieux Communs”(Exegese dos lugares comuns), de Léon Bloy, 1912.

B

ela epígrafe para um comentário do Código civil! Gracejo fácil que é preciso entregar caridosamente aos senhores jornalistas ou aos meirinhos. O caso é grave.

Não será ocasião de estupor o pensar que tal coisa é dita, milhões de vezes por dia, diante da face humilhada de um Deus que “pede” principalmente que nós o devoremos? A eterna pechincha que implica esse lugar comum tem de perturbador o fato de que torna manifesta a falta de apetite de um mundo que, apesar disso, vive afligido pela fome e reduzido a alimentar-se dasua imundície.

A lógica dos lugares comuns não perdoa. Seria pueril observar que nessa fórmula, muito mais misteriosa do que se crê, a questão toda se condensa na palavra “tanto”, cujo valor abstrato está sempre na dependência de um padrão facultativo que jamais é divulgado. Isso depende, naturalmente, do estágio das almas. Porém, como é próprio de toda a negação tender ao nada, não seria temerário concluir que o impreciso “pede” de Deus equivale a nada, e que esse Deus, não tendo nada mais a pedir, ao final das contas, a adoradores que podem reduzir indefinidamente o próprio zelo, nada mais tem a fazer agora de seu Ser ou de sua Substância, e deve necessariamente

religiosos como o senhor, mas Deus não pede

desaparecer. E, de fato, muito pouco importa que

tanto…”, então devo reconhecer que elas são de

se tenha essa ou aquela noção de Deus. Ele mesmo

fato muito amáveis por não ajuntarem: “pelo

“não pede tanto”, e aqui está o ponto essencial.

contrário!”, ainda que isso seja, necessária e evidentemente, o fundo de seu pensamento.

Quando exorto a minha lavadeira, a senhora Alaric, Elas têm razão, sem dúvida, pois a lógica dos luga-

fez com as quatro mais velhas, ou quando, timi-

res comuns não perdoa. Se Deus não pede tanto, ele

damente, proponho ao meu senhorio, o senhor

está obrigado, por uma consequência invencível, a

Dubaiser, o exemplo de alguns santos que não

pedir cada vez menos, repito-o, e finalmente “tudo

acreditavam indispensável ao equilíbrio social a

recusar”. Que digo? Supondo que lhe reste então

condenação de crianças à morte, e quando essas

um pouco de existência, ele logo há de encontrar-

dignas pessoas respondem-me: “Somos tão

-se sob a mais premente necessidade de querer que

OUTUBRO 2013

a não prostituir a sua filha mais nova, como ela

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LITERATURA

vivamos como os porcos e de lançar o que sobrou de seu raio sobre os mais puros de seus mártires. Os burgueses, por seu turno, são por demais adoráveis para não se tornarem eles mesmo em deuses. Pedir, então, é algo que convém a eles, somente a eles. Todos os imperativos lhes pertencem, e podemos estar certos de que o dia em que pedirem demasiadamente será o mesmo dia em que começarão a se aperceber de que, em absoluto, não pedem ainda o bastante… E Alguém lhes dirá: – Eu peço as suas peles, imundos canalhas!

OUTUBRO 2013

Traduzido por Alexandre Müller

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Tradução de “The Church and the Fiction Writer”, artigo publicado em 30/03/1957 na America Magazine

LITERATURA

A Igreja e o escritor de ficção, Flannery O’Connor

Não se deve pensar apenas nos dons que entraram nos trilhos, mas também nos que se desviaram pelo caminho e naqueles que nunca se desenvolveram. Sua prosa tensa, sensível tanto ao mistério da presença de Deus no mundo quanto às obrigações de um escritor diante de sua tarefa, afirma que a fé de um escritor não necessariamente o limita, mas confere uma “dimensão acrescentada” a seu trabalho criativo, que deve ser julgado “pela veracidade e integridade dos eventos Nota do editor

naturais apresentados”. Em seu ensaio, O’Connor mediu cuidadosamente sua argumentação e seu modo de

Quando “A Igreja e o Escritor de Ficção” veio a público

expressão, e é compreensível que tenha se incomodado

em 30 de março de 1957, nos EUA, a georgiana Flannery

com o fato de o Padre Gardiner ter alterado um de seus

O’Connor tinha acabado de completar 32 anos. Na época,

parágrafos, o qual inserimos no texto abaixo entre

seu romance Sangue Sábio(1952) e seus contos, alguns

colchetes. Publicamos este parágrafo original com nossas

dos quais figuraram na Harper’s Bazaar,na The Kenyon

tardias desculpas.

Review, na The Sewanee Review e na Shenandoah (e que acabaram sendo publicados em A Good Man Is Hard

Patrick H. Samway

to Find and Other Stories [1955]), foram aclamados nacionalmente, embora nem todos os críticos pudessem situar seu gênio com alguma precisão. Granville Hicks,

A IGREJA E O ESCRITOR DE FICÇÃO

por exemplo, escreveu em The New Leader, a respeito de A Good Man Is Hard to Find: “a Sr. O’Connor considera

A pergunta a respeito de que efeito o dogma católico

a vida humana vil e brutal e faz este julgamento desde o

exerce sobre o escritor de ficção que é católico nem

ponto de vista da ortodoxia cristã. Mas não é necessário

sempre pode ser respondida indicando-se a presença

acreditar no pecado original para ser abalado por suas

de Graham Greene entre nós. Não se deve pensar

histórias”.

apenas nos dons que entraram nos trilhos, mas também nos que se desviaram pelo caminho e naqueles que nunca se desenvolveram. Algum tempo atrás,

sacerdotes, James McCown, S. J.,tê-la recomendado a

os editores da Four Quarters, uma revista trimestral

Harold C. Gardiner, S. J., o editor literário de America

publicada pelo La Salle College, na Filadélfia, publi-

Magazine, O’Connor enviasse um ensaio esclarecendo

cou um encarte especia sobre a morte dos escritores

sua visão acerca da relação entre um escritor de ficção

católicos entre os graduados em faculdades católi-

professamente católico e os princípios da Igreja Católica.

cas. Em resposta, apareceram cartas de escritores e

OUTUBRO 2013

Não surpreende que, depois de um de seus amigos

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LITERATURA

críticos, católicos e não católicos.

porque crê em certo número definido de mistérios, não pode, pela natureza das coisas, enxergar com

Essa correspondência variava desde a afirmação

precisão; e essa afirmação não é, com efeito, muito

de Philip Wylie, segundo a qual “um católico, se

diferente daquela feita por católicos que declaram

for devoto, isto é, crente na autoridade da Igreja, é

que, por mais que o escritor católico veja, há certas

também alguém que passou por lavagem cerebral,

coisas que ele não deve ver, nem com precisão nem

quer perceba, quer não” (e consequentemente não

de jeito nenhum. Estes são os católicos vítimas da

tem a liberdade necessária para ser um escritor

estética paroquiana e do isolamento cultural; e é

criativo de primeira linha), até à bastante repetida

interessante encontrá-los compartilhando, ainda

explicação de que o católico neste país padece de

que por uma fração de segundos, a mesma base

uma estética paroquiana e de um isolamento cul-

intelectual do Sr. Wylie.

tural. Uns poucos sustentavam que a situação entre católicos não era pior que entre outros grupos, uma

Geralmente se supõe, e não menos entre católi-

vez que é sempre difícil encontrar mentes criati-

cos, que o católico que escreve ficção tem de usar

vas; outros tantos sustentavam que nosso tempo é

sua ficção para provar a verdade de sua fé ou, pelo

que é o responsável.

menos, provar a existência do sobrenatural. Ele

O que o ficcionista descobrirá, se é que descobrirá alguma coisa, é que ele mesmo não pode mudar ou moldar a realidade em nome de uma verdade abstrata.

pode fazê-lo. Ninguém é capaz de saber ao certo seus motivos, exceto na medida em que estes se insinuam na obra terminada; mas quando a obra terminada sugere que as ações pertinentes foram fraudulentamente manipuladas, omitidas ou abrandadas, quaisquer que tenham sido seus propósitos iniciais, eles já terão fracassado. O que o ficcionista descobrirá, se é que descobrirá alguma coisa, é que ele mesmo não pode mudar ou moldar a realidade em nome de uma verdade abstrata. O escritor aprende, talvez mais rapidamente que o leitor, a ser humilde diante daquilo que é. Aquilo

O corpo docente de uma universidade há de con-

que é é tudo o que ele possui; o concreto é o seu

siderar que esse é um problema educacional; o

meio; e ele perceberá, por fim, que a ficção pode

escritor católico há de considerá-lo um problema

transcender suas limitações somente se submeter-

pessoal. Quer seja graduado por uma faculdade

se a elas.

católica, quer não, se entende a Igreja como esta entende a si mesma, o escritor deve avaliar o que

A vida do mistério

esta lhe exige e se ela restringe sua liberdade. Sendo o material e o método da ficção o que são,

Henry James dizia que a moralidade de uma peça

o problema pode parecer maior para o escritor de

de ficção depende da quantidade de “vida sentida”

ficção do que para qualquer outro.

que há nela. O escritor católico, na medida em que tem a mente da Igreja, sentirá a vida desde a per-

Para o escritor de ficção tudo é posto à prova no

spectiva do mistério cristão central; uma vida pela

olho, um órgão que acaba envolvendo a personali-

qual, com todo o seu horror, Deus achou que valia

dade inteira e tanto do mundo quanto estiver ao seu

a pena morrer.

OUTUBRO 2013

alcance. O monsenhor Romano Guardini escreveu

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que as raízes do olho estão no coração. Em todo

Para a mente moderna, como representada pelo

caso, para o católico, aquelas raízes se estendem

Sr. Wylie, essa é uma visão deformada que “tem

até às profundezas do mistério que divide o mundo

pouca ou nenhuma relação com a verdade tal como

moderno – uma parte tenta eliminar o mistério,

a conhecemos hoje”. O católico que não escreve

enquanto a outra tenta redescobri-lo em discipli-

para um círculo limitado de irmãos católicos levará

nas pessoalmente menos exigentes que a religião.

em conta, muito provavelmente, uma vez que essa é a sua visão, que está escrevendo para um público

O que o Sr. Wylie sustenta é que o escritor católico,

hostil, e se preocupará, mais do que nunca, com


que sua obra se sustente por suas próprias pernas

onde quer que seja enfatizada de modo excessivo

e seja completa, autossuficiente e impecável por

na condição humana normal, tende, por alguma lei

seu próprio mérito. Quando as pessoas me dis-

natural, a tornar-se o seu oposto.

seram que por ser católica não podia ser artista, fui obrigada a responder com pesar, dizendo: jus-

Perdemos nossa inocência na Queda de nossos

tamente porque sou católica é que não posso me

primeiros pais, e nosso retorno a ela se dá por

dar ao luxo de ser menos que uma artista.

meio da Redenção que nos foi trazida pela morte

Ao separar tanto quanto possível natureza e graça, ele reduz sua concepção do sobrenatural a um clichê piedoso e só é capaz de reconhecer a natureza na literatura de duas formas: a sentimental e a obscena.

de Cristo e por nossa lenta participação nela. O sentimentalismo é um salto deste processo em sua realidade concreta e uma chegada precoce a um falso estado de inocência, que vigorosamente sugere seu oposto. A pornografia, por outro lado, é essencialmente sentimental, pois omite a conexão entre o sexo e seus propósitos inerentes, desconecta-o de seu sentido na vida e faz dele simplesmente um fim em si mesmo. Tem-se feito muitas queixas bem fundamentadas a respeito da literatura religiosa, no sentido de que ela tende a minimizar a importância e a dignidade da vida aqui e agora em favor da vida no outro

As limitações que qualquer escritor impõe à sua

mundo ou em favor de manifestações miraculo-

obra crescerão a partir das necessidades que se

sas da graça. Quando é produzida de acordo com

encontram no próprio material, e essas restrições

sua natureza, a ficção deve reforçar nosso senso do

geralmente serão mais rigorosas do que as que

sobrenatural fundamentando-o na realidade con-

qualquer religião poderia impor. Parte da complex-

creta observável. Se o escritor usar seus olhos na

idade do problema para o ficcionista católico será

verdadeira segurança de sua fé, ele será obrigado

a presença da Graça do modo como esta aparece na

a usá-los honestamente, e o senso do mistério e

natureza; o que importa para ele aqui é que sua fé

a aceitação dele crescerão. Olhar para o pior dos

não se separe de seu senso dramático e de sua visão

males não será para ele nada mais do que um ato de

de como são as coisas. Entretanto, nos dias de hoje,

confiança em Deus; mas o que é uma coisa para o

ninguém parece mais ansioso em separar do que

escritor pode ser outra para leitor. Aquilo que leva

aqueles católicos que exigem que o escritor limite,

o escritor à salvação pode levar o leitor ao pecado,

no plano natural, o que ele se permite ver.

e o escritor católico que vê essa possibilidade olha diretamente o rosto da Medusa e vira pedra.

Natureza e Graça na ficção Já alguém que tenha enfrentado o problema está equipado com o conselho de Mauriac: “purifique a

meio da inundação de cartas ao editor e outros

fonte”. E, junto com tal conselho, ele toma con-

lugares onde ele às vezes se revela, encontraría-

sciência de que, enquanto tenta fazer isso, tem

mos algo próximo de um maniqueu. Ao separar

de continuar escrevendo. Também fica ciente

tanto quanto possível natureza e graça, ele reduz

de fontes que, relativamente falando, parecem

sua concepção do sobrenatural a um clichê piedoso

bastante puras, mas podem dar origem a obras

e só é capaz de reconhecer a natureza na litera-

que escandalizam. O escritor pode sentir que é

tura de duas formas: a sentimental e a obscena.

igualmente pecaminoso escandalizar instruídos

Parece preferir a primeira, embora tenha mais

e ignorantes. No fim, terá de parar de escrever ou

autoridade na segunda, mas a semelhança entre

limitar-se aos problemas próprios daquilo que está

as duas geralmente lhe escapa. Ele se esquece de

criando. É a pessoa que não pode seguir nenhuma

que o sentimentalismo é um excesso, uma distor-

dessas direções que se torna a vítima, não dos

ção do sentimento, em geral na direção de uma

dogmas da Igreja, mas de uma falsa concepção das

ênfase exagerada na inocência; e essa inocência,

exigências que esta lhe faz.

OUTUBRO 2013

Se se pudesse chegar ao leitor católico médio por

59


LITERATURA

O autor deve, é claro, perceber que é sua função, não menos que da Igreja, proteger as almas da literatura perigosa.

Uma crença num dogma permanente não pode

[A tarefa de proteger as almas da literatura per-

Uma coisa é uma dimensão subtraída; outra coisa

igosa pertence propriamente à Igreja. Nem toda

é uma dimensão acrescentada, e o que o escritor e

ficção, mesmo quando atende às exigências da

o leitor católicos devem lembrar é que a realidade

arte, é adequada para o consumo de todos, e se em

da dimensão acrescentada será julgada numa obra

algum caso a Igreja considera conveniente proibir

de ficção pela veracidade e integridade no nível lit-

o fiel de ler uma obra sem permissão, o autor, se

eral dos eventos naturais apresentados. Se espera

for católico, será grato pela disposição da Igreja

revelar mistérios, o escritor católico terá de fazê-

de prestar-lhe este serviço. Isso quer dizer que ele

lo por meio de uma descrição sincera do que vê a

pode limitar-se às exigências da arte.]

partir de onde ele se encontra. Não se pode exigir

determinar o que acontece na vida do crente ou cegá-lo para essas coisas. Ela sem dúvida acrescentará à observação do escritor uma dimensão que muitos não podem, conscientemente, reconhecer; mas,enquanto o que puderem reconhecer estiver presente na obra, não podem alegar que qualquer liberdade tenha sido negada ao escritor.

dele uma visão puramente afirmativa sem limitar O autor deve, é claro, perceber que é sua função,

sua liberdade de observar o que o homem fez com

não menos que da Igreja, proteger as almas da

as coisas de Deus.

literatura perigosa. Mas no esforço para viver de acordo com as exigências legítimas de sua rotina,

Se pretendemos incentivar ficcionistas católicos,

ele saberá que nem toda ficção é adequada para

devemos convencer aqueles que seguem a Igreja

o consumo de todos. Se em alguns casos a Igreja

de que esta não lhes restringe a liberdade de ser

julgar conveniente proibir ao fiel a leitura de uma

artistas, antes a garante (as restrições da arte são

obra sem permissão, o autor católico será grato por

outra questão). Convencê-los disso requer, talvez

ter sido lembrado do senso de responsabilidade.

mais que qualquer outra coisa, um corpo de leitores

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católicos capazes de reconhecer algo na ficção além O fato é que para muitos escritores parece mais

das passagens que consideram obscenas.

fácil supor uma responsabilidade universal pelas almas do que produzir uma obra de arte; e con-

Inteligência necessária

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sidera-se melhor salvar o mundo do que salvar

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a obra. Essa visão provavelmente deve tanto ao

É bastante popular a ideia de que qualquer um que

romantismo quanto à piedade, mas o escritor não

pode ler uma lista telefônica pode ler um conto

estará propenso a acolhê-la a menos que a tenham

ou um romance, e é mais do que comum encon-

inculcado através de uma lastimável educação ou a

trar a seguinte postura entre católicos: uma vez

menos que escrever não seja sua vocação principal.

que temos a posse da verdade na Igreja, podemos

Que se lhe tenham inculcado isso pela atmosfera

usar essa verdade diretamente como um instru-

geral da piedade católica neste país é difícil de

mento para julgar qualquer disciplina a qualquer

negar, e,ainda que não seja a responsável por todos

momento sem levar em conta a natureza da dis-

os talentos assassinados ao longo do caminho, essa

ciplina propriamente dita. Leitores católicos

atmosfera é pelo menos geral o suficiente para dar

constantemente ficam ofendidos e escandalizados

um ar de credibilidade à concepção que o Sr. Wylie

por romances para cuja leitura, em primeiro lugar,

tem a respeito do que a crença num dogma faz com

não têm o mínimo preparo indispensável – e fre-

a mente criativa.

quentemente essas obras estão permeadas por um

A dimensão acrescentada

espírito cristão.

___________________________________________________

Este é o parágrafo que sofreu a alteração mencionada na nota do editor. Compare-o com o texto entre colchetes para ver o grau da intervenção feita não só no texto, mas na ideia da autora.


É quando a fé individual é fraca, não quando é forte, que o leitor temerá uma representação ficcional honesta da vida; quando há uma tendência a compartimentalizar o espiritual e a fazê-lo residente apenas em certo tipo de vida, o sentido do sobrenatural está prestes a se perder. A ficção, feita de acordo com suas próprias leis, é um antídoto a tal tendência, pois renova nosso conhecimento de que vivemos no mistério do qual extraímos nossas abstrações. O ficcionista católico, enquanto ficcionista, buscará em primeiro lugar a vontade de Deus nas leis e limitações de sua arte e esperará que, se as obedecer, as demais coisas sejam acrescentadas à sua obra. A mais bem-aventurada dessas (e a única que ele pode esperar) será a satisfação do leitor católico. Traduzido por William Campos da Cruz

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LITERATURA

Dois sonetos de Gabriela Mistral Tradução de “El Pensador de Rodin” e “La Cruz de Bistolfi”, em “Desolación” (1988)

O Pensador de Rodin

A Cruz de Bistolfi

A Laura Rodig

Cruz que ninguém observa e que todos sentimos, a invisível e certa como a grande montanha:

Com a cabeça caída sobre a mão carnuda,

dormimos sobre ti e sobre ti seguimos;

O Pensador recorda que é carne da torpeza,

teus dois braços nos ninam, tua sombra nos banha.

Carne fatal, diante do destino desnuda, Carne que odeia a morte, e então tremeu de beleza.

O amor forjou-nos leito, mas que era não mais que um vil tridente vivo e um tronco descarnado.

E tremeu de amor, sua primavera ardente,

Críamos correr livres pelos matagais

E então, no outono, afoga-se em verdade e entristece.

E nunca nos livramos de teu nó apertado.

O “todos morreremos” passa por sua mente, E em todo agudo bronze, quando o dia adormece.

De todo sangue humano fresco é teu madeiro, e, sobre ti, às chagas de meu pai queremos;

E na angústia, os músculos rendem-se, sofredores.

em seu cravo de sonho e chaga, morro inteiro.

Cada sulco em sua carne enche-se de terrores. Rende-se, como a folha de outono, ao Senhor forte

Mentira em que vivemos as noites e os dias! Como o filho à sua mãe, nós presos estivemos

que o chama nos bronzes… E não há ramo torcido

A ti, desde o teu pranto à última agonia!

do sol na campina, ou leão de flanco ferido,

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crispados como este homem que medita na morte.

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Traduzidos por Robertson Frizero


Paisagem Arcádica Exercício de Ricardo Almeida em redondilha maior realizado em uma época muito tranqüila.

Pasta o gado sobranceiro, No ar bucólico dos vales, Perto de arroios e freixos. A manhã, flor escarlate, Enrubesce ao sol fagueiro Que a desnuda, parte a parte. Ninfas, dríades silvestres, Recolhem doces amoras Ao abrigo dos ciprestes. A chuva salpica as horas Enquanto a tarde emurchece Soltando o pólen da aurora. Animais em cornucópia Fremem, cúpidos no instinto, Entre as aves merencórias. Mas o céu, tonto de vinho, Recusando a própria glória Dorme ao léu em desalinho. Pastorinhas e pastores Por alamedas de flores. Entre as cores, despedida De desbotados amores, Violetas e margaridas.

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Tocam flautas e cítaras

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