Revista Terminal #5 - Mai 2014

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REVISTA TERMINAL Número 5 - Maio de 2014 EDIÇÃO Renan Santos ARTE Renan Santos TRADUTORES Antonio Carlos Olivieri Camila Abadie Gabriel Marini Helena Yoshima Larry Martins Fernandes Leonardo Lopes Leonildo Trombela Júnior Luiz Otávio Talu Roberto Mallet

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© Revista Terminal 2014


#5

Maio de 2014



ÍNDICE

FILOSOFIA Hegel e a Tradição Hermética, Glenn A. Magee.........................................................................................................................................................................6 A arte da mentira política, Jonathan Swift.........................................................................................................................................................20 ARTE Música da Alma, Roger Scruton..............................................................................................................................................................................................................24 Sobre a defesa da Beleza, Roger Scruton..........................................................................................................................................................................35 HISTÓRIA Contra a Escola, J. T. Gatto...............................................................................................................................................................................................................38 LITERATURA O velório de Schopenhauer, Guy de Maupassant.............................................................................................................................................................45 O Homem Medíocre, Ernest Hello.............................................................................................................................................................................................49 Uma execução em Manchester, no começo do Século XVII, W. H. Ainsworth.............................................................................................54 O leitor comum, Virginia Woolf.......................................................................................................................................................................................63

MAIO 2014 5


FILOSOFIA

Hegel e a tradição hermética, Glenn A. Magee Tradução da introdução a “Hegel and the Hermetic Tradition” (2001).

“Deus somente é Deus enquanto conhece a si mesmo;

incessante pela sabedoria em vez da possessão

Seu próprio autoconhecimento é, ademais, um

final dela. A afirmação dele, todavia, é totalmente

autoconhecimento no homem e o saber do homem

coerente com as ambições da tradição hermética –

acerca de Deus que se prolonga até ao autoconhecimento

uma corrente de pensamento que deriva seu nome

humano em Deus.”

da chamada Hermetica (ou Corpus Hermeticum) –, uma coleção de tratados e diálogos gregos e lati-

— Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas. §564

nos escritos nos dois primeiros séculos da era cristã e que provavelmente contêm ideias que

Hegel como pensador hermético

vêm de muito antes. O lendário autor dessas obras

Hegel não é um filósofo. Ele não é amante ou busca-

Há impressionantes correspondências entre a filosofia hegeliana e a teosofia hermética, e não são acidentais.

dor da verdade, pois ele acredita que já a encontrou. Hegel escreve no prefácio da Fenomenologia do Espírito: “Colaborar para que a filosofia se aproxime da forma da ciência – da meta em que deixe de chamar-se amor ao saber para ser saber efetivo – é isto o que me proponho”. No fim da Fenomenologia Hegel diz ter chegado ao Conhecimento Absoluto, que ele identifica como sabedoria.

é Hermes Trismegistus (“Hermes, o três vezes

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grande”). O “hermetismo” representa uma vasta

6

A afirmação de ter atingido a sabedoria é comple-

tradição de pensamento que surgiu dos “escri-

tamente contrária à concepção original grega da

tos de Hermes” e foi expandida e desenvolvida

filosofia como amor à sabedoria, isto é, a busca

por meio da infusão de várias outras tradições.


Assim, a alquimia, a cabala, o lullismo e o misti-

e joaquimita na doutrina do Espírito Objetivo e da

cismo de Eckhart e Cusa – para citar apenas alguns

teoria da história do mundo hegelianas; imagens

exemplos – passaram a ser entrelaçados com as

alquímicas e rosacrucianas na Filosofia do Direto;

doutrinas herméticas. (Com efeito, o hermetismo

uma influência da tradição hermética da pansofia

é usado por alguns autores para se referir somente

no sistema hegeliano como um todo; um endosso

à alquimia. ) O hermetismo é às vezes chamado de

da crença hermética na philosophia perennis; e o uso

teosofia ou esoterismo; com menos precisão, é

de formas simbólicas herméticas perenes (como

frequentemente caracterizado como misticismo

o triângulo, o círculo e o quadrado) como recursos

ou ocultismo.

estruturais e arquitetônicos.

A tese deste livro é de que Hegel é um pensador

Hegel estruturou sua filosofia de maneira idêntica ao uso das “correspondências” herméticas.

1

hermético. Mostrarei que há impressionantes correspondências entre a filosofia hegeliana e a teosofia hermética, e como essas correspondências não são acidentais. Hegel estava diligentemente interessado no hermetismo: ele foi influenciado por expoentes desde a sua juventude, e ele mesmo se aliou a movimentos e pensadores herméticos ao longo da sua vida. E não é que eu simplesmente defenda que nós

A biblioteca de Hegel incluía escritos herméticos

possamos conhecer Hegel como um pensador her-

de Agrippa, Böhme, Bruno e Paracelsus. Ele leu

mético assim como podemos conhecê-lo como um

muito sobre mesmerismo, radiestesia psíquica

pensador alemão da Suábia. Não. Eu defendo que

fenomenal, premonição e feitiçaria. Ele se associou

devemos conhecer Hegel como um pensador her-

publicamente a conhecidos ocultistas, sendo um

mético ou não o entenderemos de maneira alguma.

deles Franz von Baader. Ele estruturou sua filosofia de maneira idêntica ao uso das “correspondên-

A vida e as obras de Hegel oferecem uma abundân-

cias” herméticas! Ele contou com histórias do

cia de exemplos para sustentar esta tese.

pensamento que discutiam Hermes Trimegistus, Pico della Mirandola, Robert Fludd e Knorr von

Há referências ao longo dos escritos publicados e

Rosenroth junto com Platão, Galileu, Descartes e

não publicados de Hegel endereçados a várias das

Newton. Ele declarou em suas conferências mais

figuras eminentes e movimentos da tradição her-

de uma vez que o termo “especulativo” significa a

mética. Essas referências são em grande maioria

mesma coisa que “místico”. Ele acreditava em um

aprobatórias. Isso é particularmente verdadeiro no

“Espírito do Terra” e se correspondeu com amigos

caso do tratamento que Hegel dá a Eckhart, Bruno,

tratando sobre a natureza da magia. Ele se aliou

Paracelsus e Böhme. Este último é o exemplo mais

– informalmente – a sociedades “herméticas”,

notável de todos. Hegel concede-lhe um considerável

tais como a Maçonaria e a Rosa-cruz. Até mesmo

espaço em suas Conferências sobre a História da filosofia

os rabiscos de Hegel eram herméticos, conforme

– mais espaço, aliás, do que ele concede a vários dos

veremos no capítulo 3, quando discutirmos o mis-

principais pensadores da tradição filosófica.

terioso “diagrama triangular”.

Há, além disso, numerosos elementos herméticos

Há quatro grandes períodos durante a vida de Hegel

nos escritos de Hegel. Eles incluem, de modo geral,

aos quais ele parece ter estado sob forte influência

um subtexto maçônico de “iniciação mística” na

do hermetismo, ou pelo menos buscado ativamente

Fenomenologia do Espírito; um subtexto “böhmiano”

esse hermetismo. Primeiro na sua juventude em

no famoso prefácio da Fenomenologia; uma influ-

Stuttgart, que foi de 1770 a 1788. Conforme discu-

ência cabalística-böhmiana-lulliana na Lógica;

tirei mais detalhadamente no capítulo 2, durante

elementos alquímicos-paracelsianos na Filosofia da

esse período, Württemberg era um grande cen-

Natureza; uma influência do milenarismo cabalístico

tro de interesse hermético, dado que muitos dos

1. Antoine Faivre. Access to Western Esotericism, vol. I (Albany: State University of New York Press, 1994), p. 35.

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FILOSOFIA

movimentos pietistas influenciados pelo böh-

às suas próprias conclusões com o objetivo de con-

mianismo e rosacrucianismo (Württemberg foi

seguirem fugir do ceticismo a qualquer custo.Tudo

o centro espiritual do movimento Rosa-cruz). Os

em nome do ideal especulativo de suas juventudes.

principais expoentes do pietismo – J. A. Bengel e em particular F. C. Oetinger – foram fortemente

De 1793 até 1801, Hegel trabalhou como tutor pri-

influenciados pelo misticismo alemão, pela teoso-

vado: primeiro em Berne e depois em Frankfurt.

fia böhmiana e pela cabala.

Conforme discutirei no capítulo 3, o biógrafo de

Hegel tem de ser entendido nos termos da tradição teosófica pietista de Württemberg.

Hegel, Karl Rosenkranz, referiu-se a essa época como a “fase teosófica” do desenvolvimento de Hegel. Nessa época, Hegel parece ter se tornado familiarizado com as obras de Böhme, assim como as de Eckhart e Johannes Tauler. Também durante esse período, Hegel se envolveu com círculos maçônicos. Em Jena (1801-1807), o interesse de Hegel pela teosofia continuou. Ele realizou longas conferên-

Muitos dos estudiosos de Hegel consideraram

cias de tom aprobatório sobre Böhme e Bruno.

desnecessário considerar esse meio intelectual

Ele compôs vários textos – que só chegaram a nós

da juventude do alemão. Hegel é quase universal-

de maneira fragmentada – empregando lingua-

mente conhecido como participante do contexto

gem e simbolismo herméticos (v. capítulos 3 e

da tradição filosófica alemã e só; como se fosse

4). Suas conferências sobre filosofia da natureza

somente correspondente a Kant, Fichte e Schelling.

nessa época refletem um duradouro interesse em

Desnecessário dizer que as influências de Kant,

alquimia. É provável que Schelling, que fora à Jena

Fichte e Schelling foram importantes, mas essas

pouco antes, tenha introduzido Hegel ao seu círculo

não foram as únicas a serem exercidas sobre Hegel.

de amigos, que incluía uma porção de românticos

Parte da razão de terem esquecido de mencionar ou

fortemente interessados no hermetismo. O próprio

ignorado as outras fontes é que poucos estudiosos

Schelling era um ávido leitor de Böhme e Oetinger e

estão familiarizados com as complexidades da vida

provavelmente encorajou esse interesse de Hegel.

religiosa alemã do século XVIII. Os que estão familiarizados são quase sempre oriundos de outras

O último período “hermético” da vida de Hegel foi

disciplinas não-filosóficas e quase sempre ale-

em Berlim, indo de 1818 até a sua morte em 14 de

mães. (O estudo do pietismo alemão é um terreno

novembro de 1831. Isso vai contra o que se espera.

quase exclusivo dos germanófonos.) A vida reli-

Pode-se supor que o hermetismo de Hegel tenha

giosa e intelectual de Württemberg é, portanto, o

sido uma mera aberração de juventude superada

lugar óbvio para se começar a entender as próprias

pelo “arquirracionalista” conforme ele foi ama-

origens intelectuais de Hegel, suas ideias caracte-

durecendo. Supreendentemente, parece que é

rísticas e seus objetivos.

precisamente o contrário. Em Berlim, Hegel formou

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uma amizade com Franz von Baader, o principal

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Hegel tem de ser entendido nos termos da tradição

místico e ocultista da época. Juntos eles estuda-

teosófica pietista de Württemberg – ele não pode

ram Meister Eckhart. O prefácio à edição de 1827

ser simplesmente visto como crítico de Kant. Com

da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio

efeito, Hegel, conforme argumentarei, sempre foi

cita proeminentemente Böhme e Baader. Sua edi-

um crítico de Kant e nunca um admirador sincero,

ção revisada de 1832 de A Ciência da Lógica corrige

precisamente por que ele foi logo cedo “mar-

uma passagem para poder incluir uma referência a

cado” pela tradição da pansofia, que estava muito

Böhme. Seu prefácio à edição de 1821 da Filosofia do

viva em Württemberg e pelo ideal de Oetinger da

Direito inclui imagens alquímicas e rosacrucianas.

verdade como um Todo (v. capítulo 2). Ele não

Em suas Conferências sobre a Filosofia da Religião

pôde aceitar o ceticismo de Kant, tampouco pôde

de 1831 vê-se a influência do místico Joaquim de

Schelling– e por razões idênticas. Ainda assim,

Fiore, assim como certas estruturas corresponden-

ambos reconheceram a força do pensamento de

tes ao pensamento de Böhme. Em suma, todas as

Kant e trabalharam duro para partirem das pre-

evidências indicam que, no último período da sua

missas do pensador de Konigsberg até chegarem

vida, o interesse de Hegel pelas tradições mística e


hermética se intensificou, além de ele ter se tornado

que a nova filosofia veio direto da escola dos anti-

mais ousado ao se alinhar publicamente a movi-

gos místicos, especialmente de Jakob Böhme?”2.

mentos e pensadores herméticos.

Outro hegeliano, Hans Martensen, autor de um

Schelling acusou Hegel publicamente de ter extraído muito da sua filosofia de Jakob Böhme.

dos primeiros estudos acadêmicos sobre Meister Eckhart, observou que “O misticismo alemão é a primeira forma pela qual a filosofia alemã se revelou na história do pensamento” (“filosofia” para os hegelianos geralmente significa a filosofia de Hegel)3. Willhelm Dilthey observou a mesma continuidade entre o misticismo alemão e a filosofia especulativa.4

As divisões da filosofia de Hegel seguem um padrão que é típico de várias formas da filosofia e da mística

Possivelmente o mais famoso estudo sobre os

hermética. A Fenomenologia representa um estágio

aspectos herméticos em Hegel feito no século

inicial de “purificação” da ascensão do espírito

XIX foi Die christlich Gnosis (1835) 5 de Ferdinand

acima do nível do sensitivo e do mundano, uma

Christian Bauer. A obra de Bauer foi uma das pri-

preparação para a recepção da sabedoria. A Lógica

meiras a tentar definir o gnosticismo e distinguir

é a equivalente à “ascensão” hermética ao nível

suas diferentes formas. O termo gnóstico é usado de

da pura forma, do eterno, do “Espírito Universal”

maneira muito dissoluta mesmo na nossa época, e

(Ideia Absoluta). A Filosofia da Natureza descreve

muito frequentemente o que seria mais apropria-

uma “emanação” ou “alienação” do Espírito

damente nominado como “hermético” acaba por

Universal na forma do mundo espaço-temporal.

ser taxado de “gnóstico”. (Discutirei a diferença

Suas categorias cumprem uma transfiguração do

entre os dois na próxima seção). Após uma longa

natural: nós passamos a ver o mundo como reflexo

discussão sobre o gnosticismo na antiguidade,

do Espírito Universal. A Filosofia do Espírito efe-

Bauer argumenta que Jakob Böhme foi um gnós-

tua um “retorno da natureza criada ao Divino por

tico moderno e que Schelling e Hegel podem ser

meio do homem, que pode se elevar acima do mero

vistos como herdeiros intelectuais de Böhme e,

natural e ‘atualizar’ Deus no mundo por meio das

portanto, gnósticos. A obra Die christliche Gnosis é a

formas concretas de vida (e.g., o Estado e a reli-

coisa mais próxima de um livro sobre Hegel e a tra-

gião) e pela filosofia especulativa.

dição hermética que foi publicado, embora, como já disse, o foco de Bauer tenha sido o gnosticismo e

Os estudos sobre Hegel e a tradição hermética

não o hermetismo6. Em 1835, Ludwig Noack publicou uma obra em dois volumes, Die Christlich Mystik

É importante salientar que essas afirmações não

nach ihrem geschichtlichen Entwicklungsgange im

seriam particularmente controversas nas décadas

Mittelalter und in der neueren Zeit dargestellt, onde ele

que se seguiram à morte de Hegel. Na década de

trata os idealistas como representantes modernos

1840, Schelling acusou Hegel publicamente de ter

do misticismo.

extraído muito da sua filosofia de Jakob Böhme. Um dos discípulos de Hegel, Friedrich Theodor

Discussões ulteriores acerca da ligação de Hegel

Vischer, uma vez perguntou: “Vocês se esqueceram

com o hermetismo são frequentemente ligadas a

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2. v. Ernst Benz, The Mystical Sources of German Romantic Philosophy, trad. Blair R. Reynolds e Eunice M. Paul (Allison Park, Pa.: Pickwick Publications, 1983), p. 2. 3. Ibid., p. 2. 4. Ibid., p. 2. 5. A bibliografia (presente no final da obra) contém todas as informações sobre todas as obras mencionadas nesta introdução. Em geral,

6. M. M. Cottier refere-se à filosofia de Hegel como “Une Gnose christologique” [uma cristologia gnóstica] em seu L’Atheisme Du Jeune Marx: Ses Origines Hegeliennes (Paris: Vrin, 1969), pp. 20-30. Eric Voegelin também defendeu, de maneira crítica, que Hegel é um “pensador gnóstico”, por exemplo, em Science, Politics, and Gnosticism (Washington, D.C.: Regnery Gateway, 1968), pp. 40-44, 67-80.

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eu mencionei apenas livros aqui. Na bibliografia, tanto livros quanto artigos estão listados.

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FILOSOFIA

discussões similares acerca de Schelling. Acontece

sobre a relação de Hegel com as sociedades secre-

isso com a obra Mystical Sources of German Romantic

tas herméticas, tais como a Maçonaria, Illuminati

Philosophy de Ernst Benz, que é breve, mas

e Rosa-cruz.

considerada indispensável pelos principais estudiosos da área. Em 1938, o estudioso alemão Robert

Há também em inglês um importante corpo de

Schneider publicou Schellings und Hegels scbwäbis-

obras sobre Hegel e o misticismo, que começa

che Geistesahnen em Würzburg. Muitas das cópias

com The Mystical Element in Hegel’s Early Theological

do livro de Schneider foram destruídas durante o

Writings (1910) de George Plimpton Adams.

bombardeio das tropas aliadas a Würzburg em 16 de

Frederick Copleston também foi autor de um valioso

março de 1945. Schneider foi destruído junto com

artigo intitulado “Hegel and the Rationalization of

elas. Seu livro é um valoroso estudo sobre o pietismo

Mysticism” [Hegel e a Racionalização do Misticismo]

teosófico prevalecente em Württemberg durante as

em 1971. Provavelmente, o intérprete de língua

juventudes de Hegel e Schelling.

inglesa mais lido, J. N. Findlay, era ele mesmo um

A abordagem mais influente em língua inglesa sobre o hermetismo de Hegel vem de Eric Voegelin.

teosofista, e sua interpretação de Hegel está sintonizada com os aspectos místicos e herméticos da obra hegeliana. Na obra Hegel: A Re-Examination (1958), Findlay sugere tentadoramente que Hegel foi um “representante no século XIX de parte da philosophia Germanica perennis”7. A biografia intelectual de dois volumes escrita por H. S. Harris intitulada Hegel’s Development (1972/1983) contém

Outras obras de autores alemães que lidam com a

digressões acerca da relação de Hegel com Eckhart,

relação do misticismo ou hermetismo com o idea-

Böhme, Baader e a alquimia. Recentemente, Cyril

lismo alemão e Hegel são Meister Eckhart der Vater der

O’Regan publicou um inovador estudo sobre as

Deutschen Spekulation. Ein Beitrag zu einer Geschichte

raízes místicas da filosofia de Hegel intitulado The

der deutschen Theologie und Philosophie der mittleren

Heterodox Hegel (1994).

Zeit (1864) de Josef Back; Geschichte der Entdeckung der deutschen Mystiker, Eckhart, Tauler u. Seuseim 19.

Até o momento, entretanto, a abordagem mais

Jahrhundert (1931) de Gottfried Fischer; Die idealistis-

influente em língua inglesa sobre o hermetismo

che Philosophie und das Christentum (1926) de Emanuel

de Hegel vem de Eric Voegelin. Em seu ensaio

Hirsch; Philosophie und Theologie im Spätidealismus,

“Response to Professor Altizer’s ‘A New History and a

Forschungen zur Auseinandersetzung von Christentum

New but Ancient God’”, Voegelin admite: “Por um

und idealistischer Philosophie im 19.Jahrhundert (1919)

longo tempo eu evitei calculadamente tecer qual-

e Von Jakob Boehme zu Schelling. Zur Metaphysik des

quer crítica séria sobre Hegel em minhas obras

Gottesproblems (1927) de Fritz Leese; Die Religion des

publicadas, pois eu simplesmente não conse-

Deutschen Idealismus und ihr Ende (1923) de Wilhelm

guia entendê-lo”. Isso mudou quando Voegelin,

Lütgert e Die Anfange der Philosophie des deutschen

em seu estudo sobre gnosticismo, descobriu que

Idealismus (1930) de Heinrich Maier. Há também

“Hegel foi considerado pelos seus contemporâneos

um considerável número de obras holandesas tra-

um pensador gnóstico”. Voegelin segue e afirma

tando do assunto: Schelling, Hegel, Fechner en de

que o pensamento de Hegel “pertence à contínua

nieuwere theosophic (1910) de G. J. R J. Bolland; Het

história do hermetismo moderno que vem desde

mystieke karakter van Hegel’s logica de J. d’Aulnis de

o século XV”8. A principal afirmação de Voegelin,

Bourrouill’s e Hegeliaansch-theosofische opstellen

entretanto, encontra-se no ensaio ferozmente

(1913) de H. W. Mook.

polêmico “On Hegel: A Study in Sorcery” [Sobre

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Hegel: Um estudo em feitiçaria], onde ele se refere

10

Em francês, a obra Hegel Secret (1968) de Jacques

à Fenomenologia do Espírito como um “grimório”

d’Hondt é um estudo extremamente importante

que “deve ser tomado como uma obra de mágica,

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7. J. N. FIndlay, Hegel: A Re-Examination (New York: Oxford University Press, 1958), p. 49. 8. Eric Voegelin, “Response to Professor Altizer’s ‘A New History and a New but Ancient God’” em Collected Works of Eric Voegelin, vol. 12, Published


pois, com efeito, ela [a obra] é uma das grandes

pensador hermético que levasse em conta não ape-

performances de mágica” .

nas sua evolução intelectual, mas também todo o

9

É uma das grandes ironias da história que o ideal hermético do homem como mago tenha sido o protótipo do cientista moderno.

seu sistema já amadurecido.11 Considero esta obra não apenas uma continuação da tradição de estudos que citei acima, mas também uma contribuição para o contínuo projeto da história das ideias cujos pioneiros foram Eric Voegelin, Frances Yates, Antoine Faivre, Richard Popkin, Allan Debus, Betty Jo Teeter Dobbs, Paul Oskar Kristeller, D. P. Walker, Stephen McKnight

As afirmações de Voegelin são ímpares, na medida

e Alison Coudert (v. bibliografia). Esses estudiosos

em que ele não diz simplesmente que Hegel foi

argumentam que o hermetismo influenciou vários

influenciado pela tradição hermética. Ele afirma

dos principais pensadores racionalistas, tais como

que Hegel era parte da tradição hermética e não

Bacon, Descartes, Spinoza, Leibniz e Newton, e

pode ser bem compreendido como alguém fora

desempenhou até então um papel pouco apreciado

dela. Infelizmente Voegelin nunca desenvolveu

na formação das ideias centrais e ambições da filo-

adequadamente sua tese. Ele nunca pronunciou

sofia moderna e das ciências, particularmente o

em detalhes de que forma Hegel era um pensador

projeto de investigação científica progressiva e do

hermético. Voegelin, contudo, encorajou outros

domínio tecnológico da natureza.12

estudiosos a desenvolver sua tese de maneira mais sistemática (e sóbria). David Walsh, por exem-

É certamente uma das grandes ironias da história

plo, escreveu uma importante tese de doutorado

que o ideal hermético do homem como mago – que

intitulada The Esoteric Origins of Modern Ideological

atinge o conhecimento total e empunha poderes

Thought: Boehme and Hegel (1978) onde ele faz for-

divinos a fim de trazer a perfeição ao mundo – tenha

tes colocações acerta da dívida que Hegel tem com

sido o protótipo do cientista moderno. Ainda, con-

Böhme10. Gerald Hanratty também publicou um

forme escreveu Gerald Hanratty, “a disseminação

extenso ensaio divido em duas partes intitulado

do apelo às técnicas mágicas e alquímicas inspira-

“Hegel and the Gnostic Tradition” [Hegel e a tra-

ram uma nova confiança nos poderes operacionais

dição gnóstica](1984-87).

do homem. Em contraste com as atitudes passivas e contemplativas que geralmente prevaleciam

Até a presente obra, apesar de toda essa atividade

durante os primeiros séculos, os alquimistas e

acadêmica, ainda não houve um escrito sistemati-

magos da Renascença afirmaram seus domí-

zado, do tamanho de um livro, sobre Hegel como

nios sobre todos os níveis do ser”. O hermetismo

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Essays, 1966-1985, ed. Ellis Sandoz (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1990), p. 297. 9. Eric Voegelin, “On Hegel: A Study in Sorcery”, Published Essays, 1966-1985, p. 222; cf. Science, Politics, and Gnosticism, p. 68-69 e em seu Order and History, vol. 5, In Search of Order (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1987), pp. 54-70. 10. v. David Walsh, The Esoteric Origins of Modern Ideological Thought: Boehme and Hegel (Dissertação de Ph.D., University of Virginia, 1978). v. também The Mysticism of Innerworldly Fulfillment: A Study of Jacob Böhme (Gainesville: University Presses of Florida, 1983), “The Historical Dialectic of Spirit: Jacob Böhme’s Influence on Hegel” em History and and System: Hegel’s Philosophy of History, ed. Robert L. Perkins (Albany: State University of New York Press, 1984), p. 28 e “A Mythology of Reason: The Persistence of Pseudo-Science in the Modern World” em Science, PseudoScience, and Utopianism in Early Modern Thought, ed. Stephen A. McKnight (Columbia: Universityof Missouri Press, 1992). 11. Além dos escritos publicados de Hegel, as fontes primárias às quais recorri incluem cartas, manuscritos, notas tomadas em conferências, notas de alunos e relatórios feitos por seus contemporâneos acerca das observações orais do próprio Hegel. As notas tomadas por alunos foram publicadas como Zusätse na Enciclopédia das Ciências Filosóficas e nas edições publicadas das conferências de Hegel sobre história da filosofia, arte, religião e história do mundo, que em grande parte foram publicadas a partir de notas tomadas pelos alunos.

de Leibniz pelo rosacrucianismo, cabala e alquimia e da fascinação que Newton tinha com o milenarismo e com a alquimia, há evidências também de que Kant estava interessado nas visões de Emanuel Swedenborg; de que Schelling estava interessado em Böhme, Swedenborg e Mesmer; de que Schopenhauer estava interessado em Böhme, Swedenborg e Lavater; de que William James estava interessado em

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12. Além do uso da imagética rosacruciana por Bacon, da procura que Descartes fez à Rosa-cruz, da dívida de Spinoza à cabala, da fascinação

11


FILOSOFIA

substitui o amor à sabedoria pelo desejo de poder.

Deus judaico-cristão. De acordo com a tradição de

Conforme veremos, o sistema hegeliano é a derra-

pensamento judaico-cristã, Deus transcende com-

deira expressão dessa busca pelo controle.

pletamente a criação e está distante dela14 . Além

Na verdade, o hermetismo é difícil de se definir rigorosamente.

disso, Deus é totalmente autossuficiente e, portanto, não precisava ter criado o mundo, de modo que Ele não teria perdido nada se não o houvesse criado. Desta maneira, o ato da criação é essencialmente gratuito e livre de qualquer interesse próprio. Deus cria da pura abundância, não da necessidade. Essa doutrina se mostrou insatisfa-

O que é o hermetismo?

tória – ou até mesmo perturbadora – para muitos, pois segundo esses que se perturbam, isso torna a

Se Hegel pode ou não ser entendido como

criação arbitrária e absurda. O panteísmo, ao con-

“hermético” depende de como é definido o her-

trário, envolve totalmente o divino no mundo, de

metismo. Na verdade, o hermetismo é difícil de

modo que tudo se torna Deus, até mesmo a lama, os

se definir rigorosamente. Seus adeptos tendem a

pelos e o pó, de maneira que o divino é abstraído da

compartilhar certos interesses – frequentemente

sua exaltação e sublimidade. Sendo assim, o pan-

classificados como “ocultos” ou “esotéricos” –

teísmo é igualmente insatisfatório.

que são mantidos juntos apenas por familiaridade. Em parte, meu argumento para o hermetismo de

O hermetismo é uma posição intermediária, pois

Hegel reside em demonstrar que os interesses de

afirma tanto a transcendência do mundo quanto

Hegel coincidem com a curiosa mistura de interes-

seu envolvimento nele. Deus é metafisicamente

ses típicas dos herméticos. Dentre esses interesses

distinto do mundo, mas ainda assim Ele precisa do

podemos incluir alquimia, cabala, mesmerismo,

mundo para se completar. Assim, o ato da criação

percepção extra-sensorial, espiritualismo, radies-

não é gratuito ou desinteressado, mas necessário

tesia, escatologia, prisca teologia, philosophia

e racional, segundo o hermetismo. Considere esse

perennis, lullismo, paracelsimo, joaquinismo, rosa-

trecho do “Discurso de Hermes a Tat: O receptá-

crucianismo, maçonaria, misticismo eckhartiano,

culo de mistura ou a mônada” (Corpus Hermeticum

sistemas secretos de simbolismo de “correspon-

IV): “Se me forçares a dizer algo mais atrevido, é

dências”, vitalismo e “simpatias cósmicas”.

essencial [Deus] estar prenhe de todas as coisas

13

para fazê-las. Como é impossível que se crie algo Há, entretanto, um aspecto essencial que toma-

sem um criador, também é impossível a esse cria-

rei como definitivo do hermetismo. Ernest Lee

dor não existir a menos que ele esteja o tempo todo

Tuveson, na obra The Avatars of Thrice Greatest

criando tudo… Ele próprio é as coisas que são e

Hermes: An Approach to Romanticism sugere que o

aquelas que não são”15. Considere também o Corpus

hermetismo constitui uma posição intermedi-

Hermeticum X: “A atividade de Deus é a vontade e

ária entre as concepções do deus panteísta e do

Sua essência é querer que todas as coisas sejam”16.

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Swedenborg, Fechner, espiritualismo e percepção extra-sensorial; de que C. S. Peirce estava interessado em Swedenborg e Böhme; de que C. D. Broad estava interessado em percepção extra-sensorial; e, nos dias de hoje, de que Michael Dummett está interessado em cartas de tarô (Michael Dummett, The Visconti-Sforza Tarot Cards [New York: G. Braziller, 1986]). 13. Antoine Faivre escreve que o hermetismo passou a ser usado para “designar a atitude geral do espírito [ou mentalidade] que subjaz a uma variedade de tradições e/ou correntes paralelas à alquimia, tais como hermetismo [a religião do Corpus Hermeticum], astrologia, cabala, teosofia cristã e philosophia oculta ou magia (no sentido que essas duas palavras adquiriram na Renascença, isto é, de uma visão mágica da natureza que a entendia como um ser vivo repleto de sinais e correspondências que poderiam ser decifradas e interpretadas)”. v. Faivre, “Renaissance Hermeticism and Western Esotericism” em Gnosis and Hermeticism, ed. Roelof van den Broek e Wouter J. Hanegraaf (Albany: State University of New York Press, 1998), p. 110. Faivre faz uma distinção entre “hermeticismo” e “hermetismo”, sendo que este último designa

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o Corpus Hermeticum e seu meio intelectual.

12

14. Nota do tradutor: É salutar notar que isso na verdade seria o “deísmo”. Na crença católica tem-se a Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo, e os Sacramentos que, mais do que próximos, vão até o âmago de cada um. 15. Hermetica, trad. Brian Copenhaver (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), p. 20


Finalmente, considere o Corpus Hermeticum XIV:

também deseja ser conhecido pela mais gloriosa

“Esses dois representam tudo que há: o que vem

das Suas criações: o Homem”21. Resumidamente,

a ser e o que o faz; e é impossível separá-los um

é o objetivo do homem conquistar o conhecimento

do outro. Nenhum criador pode existir sem algo

de Deus (ou “a sabedoria de Deus”, teosofia). Ao

que está por vir”17. Assim, de acordo com o her-

fazer isso, o homem atende à própria necessidade

metismo, Deus precisa da criação para ser Deus . Essa

de Deus de ser reconhecido. A sabedoria humana

abordagem hermética da criação é central também

de Deus se torna o conhecimento de Deus de si

ao pensamento hegeliano.

mesmo. Desta maneira, a necessidade pela qual

18

Para o hermetismo, o homem pode conhecer Deus, e o conhecimento do homem sobre Deus é necessário para a completude deste Deus.

o cosmo é criado é a necessidade do autoconhecimento, atingido por meio do reconhecimento. Variações dessa doutrina podem ser encontradas ao longo da tradição hermética. É importante entender o significado dessa doutrina na história das ideias. Na abordagem judaico-cristã da criação, a criação do mundo e a ordem de Deus para que a humanidade busque conhece-Lo e amá-Lo parece arbitrária, pois não há razão para que um ser perfeito deva querer ou precisar de algo22. Para

Mas não para por aí: os herméticos não só defen-

os herméticos, a grande vantagem dessa concepção

dem que Deus requer uma criação, como também

é que ela nos diz porque o cosmos e o desejo humano

tornam uma criatura específica, o homem, um

de conhecer Deus existem em primeiro lugar.

agente crucial na auto-atualização de Deus. O hermetismo defende que o homem pode conhecer

Essa doutrina hermética da relação “circular” entre

Deus, e que o conhecimento do homem sobre Deus

Deus e a criação e a necessidade do homem para

é necessário para a completude deste mesmo Deus.

a completude de Deus é completamente original.

Considere as palavras do Corpus Hermeticum X:

Não se acha essa concepção na filosofia. Todavia,

“Deus, pois, não ignora a humanidade; ao contrá-

ela é recorrente no pensamento hermético e é a

rio, ele reconhece-se nela completamente e deseja

principal identidade doutrinal entre o hermetismo

ser reconhecido. Para a humanidade, essa é a única

e o pensamento de Hegel.

libertação: o conhecimento de Deus. É a ascensão ao Olimpo”19. No Corpus Hermeticum XI pergunta-

Com efeito, ele é frequentemente descrito como

-se “Quem é mais visível que Deus? Eis por que ele

um místico; de fato, até ele mesmo se descrevia

fez todas as coisas: para que por meio de todas elas

como um (v. capítulo 4). Mas o misticismo é um

você possa olhar para ele”20. Como observa Garth

conceito elástico que se insere em várias ideias

Fowden, o que Deus ganha da criação é o reconhe-

radicalmente diferentes; Todas as formas de

cimento: “A contemplação humana de Deus é de

misticismo buscam de alguma maneira o conhe-

alguma maneira um processo de mão dupla. Não

cimento, a experiência ou a unidade com o divino.

apenas o Homem deseja conhecer Deus, mas Deus

Se nos perguntarmos que tipo de místico Hegel

___________________________________________________

16. Ibid., p. 30. 17. Ibid., p. 56. 18. Tuveson, entretanto, vai muito além quando identifica essa posição com o hermetismo stricto sensu e rejeita outros aspectos – tais como o interesse em alquimia e correspondências – como se fossem “acidentais” ou “não verdadeiramente” herméticos. Ernest Lee Tuveson, The Avatars of Thrice Great Hermes: Na Approach to Romanticism (Lewisburg, Pa.: Bucknell University Press, 1982), p. 15-16; p. 34. 19. Copenhaver, p. 33. 20. Ibid., p. 42.

22. Nota do tradutor: É precisamente a gratuidade, pelo menos no cristianismo, a essência primeira do amor. O autor aparentemente quis deixar a entender que há aqueles que só acreditam em amor se houver algum interesse escuso.

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21. Garth Fowden, The Egyptian Hermes: A Historical Approach to the Late Pagan Mind (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1986), p. 104.

13


FILOSOFIA

é, a resposta será: um hermético. O hermetismo

coloca Pico della Mirandola, “aquele que se conhece,

é frequentemente confundido com outra forma

conhece todas as coisas em si”25. Além disso, no

de misticismo: o gnosticismo (especialmente nos

Oriente Próximo era comum retratar Deus como um

recentes estudos sobre Hegel) . Tanto o gnosti-

ser pairando estranhamente entre a transcendência

cismo quanto o hermetismo acreditam que uma

e a imanência. Nesses termos, a conquista da ilumi-

“centelha” divina está presente no homem, e que

nação envolvia de alguma maneira ver o divino em

23

A salvação para os herméticos se dá por meio da gnosis.

si mesmo, tornando-se também o conhecedor neste mesmo ato [um ser] divino. Nós realmente não sabemos se o culto de Hermes empregou os textos herméticos como escritos sagrados. Sabemos pouco ou quase nada dos seus

ele pode vir a conhecer Deus. Entretanto, o gnosti-

ritos de iniciação e de como eles viveram. Contudo,

cismo dá uma abordagem absolutamente negativa

podemos dizer, por exemplo, que a iniciação

da criação. Ele não considera a criação parte do

hermética se difere da iniciação aos mistérios

ser de Deus ou como algo que dá a “completude”

eleusinos da Grécia Clássica. É fato também que

a Deus, tampouco considera que Deus de alguma

pouco sabemos sobre o que acontecia em Elêusis,

forma precise do homem para conhecê-Lo. O her-

mas parece ser o caso que a iluminação lá consis-

metismo também é frequentemente confundido

tia na participação em algum tipo de experiência

com o neoplatonismo. Como os herméticos, Plotino

arrebatadora cuja intenção era mudar permanen-

considera que o cosmos é um processo circular em

temente o iniciado26. Não sabemos qual era essa

que o Um emana e tudo a Ele retorna. Diferente

experiência, mas sabemos que ela podia acontecer

dos herméticos, Plotino não considera que o Um

com jovens e velhos, ricos e pobres, educados e

é completo pela contemplação que o homem faz

analfabetos. Não é esse o caso quando falamos da

Dele. (Séculos depois, porém, o neoplatonismo

tradição hermética. A salvação para os herméticos

de Proclo e da Renascença foi influenciado pelo

se dá, conforme vimos, por meio da gnosis, ou seja,

hermetismo.)

pelo conhecimento. Isso pode ser atingido somente por meio do trabalho duro e, portanto, só alguns

Outro paralelo entre o hermetismo e Hegel é o pro-

conseguem. Hermes é citado no Corpus Hermeticum

cesso de iniciação pelo qual a porção intuitiva do

XVI afirmando que seus ensinamentos “mantêm

intelecto é treinada para ver a Razão inerente ao

oculto o significado das palavras”, escondido do

mundo. Como observa Fowden, a iniciação hermé-

discernimento daqueles que não merecem.

tica parece dividir-se em duas partes: uma lida com o autoconhecimento e a outra com o conhecimento

Seria um erro, contudo, tratar a iniciação her-

de Deus24. Pode ser facilmente mostrado no sim-

mética como algo puramente intelectual. A

ples nível teórico que essas duas estão intimamente

iluminação não ocorre ao simplesmente aprender

ligadas, segundo os herméticos. Conhecer verda-

um conjunto de doutrinas. O iniciado não deve

deiramente a si é estar apto a fazer um discurso

apenas conhecer a doutrina, mas também deve

completo sobre as condições do próprio ser, e isso

ter a experiência real da verdade da doutrina. Ele

envolve falar sobre Deus e todo o Seu cosmos. Como

deve ser cuidadosamente guiado à iluminação;

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23. Veja, por exemplo, Gerald Hanratty, “Hegel and the Gnostic Tradition I”, Philosophical Studies (Irlanda), p. 30 (1984): pp. 23-48; “Hegel and the Gnostic Tradition II”, Philosophical Studies (Irlanda), p. 31 (1986-1987), p. 301-325; Jeff Mitscherling, “The Identity of the Human and the Divine in the Logic of Speculative Philosophy” em Hegel and the Tradition: Essays in Honor of H. S. Harris, ed. Michael Baur e John Russon (Toronto: University of Toronto Press, 1997), pp. 143-161. O entendimento que Mitscherling tem do gnosticismo deriva do Colóquio de Messina sobre as Origens do Gnosticismo. Todavia, como observa Roelof van denBroek, o Colóquio de Messina define o gnosticismo de maneira tão ampla

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“que ele perde toda a substância concreta”. V. Broek, “Gnosticism and Hermetism in Antiquity” em Gnosis and Hermeticism, p.4.

14

24. Fowden, The Egyptian Hermes, p. 106. 25. Giovanni Pico della Mirandola, Oration on the Dignity of Man, trad. A. Robert Caponigri (Chicago: Regnery Gateway, 1956), p. 28. 26. Joseph Campbell, Transformation of Myth Through Time (New York: Harper and Row, 1990), p. 189.


com efeito, ele deve explorar os becos escuros que

o “propósito ou os agentes do seu devir” são seres

prometem a iluminação, mas não a dão. Apenas

humanos perfeitos. Se Hegel não acreditava que

dessa maneira, irá a verdadeira doutrina significar

o homem podia literalmente se tornar Deus, ele

algo; apenas dessa maneira mudará de fato a vida

certamente acreditava que o homem sábio era

do iniciado. Fowden afirma que a iniciação hermé-

daimônico: um participante muito mais do que

tica é encarada como “uma experiência verdadeira

meramente humano na vida divina.

que expande todas as capacidades daqueles que embarcam nela” e cita o Corpus Hermeticum IV, que diz que “é um caminho extremamente tortuoso abandonar aquilo a que se está acostumado e se possui agora para e retraçar os próprios passos rumo às antigas coisas primordiais”27. Veremos no capítulo 4 que Hegel preserva tanto a importância intelectual quanto a emocional dessa concepção hermética de iniciação.

Todo indivíduo é um elo cego na cadeia da absoluta necessidade ao longo do qual o mundo se desenvolve. No Corpus Hermeticum, encontramos uma “posição

A iluminação, tanto para os autores da Hermetica

de ligação” entre o ocultismo egípcio e o her-

quanto para Hegel, não é apenas um evento

metismo moderno de Hegel e outros. Em vez de

intelectual: espera-se que ela mude a vida do ilu-

conceber as palavras como portadoras de poderes

minado. A filosofia, para Hegel, trata-se de ser

ocultos, elas passaram a ser vistas como portado-

vivenciada 28 . Em suma, o homem que atinge a

ras de um tipo de capacitação existencial. O ideal

Selbstbewusstsein é o homem que se torna selbs-

da teosofia hermética se torna a formulação de

tbewusst: confiante, auto-atualizado e não mais

um “discurso completo” (teleeis logos, “discurso

um ser humano ordinário. Klaus Vondung escreve

perfeito” ou talvez “discurso enciclopédico”, que

que “O hermético não precisa escapar do mundo

significa, evidentemente, discurso “circular”).

para se salvar. Ele quer adquirir conhecimento do

Quando adquirido, o discurso completo que trata

mundo para poder expandir a si mesmo e utilizar

do todo da realidade, transformará e capacitará a

esse conhecimento para penetrar no eu divino. O

vida do iluminado. Assim escreve Hegel em um

hermetismo é uma gnosis positiva, por assim dizer,

fragmento preservado por Rosenkranz:

devota ao mundo . Saber tudo é de alguma maneira 29

ter controle sobre tudo. É isso que eu chamo do

Todo indivíduo é um elo cego na cadeia da absoluta

ideal do homem como mago, concepção única da

necessidade ao longo do qual o mundo se desen-

Hermetica. Veja, por exemplo, o Corpus Hermeticum

volve. Todo indivíduo pode elevar-se para dominar

IV: “Todos aqueles que ouviram a proclamação e

uma grande parte dessa cadeia, mas apenas se ele

se imergiram no espírito [nous] participaram do

compreender o objetivo dessa grande necessidade

conhecimento e se tornaram perfeitos [ou “com-

e, por virtude do seu conhecimento, aprender a

pletos”, teleioi], pois receberam espírito. Mas

falar as palavras mágicas que evocam sua forma.

aqueles que perderam o ponto de proclamação são

Há um conhecimento para simultaneamente

pessoas de razão [ou “discurso”, logikon] porque

absorver e se elevar acima da energia total do sofri-

não receberam o [dom do] espírito e também não

mento e da antítese, que dominou o mundo e todas

conhecem o propósito ou os agentes da sua ida ao

as formas do seu desenvolvimento por milhares de

nous” . Em outras palavras, os homens de com-

anos; esse conhecimento pode ser obtido somente

pleto autoconhecimento que conhecem até mesmo

na filosofia.31

30

___________________________________________________

27. Fowden, The Egyptian Hermes, p. 106. 28. H.S. Harris, Hegel’s Development, vol. 2, Night Thoughts (Oxford: Oxford University Press, 1983), p. 191.

Thought, ed. Stephen McKnight, (Columbia: University of Missouri Press, 1992), p. 132. 30. Copenhaver, p. 16-17; grifos meus.

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29. Vondung, “Millenarianism, Hermeticism, and the Search for a Universal Science”. In Science, Pseudo-Science, and Utopianism in Early Modern

15


FILOSOFIA

Outro paralelo entre o hermetismo e Hegel é a

tornaram características constantes na tradição

análise do divino em um conjunto de “modos”

hermética podem ser listadas da seguinte maneira:

Os herméticos não se contentam com a ideia de um Deus incognoscível.

1. Deus requer a criação para poder ser Deus.

ou “momentos”. Os herméticos não se conten-

3. A iluminação trata-se de capturar o todo da rea-

tam com a ideia de um Deus incognoscível. Em vez

lidade em um discurso completo e enciclopédico.

2. Deus é, em algum sentido, “completado [pelo homem]” ou tem uma necessidade de ser preenchido pela contemplação do homem a Ele.

disso, eles buscam penetrar no mistério divino. Eles afirmam que é possível conhecer Deus de

4. O homem pode se aperfeiçoar através da gno-

maneira fragmentada quando passa-se a enten-

sis: ele ganha poder por meio da posse do discurso

der os diferentes aspectos do divino. O melhor

completo.

exemplo é a Cabala, tanto na sua forma judaica quanto na cristã. Lúlio, Bruno, Paracelsus, Böhme,

5. O homem pode conhecer aspectos ou “momen-

Oetinger e vários outros na tradição hermética sus-

tos” de Deus.

tentam essa crença. 6. Necessita-se de um estágio inicial de purificação Outro paralelo entre o hermetismo e Hegel é a dou-

para purificar o iniciado de falsos pontos de vista

trina das relações internas. Para os herméticos, o

intelectuais antes de receber a verdadeira doutrina.

cosmos não está frouxamente conectado ou, para usar uma linguagem hegeliana, disposto em um

7. O Universo é um todo internamente relacionado

conjunto externamente relacionado de particu-

que é pervagado por energias cósmicas.

lares. Ao contrário, segundo essa doutrina, tudo está internamente conectado, uma coisa entre-

Para deixar claro os paralelos entre essas doutrinas

laçada com a outra. Mesmo que o cosmos possa

e a de Hegel, eis uma antecipação do que se verá no

vir a estar hierarquicamente disposto, há forças

restante do livro:

que se sobrepõe a isso e unificam todos os níveis. Forças divinas conhecidas ora por “energia” e ora

1. Hegel afirma que o ser de Deus envolve a “cria-

por “luz” percorrem o todo . Este princípio está

ção”: é esse o assunto da sua Filosofia da Natureza. A

expresso mais claramente na Tábua Esmeraldina de

natureza é um momento do ser de Deus.

32

Hermes Trimegistus, que logo na segunda linha tem a frase “O que está embaixo é como o que está

2. Hegel afirma que Deus de alguma maneira é

em cima”. Essa máxima se tornou o dogma cen-

“completo” ou atualizado (tornado em ato) pela

tral do ocultismo ocidental, dado que ele formou a

atividade intelectual da humanidade: a “filosofia”

base para uma doutrina da unidade do cosmos por

é o estágio final na atualização do Espírito Absoluto.

meio de simpatias e correspondências entre seus

Hegel sustenta a concepção “circular” de Deus e do

vários níveis. A implicação mais importante dessa

cosmos a que me referi anteriormente, aquela que

doutrina é a ideia de que o homem é o microcosmo

envolve Deus “retornando a Si” e verdadeiramente

onde o todo do macrocosmo é refletido. O autoco-

tornando-se Deus através do homem.

nhecimento, portanto, leva necessariamente ao conhecimento do todo.

3. A filosofia de Hegel é enciclopédica: para todos os efeitos, ele busca finalizar a filosofia capturando o

Em resumo, as doutrinas da Hermetica que se

todo da realidade em um discurso completo e circular.

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16

31. Karl Rosenkranz, Georg Wilhelm Friedrich Hegels Leben (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969), p. 141. O fragmento é referido por Harris e Knox como “A Suposta Conclusão do Sistema da Vida Ética”. V. H. S. Harris e T. M. Knox, System of Ethical Life and First Philosophy of Spirit (Albany: State University of New York Press, 1979), p. 178.


4. Hegel acredita que nós nos elevamos acima da

poucos estudiosos de Hegel tenham percebido isso.

natureza e tornamo-nos mestres de nossos pró-

O assunto é logo deixado de lado como se fosse

prios destinos por meio da profunda gnosis provida

algo sem importância ou desinteressante (não é

por esse sistema.

nenhuma das duas coisas). Costumeiramente, ele é

A Lógica de Hegel é uma tentativa de descobrir os aspectos ou “momentos” de Deus como um sistema de ideias.

tratado como relevante apenas à juventude de Hegel (o que é falso). Certamente uma das razões dessa atitude é a especialização disciplinar. Poucos estudiosos da história da filosofia chegam a estudar os pensadores herméticos. Outra razão é a recente tendência entre os influentes estudiosos de Hegel que dizem ser um disparate tratar Hegel como alguém que tivesse qualquer interesse sério em metafísica ou teologia; o que dirá então o envolvimento em

5. A Lógica de Hegel é uma tentativa de descobrir

algum tipo de metafísica e teologia exóticas que

os aspectos ou “momentos” de Deus como um

encontramos no hermetismo. Essa é a dita “lei-

sistema de ideias. Em uma famosa passagem da

tura não-metafísica” de Hegel. Como observou

Ciência da Lógica, Hegel afirma que a lógica “deve

Cyril O’Regan, ela anda de mãos dadas com a leitura

ser entendida como um sistema de razão pura,

“antiteológica”33. Por exemplo, David Kolb escreve:

como a esfera do puro pensamento. Essa esfera é

“Eu quero acima de tudo evitar a ideia de que Hegel

a verdade como ela é, sem véus, em sua própria

forneça uma cosmologia que inclui a descoberta de

natureza absoluta. Pode-se dizer, portanto, que

uma nova e maravilhosa super-entidade, um eu

esse conteúdo é a exposição de Deus tal como Ele é

cósmico ou espírito do mundo ou super-mente”34.

em sua essência eterna, antes da criação da natu-

Mas é exatamente isso que Hegel faz.

reza e de um espírito finito.” A frase “leitura não-metafísica” parece ter sua 6. A Fenomenologia do Espírito de Hegel repre-

origem em Klaus Hartmann, que em seu influente

senta, no sistema hegeliano, um estágio inicial

artigo de 1972, “Hegel: Uma leitura não-metafísica”,

de purificação ao qual aquele que quer ser filó-

identificou o sistema de Hegel como uma “herme-

sofo é purificado dos falsos pontos de vista

nêutica de categorias”35. Dentre outros conhecidos

intelectuais para que assim possa receber a ver-

propositores dessa abordagem que Hartmann dá, há

dadeira doutrina do Conhecimento Absoluto

também Kenley Royce Dove, William Maker, Terry

(lógica-natureza-espírito).

Pinkard e Richard Dien Winfield.

7. A abordagem da natureza feita por Hegel rejeita

A leitura não-metafísica/antiteológica con-

a filosofia mecanicista. Ele sustenta o que os segui-

siste em ignorar ou não considerar um assunto

dores de Bradley mais tarde chamariam de doutrina

digno de ser tratado as várias passagens franca-

de “relações internas”, contra o entendimento

mente metafísicas, cosmológicas, teológicas e

tipicamente moderno mecanicista das coisas, que

teosóficas nos escritos e conferências de Hegel36.

são tratadas em termos de “relações externas”.

Assim, a leitura não-metafísica passa a ser mais uma revisão de Hegel que uma interpretação.

Hegel: Um olhar metafísico

Seus defensores admitem isso (Hartmann, por exemplo), mas com frequência eles oferecem sua

Dada a evidência do lugar que Hegel ocupa na tra-

“leitura” como oposição às outras interpreta-

dição hermética, parece surpreendente que tão

ções de Hegel. Além disso, não é acidental que os

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32. Fowden, The Egyptian Hermes, p. 77.

34. David Kolb, Critique of Pure Modernity: Hegel, Heidegger, and After (Chicago: University of Chicago Press, 1986), p. 42-43. 35. Klaus Hartmann, “Hegel: A Non-Metaphysical View” in Hegel: A Collection of Critical Essays, ed. Alasdair MacIntyre (Notre Dame: University

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33. v. Cyril O’Regan, The Heterodox Hegel (Albany: State University of New York Press, 1994), p. 86.

17


FILOSOFIA

mesmos autores finalizem suas “interpretações”

em consonância com a interpretação ampla-

atribuindo uma política de esquerda a Hegel, pois

mente “ontoteológica” que Martin Heidegger

Não estou oferecendo uma leitura “hegeliana de direita”. Estou simplesmente lendo Hegel.

– que cunhou o termo – e por estudiosos como Walterjaeschke, Emil Fackenheim, Cyril O’Regan, Malcolm Clark, Albert Chapelle, Claude Bruaire e Iwan Iljin38. A “ontoteologia” refere-se à equação entre o Ser, Deus e o logos. A abordagem que Hegel dá ao Absoluto é estruturalmente idêntica à que Aristóteles faz do Ser como Substância (ousia): é o que há de mais real, independente e

eles são, na verdade, os herdeiros intelectuais

autossuficiente. Hegel identificou o Absoluto com

dos “jovens hegelianos” do século XIX que tam-

Deus tanto publicamente (em livros e conferên-

bém faziam “interpretações” não-metafísicas e

cias) como privadamente (em notas): em ambos

antiteológicas de Hegel. A leitura não-metafísica

os casos de modo franco e direto, sem margem

simplesmente trata de um Hegel sem tudo aquilo

para interpretações muito diferentes39. Hegel não

que possa parecer ofensivo ao espírito moderno,

oferece as categorias da sua lógica como meros

secular e liberal. Isso, entretanto, não significa

“dispositivos hermenêuticos”, mas sim como

que estou oferecendo uma leitura “hegeliana de

formas eternas, momentos ou aspectos da Mente

direita” como alternativa. Estou simplesmente

Divina (Ideia Absoluta). Ele trata a natureza como

lendo Hegel. Ao fazer isso, espero contribuir com

se ela estivesse “expressando” as ideias divinas

a “análise apartidária, histórica e textual” do pen-

em formas imperfeitas. Ele fala de um “Espírito do

samento de Hegel, preconizada por Louis Dupré.

Mundo” e o usa para explicar como a radiestesia e o

37

magnetismo animal funcionam. Ele estrutura toda Estou convencido de que tal leitura coloca ine-

a sua filosofia em volta da Santíssima Trindade

quivocamente a filosofia de Hegel na tradição

cristã e afirma que com o cristianismo, o “prin-

da metafísica clássica. Ao dar esse olhar, estou

cípio especulativo da filosofia foi revelado para a

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of Notre Dame Press, 1972), p. 124. 36. Os que fazem a leitura não-metafísica e antiteológica devem arranjar uma maneira de explicar a seguinte passagem: “Deus é o único objeto da filosofia. [O essencial dela é] se ocupar de Deus, de apreender tudo Nele, de levar tudo de volta a Ele, assim como obter tudo que é próprio de Deus e justificar tudo apenas como originário de Deus, como sustentado através da relação com Ele, como vivido pelo brilho Dele e como vivente no interior da própria mente de Deus. Assim, filosofia é teologia, e quando se trabalha com a filosofia – ou melhor, na filosofia – se está a serviço de Deus” (Lições Sobre a Filosofia da Religião: 84 e Lições Sobre a Filosofia do Direito I:3-4) 37. Louis Dupré, prefácio ao livro The Heterodox Hegel de Cyril O’Regan, p. ix 38. Martin Heidegger, “The Onto-Theo-Logical Constitution of Metaphysics” in Identity and Difference, ed. bilíngue, trad. Joan Stambaugh (New York: Harper and Row: 1969); Walter Jaeschke, Reason in Religion: The Formation of Hegel’s Philosophy of Religion, trad. J. Michael Steward e Peter Hodgson (Berkeley: University of California, 1990), Die Religionsphilosophie Hegels (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983), “Speculative and Anthropological Criticism of Religion: A Theological Orientation to Hegel and Feuerbach”, Journal of the American Academy of Religion 48 (1980): pp. 345-364; Emil Fackenheim, The Religious Dimension of Hegel’s Thought (Bloomington: Indiana University Press, 1967); Malcolm Clark, Logic and System: A Study of the Transition from “Vorstellung” to Thought in the Philosophy of Hegel (The Hague: Martinus Nijhoff, 1971); Albert Chapelle, Hegel et la religion, 3 vols. (Paris: Éditions Universitaires, 1964-1971); Claude Bruaire, Logique et religion chrétienne dans la philosophie de Hegel (Paris: Éditions du Seuil, 1964); IwanIljin, Die Philosophie Hegels also contemplative Gotteslehre (Berne: Francke, 1946). 39. Em uma carta de 3 de julho de 1826 endereçada a Friedrich August GottreuTholuch (1799-1877), Hegel escreve: “Eu sou luterano e, por meio da filosofia, fui definitivamente e completamente confirmado no luteranismo”. V. Hegel: The Letters, trad. Clark Butler e Christianne Seiler (Bloomington: Indiana University Press, 1984), p. 520; cf. Johannes Hoffmeister, Briefe von und an Hegel, 4 vols. (Hamburg: Felix Meiner, 1952-1961). Hoffmeister enumera as cartas. Esta é a 514a. Doravante, referências às cartas de Hegel serão escritas da seguinte maneira: “Butler, 520; Hoffmeister #514a”. Em 1826 uma pequena controvérsia surgiu em Berlim quando um padre que compareceu a uma conferência de Hegel reclamou ao governo acerca do conteúdo alegadamente anticatólico proferido por Hegel. O filósofo respondeu: “Fosse para processar-me por causa das afirmações que fiz do alto pódio que causaram perturbação aos alunos católicos, os culpados

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seriam somente eles mesmos por comparecerem a conferências filosóficas em uma universidade protestante e perante um professor que

18

se orgulha de ter sido batizado e criado como um luterano, o que por sinal ainda é e continuará sendo” (v. Butler, 532). Em uma crítica no ano de 1829 de K. F. Göschel, Aphorismen über Nichtwissen und absolutes Wissen im Verhältnisse zur christlichen Glaubenserkenntnis, Hegel deixa claro que ele fica satisfeito ao ter sua obra tratada como “filosofia cristã”. Berliner Schriften, 1818-1831, ed. Eva Moldehauer e Karl Markus Michel (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986).


humanidade”40. Ele nos diz – novamente de forma direta – que o Estado é Deus na Terra. Não vejo razão para não levar a sério as palavras de Hegel em qualquer desses assuntos. Mesmo porque estou interessado apenas no que Hegel pensou, não em que Hegel deve ter pensado. Indubitavelmente, o sentido que Hegel dá à metafísica clássica e ao cristianismo é transformador, pois ele não foi um mero fiel. Contudo, seus comprometimentos metafísicos e religiosos não eram exotéricos. Ele acredita que o Absoluto e o Espírito do Mundo, etc. são seres reais; eles só não são reais no sentido em que as concepções tradicionais, devotas e “representativas” têm deles 41 . Se Hegel se aparta da tradição metafísica em qualquer momento, é para tirar o seu ar de falsa modéstia. Hegel não afirma ser um mero buscador da verdade. Ele afirma que já a encontrou. Traduzido por Leonildo Trombela Júnior

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40. Em Lições sobre a História da Filosofia, Hegel observa que “os arianos, por não reconhecerem Deus em Cristo, acabaram com a ideia de Trindade e, consequentemente, com o princípio de toda a filosofia especulativa” (3:20). J. N. Findlay escreve que “todo o sistema [de de atividade humana e em toda transição lógica” (Hegel: A Re-Examination, p. 131). 41. Em A Ciência da Lógica (vol. I Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio) Hegel fala sobre o pensamento representativo: “Quando se encontra deslocad[o] para a região pura dos conceitos, não sabe onde está no mundo.” (§3)

MAIO 2014

Hegel] pode ser de fato uma tentativa de ver os mistérios cristãos em qualquer coisa, em todos os processos naturais, em todas as formas

19


FILOSOFIA

A arte da mentira política, Jonathan Swift Tradução de “The Art of Political Lying”, publicado no #14 do jornal The Examiner, em 09 de novembro de 1710.1

desiludidos, que ele ainda diariamente tenta para o seu próprio pecado, e assim sempre o fará, até que seja finalmente acorrentado no poço sem fundo. Mas o diabo, apesar ser o pai da mentira, parece, assim como outros grandes inventores, ter perdido muito de sua reputação pelas contínuas melhorias feitas depois dele.

Ela pode afundar uma montanha até tornar-se um montículo, e erguer um montículo à estatura de uma montanha. Na história não está tão claro quem primeiro reduziu a mentira a uma arte e a adaptou à política, mesmo eu já tendo feito diligentes investigações. Devo, portanto, considerá-la apenas segundo o sistema moderno, já que ela tem sido cultivada nesses últimos vinte anos na parte meridional de nossa ilha.

F

Dizem os poetas que após os gigantes terem sido ui pressionado, pela impertinácia de meus

derrotados pelos deuses, a terra, como vingança,

amigos, a interromper o esquema que tinha

produziu sua última descendência, que foi a Fama.

iniciado em meu último texto, em troca de

E a fábula é interpretada da seguinte forma: quando

um ensaio sobre a Arte da Mentira Política.

se aplacam tumultos e sedições, espalham-se

Dizem que o diabo é o pai da mentira, e que ele era

por uma nação rumores e falsos relatos. Logo,

um mentiroso desde o início; portanto, sem con-

segundo esta descrição, a mentira é o último alívio

tradições, a invenção já é antiga: e, o que é pior, seu

de um partido confuso, mundano e rebelado em

primeiro ensaio foi puramente político, empregado

um Estado. Mas aqui os modernos fizeram gran-

em solapar a autoridade de seu príncipe e seduzir

des avanços, aplicando esta arte na conquista e na

um terço dos súditos para que abandonassem sua

preservação do poder, bem como na vingança após

obediência: motivo pelo qual ele foi jogado, à força,

a sua perda; assim como os mesmos instrumentos

para fora do céu, onde (como expressou Milton)

são usados pelos animais para se alimentar quando

fora vice-rei de uma grande província ocidental; e

estão famintos e para morder quem os espezinha.

forçado a exercer seu talento em regiões inferiores,

MAIO 2014

entre outros espíritos caídos, homens pobres ou

20

Mas essa mesma genealogia não pode ser sempre

___________________________________________________

1. Pouco tempo depois do retorno dos Tories ao governo britânico, e da obtenção, por parte de Swift, do cargo de editor do jornal em questão.


admitida para a mentira política; portanto, eu irei

de flores-de-lis e tríplices coroas 4, suas cintas

refiná-la, acrescentando algumas circunstâncias de

com correntes, e contas, e sapatos de madeira; e

seu nascimento e de seus genitores. Uma mentira

seus piores inimigos adornados com as insígnias

política nasce às vezes da cabeça de um estadista

da liberdade, da propriedade, da indulgência, da

descartado, e daí é entregue para ser amamentada

moderação e com uma cornucópia em suas mãos.

e embalada pela ralé. Às vezes se produz como um

Suas grandes asas, como as de um peixe-voador,

monstro que depois se amolda; noutras vezes vem

são inúteis a não ser quando úmidas; ela, portanto,

ao mundo completamente formada e é estragada

banha-as na lama, e, içando-se ao alto, espalha-as

justamente pela amoldação. Com frequência ela

nos olhos da multidão, voando com grande rapidez;

nasce de forma natural, como uma criança, e pre-

mas a cada volta é forçada a descer até caminhos

cisa de tempo para ser maturada; e com frequência

sujos para obter novos suprimentos.

vê a luz em sua plenitude, mas gradualmente se esvai. Às vezes é de berço nobre; e às vezes é a cria de um estelionatário. Aqui, ela berra em alto e bom som à abertura do ventre; ali, ela é entregue com um sussurro. Eu sei de uma mentira que agora, com seu barulho, perturba metade do reino, e que, apesar de orgulhosa e grandiosa demais no presente para dominar seus pais, sou capaz de lembrar-me dos tempos em que era um sussurro.2 Para concluir

A superioridade do seu gênio consiste em nada além de um fundo inexaurível de mentiras políticas.

a natividade desse monstro: quando ele vem a este

Eu tenho imaginado, às vezes, que se um homem

mundo sem uma picada, é natimorto; e quando

tivesse a arte da clarividência para ver mentiras,

perde o ferrão, morre.

como eles têm na Escócia para ver espíritos, o quão admiravelmente poderia ele entreter-se nesta

Não espanta que uma criança tão miraculosa em

cidade, ao observar as diferentes formas, tamanhos,

seu nascimento deva ser destinada a grandes

e cores daqueles enxames de mentiras que zunem

aventuras; e por isso vemos que ela foi o espírito

em volta das cabeças de alguns, como moscas em

guardião de um partido dominante [os Whigs] por

volta das orelhas de um cavalo no verão; ou aquelas

quase vinte anos3. Ela pode conquistar reinos sem

legiões pairando todas as tardes no Exchange Alley5,

lutar, e às vezes até perdendo uma batalha. Ela

o bastante para escurecer o ar; ou sobre um clube de

dá e retoma ocupações; pode afundar uma mon-

fidalgos desgostosos, e daí enviadas em fretes para

tanha até tornar-se um montículo, e erguer um

serem espalhadas nas eleições.

montículo à estatura de uma montanha; presidiu por muitos anos em comitês de eleições; conse-

Há um ponto essencial no qual um mentiroso polí-

gue embranquecer um negro; fazer de um ateu um

tico difere-se de outros desta faculdade: o de que

santo, e de um libertino um patriota; consegue dar

ele tem que ter uma memória curta, que é neces-

inteligência a ministros do exterior e aumentar

sária conforme as várias ocasiões com que ele se

ou fazer cair o crédito de uma nação. Essa deusa

depara a cada momento para se diferenciar de si

voa com um imenso espelho em suas mãos, para

mesmo, e prestando juramentos para os dois lados

deslumbrar a multidão e fazê-la ver, conforme o

de uma contradição, enquanto encontra as pessoas

vira, sua ruína em seu proveito, e o seu proveito em

dispostas com as quais deve lidar. Ao descrever as

sua ruína. Nesse espelho você contemplará seus

virtudes e os vícios da humanidade, é conveniente,

melhores amigos, cobertos em capas polvilhadas

sobre cada artigo, ter em vista alguma pessoa

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2. No original, ”I can remember its whisper-hood”. Whisper-hood é uma brincadeira com childhood, “infância”, época em que a mentira ainda era um sussurro. 3. Os Whigs dominaram a política britânica após a Revolução Gloriosa (1688-1689).

5. Trata-se de uma rua londrina que, juntamente com a Lombard Street, é o epicentro das finanças inglesas. Lá está a Bolsa de Valores de Londres, construída no terreno da Jonathan´s Coffe-House, café que concentrava as compras e vendas de títulos.

MAIO 2014

4. Provavelmente uma menção ao brasão real da França.

21


FILOSOFIA

eminente, de quem possamos copiar nossa descri-

acabou, e o conto teve seu efeito: como um homem

ção. Eu observei estritamente tal regra, e minha

que pensou em uma resposta inteligente quando o

imaginação representa, perante mim, neste ins-

discurso já mudou, ou o grupo se separou; ou como

tante, um certo grande homem famoso por esse

um médico que achou um remédio infalível após o

talento, a cuja prática constante ele deve os vinte

paciente morrer.

6

anos de sua reputação de ser a cabeça mais hábil da Inglaterra para administrar os bons momentos. A superioridade do seu gênio consiste em nada além de um fundo inexaurível de mentiras políticas, que ele distribui de maneira copiosa a cada minuto em que fala, e que, por uma generosidade sem paralelo, esquece, e consequentemente contradiz, na

A verdade, que dizem residir em um poço, parecia agora estar enterrada lá sob uma pilha de pedras.

meia-hora seguinte. Ainda assim ele nunca se perguntou se qualquer proposição era verdadeira ou

Considerando aquela disposição natural presente

falsa, mas se era conveniente afirmá-la ou negá-la

em muitos homens para mentir, e nas multi-

naquele minuto ou companhia; então se você acha

dões para acreditar, eu fiquei confuso com o que

justo ruminar sobre ele, interpretando tudo que ele

fazer com aquela máxima tão frequente na boca

disser, assim como fazemos com os sonhos, pelo

de todo mundo, de que a verdade no fim prevale-

contrário, você continuará procurando, e se encon-

cerá. Aqui, esta nossa ilha, pela maior parte destes

trará igualmente tapeado, quer você acredite ou

últimos vinte anos jazeu debaixo da influência de

não; o único remédio é fingir que ouviu sons inar-

tais conselhos e pessoas, cujo princípio e inte-

ticulados, sem significado algum; e, ademais, isso

resse era corromper nossas maneiras, cegar nosso

lhe livrará do horror que você poderá conceber nos

entendimento, sugar nossa riqueza e em tempo

juramentos, onde ele sempre rotula ambos os lados

destruir nossa constituição da Igreja e do Estado, e

de cada proposição; embora ao mesmo tempo eu

nós enfim fomos levados à beira da ruína; mesmo

pense que ele não pode, com justiça, ser taxado de

assim, por meio de constantes deturpações, nunca

perjúrio, quando invoca a Deus e ao Cristo, já que

estivemos aptos a distinguir entre nossos amigos

muitas vezes ele avisou publicamente ao mundo

e inimigos. Vimos uma grande parte do dinheiro

que não acredita em nenhum dos dois.

de nossa nação ir parar nas mãos daqueles que, por seu berço, educação e mérito, não poderiam

Algumas pessoas podem pensar que uma façanha

buscar nada mais elevado do que de vestir nossos

como esta não pode ser de grande uso ao pro-

uniformes; enquanto outros, que, por seu cré-

prietário, ou ao seu grupo, depois dela ter sido

dito, qualidade e fortuna, só foram capazes de dar

frequentemente praticada e tornada notória; mas

reputação e sucesso à Revolução, foram não ape-

essas pessoas estão amplamente equivocadas.

nas deixados de lado como perigosos e inúteis,

Poucas mentiras carregam a marca de seu inven-

como carregados com o escândalo dos jacobinos7,

tor, e o inimigo mais prostituto da verdade pode

homens de princípios arbitrários, e pensionistas da

espalhar mil delas sem que se tornem conhecidas

França; enquanto a verdade, que dizem residir em

pelo autor; além disso, assim como o mais vil dos

um poço, parecia agora estar enterrada lá sob uma

escritores tem seus leitores, também o maior men-

pilha de pedras. Mas eu me recordo que era uma

tiroso tem os seus crentes, e amiúde é o caso de que

reclamação comum entre os Whigs de que a massa

se uma mentira for crida durante apenas uma hora,

dos homens de terra não lhes interessava, algo que

ela já fez o seu trabalho, e não há mais uma nova

alguns dos mais sábios viram como mau pressá-

oportunidade. A falsidade ganha asas, e a verdade

gio; e nós vimos com a maior dificuldade como eles

vem mancando logo atrás, e quando os homens

conseguiram preservar uma maioria, enquanto a

são desenganados já é tarde demais; a pilhéria já

corte e os ministros estavam do lado deles, até que

MAIO 2014

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6. O primeiro conde de Wharton. 7. Não confundir com os Jacobinos da Revolução Francesa. Neste caso, trata-se de Tories que queriam o retorno da Casa de Stuart, na pessoa do Rei católico James Segundo, ao trono da Inglaterra Escócia e Irlanda.


tivessem descoberto aqueles admiráveis expedientes para decidir eleições e influenciar localidades distantes por meio de poderosos motivos vindos da cidade. Mas tudo isso era apenas força e coação, mesmo que erguida pelo mais destro artifício e administração, até que o povo começou a temer por sua propriedade, sua religião, e mesmo pela própria monarquia; quando os vimos cobiçosamente agarrando a primeira oportunidade para interferir. Mas acerca dessa poderosa mudança nas disposições do povo eu deverei discursar mais detidamente em algum texto futuro; no qual me empenharei em esclarecer ou descobrir essas pessoas enganadas ou enganadoras que esperam ou fingem que se trata apenas de uma breve loucura no vulgo, da qual ele logo se recuperará; ao passo que eu acredito que isso parecerá ser bem diferente em suas causas, seus sintomas e em suas consequências; e provar-se-á um grande exemplo para ilustrar a máxima que mencionei anteriormente, de que a verdade (apesar de às vezes tardiamente) “enfim prevalecerá”. Traduzido por Gabriel Marini

MAIO 2014 23


ARTE

Música da Alma, Roger Scruton Tradução de “Soul Music”, publicado em “The American,” edição de 27 de fevereiro de 2010.

O modo como descrevemos a música pop prova que encontramos um significado moral na música. Como saber que tipo de música deveríamos ou não encorajar? “Não existe lugar em que se mudem os modos de se fazer poesia e música sem que haja mudanças nas leis mais importantes da cidade.”

A

ssim escreveu Platão em A República (c. 442). E Platão é famoso por ter apresentado o que é talvez a primeira teoria do caráter na música, propondo que

se permitissem alguns modos e se proibissem outros, de acordo com o caráter que se ouvisse neles. Platão expõe o conceito de mimesis, ou imitação, para explicar por que um mau caráter na música encoraja um mau caráter em seus adeptos. O contexto sugere que ele tinham em mente o canto, a dança e as marchas e não a audição silenciosa que conhecemos da sala de concerto. Mas, independentemente de como preenchermos os detalhes, não há dúvidas de que a música, para Platão, era algo que podia ser julgado nos mesmos termos morais em que julgamos uns aos outros e que os termos em questão denotavam virtudes e

assunto, podemos nos arriscar a sugerir que Platão

vícios como a nobreza, a temperança e a casti-

estava fazendo uma distinção entre estilos musi-

dade, de um lado, e a sensualidade, a beligerância

cais reconhecíveis, como poderíamos distinguir

e a indisciplina, do outro.

MAIO 2014

Nossos modos de descrever a música nos dão provas incontroversas de que encontramos um significado moral nela.

24

o jazz do rock e ambos do clássico. E suas preocupações não eram muito diferentes das de uma pessoa de hoje preocupada com o caráter e o efeito morais do death metal, digamos, ou do kitsch musical do gênero de Andrew Lloyd Webber. “Será que nossos filhos deveriam escutar um troço destes?”, indagam-se os adultos de hoje, do mesmo modo que Platão indagou: “Será que nossa cidade deveria permitir um troço destes?” É claro que nós há muito desistimos da ideia de que se possa proibir

O argumento de Platão tinha em vista, não obras

por lei certos tipos de música. Entretanto, devemos

musicais individuais, mas modos. Não sabemos

nos lembrar de que esta ideia tem uma longa his-

exatamente qual era o arranjo dos modos gregos;

tória e foi um fator decisivo na evolução das igrejas

eles convencionalmente identificavam estilos,

cristãs, que foram tão censoriais com a música

instrumentos e esquemas melódicos e rítmicos,

litúrgica quanto com as letras litúrgicas e, na ver-

bem como as notas da escala. Sem entrarmos no

dade, pouco distinguiam entre elas.


Além do mais, ainda é comum acreditar-se que

musicais, nós devemos nos lembrar de que pessoas

estilos de música e obras musicais individuais

com gostos musicais fazem nossas leis; e Platão

tenham — ou possam ter — um caráter moral e

pode estar certo, mesmo em relação a uma demo-

que o caráter de uma obra ou estilo de música pos-

cracia moderna, sobre as mudanças na cultura

sam “pegar” em alguns de seus adeptos. Faz todo

musical andarem de mãos dadas com as leis, já que

o sentido (e muitas vezes é profundamente escla-

as mudanças nas leis muito frequentemente refle-

recedor) descrever obras individuais, e também

tem pressões da cultura. Não há dúvidas de que a

os estilos e linguagens, em termos das virtudes

música popular hoje goza de um status mais elevado

e vícios das pessoas. O primeiro movimento da

do que qualquer outro produto cultural. Os astros

Segunda Sinfonia de Elgar é sem dúvida nobre, e

do pop são os primeiros entre as celebridades, ido-

se a nobreza for falha em alguma medida, também

latrados pelos jovens, tomados como modelos,

isto será parte de seu caráter moral.

cortejados por políticos e em geral dotados de uma aura mágica que lhes dá poder sobre as multidões.

Segunda Sinfonia de Elgar:

É muitíssimo provável, portanto, que algo de sua

https://www.youtube.com/

mensagem vá pegar nas leis aprovadas pelos polí-

watch?feature=player_embedded&v=dW8Kyr5VefQ

ticos que os admiram. Se a mensagem for sensual, egocêntrica e materialista, então devemos esperar

Sabemos de músicas que são bem-humoradas,

que nossas leis não nos tratem a partir de uma

lascivas, suaves, ousadas, castas, autoindulgen-

esfera mais elevada do que isto implica.

tes, sentimentais, reservadas e generosas; e todas estas palavras descrevem virtudes e vícios morais,

Uma democracia que não faz juízos

que ficamos tão pouco surpresos de encontrar em músicas quanto nos seres humanos. Nossos modos

Mesmo que não se proibam por lei certos estilos musicais, nós devemos nos lembrar de que pessoas com gostos musicais fazem nossas leis.

Entretanto, embora façamos juízos morais, estamos cada vez mais hesitantes em expressá-los. Nossa cultura é de “não fazer juízos” e sua hostilidade a eles advém da crença democrática na igualdade humana. Criticar o gosto, seja em música, entretenimento ou estilo de vida, supõe que alguns gostos sejam superiores a outros. E isto, para muita gente, é ofensivo. Quem é você, respondem eles, para julgar o gosto dos outros? Os jovens em particular sentem isto, e como os jovens são os principais adeptos da música pop, isto coloca um formidável obstáculo no caminho de qualquer

de descrever a música nos dão provas incontrover-

um que se proponha a criticar a música pop em

sas de que encontramos um significado moral nela

uma universidade. Especialmente se a crítica for

— e seria surpreendente se as coisas fossem assim

formulada na linguagem de Platão, como uma aná-

e não acreditássemos também que as pessoas

lise e condenação dos vícios morais exemplificados

deveriam ser encorajadas a escutar algumas coi-

por um estilo musical. Em face disto, um profes-

sas e desencorajadas de escutar outras. Pois nosso

sor pode sentir-se tentado a desistir da questão do

caráter é formado pelas companhias que temos, e

juízo e supor que tudo vale, que todos os gostos são

os que gostam da companhia de escroques e gente

igualmente válidos e que, no que tange à música

esquisita provavelmente se tornarão eles mesmos

como objeto de estudo acadêmico, não é a crítica,

escroques e esquisitos. É difícil, portanto, discor-

mas a análise técnica e o conhecimento prático

dar da opinião de Platão de que a música tem um

que devem ser transmitidos. Na verdade, esta é

papel central na educação e que a educação musical

a linha que se parece seguir nos departamentos

pode dar errado a um ponto tal que isto terá um

acadêmicos de musicologia, ao menos no mundo

impacto no desenvolvimento moral e nas respos-

anglófono. A questão do caráter moral da música também é

E mesmo que não se proibam por lei certos estilos

complicada pelo fato de que a música é apreciada

MAIO 2014

tas sociais dos jovens.

25


ARTE

de muitos modos diferentes: as pessoas dançam

de todos os outros indicadores — os gostos esté-

ao som de música, elas trabalham e conversam

ticos prevalecentes na América e em particular

com música ao fundo, elas fazem música e escu-

a música que hoje conhecemos como a songbook

tam música. As pessoas dançam com satisfação ao

americana. A linguagem melódica e harmônica

som de músicas que não suportam escutar — uma

desta linha musical penetrou até os ossos de nossa

experiência muito normal hoje em dia. Pode-se

civilização e quando agora escutamos um clássico

conversar ao som de Wolfgang Amadeus Mozart,

do jazz de Cole Porter, George Gershwin, ou Hoagy

mas não de Arnold Schoenberg; pode-se trabalhar

Carmichael, ficamos impressionados sobretudo

ao som de Chopin, mas não de Richard Wagner. E

pela inocência do estilo – a última vez, talvez, que

às vezes, argumenta-se que os contornos meló-

o casamento monógamo e antiquado foi celebrado

dicos e rítmicos da música pop a tornam mais

em nossa música!

propícia para ser escutada superficialmente do que ouvida com atenção e também incentivam uma

Adorno atacou algo que ele chamou de “regressão

necessidade de música pop como fundo musical.

da audição,” que ele acreditava que havia infec-

Alguns psicólogos se perguntam se esta neces-

tado toda a cultura da América moderna. Adorno

sidade não seguiria o padrão dos vícios; e críticos

não estava tão preocupado com obras musicais

mais filosóficos como Theodor Adorno levantam

isoladas, mas com a cultura musical inteira. Ele

Para Adorno, a música está no epicentro da civilização moderna e a sorte da música é um tipo de indicador da saúde moral, espiritual e pública da sociedade.

via a cultura auditiva como um profundo recurso espiritual da civilização ocidental, e cujos efeitos ele penou, sem sucesso, expressar. De certa forma, o hábito de escutar raciocínios musicais de longo-alcance, nos quais os temas são submetidos a extensos desenvolvimentos melódicos, harmônicos e rítmicos, está ligado à capacidade de se viver além do momento, de transcender a busca por gratificação imediata, de pôr de lado as rotinas da sociedade de consumo, com a busca constante do “fetiche”, e colocar valores reais no

questões mais profundas sobre se a audição não

lugar de desejos transitórios. Foi o que Adorno

teria mudado inteiramente com o desenvolvi-

pensou. E há algo de profundo e persuasivo aqui,

mento de melodias de curto alcance e progressões

algo que precisa ser resgatado da crítica destem-

harmônicas em cachos, típicas das canções na

perada e excessivamente politizada de Adorno a

tradição do jazz. Adorno (1903-1969) tinha vindo

respeito de praticamente tudo que ele encontrou

como um refugiado do nazismo para a América,

na América. Ao procurarmos pelo sentido do que

onde ele desfrutou dos privilégios usuais concedi-

Adorno disse, devemos pôr de lado sua crítica sem

dos pelas universidades americanas a intelectuais

nuances e injusta do jazz e da tradição da canção

europeus, e pagou seus anfitriões do modo usual,

popular que se originou dele. Ao invés disto, deve-

escrevendo críticas aos Estados Unidos que borbu-

mos olhar para o que está acontecendo em nossa

lham de veneno e desprezo. Seu alvo foi o que ele e

cultura musical agora e, em particular, devemos

seu colega mais velho Max Horkheimer chamaram

tentar imaginar como poderíamos criticar de modo

de “cultura de massa”, cujas principais manifesta-

plausível a música pop em geral e estilos e canções

ções ele descobriu em Hollywood e no jazz.

específicas em particular, como aquilo que eles são e independentemente de suas causas e efeitos.

MAIO 2014

Para Adorno, a música está no epicentro da civi-

26

lização moderna e a sorte da música é um tipo de

Não que possamos desconsiderar inteiramente

indicador da saúde moral, espiritual e pública da

as causas e efeitos do pop. Adorno nos lembra de

sociedade. Seu juízo hostil a respeito da cultura

que é muito difícil criticar todo um estilo musical

do capitalismo americano foi influenciado por

sem incorrer num juízo sobre a cultura ao qual ele

sua perspectiva amplamente marxista do mundo

pertence. Os estilos musicais não vêm em paco-

moderno. Mas tal juízo enfocou antes de mais

tes lacrados, sem nenhuma relação com o resto

nada — e, na verdade, com a quase que exclusão

da vida humana. E quando um tipo particular de


música nos envolve nos espaços públicos, quando

companhia. A voz está suspensa por fios elétricos,

ela invade todo café, bar e restaurante, quando ela

como o cadáver de uma rã eletrocutada.

berra conosco desde os carros em trânsito e pinga das torneiras abertas dos rádios e iPods de todo o

Alguém poderia responder que a qualidade de uma

planeta, o crítico pode parecer estar, como o apó-

peça musical está no que ela provoca no ouvinte.

crifo rei Canuto, diante de uma onda irresistível,

Alice (vamos chamá-la assim) visa a excitar emo-

emitindo gritos inúteis e rabugentos de indignação.

ções poderosas, e nisto ela é bem-sucedida. (Experimente olhar as entradas do Google para

Devemos então desistir da música pop, considerá-la

“Alice Practice,” visite os blogs dos fãs e você vai

como acima da crítica e a cultura nela expressa como

ficar abismado como impacto desta peça.) Talvez,

um fato da vida? Eu quero pelo menos lançar alguma

se o Crystal Castles tivesse usado as velhas técni-

dúvida sobre esta ideia. Eis aqui um exemplo: “Alice

cas de ordem melódica, harmônica e rítmica, eles

Practice” de um grupo chamado Crystal Castles.

teriam produzido algo de banal e desinteressante. Então, por que não louvá-los por terem alcançado

Crystal Castles - Alice Practice

a única coisa que eles se propuseram e que era des-

https://www.youtube.com/

pertar os gigantes adormecidos da luxúria e da ira?

watch?feature=player_embedded&v=ovV_baO8gho É importante reconhecer que há dois modos pelos Certamente há coisas relevantes a serem ditas

quais a música pode provocar uma resposta: ou

sobre isto e que pesam não só sobre seu valor

desencadeando-a, como o riso é desencadeado pelas

como música, mas também sobre a condição moral

cócegas, ou fornecendo-lhe um objeto adequado,

daqueles que a consomem sem problemas.

de modo a inspirar uma forma reflexa de simpa-

Há dois modos pelos quais a música pode provocar uma resposta: ou desencadeando-a, ou fornecendo-lhe um objeto adequado.

tia. As drogas alteradoras de humor têm efeitos psíquicos fortes, tanto agradáveis quanto desagradáveis. Mas elas funcionam diferentemente da arte e da música: elas não visam a nossos poderes de compreensão e reflexão racional e são perigosas por esta mesma razão, ao criarem atalhos viciantes que passam ao largo da reflexão crítica. Se é assim que o Crystal Castles visa a trabalhar, então, por que não consideramos sua música como consideramos as drogas alteradoras de humor — como algo que deveria estar sujeito ao controle legislativo, exata-

Os mais velhos tendem a reagir negativamente

mente como Platão sugeriu?

a este destaque dado uma voz feminina agitada, considerando-a pornográfica (embora a letra, tal

Eis aqui uma peça musical que induz a um efeito

como é, pareça ser mais sobre morte e drogas do

que não tem nada a ver com sua qualidade como

que sexo). Mas esta característica não é o mais

música e que, na verdade, passa ao largo de qual-

impressionante para o ouvido musical. Certamente

quer compreensão musical: “O policial rindo.”

é perceptível que a peça não tem melodia; igualmente perceptível é que é pobre harmonicamente

The Laughing Policeman - Charles Jolly/Penrose

— e o mais perceptível de tudo é que os sons res-

https://www.youtube.com/

ponsáveis pelo que há de ímpeto rítmico são feitos

watch?feature=player_embedded&v=hI1nPd7hezM

eletronicamente e não refletem os ritmos corpoIsto funciona como cócegas, um riso infeccioso

métrica que eles estabelecem são profundamente

e sem um objeto, riso sem diversão, comparável

alheios aos ritmos naturais do corpo humano ou às

ao ferimento sem uma causa que é invocado por

expectativas do ouvido humano. Estamos lidando

Alice. Desnecessário dizer que o riso provocado pelo

com um tipo de música feita por máquinas, que foi

policial que ri é bem diverso do riso provocado pela

desconectada da fonte tradicional de música na

música maravilhosa de Mozart ao final do segundo

vida humana e do impulso de dançar e cantar em

ato das “Bodas de Fígaro”, no qual as progressões

MAIO 2014

rais das pessoas que os produzem. Estes sons e a

27


ARTE

harmônicas assumem a situação dos protagonis-

com uma outra pessoa, mas, no máximo, apenas

tas e gradualmente desequilibram tudo em favor

a tentativa de se dançar junto ao outro, fazendo

de Fígaro. A música de Mozart faz rir em virtude de

movimentos fatiados e atomizados como os sons

sua qualidade intrínseca como música. Não dá para

que põe Alice em movimento. Quem quiser ver um

atinar com ela sem responder à piada musical que

exemplo deste tipo de dança — na qual as pessoas

surge dentro da ordem melódica, harmônica e rít-

são vítimas e não produtoras de dança — só precisa

mica que se ouve. Ao responder a Mozart, a pessoa

ver o vídeo de “Alice Practice” no YouTube.

ri da e com a música; ao ouvir “O policial rindo”, a pessoa não ri de nada, igual a quando alguém faz

Quero agora contrastar Alice com um ritmo de ver-

cócegas nela; e tampouco ri com a música, já que

dade de uma canção do início do pop. Usarei uma

não é a música que está rindo. A diferença aqui é

que todos vocês conhecem: “Heartbreak Hotel.”

um tópico em si e eu vou deixá-la descansando ao fundo, enquanto retorno ao primeiro plano da compreensão musical.

Elvis Presley - Heartbreak Hotel https://www.youtube.com/ watch?feature=player_embedded&v=71fuhzYDeT4

A natureza do ritmo Vocês perceberão que aqui o ritmo é gerado interEu sugeri que há três elementos de organização

namente pela linha melódica e que ele é gerado

musical, em todos os quais “Alice Practice” é falho.

só pela voz: os instrumentos de apoio juntam-se

Mas quero agora dizer mais sobre cada um, já que

então a ela, e não fazem isto distribuindo as linhas

eles nos ajudarão a conseguir algo como um ponto

do compasso e fatiando a sequência do tempo, mas

de apoio no âmbito da música pop. Nós ouvimos

tomando a batida da voz de Elvis. O compasso aqui

frequentemente que o ritmo é da maior importân-

não é imposto à linha melódica como uma grade,

cia no pop, o qual é música para se dançar, e que

mas é projetado a partir dela, criando linhas rítmicas

os que o julgam pelos padrões da sala de concerto,

virtuais no ouvido, à medida em que respondemos

um local para uma audição silenciosa, simples-

à síncope da voz. Não há aqui nenhuma bateria

mente não entenderam a coisa. Esta é certamente

violenta, nenhum baixo amplificado, nenhum dos

Ritmo não é a mesma coisa que compasso.

artifícios que — estou tentado a dizer — substituem o ritmo em tanto pop contemporâneo. Eis aqui um outro exemplo do fenômeno que tenho em mente, desta vez puramente instrumental.

uma resposta justa às formas mais rabugentas de crítica, mas levanta uma questão de profunda

Eric Clapton - Lay Down Sally

importância para o estudo da música: a natureza

https://www.youtube.com/

do ritmo. A primeira coisa que se ouve no exemplo

watch?feature=player_embedded&v=EivR78mrRFE

de Alice é um fatiamento doloroso do tempo por um cortador de queijo elétrico. E isto serve para lem-

Esta é a abertura de “Lay Down Sally”, de Eric

brarmos (ou deveria nos lembrar) que ritmo não é

Clapton, na qual se ouve o ritmo sendo gerado

a mesma coisa que compasso. Não é simplesmente

por guitarras acústicas, sem voz ou bateria, mas

uma questão de se dividir o tempo em unidades que

gerado de forma tão eficaz que a pessoa é levada

possam ser repetidas. É uma questão de organizá-

pela música antes que a bateria entre e, portanto,

-lo em uma forma de movimento, de modo que

ela não sofre aquela súbita invasão, aquela captura

uma nota convida a próxima para entrar no espaço

do corpo pela batida, que é a desculpa horrível para

que ficou vago. Isto é exatamente o que acontece

o ritmo em tanto pop sintético de hoje em dia. Tais

na dança — quer dizer, na dança de verdade. E

exemplos estão a anos-luz do grupo de death metal

as queixas que podem ser feitas contra as piores

sueco Meshuggah.

MAIO 2014

formas de pop também se aplicam às tentativas

28

capengas de se dançar que elas geralmente pro-

Meshuggah - Bleed

duzem — tentativas que não envolvem qualquer

https://www.youtube.com/

controle do corpo, qualquer tentativa de se dançar

watch?feature=player_embedded&v=qc98u-eGzlc


O metal é, claro, um estilo todo particular, que não

conscientemente umas com as outras. A neces-

é, de forma alguma, típico da cena pop. Há muito

sidade humana por este tipo de dança ainda está

a se admirar na virtuosidade do baterista deste

conosco e explica a atual febre da salsa, bem como

exemplo, embora eu duvide que se pudesse dizer

os ressurgimentos periódicos das danças de salão

que ele “tem ritmo” no mesmo sentido de Elvis.

e dos reels escoceses. A “comunidade” do reel foi

Até ser organizado melodicamente, o ritmo tende

notada e comentada por Friedrich Schiller, que

a se reduzir ao compasso, enquanto que, quando

considerou o que ele chamou de modo “inglês”

organizado melodicamente, como nos exemplos

de dançar como uma confirmação da ligação entre

de Elvis e Clapton, ele é alçado ao nível do gesto

beleza e boas maneiras. Vale a pena citar suas

e do movimento. A diferença aqui não é material;

palavras:

é fenomenológica — uma diferença de como as repetições são ouvidas. No primeiro caso, elas são

A primeira lei das boas maneiras é: tenha conside-

ouvidas como batidas regulares, como o pulsar

ração pela liberdade dos outros. A segunda: mostre

de uma máquina; no segundo, são ouvidas como

sua liberdade. A execução correta de ambas é um

movimentos repetidos, do tipo que nossos corpos

problema infinitamente difícil, mas as boas maneiras

produzem ao correr, andar ou dançar. Um modo

sempre a exigem incansavelmente e ela sozinha faz

simples de se apreciar a diferença aqui é escutar

o cosmopolita. Não sei de uma imagem mais apro-

um reel para oito.

priada para o ideal de belas relações do que a dança inglesa bem dançada e multiplamente convoluta. O

Reel para oito

espectador na galeria vê incontáveis movimentos que

https://www.youtube.com/

se entrecruzam coloridamente e mudam sua direção

watch?feature=player_embedded&v=oIz5rGCfw9Q

caprichosamente, mas nunca colidem. Tudo foi disposto de modo que o primeiro já abriu espaço para

Nada poderia ser mais metricamente regular do

o segundo antes que este chegue, tudo se encaixa

que isto; mas há um nexo audível de transição

tão habilidosamente e, não obstante, com tão pouco

entre as seções, à medida em que os gestos mudam

esforço, que ambos parecem simplesmente estar

— às vezes as mãos estão no ar, às vezes em torno

seguindo suas próprias inclinações, embora nunca

do meio do corpo; às vezes as pernas se cruzam

atrapalhem o outro. Este é o mais adequado retrato

livremente, outras vezes tendem a pisar com força.

da manutenção de uma liberdade pessoal que respeita

A melodia varia levemente com cada mudança de

a liberdade dos outros.

parceiro e a animação aumenta a cada encerramento de linha melódica.

No mundo desta música, as pessoas conversam, berram, dançam e sentem umas às outras, sem nunca fazerem estas coisas com elas.

É inegável que, para muitos, senão para a maioria dos jovens, a experiência da “comunidade” está ausente de seu modo de dançar, que tipicamente não envolve nem passos complicados nem formações. O metal é berrado aos seus adeptos e a perda de melodia da linha vocal enfatiza isto. Não que a melodia esteja inteiramente ausente, é claro; ela é permitida no solo de guitarra, que frequentemente é uma reflexão pungente sobre sua própria solidão

isto sugere. O ritmo na peça do Meshuggah é ati-

— o fantasma de uma comunidade que desapare-

rado ao ouvinte; o ritmo no reel convida o ouvinte

ceu deste mundo envernizado. No mundo desta

a movimentar-se com ele. A diferença entre “a” e

música, as pessoas conversam, berram, dançam

“com” é uma das mais profundas que se conhecem

e sentem umas às outras, sem nunca fazerem estas

e é exemplificada em todas as ocasiões em que nos

coisas com elas. O heavy metal é dançado batendo-

encontramos com outras pessoas — sobretudo em

-se cabeça e com o slam dancing ou “moshing”

conversas e interações sexuais. E a “comunidade”

(empurrar as pessoas na multidão). Este tipo de

do reel para oito reflete o fato de que esta é uma

dança não está realmente aberta a pessoas de todas

dança social, na qual as pessoas se movimentam

as idades, mas restrita aos jovens e sexualmente

MAIO 2014

A fenomenologia vai um pouco mais fundo do que

29


ARTE

disponíveis. É claro que não há nada que proíba os

O movimento pode até continuar enquanto não se

velhos e os engelhados de juntarem-se a eles; mas

ouve nenhum som — como no tema da Terceira

a visão deles fazendo isto é um constrangimento, e

Sinfonia de Beethoven, último movimento.

tanto maior se eles mesmos parecerem não se dar Beethoven - 3ª Sinfonia - 4º movimento

conta disto.

https://www.youtube.com/ Isto ainda não é uma crítica, claro, mas nos enca-

watch?feature=player_embedded&v=cGBzOudjQhk

minha na direção de um reconhecimento do que me parece ser uma importante verdade a respeito

Os sons existem no mundo físico: são objetos reais,

da música pop, e é que o que parece ser ritmo e o

reconhecidamente de um tipo diferenciado, mas

destaque dado ao ritmo muitas vezes é, na verdade,

tão reais quanto as cores e os arco-íris. Os sons são

uma ausência de ritmo, um afogamento do ritmo

estudados pela física e obedecem às leis do movi-

pela batida. O ritmo divorciado da organização

mento, que regem todos os outros entes no espaço

melódica torna-se inerte; ele perde sua qualidade como gesto e daí perde a plasticidade do gesto. Como um contraste extremo, que, entretanto, eu espero que possa demonstrar o que estou dizendo, dou a vocês um outro exemplo: a pequena célula rítmica, encantadoramente moldada pela linha melódica, a partir da qual Antonin Dvořák constrói

Os pássaros, que criam sequências que nós ouvimos como música, não as ouvem como música.

o scherzo da Sinfonia do Novo Mundo. e no tempo. Os animais os ouvem; os animais Sinfonia do Novo Mundo

também diferenciam os sons com base em seus

https://www.youtube.com/

diapasões. Eles ouvem sucessões de sons dispos-

watch?feature=player_embedded&v=-pLIBWyFBIg

tos em diapasões. Mas eles não ouvem melodias. Os pássaros, que criam sequências que nós ouvimos

Graças à ordem melódica, esta célula pode ser

como música, não as ouvem, em minha opinião,

usada como um bloco de construção, somado,

como música, pois este tipo de audição envolve uma

dividido e multiplicado em contraponto para gerar

capacidade imaginativa que nenhum pássaro tem.

uma empolgação rítmica que, em minha opinião,

O movimento é em parte uma ideia causal. Ouvir a

não tem qualquer equivalente no pop moderno.

melodia mover-se de dó para mi bemol, digamos, é ouvir o mi bemol evocado pelo dó — uma força vir-

É claro que este exemplo vem da sala de con-

tual opera entre as notas, criando-as em resposta à

certo, de música para ser ouvida, na qual o ritmo

última e levando-as todas adiante, rumo a uma con-

foi emancipado das exigências da pista de dança e

clusão. No entanto, não há qualquer força assim no

incorporado a um raciocínio contrapontual com-

mundo físico dos sons, no qual há apenas sequên-

plexo. No entanto, ainda é ritmo — ritmo gerado

cias. Eis aqui um exemplo interessante: a abertura do

dentro da música e pondo em marcha um movi-

Segundo Concerto para Piano de Johannes Brahms,

mento próprio. Talvez este seja um bom lugar para

no qual uma sequência de trompa evoca uma frase

expor uma opinião filosófica. Quando ouvimos uma

em resposta, por parte do piano.

peça musical, ouvimos uma sequência de sons: um som e depois outro. Normalmente, estes sons tem

Brahms - Concerto para piano nº 2 - Mov. 1

um diapasão e a melodia depende de se tocarem

https://www.youtube.com/

diferentes diapasões em sucessão. Quando ouvimos

watch?feature=player_embedded&v=D18AujwrQb4

MAIO 2014

uma melodia, entretanto, não ouvimos apenas uma

30

sucessão de sons em diapasão. Ouvimos outra coisa

Não há qualquer interação causal entre estes sons

— a saber, um movimento entre estes sons. A melo-

no mundo real — a primeira sequência é tocada na

dia começa em uma nota, continua através das notas

trompa, a segunda no piano. No entanto, a segunda

seguintes de forma orientada a uma meta e termina

é provocada pela primeira, da maneira mais

em uma outra nota. Isto é algo que ouvimos, muito

simples e eficaz. Posteriormente, no mesmo con-

embora nada no mundo físico se movimente de fato.

certo, Brahms distribui fragmentos de melodias


alternadamente ao piano e à orquestra e a força

à maneira de cantigas conseguiram tornar-se

virtual circula entre os fragmentos, ligando-os em

conhecidas em todo o mundo. Por outro lado,

uma só melodia de forma impressionante.

muito pouco está aparecendo no pop que demons-

Eu menciono estes tópicos porque acho que

tre invenção melódica ou mesmo uma consciência

devemos ter em mente que não fazemos música

do porque a melodia importa — ou seja, uma cons-

simplesmente produzindo sons, e que há de fato

ciência de seu significado social e sua capacidade

um risco, inerente à própria arte da música, de que

de dar substância musical a uma canção estrófica.

ela possa, a qualquer momento, desabar no som — tornar-se um efeito sonoro, cujo propósito é produzir respostas, à maneira de como “O policial que ri” produz o riso, sem chamar nossa atenção para o que pode ser ouvido e imaginado na linha rítmica e melódica. O desabamento da música no som está, na verdade, acontecendo à nossa volta, tanto no mundo do pop quanto nas salas de concerto, e eu proponho que isto seja condenado, já

A grande questão para o crítico do pop é se ele apresenta qualquer tentativa semelhante de inovação melódica.

que o efeito sonoro não é um novo tipo de música,

Um número incalculável de canções pop nos dão

mas uma perda da música.

alternâncias das mesmas frases feitas, diatônicas ou pentatônicas, mas mantidas juntas, não por

Isto me traz à melodia. Definir a melodia é uma das

qualquer poder intrínseco de ligação, mas apenas

tarefas inacabadas da estética da música e aqui só

por um fundo rítmico forçado e uma sequência

posso dar umas poucas sugestões. Um bom ponto

banal de acordes. Ozzy Osbourne ilustra o que eu

de partida é observar que a melodia tem um início,

tenho em mente: não há sentido nesta melodia

um meio e um fim; mas isto é verdade apenas num

estar sob direitos autorais, e tampouco em haver

sentido geral. Uma melodia que começa com um

processos por quebra de direitos.

batida fraca (como tantas canções do folk inglês) não tem uma fronteira inicial clara: pode-se ouvi-

Ozzy Osbourne - Goodbye to Romance

-la como estando dentro ou fora da melodia, mas a

https://www.youtube.com/watch?feature=player_

fronteira meio que desaparece por trás dela. Muitas

embedded&v=_9CXVXhRTpg

melodias terminam sem uma conclusão clara — por exemplo, o grandioso tema do primeiro

Ainda mais frequente é a melodia sobre uma só

movimento do Concerto para Violino de Sibelius.

nota, que pode subitamente mudar de diapasão para uma terceira quando a harmonia muda, mas

Sibelius - Concerto para violino

que, se isto não ocorre, mantém-se igual, con-

https://www.youtube.com/watch?feature=player_

fiando no fundo musical para prosseguir. Eis aqui

embedded&v=x6Kq0qMMpgU E dizer que todas as melodias devem ter um meio não diz absolutamente nada.

os Kooks, em “Ooh La.” The Kooks - Ooh La https://www.youtube.com/watch?feature=player_ embedded&v=P8DRxQATErY

Tradicionalmente, a melodia tem sido o princípio Ao repetirem uma só nota, eles elidem a linha

que se memorize a letra e que as pessoas juntem-

melódica para o ritmo, que é, ele mesmo, reduzido

-se ao canto. Todas as tradições do folk contêm

a uma batida regular com muito pouca ou nenhuma

um repertório de melodias que muitas vezes são

força musical. Eu convido vocês a procurarem por

construídas com elementos repetíveis, mas que

este artifício, que ocorre incontáveis vezes no pop

também mostram elaborações notáveis, como nas

contemporâneo. Com estes artifícios — frases fei-

melodias aparentemente sem fim do raga indiano

tas e notas repetidas — um músico pop pode evitar

ou do canto gregoriano. A songbook americana

o verdadeiro desafio de fabricar uma melodia, e que

exibe um novo tipo de melodia, moldada pelos rit-

é produzir o movimento virtual que impulsionará a

mos e harmonias do jazz e muitas de suas melodias

melodia adiante, com ou sem uma conclusão.

MAIO 2014

fundamental da canção popular: ela torna possível

31


ARTE

As melodias são de muitas espécies e não deverí-

subjugada pelo mecânico. Certamente é correto

amos criticar o pop só porque ele não obedece às

falar de um novo tipo de audição, talvez de um tipo

regras de uma tradição à qual ele não pertence. Os

que não é audição de forma alguma, já que não há

compositores barrocos escreveram melodias; mas

qualquer melodia de que se possa falar, já que o

estas melodias tendem a ser muito diferentes de

ritmo é mecânico e já que o único convite à dança é

qualquer coisa que hoje chamaríamos de uma melo-

um convite para se dançar consigo mesmo. E é mais

dia no sentido da cantiga. Eis aqui um exemplo de

fácil imaginar um tipo de pop que não seja como o

J.S. Bach—“Erbarme Dich”, da Paixão Segundo São

pop que está com o ouvinte ao invés de se impor a ele.

Mateus, uma linda melodia que começa com uma

Não é preciso voltar a Elvis ou aos Beatles para se

batida fraca e prossegue de um período a outro,

encontrarem exemplos.

como se pudesse continuar para sempre. Bach - Erbarme Dich https://www.youtube.com/watch?feature=player_ embedded&v=aPAiH9XhTHc Aqui, todas as fronteiras são tênues e a melodia pode ser subdividida de inúmeras maneiras, para se permitirem múltiplas elaborações no curso

As harmonias não são apenas sequências de acordes às quais as melodias se impõe, mas aventuras em si mesmas.

da ária. E no entanto, ela envolve um raciocínio

Antes de continuar, direi algumas palavras sobre a

melódico da mais alta ordem. Ela não é nem um

harmonia. O repertório barroco nos lembra de que

tema nem uma melodia no sentido da cantiga, mas

há um movimento musical de tipo sutil e oniabran-

um melisma ininterrupto, que atira esporos à sua

gente, que tem pouco ou nada a ver com a melodia,

volta, enquanto cresce. Em muitos sentidos, a his-

bem como uma batida rítmica apenas embrionária,

tória da melodia desde Bach tem sido uma história

mas no qual tudo está empregado em progressões

da retratação — uma constante concentração de

harmônicas — e uma música assim pode se revelar

seus elementos, com o melisma sendo reduzido

profundamente reflexiva, ao modo desta passagem

aos temas da forma sonata e expandidos nova-

de uma suíte para violoncelo de Bach: nada além de

mente para as amplas melodias dos românticos,

acordes interrompidos, nascendo uns dos outros e a

antes de serem novamente reduzidos a motivos e

eles regressando, mas com um tipo de movimento

frases melódicas. E no entanto, em tudo isto nós

sedutor que conquista inteiramente o ouvido.

observamos um intenso raciocínio musical, com os compositores lutando para evitar a banalidade

Bach - Suíte Nº 1 para violoncelo solo

e fazer melodias e frases que atraíssem a simpa-

https://www.youtube.com/

tia e agitassem o coração. A grande questão para o

watch?feature=player_embedded&v=S6yuR8efotI

crítico do pop é se ele apresenta qualquer tentativa semelhante de inovação melódica.

Um dos triunfos da cultura auditiva está na evolução de uma música na qual as progressões

A “regressão da audição”

melódicas, rítmicas e harmônicas movem-se de

MAIO 2014

mãos dadas. As harmonias não são apenas sequ-

32

Adorno atacou algo que ele chamou de “regressão

ências de acordes às quais as melodias se impõe,

da audição”, que ele acreditava que tinha infectado

mas aventuras em si mesmas, sofrendo as influên-

toda a cultura musical da América moderna. E inde-

cias da linha melódica e, por sua vez, impondo-se a

pendente do quão exagerada sua crítica à songbook

ela. Por alguma razão, Adorno não percebeu que o

americana possa nos parecer agora, eu pessoal-

estilo do jazz se enquadra exatamente nesta tradi-

mente não tenho dúvidas de que esta “regressão”

ção e que as sequências fundamentais do blues e o

é exatamente o que ouvimos no tipo de pop sobre

jazz de Nova Orleans muito em breve adaptaram-se

o qual estou discutindo. Notem, por favor, que não

a um novo tipo de fatura melódica, na qual mais

estou falando da letra. Estou falando da experiên-

uma vez harmonias bastante complexas parecem

cia musical, que tornou-se truncada, embriônica,

influenciadas por melodias também complexas,

reduzida a uma batida externa e frequentemente

muito embora ambas sejam de curto fôlego e se


encaminhem rapidamente para sua conclusão. Eis

está simplesmente no tipo de movimentos feitos;

aqui um célebre exemplo disto: “Round Midnight”,

é uma diferença de maleabilidade social e de valor

de Thelonious Monk.

relativo depositado em estar com o próximo ao invés de sobre e contra ele.

Thelonious Monk - Round Midnight https://www.youtube.com/ watch?feature=player_embedded&v=-yg7aZpIXRI Agora, não deve ter passado despercebido que, nos exemplos que dei, as progressões harmônicas normalmente têm pouco ou nada a ver com a linha melódica. Isto é óbvio demais no caso de Ozzy Osbourne, no qual a melodia é carregada pela harmonia e não tem vida própria, sendo a própria

O movimento musical visa a nossas simpatias: ele nos pede para que nos movamos com ele. Movimentos externos nos são impostos.

harmonia uma sequência piegas de tríades. Nem todo pop é assim, é claro; às vezes, há inventivi-

Se voltarmos por um instante ao que eu disse

dade harmônica verdadeira, como no Led Zeppelin,

anteriormente sobre o ritmo e a melodia, reconhe-

em Jimi Hendrix, e em alguns exemplos de heavy

ceremos que, independente do que desejemos dizer

metal. O propósito de meus exemplos não é conde-

sobre o caráter moral da música, ele está atrelado

nar definitivamente a música e a cultura pop, mas

ao movimento que ouvimos nela. Este movimento

fazer comparações. E o sentido destas compara-

é um sinal de vida, e respondemos a ele fazendo

ções é duplo: primeiro, persuadir o fã do pop que

nossos próprios movimentos simpáticos, como

elas são possíveis, mesmo dentro do mundo do pop;

quando dançamos com a música ou gingamos com

em segundo lugar, mostrar que uma comparação

ela, enquanto a ouvimos. O movimento na música

leva inevitavelmente a um juízo, e o juízo, por sua

surge internamente à linha musical e só está lá na

vez, a uma avaliação moral.

medida em que é ouvido pelo ouvido imaginativo. Mas há um outro tipo de movimento que recebe-

O juízo do não-juízo

mos através da música: o movimento que não está na música, mas é imposto à ela, por uma batida que

Não fazer juízos, na verdade, é já ter feito um

não tem ligação com a linha melódica. Tal movi-

tipo de julgamento: é sugerir que, no fundo, não

mento pode ser comunicado através da música,

importa o que você escuta ou ao som do que você

mas surge externamente, nas batidas e no zumbido

dança e que não há distinção moral entre os vários

de uma máquina, no pulsar de um aparelho eletrô-

hábitos de audição que surgiram na era da repro-

nico, em uma voz que berra ou no som provocativo

dução mecânica. Esta é uma posição moralmente

de Alice, em um estado de excitação enojada.

carregada e que ofende ao senso comum. Sugerir que pessoas que vivem com uma batida métrica

Como sugeri anteriormente, o movimento musical

como fundo constante de seus pensamentos e

visa a nossas simpatias: ele nos pede para que nos

movimentos vivem do mesmo modo, com o mesmo

movamos com ele. Movimentos externos nos são

tipo de atenção e o mesmo padrão de desafios e

impostos. Não se pode mover-se facilmente com

recompensas que outras que só conhecem música

eles, mas pode-se submeter-se a eles. Quando uma

de se sentarem para a ouvir, limpando suas men-

música organizada por este tipo de movimento

tes, enquanto isto, de outros pensamentos — tal

externo é tocada para uma dança, ela automatica-

sugestão é certamente implausível.

mente atomiza as pessoas na pista de dança. Elas podem dançar na presença umas das outras, mas apenas com muita dificuldade umas com as outras.

solipsista encorajada pelo metal ou pela indie music

E aí a dança não é algo que se faça, mas algo que

compartilha de uma mesma forma de vida com os

acontece com a pessoa — uma batida da qual ela

que dançam, quando dançam, em formação, com o

está suspensa, como Alice, pendurada em seus fios.

espírito registrado tão eloquentemente por Schiller, é dizer algo igualmente implausível. A diferença não

Só criaturas racionais dançam, e em condições

MAIO 2014

Do mesmo modo, sugerir que quem dança à maneira

33


ARTE

normais elas fazem isto colocando suas persona-

Eu sustento que há diferenciações a serem feitas

lidades e liberdade à mostra, da maneira descrita

dentro da música popular e que elas dizem respeito

por Schiller. Quando se está sob o controle de um

às próprias dimensões da significação musical

ritmo externo e mecânico, a liberdade da pessoa é

— ritmo, melodia e harmonia — que tornam a

atropelada e é difícil, então, mover-se de modo a

música, em todas as suas formas, um espelho tão

sugerir uma relação pessoal com um parceiro — a

importante da vida humana. Há música popular

relação eu-e-tu sobre a qual a sociedade está cons-

melodiosa em abundância e também música com a

truída. Platão certamente tinha razão, portanto,

qual se pode cantar junto, e ao som da qual pode-se

em achar que, quando nos movemos no tempo

dançar de maneiras sociáveis. Tudo isto é óbvio.

da música, estamos educando nosso caráter, pois

No entanto, há, dentro da música popular, um

estamos aprendendo um aspecto de nossa corpo-

outro tipo de prática completamente diferente em

reidade, como seres livres.

crescimento, na qual o movimento não está mais

Dançar não é só se mover. Os animais fazem isto.

contido na linha musical, mas é exportado para um lugar em seu exterior, para um centro de pulsação que não deseja ser escutado, mas que se submeta a ele. Se a pessoa de fato se submete, as qualidades morais da música desaparecem por trás da anima-

A corporeidade pode assumir formas virtuosas

ção; se vocês escutarem, entretanto, e escutarem

e viciosas. Para tomar um só exemplo, há uma

criticamente como estou sugerindo, vão discer-

profunda diferença, na questão da apresentação

nir estas qualidades morais, que são tão vívidas

sexual, entre a modéstia e a lascívia. A modéstia

quanto a nobreza na Segunda Sinfonia de Edward

dá espaço para o outro, como alguém com quem se

ou o horror na Erwartung, de Schoenberg. E aí vocês

está. A lascívia está na companhia do outro, mas

poderão sentir-se tentados a concordar com Platão

não com ele ou ela, já que é uma tentativa de cance-

que, se esta música for permitida, então as leis que

lar a liberdade do outro de se retirar. E é muito claro

nos governam mudarão.

que estes traços de caráter são exibidos na dança. A ideia de Platão era que se uma pessoa exibe lascívia nas danças de que mais gosta, então ela está muito mais próxima de adquirir o hábito. Para colocar a coisa na linguagem que estou usando: ela aprende a estar na companhia da (não com a) outra pessoa que ela encontra. Não vejo razão para duvidar disto. Agora, dançar não é só se mover, nem se mover em resposta a um som, batida ou o que quer que seja. Os animais fazem isto e pode-se treinar animais e elefantes para se moverem no tempo de uma batida na arena do circo, com um efeito que parece dança. Mas eles não estão dançando mais do que os pássaros estão cantando. A dança é, em sua forma social verdadeira, mover-se com algo, estando-se consciente de que isto é o que se está fazendo. A pessoa se move com a música e também (em danças antiquadas) com seu parceiro. Este ”mover-se com” é algo que os animais não podem fazer, já que isto envolve a imitação deliberada da vida que uma outra fonte, que não o próprio corpo dela, irradia. Isto,

MAIO 2014

por sua vez, exige uma concepção do eu e do outro e

34

da relação entre eles — uma concepção que, eu diria, é inviável fora do contexto possibilitado pelo uso da linguagem e da consciência de primeira pessoa.

Traduzido por Larry Martins Fernandes


Sobre a defesa da Beleza, Roger Scruton Tradução de “On Defending Beauty,” publicado na “The American Spectator,” em 15 de maio de 2010.

P

ara o bem ou para o mal, eu fui identificado pelo establishment britânico como a pessoa com quem se pode contar para defender o indefensável e que pode rece-

ber permissão para defender o indefensável até em uma televisão estatal (quer dizer, a BBC), desde que a defesa seja suficientemente diluída por outros que defendem o óbvio. No código oficial, “indefensável” quer dizer “conservador”, enquanto que

Eu recebi mais de 500 emails de telespectadores, todos eles (exceto um) dizendo: “Graças a Deus alguém está dizendo o que é preciso ser dito.”

“óbvio” quer dizer “liberal-esquerdista”. Assim uma traição a um chamado divino. Então, foi isto

uma série de televisão sobre a beleza [exibida em

o que eu disse, já que, afinal de contas, era para

2009], esperava-se que eu sustentasse que tal

isto que eles estavam me pagando. Para alcançar

coisa realmente existe, que não é só uma ques-

o equilíbrio que a BBC é obrigada por seu regi-

tão de gosto, que ela está ligada ao nobre, àquilo

mento a apresentar, dois outros programas foram

a que se deve aspirar e ao que há de sagrado em

encomendados, reafirmando as ortodoxias. Eles

nossos sentimentos, e que a cultura pós-moderna,

afirmaram que a arte não tem a ver com a beleza,

que enfatiza a feiura, o desalento e a profanação, é

mas com a originalidade, e que originalidade quer

MAIO 2014

sendo, quando a BBC me pediu para participar de

35


RELIGIÃO

dizer você se exibir, com a língua (ou algum outro

cama não alcança nem tem como meta.

órgão apropriado) para fora. Eu recebi mais de 500 e-mails de telespectadores, Em Por que a beleza importa, eu falei um pouco sobre

todos eles (exceto um) dizendo: “Graças a Deus

arte, mas estava mais preocupado em chamar

alguém está dizendo o que é preciso ser dito,”

atenção para o lugar da beleza na vida cotidiana

metade deles acrescentando, “mas como é que

— nas maneiras, nas roupas, na decoração de

deixaram você dizer isso na BBC?” Enquanto isto,

interiores e nos edifícios comuns em arquitetura

os resenhistas juntaram-se em bando para lamen-

vernacular. Eu critiquei tanto a arquitetura fun-

tar o caráter triste, anômalo e reacionário do pobre

cional de concreto e vidro, que destruiu cidades

Scruton, e agradecer à BBC por mostrar o absurdo e

em todo o mundo, quanto as maneiras egocêntri-

o anacronismo das opiniões do professor já idoso.

cas que fizeram o mesmo com a vida doméstica.

Waldemar Januszczak, que fez um outro dos filmes

Tentei explicar por que os filósofos do Iluminismo

da série sobre a beleza, preparou um verdadeiro

acompanharam Shaftesbury, ao colocarem a beleza

libelo para assassinato de caráter no Sunday Times,

no centro do novo código de valores seculares. Para

a fim de aconselhar seus leitores, antes da exibição

Shaftesbury, Burke, Kant, Schiller e seus segui-

de meu filme, a desconsiderarem o que quer que eu

dores, sugeri eu, a beleza era o caminho de volta

pudesse tentar lhes dizer.

para o mundo que eles estavam perdendo com a perda do Deus cristão — o mundo do sentido, da

O episódio foi, para mim, revelador e instrutivo

ordem e da transcendência, que deve ser constan-

a respeito de meu país e sua cultura. Eu não digo

temente emulado neste mundo se quisermos que

que meu filme tivesse qualquer outro mérito além

nossas vidas sejam verdadeiramente humanas e

de sua honestidade. Mas ele gerou provas esma-

verdadeiramente plenas de significado. E afirmei

gadoras de que sua visão da arte e da estética é

em seguida que desde as piadas pueris de Marcel

compartilhada por muitos espectadores britânicos,

Duchamp, repetidas reiteradas vezes em toda

e de que a cultura oficial não só está divorciada des-

mostra de faculdade de artes na Grã-Bretanha, um

tas pessoas como é profundamente hostil ao que

hábito de sarcasmo e profanação tinha se apode-

elas acreditam, ao que elas sentem e ao que elas

rado do exercício das artes visuais.

aspiram. A arte niilista de nossa época é repassada

A arte niilista de nossa época é repassada ao povo britânico como uma reprimenda.

ao povo britânico como uma reprimenda, que ele deve aceitar com toda humildade e com um espírito de arrependimento por ter desejado algo de “superior.” Não existe nada de superior — esta é a lição a ser aprendida com a Jovem Arte Britânica, e com as pilhas de lixo sem nexo que ela manda para nossos museus e galerias. Só podemos entender a condição humana, ela nos diz, se adotarmos uma

Daí os artistas britânicos de hoje — pelo menos

postura de grosseria e confrontação e se pusermos

os reconhecidos pela cultura oficial — não terem

a língua para fora.

MAIO 2014

muito mais a nos mostrar além do quanto são repul-

36

sivos. Parecia-me óbvio que a pintura de Delacroix

ESTE É SÓ UM ASPECTO DE algo que os america-

mostrando sua cama por fazer (na Maison Delacroix,

nos em visita à Grã-Bretanha notam cada vez mais.

em Paris) era uma verdadeira obra de arte, que

Nos anos 50 e 60, quando minha geração estava

mostra algo sobre a condição espiritual humana,

crescendo, os britânicos eram ativamente enga-

enquanto que a famosa cama de Tracey Emin (na

jados pelo sistema educacional e os mundos da

galeria Tate Modern, em Londres) é só uma cama

arte e da religião a uma cultura da aspiração. Esta

desarrumada. Podemos deduzir, pela visão desta

foi a época de Henry Moore e Benjamin Britten,

cama, um bocado a respeito da pessoa que a desar-

de Graham Sutherland e Michael Tippett. W. H.

rumou, mas isto não a distingue de nenhum outro

Auden era uma voz importante, assim como era o

entulho deixado no rastro de uma vida humana. O

ex-americano T. S. Eliot. A Grã-Bretanha era um

sentido superior que é a meta da arte — o sentido

lugar de grande significação histórica e religiosa.

que mostra por que a vida importa — é algo que esta

Era um privilégio pertencer a esta terra, e por toda


a parte a história nacional tinha deixado as mar-

com um país ou um modo de vida, educada por

cas e os prodígios de um modo de vida superior.

um currículo de contos de fada multiculturalistas

Correndo o risco de exagerar, pode-se dizer que

e aprendendo na escola de arte que você encon-

meu país, naquela época em que a geração do baby

tra seu lugar no mundo através da transgressão e

boom avançava em direção a uma perpétua ima-

da autoexibição, ela teve o bom-senso de ser um

turidade, era um ensaio da redenção. Sua arte,

verdadeiro caos visível ao público. Seus trabalhos

cultura e religião eram devotadas ao ideal de uma

podem não ser obras de arte, no sentido em que

comunidade na qual a decência, a curiosidade e a

minha geração foi educada a compreender este

abnegação tinham o domínio de tudo. E nela res-

selo honorífico, mas eles mostram um mundo

tava, como uma espécie de sobra da propaganda

que a cultura oficial da Grã-Bretanha optou por

do período da guerra, a crença no gentleman, que

endossar.

encara a vida com uma postura de devoção auto-sacrificial a ideais sem sentido – quer dizer, sem

A prova circunstancial da reação a meu filme não

sentido segundo o ponto de vista do observador

demonstra nada. O que eu sei é que muita gente por

cínico, mas que não eram sem sentido de forma

aí sente o que eu sinto. Eles concordam comigo em

alguma, dado o espírito com que eram aceitos.

que a beleza importa, que a profanação e o niilismo

O que eu sei é que muita gente por aí sente o que eu sinto.

são crimes e que deveríamos encontrar um modo de elevar nosso mundo e dotá-lo de uma significação mais do que mundana. Mas talvez outros tantos ou até mais acreditem na fábula “multicultural” oficial, que nos diz que não há nada de especial na Grã-Bretanha, que os antigos ideais e dignidades

O americano em visita à Grã-Bretanha hoje, e

são meras ilusões e que o objetivo da arte é cobrir

sobretudo se ainda tiver lembrança daquele mundo

de desprezo os valores das pessoas antiquadas. E

extraordinário no qual a decência, a autocensura e

se a impressão dos visitantes americanos estiver

o queixo duro eram os princípios dominantes, mui-

correta, não é só a cultura oficial, mas também a

tas vezes recua com horror diante do que encontra.

geração ascendente de neobritânicos que se deci-

A cultura pública é a do apetite e da sátira, e o país

diu pela zombaria à dignidade e pela transgressão

inteiro parece querer escandalizar, como se esti-

às normas da vida social. Se for assim, então, foi

vesse com uma língua coletiva para fora. Muitos

feita justiça a pelo menos uma parte de meu filme:

amigos americanos me dizem isto e falam senti-

a saber, que a beleza importa e que não se pode

dos a respeito da mudança, daquela Grã-Bretanha

cobri-la de desprezo sem se perder de vista o sen-

que eles costumavam visitar com uma sensação de

tido da vida.

voltarem para casa, para a Grã-Bretanha que eles visitam hoje, que é uma terra de estranhos. O inte-

Traduzido por Larry Martins Fernandes

ressante, entretanto (e a reação a meu filme parece confirmar isto), é que muitos dos britânicos concordam com eles. Os britânicos estão numa terra de estrangeiros, e a cultura que os governa é de uma natureza à qual muitos de meus compatriotas não podem pertencer de coração. O ethos oficial que predomina nas escolas e universidades, e também no Partido Trabalhista, é de desprezo e repúdio aos antigos ideais. A cultura oficial britânica é retratada com exatidão pela cama de Tracey Emin. É uma cultura de caos emocional e simpatias aleatórias, na qual lealdades tradicionais é filha ilegítima de um cipriota turco e sua situação é típica de sua geração. Incapaz de identificar-se

MAIO 2014

não desempenham nenhum papel. A própria Emin

37


HISTÓRIA

Contra a Escola, J. T. Gatto Tradução de “Against School”, da edição de setembro de 2003 da Revista Harper.

John Taylor Gatto é ex-professor do estado e da cidade

diziam que o dever era estúpido, que aquilo não

de Nova Iorque e autor do mais recente livro “The

fazia sentido, que elas já sabiam aquilo. Diziam

Underground History of American Education”. Ele

que gostariam de estar fazendo algo de verdade,

participou do fórum da revista Harper “School on a Hill,”

não apenas ficar sentadas aqui e ali. Elas diziam

que apareceu na edição de 2001.

que os professores pareciam não saber muito sobre as suas temáticas e obviamente não estavam inte-

Três anos atrás, Gatto sofreu um derrame que o deixou

ressados em aprender mais. E as crianças estavam

com o lado esquerdo do corpo paralisado, e está nessa

certas: os professores estavam tão entediados

situação, mantido acamado desde então. Em seu perfil no

quanto elas.

Facebook, você pode acompanhar seu estado de saúde, que infelizmente não tem melhorado. Se você quiser ajudar a família do autor em sua recuperação, acesse agora o site www.thejohntaylorgattomedicalfund.com. Este artigo

O tédio é o estado comum dos professores de escola.

traduzido é uma homenagem a esse grande homem, que merece todas as nossas orações para que se recupere.

O tédio é o estado comum dos professores de escola, e qualquer um que tenha passado algum tempo em

Como o ensino público debilita nossas crianças

uma sala de professores pode atestar a falta de

e por quê

energia, as reclamações e o desânimo encontra-

MAIO 2014

D

38

dos ali. Quando questionados sobre o porquê de

urante os trinta anos em que ensinei

sentirem-se entediados, os professores tendem a

em algumas das piores, e em algumas

culpar as crianças, como você já devia imaginar.

das melhores, escolas de Manhattan,

Quem não se sentiria entediado ensinando alunos

tornei-me um especialista em tédio. O

grosseiros e interessados somente nas notas? Isso

tédio estava em todos os lugares do meu mundo,

na melhor das hipóteses. Claro, os próprios pro-

e se você perguntasse às crianças, como eu fazia

fessores são produtos dos mesmos programas de

frequentemente, por que elas sentiam-se tão ente-

escolarização compulsória de doze anos que tanto

diadas, as respostas eram sempre as mesmas: elas

aborrecem os estudantes, e, como membros da


escola, eles estão presos a estruturas ainda mais

receberem uma escolarização. Encorajaríamos as

rígidas do que aquelas impostas sobre as crianças.

melhores qualidades da juventude – curiosidade,

Então de quem é a culpa?

espírito aventureiro, resiliência, a capacidade de ter insights surpreendentes – simplesmente sendo

Todos somos culpados. Meu avô ensinou-me isso.

mais flexíveis em termos de tempo, textos e pro-

Em uma tarde, quando eu tinha sete anos, queixei-

vas, estimulando as crianças a tornarem-se adultos

-me de tédio para ele, e ele deu-me uma pancada

competentes, dando a cada aluno a autonomia que

na cabeça. Disse-me que jamais repetisse aquela

ele ou ela precise para assumir um risco de vez em

expressão em sua presença, e que, se eu estava

quando.

entediado, aquilo era culpa minha e de mais ninguém. O dever de animar-me e instruir-me era inteiramente meu, e as pessoas que não soubessem disso eram infantis e, se possível, deveriam ser evitadas. Certamente não eram confiáveis. Aquele episódio curou-me do tédio para sempre; e aqui e ali, ao longo dos anos, eu fui capaz de transmitir

Será que nossas escolas são feitas para garantir que nenhuma delas jamais venha a crescer de fato?

a lição a alguns estudantes notáveis. No entanto, na maioria das vezes, achei inútil tentar desafiar a

Mas não fazemos isso. E quanto mais eu pergun-

noção oficial de que o tédio e a infantilidade eram

tava por que não, e insistia em pensar sobre o

o estado natural das coisas na sala de aula. Muitas

“problema” da escolarização como um engenheiro

vezes precisei desafiar os costumes e até mesmo

o faria, mais eu me enganava: E se não há um “pro-

driblar a lei para ajudar as crianças a se libertarem

blema” com nossas escolas? E se elas são do jeito

dessa armadilha.

que são, tão distantes do senso comum e da longa experiência sobre como as crianças aprendem as

O império contra-atacou, é claro; adultos infantis

coisas, não porque estejam fazendo algo errado,

geralmente confundem oposição com deslealdade.

mas porque estão fazendo algo certo? É possível

Certa vez, ao voltar de uma licença médica, des-

que George W. Bush tenha acidentalmente falado

cobri que todas as provas que garantiam minha

a verdade quando disse que “não vamos deixar

licença haviam sido intencionalmente destruídas,

nenhuma criança para trás”? Será que nossas

que meu contrato havia sido rescindido, e que eu

escolas são feitas para garantir que nenhuma delas

não mantinha mais nem mesmo minha licença

jamais venha a crescer de fato?

como professor. Após nove meses de tormentas, Nós realmente precisamos de escola? Não refiro-

quando a secretária da escola admitiu ter testemu-

-me à educação, mas a escolarização forçada: seis

nhado o desenrolar dos fatos. Durante este período,

períodos por dia, cinco dias por semana, nove

minha família sofreu mais do que eu gostaria de

meses por ano, por doze anos. Esta rotina mortal

lembrar. Quando, em 1991, finalmente me apo-

é realmente necessária? Se sim, para quê? Não nos

sentei, eu tinha razões mais que suficientes para

escondamos atrás da leitura, escrita e matemática

pensar em nossas escolas – com seu confinamento

como motivos, pois dois milhões de homeschoolers

forçado de alunos e professores por longos perí-

felizes certamente descartaram essa justificativa

odo em salas, num regime quase carcerário – como

banal. Mesmo que não o tivessem feito, um número

fábricas virtuais de infantilidade. No entanto, eu

considerável de norte-americanos famosos nunca

honestamente não conseguia ver por que tinham

passou pelos sufocantes doze anos pelos quais

que ser daquela maneira. Minha própria expe-

nossas crianças atualmente têm de passar, e eles

riência me havia revelado o que muitos outros

saíram-se bem. George Washington, Benjamin

professores precisam também aprender ao longo

Franklin, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln?

do caminho, ainda que guardem para si mesmos

Alguém os ensinou, com certeza, mas eles não

por medo de represálias: se quiséssemos, podería-

foram produtos de um sistema escolar e nenhum

mos, de maneira fácil e barata, eliminar as velhas e

deles jamais “graduou-se” em uma escola secun-

estúpidas estruturas, e ajudar as crianças a adqui-

dária. Durante a maior parte da história americana,

rirem uma educação em lugar de simplesmente

as crianças geralmente não passaram pelo ensino

MAIO 2014

eu finalmente consegui recuperar minha licença,

39


HISTÓRIA

médio, mas os desescolarizados se tornaram almi-

da missão da educação pública; mesmo sendo

rantes como Farragut; inventores como Edison;

poucas, as escolas falham em alcançá-las. Mas,

capitães da indústria, como Carnegie e Rockefeller;

estamos totalmente errados. Compondo o nosso

escritores, como Melville, Twain e Conrad; e mesmo

erro está o fato de que a literatura nacional tem

acadêmicos, como Margaret Mead. Na verdade, até

declarações numerosas e surpreendentemente

bastante recentemente, pessoas que atingiam a

consistentes acerca do verdadeiro propósito da

idade dos treze anos não eram de maneira alguma

escolarização obrigatória. Temos, por exemplo,

vistas como crianças. Ariel Durant, co-autora de

o grande H. L. Mencken, que escreveu em “The

uma enorme série de livros muito boa sobre histó-

American Mercury”, em abril de 1924, que o obje-

ria mundial junto com o seu marido Will, casou-se

tivo da educação pública não é

aos quinze anos; e quem poderia declarar que Ariel Durant era uma pessoa ignorante? Sem escolari-

“encher os mais jovens da espécie com conhecimentos

dade, talvez; mas, não ignorante.

e despertar-lhes a inteligência… Nada poderia estar mais distante da verdade. O objetivo… é simples-

Nosso sistema educacional é realmente prussiano, e isto é, de fato, motivo para preocupação.

mente reduzir o maior número possível de indivíduos ao mesmo nível seguro, reproduzir e treinar uma cidadania padronizada, e acabar com a dissidência e com a originalidade. Este é o seu objetivo nos Estados Unidos… e este é seu objetivo em qualquer outro lugar.”

Nós temos sido ensinados (isto é, escolarizados) em

Em função da reputação de Mencken como um

nosso país a pensar em “sucesso” como sinônimo

satírico, podemos ser tentados a descartar essa

de, ou, no mínimo, dependente de “escolarização”,

passagem como sendo um sarcasmo hiperbólico.

mas historicamente vê-se que isso não é verdade,

Seu artigo, no entanto, segue traçando o modelo

nem em termos intelectuais, nem em termos

de nosso próprio sistema educacional, voltando

financeiros. E hoje em dia, muitas pessoas por todo

ao já desaparecido – mas jamais a ser esquecido –

o mundo encontraram formas de educarem-se a

estado militar da Prússia. E embora ele certamente

si mesmas sem recorrer a um sistema de escolas

estivesse ciente da ironia de que havíamos recen-

secundárias compulsórias que frequentemente

temente estado em guerra contra a Alemanha,

lembram prisões. Por que, então, os americanos

Mencken, o herdeiro do pensamento e da cultura

confundem educação com tal sistema? Qual é exa-

prussianos, estava sendo perfeitamente sério aqui.

tamente a finalidade das nossas escolas públicas?

Nosso sistema educacional é realmente prussiano, e isto é, de fato, motivo para preocupação.

A escolarização em massa de natureza compulsória envolveu-se com os Estados Unidos da América

Uma vez que saibamos procurar, o estranho fato

entre 1905 e 1915, embora tenha sido concebida

de uma origem prussiana para nossas escolas

muito antes, e reivindicada pela maior parte do

aparece repetidamente. William James referiu-se

século XX. As razões para esta enorme agitação

a isso muitas vezes na virada do século. Orestes

da vida familiar e das tradições culturais foram, a

Brownson, o herói do livro “O verdadeiro e único

grosso modo, três:

céu”, de 1991, de Christopher Lasch, denunciou publicamente a prussianização das escolas

1. Criar boas pessoas;

norte-americanas na década de 1840. Em 1843, o “Sétimo Relatório Anual” de Horace Mann para o

2. Criar bons cidadãos;

Conselho Estadual de Educação de Massachusetts é essencialmente um hino à terra de Frederico,

3. Fazer de cada pessoa a melhor versão de si mesma.

o Grande, e um chamado para que o seu modelo

MAIO 2014

de escolarização fosse trazido para cá. Que a cul-

40

Tais metas são ainda hoje defendidas frequen-

tura prussiana tenha expandido-se vastamente

temente, e a maioria de nós aceita-as de uma

na América não é fato surpreendente, dada nossa

ou outra forma como uma definição aceitável

antiga associação com esse Estado utópico. Um


prussiano serviu como assistente do Presidente

Inglis, que empresta seu nome a uma palestra

Washington durante a Guerra da Revolução, e tan-

sobre educação em Harvard, deixa perfeitamente

tos alemães estabeleceram-se aqui em 1795, que o

claro que a escolarização compulsória no conti-

Congresso cogitou publicar uma edição em língua

nente americano foi planejada para ser exatamente

alemã das leis federais. Mas, o que choca é que nós

o que havia sido na Prússia de 1820: a quinta coluna

adotamos tão avidamente um dos piores aspectos

no movimento democrático burguês que ameaçava

da cultura prussiana: um sistema educacional ela-

dar aos camponeses e proletários uma voz na mesa

borado deliberadamente para produzir intelectos

de negociações. A escolarização moderna, indus-

medíocres, para tolher a vida interior, para negar

trializada e compulsória pretendia um tipo de

aos alunos apreciáveis habilidades de liderança,

incisão cirúrgica na unidade potencial dessas sub-

e para assegurar a formação de cidadãos dóceis e

classes. Separe as crianças por assunto, por faixa

incompletos – tudo com o intuito de formar uma

etária, por constantes avaliações nos testes e por

população “administrável”.

muitas outras maneiras mais sutis, e tornar-se-ia

O sistema prussiano era útil em criar não somente um eleitorado inofensivo e uma força de trabalho servil, mas também uma manada virtual de consumidores acéfalos.

improvável que a massa ignorante da humanidade, separada na infância, jamais se reintegrasse em um todo perigoso. Inglis divide o propósito – o propósito verdadeiro – da escolarização moderna em seis funções básicas; qualquer uma das quais é suficiente para arrepiar os cabelos daqueles que são inocentes o bastante para acreditar naquelas três metas citadas anteriormente: 1. Função de ajustamento ou adaptação. As escolas

Foi a partir de James Bryant Conant – presidente de

devem estabelecer hábitos fixos em reação à auto-

Harvard por vinte anos, especialista em gás letal na

ridade. Isto, obviamente, bloqueia o julgamento

I Guerra Mundial, executivo no projeto da bomba

crítico por completo. Além disso, praticamente

atômica na II Guerra Mundial, alto comissário da

destrói a ideia de que coisas úteis ou interessantes

zona americana na Alemanha depois da II Guerra

devam ser ensinadas, porque você não pode testar

Mundial, e verdadeiramente um dos personagens

a obediência reflexiva até saber se as crianças con-

mais influentes do século XX – que eu percebi pela

seguem aprender e fazer coisas tolas e cansativas.

primeira vez os reais propósitos da escolarização americana. Sem Conant, nós provavelmente não

2. Função de integração. Também pode muito bem

teríamos o mesmo estilo e graus de testes padroni-

ser chamada de “função de conformação”, pois sua

zados que desfrutamos hoje em dia, nem seríamos

intenção é tornar as crianças tão parecidas quanto

abençoados com gigantescas escolas que arma-

possível. Pessoas conformadas são previsíveis, e

zenam 2000 a 4000 alunos por período, como a

isso é muito útil para aqueles que desejem explo-

famosa Columbine, em Littleton, Colorado. Logo

rar e manipular uma grande massa trabalhadora.

depois de me aposentar como professor, peguei o ensaio “A criança, os pais e o estado”, de 1959,

3. Função de diagnóstico e direção. A escola

de autoria de Conant, que mais parecia um livro, e

destina-se a determinar o papel social de cada

fiquei mais do que intrigado em vê-lo mencionar

estudante. Isto se faz documentando evidência

rapidamente o fato de que as escolas modernas que

matemática e anedótica em registros cumulativos.

frequentamos foram o resultado de uma “revo-

Como em “seu registro permanente”. Sim, você

lução” planejada entre os anos de 1905 e 1930.

tem um.

Revolução? Ele abre mão de explicar, mas conduz 4. Função de diferenciação. Uma vez que seus

Inglis, de 1918, “Princípios da educação secun-

papéis sociais tenham sido “diagnosticados”, as

dária”, no qual “viu-se tal revolução através dos

crianças devem ser ordenadas de acordo com tais

olhos de um revolucionário”.

papéis, e treinadas somente até onde seu destino

MAIO 2014

o curioso e o desinformado ao livro de Alexander

41


HISTÓRIA

dentro da máquina social merecer – e nenhum

concepções de Karl Marx sobre uma grande guerra

passo a mais. Esqueça fazer de cada criança a

entre as classes para ver que é de interesse da

melhor versão de si mesma.

complexa gestão, econômica ou política, emburrecer as pessoas para desmoralizá-las, dividí-las,

5. Função seletiva. Isso não se refere de maneira

separando-as umas das outras, e descartá-las

alguma à escolha humana, mas à teoria de sele-

caso não se conformem. A classe pode enquadrar

ção natural de Darwin sendo aplicada ao que ele

a proposição, como quando Woodrow Wilson, o

chamava de “as raças favorecidas”. Resumindo, a

presidente da Universidade de Princeton, disse o

ideia é ajudar, tentando, conscientemente, melho-

seguinte à Associação de Professores escolares da

rar o estoque de procriação. As escolas são feitas

cidade de Nova Iorque em 1909: “Nós queremos

para rotular os que “não se encaixam” – com notas

que uma classe de pessoas tenha educação liberal,

baixas, aplicação de correções, e outras punições –

e queremos que uma outra classe de pessoas, uma

tão claramente que seus colegas os aceitam como

classe muito maior, de necessidade, em cada socie-

inferiores e efetivamente os afastam dos sorteios

dade, renuncie aos privilégios da educação liberal e

reprodutivos. É isso que todas aquelas humilha-

dedique-se a executar tarefas manuais específicas

ções que seguem-se desde o primeiro ano têm o

e difíceis.” Mas, os motivos por trás das repugnan-

intuito de fazer: livrar-se da sujeira.

tes decisões que provocam estes fins não precisam, de forma alguma, ser baseados em classes. Eles

6. Função propedêutica. O sistema social implícito

podem resultar puramente do medo, ou da crença

nessas regras exigirá um grupo de elite de cui-

hoje já conhecida, de que “eficiência” é a virtude

dadores. Com este fim, uma pequena fração das

fundamental, ao invés de ser o amor, a liberdade,

crianças será silenciosamente ensinada a como

o riso ou a esperança. Acima de tudo, podem surgir

administrar este projeto contínuo, como observar

da pura ganância.

atentamente e controlar um população deliberadamente emburrecida e sem ter como reagir, para que o governo possa seguir sem ser desafiado, e as corporações jamais venham a ter necessidade de trabalho obediente. Este, infelizmente, é o propósito da educação pública obrigatória neste país. E para que você não tome Inglis como um excêntrico isolado com

Há dois grupos de pessoas que sempre podem ser convencidos a consumir mais do que precisam: viciados e crianças.

uma visão muito cínica com relação ao empreen-

Havia muita fortuna a ser feita, afinal, com uma

dimento educacional, você precisa saber que ele

economia baseada em produção de massa, e orga-

nunca esteve sozinho na defesa destas ideias. O

nizada para favorecer a grande corporação, mais do

próprio Conant, desenvolvendo em cima das ideias

que aos pequenos negócios ou fazendas familiares.

de Horace Mann e outros, fez campanhas incansá-

Mas, produção em massa demandava consumo em

veis por um sistema escolar americano elaborado

massa; e, na virada do século XX, a maioria dos

seguindo as mesmas linhas. Homens como George

americanos considerava pouco natural e pouco

Peabody, que fundou a causa de escolaridade obri-

sábio comprar coisas das quais não se precisasse de

gatória por todo o sul, certamente entenderam que

verdade. A escolaridade obrigatória foi uma benção,

o sistema prussiano era útil em criar não somente

neste sentido. As escolas não tinham que treinar as

um eleitorado inofensivo e uma força de traba-

crianças num sentido direto para pensarem que

lho servil, mas também uma manada virtual de

deveriam consumir sem parar, pois ela fazia algo

consumidores acéfalos. Com o tempo, um grande

ainda melhor: ela encorajava-os a nem sequer pen-

número de titãs industriais chegou a reconhecer

sar. E isso tornou-os alvos fáceis para ainda outra

os enormes benefícios em cultivar e cuidar de tal

grande invenção da era moderna – o marketing.

MAIO 2014

manada através da educação pública; entre eles,

42

Andrew Carnegie e John Rockefeller.

Você não precisa ter estudado marketing para saber que há dois grupos de pessoas que sempre podem

Aí está. Agora você sabe. Não precisamos das

ser convencidos a consumir mais do que precisam:


viciados e crianças. A escola fez um excelente tra-

com o que dizem,” mesmo se lembrarmos de ter-

balho ao transformar nossas crianças em viciados,

mos ouvido em algum momento lá atrás, na escola,

mas fez um trabalho espetacular ao transformá-

que a América é a terra da liberdade. Simplesmente

-las em crianças. Mais uma vez, isso não foi um

também caímos nesta. Nossa escolaridade, como

acidente. Teóricos desde Platão e Rousseau até o

planejado, cumpriu com isso.

nosso Dr. Inglis sabiam que se as crianças pudessem ser enclausuradas com outras crianças, livres da responsabilidade e independência, motivadas a desenvolver somente as emoções triviais como a ganância, a inveja, o ciúme e o medo, elas cresceriam sim, mas sem verdadeiramente amadurecer. Na edição de 1934 do seu já famoso livro “Educação Pública nos Estados Unidos”, Ellwood P. Cubberley detalhou e enalteceu a estratégia de ampliações escolares sucessivas, que estendia a infância por

Desafie seus filhos a lidarem com a solidão para que aprendam a desfrutar da companhia de si mesmos e a conduzir diálogos interiores.

mais dois a seis anos; e o ensino obrigatório era, até então, uma novidade. Este mesmo Cubberley

Agora, as boas notícias. Uma vez que você entendeu

– que era reitor da Escola de Educação de Stanford,

a lógica da escolaridade moderna, suas armadilhas

editor de livros-texto na Hughton Mifflin, amigo

e truques são fáceis de evitar. A escola treina as

de Connat e correspondente em Harvard – escre-

crianças para serem empregadas e consumidoras;

veu o seguinte, na edição de 1922 do seu livro

ensine seus filhos a serem líderes e aventureiros.

“Administração da Escola Pública”: “Nossas esco-

A escola treina as crianças a serem obedientes por

las são… fábricas nas quais os produtos brutos (as

reflexo; ensine seus filhos a terem um pensamento

crianças) devem ser moldados e formados… E é

crítico e independente. Crianças bem escolarizadas

de responsabilidade da escola construir alunos de

tem uma baixa tolerância para o tédio, ajude seus

acordo com as especificações determinadas.”

filhos a desenvolverem uma vida interior, de forma que nunca se entediem. Incentive-os a encararem

É perfeitamente claro para a nossa sociedade hoje

o conteúdo sério, o conteúdo adulto, em história,

o que eram aquelas especificações. A maturidade

em literatura, filosofia, música, artes, economia,

agora está banida de quase todos os aspectos das

teologia – todas as coisas que os professores esco-

nossas vidas. Leis fáceis de divórcio acabaram com

lares sabem muito bem como evitar. Desafie seus

a necessidade de batalhar-se por um relaciona-

filhos a lidarem com a solidão para que aprendam a

mento; o crédito fácil removeu a necessidade de

desfrutar da companhia de si mesmos e a conduzir

auto-controle fiscal; o entretenimento fácil tirou a

diálogos interiores. Pessoas bem escolarizadas são

necessidade de aprender a entreter-se a si mesmo;

condicionadas a detestarem o “estar só”, e bus-

as respostas simples removeram a necessidade de

cam companhia constante através da televisão,

fazer-se perguntas. Tornamos-nos uma nação de

computador, celular, e em amizades superficiais

crianças, felizes em entregar nossos juízos e nossas

rapidamente conquistadas e rapidamente aban-

vontades a exortações políticas e lisonjas comer-

donadas. Seus filhos devem ter uma vida mais

ciais que insultariam qualquer adulto de verdade.

significativa, e eles podem.

Nós compramos televisores, para, em seguida, Primeiramente, no entanto, devemos despertar

computadores, e depois compramos as coisas

para perceber o que nossas escolas realmente são:

que vemos neles. Compramos tênis de $150 quer

laboratórios experimentais de mentes jovens, cen-

precisemos ou não, e quando eles se acabam, nós

tros de treinamento para os hábitos e atitudes que

prontamente compramos um outro par. Dirigimos

a sociedade corporativa exige. O ensino obrigatório

SUVs, e acreditamos na mentira de que eles consti-

atinge as crianças apenas acidentalmente; seu pro-

tuem algum tipo de segurança para nossa vida, até

pósito real é o de torná-las serviçais. Não deixe que

mesmo quando estamos de cabeça para baixo den-

seus filhos tenham suas infâncias prolongadas,

tro deles. E o pior de tudo, nós nem piscamos os

nem mesmo por um dia. Se David Farragut pôde

olhos quando Ari Fleischer nos diz “tomem cuidado

assumir o comando de um navio de guerra inglês

MAIO 2014

comprarmos o que vemos neles. Compramos

43


HISTÓRIA

capturado quando ainda era pré-adolescente, se Thomas Edison pôde publicar um folhetim aos doze anos, se Benjamin Franklin pôde instruir-se no uso de uma impressora com a mesma idade (e então colocar-se em um curso de estudos que sufocaria qualquer sênior de Yale hoje), não há dúvidas do que seus filhos podem fazer. Depois de uma longa vida e trinta anos nas trincheiras das escolas públicas, concluí que o gênio é tão comum quanto o pó. Nós limitamos nossos gênios só porque ainda não descobrimos como administrar uma população de homens e mulheres escolarizados. A solução, eu acho, é simples e gloriosa. Deixemos que eles administrem-se a si mesmos.

MAIO 2014

Traduzido por Camila Abadie e Helena Yoshima

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Tradução do conto “Auprès d’un mort” (1883).

LITERATURA

O velório de Schopenhauer, Guy de Maupassant

mais conhecido é “O Horla”, que trata, curiosamente, de uma assombração proveniente do Brasil. Maupassant era um melancólico e foi profundamente influenciado pelo pessimismo schopenhaueriano. O conto que aqui se apresenta – publicado originalmente na revista “Gil Blas”, de 30 de janeiro de 1883 – é uma homenagem ao filósofo, marcada tanto pelo caráter realista, que faz o leitor se perguntar se está diante de um depoimento ou de uma peça de ficção, e por um profundo nihilismo, que expõe um aspecto ao mesmo tempo macabro e grotesco da morte.

E

le ia morrendo aos poucos, como morrem os tuberculosos. Via-o diariamente, por volta das duas horas, sob as janelas do hotel, diante do mar calmo, sentado

num banco do passeio. Ficava certo tempo imóvel, no calor do sol, contemplando com tristeza o Mediterrâneo. De vez em quando, lançava um olhar para as altas montanhas de cumes vaporosos que delimitam a cidade de Menton; depois, cruzava, com um gesto bem lento, suas pernas tão magras,

Henry-René-Albert-Guy de Maupassant (Tourville-sur-

que pareciam dois ossos, ao redor dos quais esvo-

Arques, 1850; Paris, 1893) integrou, com Gustave Flaubert

açava o tecido de suas calças, e abria um livro,

e Émile Zola, o Realismo-Naturalismo na literatura

sempre o mesmo.

francesa. Conquanto tenha escrito romances, dos quais o mais célebre se intitula Bel-Ami (1885), destacou-se particularmente como autor de contos, gênero cujas formas explorou e estabeleceu. Sua carreira literária estendeu-se de 1880 a 1890 e foi interrompida por perturbações mentais decorrentes da sífilis, que resultaram numa tentativa de suicídio e na internação num manicômio,

Era um alemão alto, de barba loira, que almoçava e jantava em seu quarto, e não falava a ninguém.

onde morreu pouco antes de completar 43 anos. Então, não se movia mais, apenas lia, lia com os Colaborou semanalmente com jornais e revistas durante

olhos e a mente; todo seu pobre corpo agonizante

a década em que escreveu, chegando a publicar na

parecia ler, toda sua alma mergulhava, se perdia,

imprensa cerca de mil obras, entre contos e crônicas,

desaparecia nesse livro até que o ar fresco o fizesse

cuja temática principal apresentava a vida cotidiana

tossir um pouco. Então levantava e voltava ao hotel.

na Normandia, sua região natal, e a guerra francoEra um alemão alto, de barba loira, que almoçava

célebres, entre os quais se destaca “Bola-de-Sebo” (em

e jantava em seu quarto, e não falava a ninguém.

que Chico Buarque baseou a canção “Geni”). Também se dedicou à literatura fantástica, gênero em que seu conto

Uma vaga curiosidade despertou minha atração

MAIO 2014

prussiana de 1870, que lhe rendeu alguns dos contos mais

45


LITERATURA

por ele. Um dia, sentei a seu lado, também peguei

Schopenhauer? – perguntei ao alemão.

um livro, para disfarçar, um volume dos poemas de Musset. E me pus a percorrer o “Rolla”.

Ele sorriu com tristeza.

De repente, meu vizinho me disse, em bom francês:

— Até a morte, meu senhor.

— O senhor sabe alemão?

E ele me falou do filósofo e me contou sobre a impressão quase sobrenatural que esse estranho

— Nem um pouco.

ser causava em todos que dele se aproximavam.

— Ah, que pena! Já que o destino nos colocou lado inestimável – este livro que tenho em minhas mãos.

— Achei que havia passado uma hora com o diabo.

— De que se trata?

Contou-me da entrevista do velho iconoclasta com

a lado, eu poderia lhe emprestar, lhe mostrar algo

um político francês, um republicano doutrinário, — É um exemplar de meu mestre, Schopenhauer,

que queria vê-lo e encontrou-o numa taverna

anotado por sua própria mão. Todas as margens,

barulhenta, sentado em meio a seus discípulos,

como você vê, estão cobertas com sua letra.

seco, enrugado, rindo uma inesquecível risada, atacando e fazendo em pedaços idéias e crenças

Peguei-lhe o livro reverentemente e olhei aque-

com uma única palavra, assim como um cão rasga,

las formas incompreensíveis para mim, mas que

com os caninos, os panos com que brinca.

revelavam os pensamentos imortais do maior destruidor de sonhos que passou pela face da Terra.

Repetiu-me o comentário desse francês, enquanto ia embora, perplexo e aterrorizado:

E então os versos de Musset me surgiram à mente: — Achei que havia passado uma hora com o diabo. “Dormes feliz, Voltaire, e teu sórdido sorriso ainda paira sobre teus ossos descarnados?”

E acrescentou:

E comparei involuntariamente o sarcasmo infantil,

— Ele tinha, de fato, senhor, um sorriso assusta-

o sarcasmo religioso de Voltaire à ironia irresistí-

dor, de meter medo, mesmo depois de sua morte.

vel do filósofo alemão, cuja influência é doravante

Há um caso quase desconhecido que eu poderia lhe

indelével.

contar, se for de seu interesse.

Que se proteste, que se fique furioso ou indignado

E começou, com uma voz cansada, que frequentes

ou entusiasmado, mas Schopenhauer marcou a

acessos de tosse interrompiam.

humanidade com o timbre de seu desdém e de seu desencanto.

— Schopenhauer tinha acabado de morrer e combinamos de velá-lo em turnos, dois a dois, até o

Gozador desiludido, derrubou crenças, esperanças,

amanhecer.
Ele estava deitado em um salão muito

ideais e quimeras poéticas, destruiu aspirações,

simples, amplo e sombrio. Duas velas de cera

devastou a confiança das almas, matou o amor, aba-

ardiam num criado-mudo.

MAIO 2014

teu o culto da mulher ideal, esmagou as ilusões dos

46

corações e concluiu a mais gigantesca obra jamais

Era meia-noite quando chegou a minha vez, junto

empreendida pelo ceticismo. Não poupou nada com

com um de nossos camaradas. Os dois amigos que

seu espírito zombeteiro e tudo esvaziou. E mesmo

rendêramos já haviam deixado o apartamento e

hoje aqueles que o execram parecem carregar nas

fomos nos sentar ao pé da cama.

próprias almas partículas de seu pensamento. Seu rosto não mudara. Estava rindo. Aquele ricto — Então, você conheceu pessoalmente

que conhecíamos tão bem se escavava no canto dos


lábios e nos parecia que o finado estava prestes a

claramente, nós dois, uma coisa branca escor-

abrir os olhos, mexer-se e falar. Seu pensamento,

rer da cama, cair no tapete e desaparecer sob uma

ou melhor, seus pensamentos nos envolveram.

poltrona.

Sentimo-nos mais do que nunca na atmosfera de seu gênio, envolvidos, possuídos por ele. Seu domínio parecia ser ainda mais soberano, agora que estava morto. Um mistério se mesclava ao poder desse incomparável espírito.

Fiquei paralisado de estupor e medo… Schopenhauer já não ria!

Os corpos de homens como esse desaparecem, mas

Ficamos de pé, antes de poder pensar em qualquer

eles próprios permanecem, eles, e na noite que

coisa, alucinados por um terror tremendo, pron-

segue à parada de seus corações, eu lhe asseguro,

tos para fugir. Então, nos olhamos um ao outro.

senhor, eles são aterrorizantes.

Estávamos terrivelmente pálidos. Nosso coração batia tão violentamente, que poderia levantar o

Falávamos baixinho sobre ele, relembrando cer-

peito de nossas camisas. Eu fui o primeiro a falar:

tos ditos, certas fórmulas que enunciava, aquelas máximas surpreendentes que são como luzes

— Você viu aquilo?

lançadas, em poucas palavras, nas trevas do Desconhecido.

— É, vi.

– Parece que ele vai falar – disse meu camarada. E

— Será que ele não está morto?

ficamos olhando, com uma inquietação que beirava o medo, aquele rosto imóvel e sempre sorridente.

— Mas como, se a putrefação já começou?

Pouco a pouco, começamos a nos sentir incomodados, oprimidos, a ponto de desmaiar. Balbuciei:

— O que vamos fazer?

– Não sei o que há de errado comigo, mas posso

Meu companheiro murmurou, hesitante:

jurar que estou doente. — Precisamos ir ver. E naquele momento percebemos que o cadáver cheirava mal. Então, meu companheiro sugeriu

Peguei nossa vela e entrei primeiro, olhando para

irmos para a sala ao lado, deixando a porta aberta,

todos os cantos do salão escuro. Nada mais se

e concordei com a proposta.

movia agora e me aproximei do leito. Mas fiquei paralisado de estupor e medo… Schopenhauer já

Peguei uma das velas que queimava na mesinha,

não ria! Sorria de um modo horrível, com os lábios

deixando para trás a outra, e fomos nos sentar no

cerrados e as bochechas profundamente cavadas

outro extremo da sala ao lado, de modo que pudés-

em seu rosto. Então balbuciei:

semos ver de nossa posição a cama e o cadáver, claramente iluminados.

— Ele não está morto!

Mas ele ainda nos obsedava. Poder-se-ia dizer que

Mas o odor pavoroso subia ao meu nariz e me

sua essência imaterial, liberta, livre, todo-pode-

sufocava. E eu nem conseguia me mexer, apenas

rosa e dominadora, girava em torno de nós. E, às

continuava a olhá-lo fixamente, apavorado, como

vezes, também, o terrível cheiro do corpo decom-

diante de uma assombração.

posto chegava até nós e nos penetrava, doentio e repulsivo.

Então, meu companheiro, que tinha pegado a outra vela, abaixou-se. Depois, tocou-me o braço sem dizer uma palavra. Segui seu olhar e vi, no chão,

barulho, um pequeno barulho se ouviu na câmara

sob a poltrona ao lado da cama, destacando-se alva

mortuária. Imediatamente fixamos nossos olhares

no tapete escuro – aberta como para morder – a

nele e então enxergamos, sim senhor, enxergamos

dentadura de Schopenhauer.

MAIO 2014

De repente, um arrepio nos passou pelos ossos: um

47


LITERATURA

O trabalho da decomposição, soltando as mandíbulas, havia feito a prótese saltar de sua boca. Fiquei realmente apavorado naquele dia, senhor. E enquanto o sol mergulhava no mar resplandecente, o alemão tuberculoso levantou-se, fez uma reverência de despedida e voltou ao hotel.

MAIO 2014

Traduzido por Antonio Carlos Olivieri

48


O Homem Medíocre, Ernest Hello Tradução das p.57-67 de “L’Homme” (1894).

D

iz numa reunião que algum homem célebre é um homem medíocre, e todos ficarão espantados; dirão que és paradoxal. É que ninguém sabe o que é um

homem medíocre. O homem medíocre é tolo, estúpido, imbecil? De maneira alguma. O imbecil está numa extremidade do mundo, o homem de gênio na outra. O homem medíocre está no meio. Não digo que ocupe o centro do mundo intelectual, o que seria outra coisa; ele está no meio.

O traço absolutamente característico do homem medíocre é sua deferência pela opinião pública. O homem medíocre estará então no que se chama em filosofia, em política, em literatura, um justo meio? Encaixa necessária e certamente nessa opinião? Também não. Quem está no justo meio sabe disto: tem a intenção de estar nele. O homem medíocre está no justo meio sem o saber. Está nele por natureza, não por opinião; por caráter, não por acidente. Mesmo que seja violento, irritado, extremo; mesmo que se distancie quanto for possível do justo meio, será medíocre. Terá mediocridade na violência. homem ainda desconhecido, um pobre homem, um passante, que é tratado de maneira comum,

tico do homem medíocre, é sua deferência pela

com desembaraço, possa ser um homem de gênio.

opinião pública. Jamais fala, sempre repete. Julga

Se fores o maior dos homens, acreditará, se te

um homem por sua idade, sua posição, seu sucesso,

conheceu criança, honrar-te muito comparando-

sua fortuna. Tem o mais profundo respeito por

-te a Marmontel. Não ousará tomar a iniciativa de

quem é conhecido, não importa por quê; por quem

nada. Suas admirações são prudentes, seus entu-

tenha causado uma grande impressão. Adulará

siasmos oficiais. Despreza os que são jovens. Mas,

seu mais cruel inimigo, se esse inimigo tornar-

quando tu grandeza for reconhecida, exclamará:

-se célebre; mas fará pouco caso de seu melhor

bem que eu sabia! Mas nunca dirá, frente à aurora

amigo, se ninguém o elogia. Não concebe que um

de um homem ignorado: eis a glória e o futuro!

MAIO 2014

O traço característico, absolutamente caracterís-

49


LITERATURA

Aquele que pode dizer a um trabalhador desco-

O homem verdadeiramente medíocre admira um

nhecido: meu filho, és um homem de gênio! – este

pouco todas as coisas; nada admira com ardor. Se

merece a imortalidade que promete. Compreender

lhe apresentas seus próprios pensamentos, seus

é igualar, disse Rafael.

próprios sentimentos com um certo entusiasmo,

Se a palavra exagero não existisse, o homem medíocre a inventaria.

ficará descontente. Dirá que exageras; gostará mais de seus inimigos se forem frios, que de seus amigos se forem quentes. O que detesta, acima de tudo, é o calor. O homem medíocre só tem uma paixão: o ódio

O homem medíocre pode ter esta ou aquela apti-

ao belo. Talvez repita com freqüência uma ver-

dão especial: pode ter talento. Mas a intuição lhe é

dade banal com um tom banal. Exprime a mesma

interdita. Não tem uma visão superior; não a terá

verdade com esplendor e ele te vai maldizer; terá

jamais. Admite às vezes uma idéia, mas não a segue

encontrado o belo, seu inimigo pessoal.

em suas diversas aplicações; e se lhe é apresentada em termos diferentes, não a reconhece: rejeita-a.

O homem medíocre ama os escritores que não dizem nem sim nem não sobre qualquer coisa, que

Admite às vezes um princípio; mas se chegares às

nada afirmam, que conciliam todas as opiniões

conseqüências desse princípio, dirá que exageras.

contraditórias. Gosta ao mesmo tempo de Voltaire, Rousseau e Bossuet. Gosta que se negue o cristia-

Se a palavra exagero não existisse, o homem medí-

nismo, mas que se o negue polidamente, com certa

ocre a inventaria.

moderação nas palavras. Tem um certo amor pelo racionalismo e, coisa bizarra, também pelo janse-

O homem medíocre pensa que o cristianismo é

nismo. Adora a profissão de fé do vigário sabichão.

uma precaução útil, que seria imprudente dispensar. Entretanto detesta-o interiormente; algumas

Acha insolente toda afirmação, porque toda afir-

vezes, tem por ele um certo respeito convencional,

mação exclui a proposição contraditória. Mas se

o mesmo respeito que tem pelos livros em voga.

fores um pouco amigo e um pouco inimigo de tudo,

Mas tem horror ao catolicismo: considera-o exa-

pensará que és sábio e reservado. Admirará a deli-

gerado; gosta mais do protestantismo, que acha

cadeza de teu pensamento, e dirá que tens o talento

moderado. É amigo de todos os princípios e de

das transições e das nuances.

todos os contrários. Para escapar à acusação de intolerância que lança O homem medíocre pode ter estima pelas pessoas

a todo aquele que pensa com vigor, vai se refugiar

virtuosas e pelos homens de talento.

na dúvida absoluta; mesmo assim não dá à dúvida seu próprio nome. Procura dar-lhe a forma de uma

Tem medo e horror dos santos e dos homens de

opinião honesta, que reserva os direitos da opinião

gênio; acha-os exagerados.

contrária, com a aparência de dizer alguma coisa sem dizer absolutamente nada. É preciso acrescen-

Pergunta para que servem as ordens religiosas,

tar a cada frase uma perífrase adocicante: parece, se

sobretudo as ordens contemplativas. Admite as

ouso dizer, se é permitido exprimir-se assim…

irmãs de São Vicente de Paulo, pois sua ação realiza-se, ao menos parcialmente, no mundo visível.

Resta ao homem medíocre em atividade, em exer-

Mas os carmelitas, diz ele, para quê servem?

cício, uma inquietude: o medo de comprometer-se.

MAIO 2014

Exprime também alguns pensamentos roubados

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Se o homem naturalmente medíocre torna-se

do senhor de La Palisse, com a reserva, a timidez,

seriamente cristão, deixa absolutamente de ser

a prudência de um homem temeroso de que suas

medíocre. Pode não se tornar um homem supe-

palavras ousadas demais possam abalar o mundo.

rior, mas é arrancado da mediocridade pela mão que empunha a espada. O homem que ama jamais

A primeira frase do homem medíocre que julga um

é medíocre.

livro trata sempre de um detalhe, e habitualmente


de um detalhe de estilo. É bem escrito, dirá,

e adorar; o homem medíocre eleva a cabeça para

quando o estilo é fluente, morno, incolor, tímido.

zombar: tudo que está acima dele parece-lhe ridí-

É mal escrito, dirá, quando a vida circula na tua

culo, o infinito parece-lhe o nada.

obra, quando forjas tua linguagem como quem fala, quando dizes teus pensamentos com aquele fres-

O homem medíocre não crê no diabo.

cor que é a sinceridade do escritor. Ama a literatura impessoal; detesta os livros que obrigam a refle-

O homem medíocre lamenta que a religião cristã

tir. Gosta dos que se parecem com todos os outros,

tenha dogmas: gostaria que ela ensinasse somente

dos que confirmam seus hábitos, que não explo-

a moral; e se lhe dizemos que sua moral decorre dos

dem seu molde, que permanecem em seus limites,

dogmas, como a conseqüência decorre do princí-

dos que sabemos de cor antes de serem lidos, por-

pio, responderá que exageramos.

que são semelhantes a todos que lemos desde que aprendemos a ler.

O homem medíocre não crê no diabo.

Confunde a falsa modéstia, que é a mentira oficial dos orgulhosos de baixo calão, com a humildade, que é a virtude simples e divina dos santos. Entre esta modéstia e a humildade, eis a diferença:

O homem medíocre diz que Jesus Cristo deve-

O homem falsamente modesto acredita que sua

ria se ter limitado a pregar a caridade, sem fazer

razão é superior à verdade divina e independente

milagres; mas detesta ainda mais os milagres dos

dela, mas acredita ao mesmo tempo que ela é infe-

santos, sobretudo dos santos modernos. Se lhe

rior à do sr. Voltaire. Acredita ser inferior aos mais

contas um fato sobrenatural e contemporâneo,

rasteiros imbecis do século dezoito, mas zomba de

dirá que as lendas fazem um bom efeito nas vidas

Santa Teresa.

dos santos, mas que devem se restringir a elas; e se observares que o poder de Deus é o mesmo de

O homem humilde despreza todas as mentiras, por

sempre, responderá que exageras.

mais que sejam glorificadas por toda a terra, e se ajoelha perante toda verdade.

O homem medíocre diz que há o bem e o mal em todas as coisas, que não devemos ser absolutos em

O homem medíocre parece habitualmente

nossos julgamentos, etc, etc.

modesto; não pode ser humilde, ou deixará de ser medíocre.

Se afirmas fortemente a verdade, o homem medíocre dirá que tens excessiva confiança em ti mesmo.

O homem medíocre adora Cícero, cegamente e sem

Ele, que tem tanto orgulho, não sabe mesmo o que

restrições; não o chama por seu nome, mas “o ora-

é o orgulho! É modesto e orgulhoso, submisso

dor romano”. Cita de tempos em tempos: ubinam

perante Voltaire e revoltado contra a Igreja. Sua

gentium vivimus?

divisa é o grito de Joad: corajoso somente contra Deus! [Racine, Atalia, ato III, cena VII]

O homem medíocre é o mais frio e o mais feroz inimigo do homem de gênio.

O homem medíocre, em seu pavor das coisas superiores, diz que estima sobretudo o bom senso; mas

Opõe-lhe a força da inércia, resistência cruel;

não sabe o que é o bom senso. Entende por esta

opõe-lhe seus hábitos maquinais e invencíveis, a

expressão a negação de tudo o que é grande.

cidadela de seus velhos preconceitos, sua indiferença impertinente, seu ceticismo maldoso, seu

O homem medíocre pode muito bem ter essa coisa

ódio profundo que se assemelha à imparcialidade;

sem valor que chamam, nos salões, de espírito;

opõe-lhe a arma das pessoas que não têm coração,

mas não pode ter inteligência, que é a faculdade de

a dureza da estultice. O gênio conta com o entusiasmo; entrega-se a ele.

O homem inteligente eleva a cabeça para admirar

O homem medíocre não se entrega jamais. Não

MAIO 2014

ler a idéia no fato.

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LITERATURA

tem entusiasmo nem piedade: duas coisas que vão

assinado por um nome conhecido, a que o falatório

sempre juntas.

público reclama sua atenção, nunca te aconteceu

A glória e o sucesso não se assemelham; a glória tem segredos, o sucesso tem caprichos.

fechá-lo com uma tristeza inquieta e dizer para ti mesmo: – como estas páginas levaram o autor à reputação, em vez de condená-lo ao esquecimento? Ou: como aquele outro nome, que poderia figurar ao lado dos grandes nomes, é absolutamente desconhecido dos homens? Porque os amigos raros, os raros amigos deste em que penso neste momento murmuram timidamente seu nome entre si, não

Quando o homem de gênio desanima e acha que

ousando pronunciá-lo diante de todos, por não ter

está para morrer, o homem medíocre fica satis-

a sanção de todos? A glória tem seus segredos, ou

feito; alegra-se com essa agonia. Diz: bem que eu

tem seus caprichos?

tinha adivinhado, esse homem estava num mau caminho; tinha muito confiança em si mesmo! Se o

Eis a resposta: a glória e o sucesso não se asse-

homem de gênio triunfa, o homem medíocre, cheio

melham; a glória tem segredos, o sucesso tem

de inveja e de ódio, opõe-lhe ao menos os gran-

caprichos.

des modelos clássicos, como diz, os homens célebres do último século, e tratará de se convencer que o

O homem medíocre não luta: pode vencer inicial-

futuro o vingará do presente.

mente; sempre fracassa depois.

O homem medíocre é muito pior do que pensa, e do

O homem superior luta primeiro e vence depois.

que pensam dele, pois sua frieza oculta sua maldade. Jamais se arrebata. No fundo, gostaria de eliminar

O homem medíocre vence porque segue a cor-

as estirpes superiores: como não pode, vinga-se

rente; o homem superior triunfa porque vai contra

achincalhando-as. Fala pequenas infâmias, que,

a corrente.

por serem pequenas, não parecem ser infames. Fere com alfinetes, e regozija-se quando o sangue corre,

O procedimento do sucesso é caminhar com os

ao passo que o assassino teme o sangue derramado.

outros; o procedimento da glória é caminhar con-

O homem medíocre nunca tem medo. Sente o apoio

tra os outros.

da multidão dos que se lhe assemelham. Todo homem que torna seu nome conhecido proO homem medíocre é, na ordem literária, o que

duz esse efeito, pois é o representante de uma certa

na ordem social denomina-se um homem de boa

parte da espécie humana.

sorte. Os sucessos fáceis são para ele. Ignorando o que é essencial e captando o que é acidental em

Eis a solução de todos os enigmas.

todas as coisas, corre atrás das circunstâncias; segue ao sabor das ocasiões; e quando é bem-suce-

As raças superiores se fazem representar pelos

dido, torna-se dez vezes mais medíocre. Julga-se,

grandes; as raças inferiores se fazem representar

como julga os outros, pelo sucesso. Enquanto o

pelos pequenos.

homem superior sente sua força interiormente, e a sente sobretudo se os outros não a sentem,

Ambas têm seus deputados na assembléia univer-

o homem medíocre pensa ser um tolo quando o

sal. Mas umas dão a seus deputados o sucesso, as

julgam tolo, e seu equilíbrio depende dos cumpri-

outras dão-lhes a glória.

mentos que recebe; sua mediocridade aumenta na razão de sua importância.

Aqueles que lisonjeiam os preconceitos, os hábitos de seus contemporâneos, ganham impulso e che-

MAIO 2014

Mas enfim, perguntarão, por que e como é

52

gam ao sucesso: são os homens de seu tempo.

bem-sucedido? Os que recusam os preconceitos, os hábitos; os Sentado em teu escritório, diante de um livro

que respiram antecipadamente os ares do século


seguinte, impulsionam os outros, e chegam à gló-

e mais mortalmente deteriorado pela velha deca-

ria: são os homens da eternidade.

dência de nossa pobre natureza; e comunica-nos esse dois sentimentos que tem. Ilumina em nós o

Eis porque a coragem, que é inútil para o sucesso,

amor do ser, e desperta em nós incansavelmente a

é condição absoluta para a glória. São grandes os

consciência do nosso nada.

que se impõem aos outros em vez de suportá-los; que impõem a si mesmos em vez de suportar-se;

O homem medíocre não sente nem a grandeza,

que sufocam com a mesma força seus próprios

nem a miséria, nem o Ser, nem o nada. Não é nem

desânimos e as resistências exteriores. O que

deslumbrado, nem precipitado; fica no penúltimo

denominamos grandeza é a irradiação do poder.

degrau da escada, incapaz de subir, excessivamente

O homem superior desce até o fundo de nós mais profundamente do que costumamos descer.

preguiçoso para descer. Em seus juízos e em suas obras, substitui a realidade pela convenção, aprova o que encaixa em seu repertório, condena o que escapa às denominações, às categorias que conhece, receia o espanto e, não se aproximando jamais do terrível mistério da vida, evita as montanhas e os abismos pelos quais ela

O homem medíocre que alcança o sucesso encarna

conduz seus amigos.

os desejos atuais dos outros homens. O homem de gênio é superior àquilo que executa. O homem superior que triunfa encarna os pressen-

Seu pensamento é superior à sua obra.

timentos desconhecidos da humanidade. O homem medíocre é inferior àquilo que executa. O homem medíocre pode mostrar aos homens os

Sua obra não é a realização de um pensamento:

aspectos conhecidos de suas próprias almas.

é um trabalho feito de acordo com determinadas regras.

O homem superior revela aos homens os aspectos desconhecidos de suas próprias almas.

O homem de gênio sempre acha sua obra inacabada.

O homem superior desce até o fundo de nós mais

O homem medíocre infla-se com a sua, cheio de

profundamente do que costumamos descer. Dá voz

si mesmo, cheio de nada, cheio de vazio, cheio de

aos nossos pensamentos. É mais íntimo a nós que

vaidade. Vaidade! Esse odioso personagem está por

nós mesmos.

inteiro nestas duas palavras: frieza e vaidade!

Irrita-nos e regozija-nos, como alguém que nos

Traduzido por Roberto Mallet

acordasse para acompanhá-lo a ver o nascer do sol. Arrancando-nos de nossas casas para conduzir-nos aos seus domínios, inquieta-nos, e ao mesmo tempo nos dá uma paz superior. O homem medíocre, que nos deixa ali mesmo onde estamos, inspira-nos uma tranqüilidade morta que é diferente da calma. O homem superior, incessantemente atormentado, dilacerado, pela oposição entre o ideal e o real, sente melhor do que ninguém a grandeza humana. Sente-se mais fortemente chamado ao esplendor ideal, que é a finalidade de todos nós,

MAIO 2014

humana, e melhor do que ninguém a miséria

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LITERATURA

Uma execução em Manchester, no começo do Século XVII, W. H. Ainsworth Tradução do capítulo I do Livro I de “Guy Fawkes” (1840).

um patíbulo. Próximo a ele havia um enorme cepo manchado de sangue, cuja utilidade num instante se adivinhará, e ao lado deste, sobre um amontoado de carvão em brasa, fumegava um caldeirão de piche fervente, destinado a receber os corpos esquartejados dos infelizes sofredores.

O verdugo e seus companheiros não pareciam nem um pouco impressionados com a sangrenta empresa prestes a levar-se a cabo. O lugar estava sob a sentinela de reduzida companhia de soldados, paramentados por inteiro de corselete e morrião, e armados de espadas, meios-piques e espingardas. Nos degraus do patíbulo, via-se o verdugo—sujeito corpulento, desgracioso,

H

atarefado em concertar um fardo de palha sobre o á mais de duzentos e trinta e cinco

estrado. Vestia gibão de couro e, enfiada na cinta,

anos, ou, para ser exato, em 1605, bem

trazia comprida faca de dois gumes. Além des-

no fim de junho, correu certa manhã

ses, havia um passavante—oficial incumbido pelo

em Manchester o rumor de que dois

Conselho Privado2 a dar busca, em todas as provín-

sacerdotes seminaristas, condenados na última

cias, a recusantes,3 sacerdotes papistas e demais

sessão do tribunal penal às severas sanções então

transgressores da religião, e que, no momento,

em vigor contra os papistas, estavam para ser jus-

ocupava-se em ler uma lista de suspeitos.

1

tiçados naquele dia. Atraída pela notícia, vasta multidão afluiu ao local de execução, que, para con-

O verdugo e seus companheiros não pareciam

ferir maior solenidade ao espetáculo, fora fixado no

nem um pouco impressionados com a sangrenta

portão sul da antiga igreja colegiada, onde se erguia

empresa prestes a levar-se a cabo: o primeiro

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1. Como eram chamados os sacerdotes católicos ingleses educados em seminários no estrangeiro e que retornavam ao país em missão

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catequizadora. (Ver nota 21.)

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2. Órgão comum a muitas monarquias, o Conselho Privado (chamado, no Reino Unido, Mui Honorável Conselho Privado de Sua Majestade) agrega representantes de diferentes instâncias de poder, em números variados, principalmente com a função de prover orientação à Coroa em assuntos de Estado, mas também de colaborar na organização do governo e supervisionar a aplicação das leis. 3. Como eram chamados aqueles que se recusavam a assistir aos serviços religiosos da Igreja Anglicana.


desincumbia-se dos afazeres assobiando des-

mulher num manto de lã esfarrapado, com o capuz

preocupado, enquanto os demais gargalhavam e

puxado parcialmente sobre o rosto—de feições

tagarelavam, próximo à multidão, ou apontavam

angulosas e emaciadas, até onde era possível dis-

as armas de fogo, de zombaria, para as gralhas

cernir—, uma corda enrolada na cintura, os pés

em revoada acima deles, no céu ensolarado, ou

descalços e uma aparência que, no geral, lembrava

empoleiradas nos pináculos e na torre do templo

uma irmã de caridade, adiantou-se num súbito e

próximo. Mas não era assim com a maioria dos

lançou-se de joelhos ao lado deles.

presentes. Uma vez que a maior parte das famílias mais antigas e abastadas de Lancashire conti-

Apertou nas mãos a barra da veste do sacerdote

nuava devota à fé tradicional de seus patriarcas,

mais próximo, pressionou-a contra os lábios e

não era de admirar que muitos de seus vassalos

encarou-o com uma expressão de fervor, como se

seguissem-lhes o exemplo. Mesmo entre aqueles

implorando sua bênção.

avessos à doutrina de Roma, poucos havia que não vituperassem, aos murmúrios, o rigoroso sistema de perseguição adotado contra quem a professava. Às nove horas, ouviu-se à distância o surdo rufar de um tambor. O grave sino da igreja iniciou seu

—Para trás, prole do Anticristo! interveio um soldado.

dobre, e, logo depois, viu-se o cortejo fúnebre

—Suas preces foram atendidas, irmã, fez o reli-

avançar desde a praça do mercado. Compunha-se

gioso, estendendo os braços sobre ela. Que Deus e

de uma guarnição de soldados a cavalo, equipa-

Nossa Senhora a abençoem!

dos em tudo igual àqueles a postos no patíbulo; à testa, avançava o capitão e, na retaguarda, seguiam

A mulher voltou-se, então, para a outra vítima, que

dois dos seus, em cujas montarias amarraram-

recitava o Miserere5 em voz alta.

-se traves às quais vinham atreladas as infelizes vítimas. Tratava-se de dois jovens—ambos apa-

—Para trás, prole do Anticristo! interveio um sol-

rentando estarem prontos a arrostar seu destino

dado, empurrando-a para o lado com grosseria.

com firmeza e resignação—trazidos da mansão

Não vê que está perturbando as orações do padre?

dos Radcliffes, um antigo solar circunvalado e for-

Cuidar da própria alma já é ocupação suficiente,

tificado, de propriedade daquela abastada família

para ele ainda ter de se preocupar com a sua.

(erguido onde hoje resta o terreno insular, de nome Pool Fold), então recém-convertido em local de

—Pegue, irmã! chamou o sacerdote a quem pri-

custódia para recusantes. As outras duas prisões

meiro ela se dirigira, ofertando um pequeno

em Manchester—a saber, a New Fleet, em Hunt’s

volume que levava no camisolão. E, em suas pre-

Bank, e a cadeia da ponte de Salford4—eram consi-

ces, não deixe de se lembrar da alma pecadora de

deradas impróprias à acomodação dos numerosos

Robert Woodroofe,6 irmão da Ordem de Jesus.

transgressores da religião. A mulher estendeu a mão para pegar o livro. Mas Àquela altura, a cavalgada chegara ao local de exe-

antes que lhe fosse entregue, o soldado arrebatou-

cução. Com os piques, os soldados rechaçaram

-o e, numa gargalhada brutal, vociferou:

o tropel, abrindo um clarão à frente do patíbulo; nesse momento, tão logo afrouxaram as cordas

—Não é sempre que seus padres têm o que dei-

que atavam braços e pernas aos sacerdotes, uma

xar para trás, a não ser alguma relíquia inútil e

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4. Sobre a cadeia da ponte de Salford, ver nota 22. 5. O Salmo 51, também conhecido por sua invocação inicial: “Miserere mei, Deus” [Tem misericórdia de mim, ó Deus], acompanha difer-

6. De fato, há registros de que um Robert Woodroffe estudou em Douai (ver nota 21) e, depois, em Roma, onde recebeu a ordenação. De volta à Inglaterra, durante décadas exerceu seu ministério às ocultas, fugindo à perseguição anglicana, antes de ser capturado, torturado e justiçado por crime de alta-traição.

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entes ritos da liturgia católica. (Ver nota 12.)

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LITERATURA

supersticiosa de um santo ou mártir. O que é isto?

atrevimento? quis saber o passavante, interpe-

Ah! um breviário, um missal. Tenho tanta conside-

lando um de seus auxiliares.

ração pelo bem-estar de seu espírito que não posso deixar que o receba, acrescentou, prestes a metê-lo

—É Humphrey Chetham de Crumpsall, filho de

no colete.

um dos mais ricos mercadores da cidade e entusiasmado defensor da verdadeira fé, respondeu o

—Entregue a ela, exclamou um jovem, tomando o

homem.7

livro para si e estendendo-o à mulher, que desapareceu tão logo entrou em sua posse.

Nesse momento, um oficial adiantou-se e ordenou que os sacerdotes subissem o patíbulo.

—Tem um jeito estranho de demonstrar entusiasmo, retorquiu o passavante, anotando a resposta em seu caderno. E quem é a mulher que ele ajudou? —Uma criatura desvairada de nome Elizabeth Orton, retrucou o auxiliar. Na época da rainha Isabel, sofreu castigos e torturas, por fingir o dom da profecia, e foi obrigada a fazer sua retratação

O soldado encarou o recém-chegado como se

naquela igreja adiante. Desde então, não voltou a

disposto a tomar a interferência como um desa-

abrir a boca.8

foro, mas um relance de seus trajes, que, embora modestos e de colorido sóbrio, estavam muito

—É mesmo? exclamou o passavante. Vou encar-

acima da média, somado ao burburinho da mul-

regar-me de fazê-la falar, e com um propósito em

tidão, claramente inclinada a tomar o partido do

mente. Onde é que ela vive?

jovem, induziram-no a suster a mão. Assim, contentou-se em exclamar:

—Numa gruta à beira do rio Irwell, nas redondezas da mansão Ordsall, retrucou o auxiliar. Tira seu

—Um recusante! um papista!

sustento das contribuições incertas da caridade; mas não pede nada e, verdade se diga, quase nunca

—Não sou recusante, nem papista, canalha! retru-

é vista.

cou o outro, rispidamente. E é bom corrigir seus modos e demonstrar mais piedade, ou verá que sou

—Precisamos vasculhar a gruta, ela pode servir de

influente o bastante para obter que você seja dis-

esconderijo a algum religioso, observou o passa-

pensado de um serviço que desonra.

vante. O padre Campion foi acobertado num lugar assim no parque de Stonor, nas proximidades de

Ao ouvir essa réplica, a turba eclodiu numa salva

Henley-sobre-o-Tâmisa, onde escreveu as Decem

de palmas.

rationes,9 e por um bom tempo evadiu-se à vigilância dos comissários. Devemos passar lá hoje à

—Quem é aquele, que fala com tamanho

noite, no caminho para a mansão Ordsall, não?

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7. Seguindo os passos do pai, Humphrey Chetham (1580–1653) obteve sucesso no comércio de têxteis—e despertou a cobiça da Coroa inglesa, que mais de uma vez avançou sobre sua fortuna oferecendo títulos e cargos que o sujeitavam a onerosos compromissos tributários. Receoso de que o assédio se consumasse após sua morte, o comerciante legaria boa parte dos bens à instituição de obras filantrópicas, graças às quais colheu o reconhecimento da posteridade. 8. Em fevereiro de 1580, causaram alvoroço na cidade de Flint, em Gales, os episódios de transe profético manifestados pela adolescente Elizabeth Orton, que reafirmava os dogmas da Igreja Católica e repudiava o anglicanismo como coisa “abominável aos olhos de Deus”. Condenada à prisão e à tortura nos termos da Witchcraft Act, promulgada pela rainha Isabel I em 1562, a jovem acabou atribuindo seus raptos a mera encenação.

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9. A opção pela Igreja Anglicana, onde chegou a ser ordenado diácono, não impediu que Edmund Campion (1540–1581) conservasse a afini-

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dade com o catolicismo de sua formação—e com o qual enfim se conciliou em viagem ao seminário de Douai (ver nota 21) e, depois, ao de Roma, quando ingressou na Companhia de Jesus. De volta à Inglaterra, durante o período de um ano em que exerceu seu ministério clandestino, redigiu um manifesto no qual expunha dez razões (em latim, decem rationes) em defesa da fé católica; enfim capturado, acabaria justiçado por crime de alta-traição. O papa Leão XIII procederia a sua beatificação, em 1886, e o papa Paulo VI, a sua canonização, em 1970.


Ante a confirmação do auxiliar, o passavante

dissipar-se aos poucos, e várias opiniões foram

prosseguiu:

externadas a respeito do revoltante e sangrento espetáculo que se acabara de testemunhar. Muitos,

—Se surpreendermos o padre Oldcorne e puder-

que condenavam a extrema severidade das leis

mos provar que Sir William Radcliffe11 e sua filha,

sob as quais os infelizes sacerdotes nem bem

ambos denunciados em minha lista, deram guarida

tinham padecido—e era essa a opinião da maio-

e proteção a recusantes, teremos encerrado uma

ria—, expressavam os sentimentos com extrema

bela noite de trabalho.

cautela; e havia alguns, por demais inflamados

10

Encerrada a execução, a multidão começou a dissipar-se aos poucos.

em suas emoções para usarem de prudência, que censuravam aberta e asperamente o espírito de perseguição religiosa então vigente; mas uns poucos outros, imbuídos de convicção diametralmente oposta, reputavam os rigorosos procedimentos adotados contra os papistas, e a punição infligida a

Nesse momento, um oficial adiantou-se e ordenou

seu clero, a justa retribuição pela igual severidade

que os sacerdotes subissem o patíbulo.

que os caracterizara durante o reinado de Maria I. De modo geral, as pessoas comuns nutriam forte

Ao chegar ao degrau mais alto, o padre Woodroofe,

preconceito contra os católicos praticantes—pois,

último a vencer a escada, virou-se e ergueu a voz

como já se observou com perspicácia, “elas sentem

num brado:

necessidade de alguém a quem odiar; antigamente eram os galeses, escoceses ou espanhóis, mas,

—Boa gente, a todos vocês invoco como testemu-

nos últimos tempos, só os papistas”; contudo, em

nhas de que pereço na verdadeira religião católica, de

Manchester, em cujas imediações residiam tantas

que me encho de júbilo e agradeço a Deus, do fundo

famílias antigas e importantes que professavam a

do coração, por ter-me feito merecedor de provar

religião, como já se disse, a situação era inteira-

minha fé deste modo, vertendo assim meu sangue.

mente diversa, e o grosso dos habitantes pendia em seu favor. Era a percepção desse sentimento que

Então, adiantou-se na direção do verdugo, que se

induzia os comissários, designados a supervisio-

ocupava em ajustar a corda à volta do pescoço de

nar a execução das sanções contra os recusantes, a

seu companheiro, e disse:

proceder com rigor incomum naquelas imediações.

—Que Deus o perdoe, cumpra com seu dever sem

A situação dos católicos praticantes no período em

delongas.

que transcorre esta história era, de fato, gravíssima. As esperanças que nutriram, de que à ascensão de

E acrescentou num tom mais baixo:

Jaime I seguisse um tempo de maior tolerância, acabaram inteiramente desfeitas. As perseguições,

—Asperge me, Domine; Domine, miserere mei!12

suspensas no primeiro ano do reinado do novo monarca, foram retomadas com mais severidade

E, em meio ao profundo silêncio que se seguiu, o

que nunca; e como se sua condição já não fosse

verdugo desincumbiu-se de sua horrível tarefa.

lamentável o bastante, temiam que lhes estivessem reservadas coisas ainda piores. “Ponderaram”,

Encerrada a execução, a multidão começou a

escreve o bispo Goodman, 13 “que agora as

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10. Edward Oldcorne (1561–1606), sacerdote jesuíta acusado de envolvimento na Conspiração da Pólvora, em virtude de sua proximidade com alguns dos suspeitos, se converteria em mártir da Igreja Católica ao ser capturado, torturado e justiçado por crime de alta-traição. Três séculos depois, o papa Pio XI procederia a sua beatificação.

último William a habitá-la já era falecido havia décadas. (Ver nota 24.) 12. Na liturgia católica, entre os diferentes ritos acompanhados pelo Salmo 51, está o da aspersão de água benta sobre a congregação, quando se recita seu sétimo verso: “Asperges me, Domine, hysopo, et mundabor” [Purifica-me, ó Senhor, com hissopo, e ficarei limpo].

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11. Conquanto a propriedade de Ordsall tenha de fato sido residência dos Radcliffes até o fim do século XVII, à época da ação do romance o

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LITERATURA

circunstâncias eram bem piores que no tempo da

para as filhas, nem localizavam conventos que as

rainha Isabel; pois tinham à época alguma esperança

acolhessem; pois, no que respeita ao total de recu-

de que, encerrados os dias da velha senhora, quiçá

santes, aqueles poucos que se achavam além mar16

desfrutassem de certo alívio—e até aqueles que lhes

montavam a um número desprezível, e ninguém

moviam perseguição mostravam-se um pouco mais

conseguiria ser admitido entre eles sem vulto-

moderados, pois a incerteza de como seria o período

sas somas de dinheiro—das quais os recusantes,

a seguir faziam-nos temer pelas próprias circuns-

estando empobrecidos, não tinham como dispor.

tâncias. Mas agora que viam as coisas assentarem

A Corte Espiritual não cessava de importuná-los,

sem esperança de dias melhores, mas na expecta-

excomungá-los e, por fim, aprisioná-los, deixando-

tiva da justiça vir a ser aplicada com o máximo rigor,

-os definitivamente incapazes de postular em causa

os católicos entraram em desespero: por julgarem

própria.” Eis um retrato fiel da situação dos cató-

que as leis do reino não garantiam segurança a

licos praticantes no começo do reinado de Jaime I.

suas vidas e porque um sacerdote que aportasse na Inglaterra incorria em nada menos que um crime de alta-traição. Houve uma fidalga justiçada por enforcamento unicamente por oferecer ajuda e guarida a um religioso; a um cidadão justiçaram unicamente por reconciliar-se com a Igreja de Roma; ademais, as penas da lei eram tamanhas e tão amiúde aplicadas que sequer lhes davam chance de subsistência. Produtos comerciados de ordinário nas lojas, o pas-

Desviar ou tentar desviar uma pessoa da religião estabelecida era criminado como alta-traição e punido de acordo.

savante lhes arrebatava sob o argumento de serem

Oprimidos por essas injustiças intoleráveis, não

papistas e supersticiosos. Um fidalgo atestou que,

é de admirar que os papistas estivessem insa-

certa ocasião, entregara vinte nobles a um funcio-

tisfeitos, nem que alguns entre eles, depois de

nário do Procurador Geral, a título de gratificação;

frustrados todos os outros meios, buscassem

um outro, que a terça parte que lhe coubera dos

reparação adotando medidas mais cruéis. Um

próprios bens mal dava para as despesas com a

estatuto promulgado por Isabel previa que todo

justiça, na defesa de seus interesses contra outras

aquele que se recusasse a conformar-se à religião

opressões; some-se a isso que seus filhos eram

estabelecida estaria sujeito a multa de vinte libras

levados de casa para serem educados noutra reli-

por mês lunar; 17 e remida, ou antes, suspensa,

gião. Portanto, não havia como não concluírem que

após a ascensão do novo soberano, essa dura

sua situação era desesperadora; estavam prontos

punição voltara a ser aplicada e todas as dívidas,

a morrer uma única vez,15 e prezavam sua religião

cobradas. Some-se a isso a decisão de Jaime, em

mais que as próprias vidas. Cismaram, ademais, na

cuja corte apinhava-se uma hoste de apaniguados

penúria que os afligia; em como lhes era embara-

escoceses em apuros, de partilhar entre eles certo

çado, em todas as instâncias da vida, fazer em prol

número de recusantes abastados e conceder-lhes

de si. Não podiam exercer o direito, não podiam ser

o direito de cobrar as multas—privilégio de que

cidadãos, não podiam dedicar-se a um ofício; não

não custaram aproveitar-se. O mesmo estatuto

podiam criar os filhos varões, nem havia quem qui-

previa outros castigos e punições, todos eles apli-

sesse esposá-los; tampouco ajustavam matrimônio

cados com rigor. Desviar ou tentar desviar uma

14

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13. Ao longo da carreira eclesiástica, o bispo anglicano Godfrey Goodman (1582–1656) deixou patente sua afinidade com o catolicismo; mas só no fim da vida, depois de sofrer represálias a suas simpatias, testemunhar a perseguição movida contra os católicos e sucumbir a dúvidas sobre a legitimidade do cisma com Roma, é que ele se converteria à antiga fé. As considerações aqui reproduzidas são um excerto do livro The court of King James the First [A corte do rei Jaime I], escrito nos anos 1650 mas publicado pela primeira vez em 1839. 14. Antiga moeda inglesa, de valor correspondente a um terço da libra esterlina.

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15. “Os covardes morrem mil vezes antes de morrer, mas os valentes jamais provam da morte senão uma única vez.” (William Shakespeare,

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Júlio César, Ato II, Cena II.) 16. Isto é, na diáspora católica inglesa dispersa pelo continente europeu propriamente dito, portanto imune à jurisdição da Coroa. 17. Embora à época vigesse no Reino Unido o calendário juliano, em matérias de ordem temporal a common law adotava como medida o


pessoa da religião estabelecida era criminado

que lhe fora confiado pelo padre Woodroofe. Um

assis-

grupo rodeou-a às pressas, mas, aparentemente

tir a uma missa envolvia pena de cem marcos19 e

desatenta a sua presença, a coitada seguia com a

um ano de prisão; e dar guarida a um sacerdote,

leitura, folheando página a página. O capuz para

designando-o para tutor, sujeitava este último a

trás deixava à mostra um pescoço nu e ressequido,

um ano de detenção e o empregador, a multa de

sobre o qual os cabelos desgrenhados ondeavam

dez libras mensais. Abalado pela certeza de que,

num emaranhado de compridas madeixas negras.

em resultado da incessante perseguição movida

Irritados com a indiferença da jovem, diversos

aos católicos à época de Isabel, a religião acabaria

circunstantes, que a tinham questionado sobre a

inteiramente erradicada do país, o doutor Allen,

20

natureza de seus estudos, passaram a imitá-la e

eclesiástico de Lancashire depois agraciado com

motejá-la, puxando-lhe o manto e alvejando-a

o barrete de cardeal, fundou um seminário em

com pedrinhas no esforço de chamar sua aten-

Douai, para acolher e educar os candidatos à orde-

ção. Enfim desperta por aquela impertinência, ela

nação. Todo ano, um grande número de sacerdotes

ficou de pé; e, cravando-lhes ameaçadoramente os

missionários—ou seminaristas, como eram cha-

enormes olhos negros, esteve a ponto de ir embora,

mados—partiam do educandário com destino

contrafeita, quando a cercaram e detiveram.

como alta-traição e punido de acordo;

18

à Inglaterra; e era contra essas pessoas, que se sujeitavam a todo tipo de sofrimento e privação, ao perigo e à própria morte, pelo bem de sua religião e na esperança de propagar sua doutrina, que se voltava o extremo rigor das sanções penais.21 E em meio aos muitos seminaristas despachados de

— Mesmo vocês descrendo de minhas palavras, elas não vão cair por terra.

Douai e condenados à pena capital com base na lei

—Fale conosco, Bess,23 suplicaram diversas vozes.

mencionada, estavam os dois religiosos cuja exe-

Profecias, faça suas profecias.

cução acaba de ser descrita. —Eu vou falar a vocês, retrucou a pobre mulher, Ao atravessar a velha ponte sobre o Irwell, ligando

agitando-lhes a mão. Eu vou fazer profecias. E

Manchester a Salford—e onde antiga capela erigida

quero que saibam: mesmo vocês descrendo de

por Thomas de Booth, no reinado de Eduardo III,

minhas palavras, elas não vão cair por terra.

fora recém-convertida em prisão destinada a recusantes—,22 parte da multidão deu pela profetisa,

—Milagre! milagre! vozearam os circunstantes.

Elizabeth Orton, sentada nos degraus de pedra da

Bess Orton, que estava muda faz vinte anos, enfim

estrutura profanada e lendo atentamente o missal

voltou a falar.

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“mês lunar”, correspondente ao período de uma lunação, ou 28 dias corridos. 18. A Treason Act, promulgada pelo rei Eduardo III em 1351, determinava que aqueles acusados por crime de alta-traição fossem enforcados, eviscerados e esquartejados (hanged, drawn and quartered). 19. À época, a Inglaterra adotava uma unidade de conta chamada marco (não confundir com a moeda de mesmo nome), de valor correspondente a dois terços da libra esterlina. 20. Embora a grande penetração do nome de William Allen (1522–1594) entre os católicos ingleses, em consequência de suas muitas iniciativas com vistas à disseminação e preservação da fé—como a abertura de seminários para formação de sacerdotes (ver nota 21) e a edição de uma tradução da Bíblia—, houve sensível declínio em sua influência depois que seu nome foi associado a uma malograda conspiração para depor a rainha Isabel I, do que resultou o acirramento da perseguição anglicana. 21. De fato, em setembro de 1568, tiveram início em Douai (cidadezinha no norte da França, à época sob o domínio de Filipe II da Espanha) as atividades do Colégio Inglês, de início com objetivo de proporcionar a católicos ingleses concluir a formação teológica obstada pela perseguição de Isabel; depois, de formar missionários para a reconversão do país de origem. Os seminaristas justiçados no cumprimento da chamada “missão inglesa” somaram quase duas centenas.

del Bothe, legou em testamento a quantia de 30 libras para edificação de uma capela na antiga ponte de Salford, onde hoje estende-se a ponte Victoria. Com os anos, o templo entrou em desuso e acabou convertido em masmorra, antes de ser definitivamente demolido em 1776. 23. Hipocorístico de Elizabeth.

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22. De fato, em 1373, um cortesão do rei Eduardo III, identificado alternativamente como Thomas de Booth, Thomas de la Booth ou Thomas

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LITERATURA

—Eu tive uma visão, eu tive um sonho, continuou

bem-feitas, embora fortemente marcadas, exi-

a profetisa. Recostada em minha cela na noite

biam uma expressão de firmeza e austeridade;

passada, meditando sobre o estado desolador de

os olhos cinzas e penetrantes eram toldados por

nossa religião e daqueles que a professam, tive a

grossas sobrancelhas, e rematava-lhe a fisiono-

impressão de ver a minha frente dezenove vultos

mia uma negra barba em ponta. Sua figura era alta

indistintos. Sim, dezenove, que contei três vezes.

e ereta, e sua postura, marcial e imperiosa. Ao per-

E quando questionei sua chegada (pois, de início,

ceber que se tornara alvo das atenções, o forasteiro

minha língua grudou no céu da boca e meus lábios

lançou um olhar de compaixão para a profetisa,

se negaram a cumprir com sua função), um deles

que ainda o encarava fixamente, e, atirando-lhe

respondeu, numa voz que ainda ressoa em meus

umas poucas peças de dinheiro, afastou-se a pas-

ouvidos: “Somos os eleitos para libertar nossa

sos largos.

derrocada e perseguida Igreja. A nós foi confiada a reconstrução de seus templos, em nossas mãos foi

Após observar o vulto do soldado distanciar-se

entregue a destruição de nossos inimigos. Nossa

até sumir de vista, a mulher jogou os braços para

tarefa será realizada às escondidas e em segredo,

o alto, em seu desvario de doida, e clamou numa

em trabalhos e em fadiga, mas enfim restará mani-

voz exultante:

festa; e quando chegar a hora, nossa vingança será terrível e fulminante.” Com essas palavras, sumi-

—Então não falei a verdade? não disse que o tinha

ram de minhas vistas.

visto? É ele o libertador de nossa Igreja, che-

Voltando-se instantaneamente na mesma direção, todos os olhares depararam um soldado espanhol.

gado para vingar o sangue dos justos neste dia derramado. —Quieta, mulher, e fuja enquanto ainda é tempo, suplicou o jovem identificado como Humphrey Chetham. O passavante e seus asseclas estão a sua procura. —Então, não precisam ir muito longe para me

Emitiu um ai de exclamação, subitamente sobres-

achar, retrucou a profetisa. Direi a eles o mesmo

saltada, e passou a mão no rosto como se para

que disse a esta gente: que o dia da desforra de san-

desanuviar os olhos:

gue está próximo, que é chegado o vingador. Foram duas as vezes que o vi: uma na minha caverna e

—Não era sonho, não era visão. Neste momento,

outra aqui, exatamente onde vocês estão.

mesmo, vejo um deles. —Se não se calar e fugir, pobre mulher, terá de —Onde? onde? suplicaram diversas vozes.

enfrentar o mesmo que sofreu anos atrás: o açoite e quiçá a tortura, retorquiu Humphrey Chetham. Fique

Em resposta, a profetisa estendeu o braço franzino

sabendo que… Ai!, tarde demais, ele se aproxima.

na direção de alguma coisa logo à frente. —Que venha, retrucou Elizabeth Orton. Estou Voltando-se instantaneamente na mesma dire-

pronta para ele.

ção, todos os olhares depararam um soldado espanhol—pois assim denunciavam seus trajes-

—Não há ninguém que possa levá-la daqui à força?

—a poucos passos de distância. Cingia-se de vasto

suplicou Humphrey Chetham, apelando ao povo.

manto, com um chapéu de abas largas e copa em

Vocês serão recompensados.

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ponta, decorado com um solitário penacho verde

60

que lhe cobria a fronte, e trajava brigandina de aço

—Não darei um passo deste lugar, retorquiu a

polido, calções bufantes e botas de couro puxadas

profetisa em sua obstinação. Serei testemunha da

até os joelhos. Tinha por armas um par de clavi-

verdade.

nas enfiadas no cinturão, do qual pendia comprido florete. As feições, escuras como o bronze e

Ao constatar que seria infrutífera qualquer


tentativa de salvá-la, o jovem e cordial mercador

outra emoção.

pôs-se de lado. —Logo verá o quanto são importantes, meu bom A essa altura, apareceram o passavante e seus

lobo em pele de cordeiro, rebateu o passavante.

auxiliares.

Acaso o senhor consiga provar que não é, no fundo, um rematado papista, então já não sou capaz de

—Prendam-na! vociferou o primeiro. E que ela

distinguir um homem sincero de um falso.

fique detida nessa prisão até que eu a tenha denunciado aos comissários.

Essa acalorada troca de palavras foi interrompida pelo grito lancinante da profetisa. Escapando das

E acrescentou, num sussurro à mulher, que se ela

garras de seus captores, que estavam para arrastá-

confessasse que dera guarida a um padre e condu-

-la ao cativeiro, de um salto ela ganhou o parapeito

zisse o grupo até seu esconderijo, seria posta em

da ponte; e demonstrando a mais completa indife-

liberdade.

rença àquela posição arriscada, voltou-se e encarou

A altura da queda foi de aproximadamente quinze metros.

os soldados, que tinham emudecido de assombro. —Tremam! ergueu a voz a mulher, num bramido. Tremam, seus pecadores! Vocês, que saquearam a casa de Deus, depredaram seus altares, espalharam seus incensos, mataram seus padres.

—Não sei de padre nenhum, a não ser daqueles que

Tremam, digo eu. É chegado o vingador, o raio

você matou, retrucou a profetisa alto e bom som.

está em suas mãos. E ele há de fulminar rei, lor-

Mas digo uma coisa de que não sabe: o vingador de

des, comuns, todos! São minhas últimas palavras,

nosso sangue está próximo. Eu o vi. Todos aqui o

não se esqueçam delas.

viram. E você também o verá, mas não agora, não agora.

—Tirem-na dali! urrou o passavante, furioso.

—Que significa esse despropósito? inquiriu o

—Tenham cuidado, sejam gentis, se forem

passavante.

homens! suplicou Humphrey Chetham.

—Não deem atenção a seu palavrório, interveio

—Não pensem que podem me deter! rugiu a profe-

Humphrey Chetham. É uma pobre criatura desvai-

tisa. Fora daqui… e tremam!

rada que não sabe o que diz. Posso afiançar que sua conduta é inofensiva.

E assim dizendo, arremessou-se do parapeito.

—É preciso que me afiance sua própria conduta,

A altura da queda foi de aproximadamente quinze

retrucou o passavante. Acabei de tomar conhe-

metros. Projetada no ar feito esguicho de fonte,

cimento de sua visita de ontem à noite à mansão

pelo peso do corpo e força do impacto, a água

Ordsall, residência de Sir William Radcliffe, aquele

envolveu a mulher na mesma hora. Mas cerca de

que, em minha ordem de prisão, é chamado de

vinte metros adiante, ela emergiu à superfície.

“perigoso conciliador”. E sendo fidedignos os relatos, o senhor não parece de todo insensível aos

—Ainda podemos salvá-la, clamou Humphrey

encantos de sua bela filha, Viviana Radcliffe.24

Chetham, que, junto com os demais, precipitara-se até uma lateral da ponte.

—Que lhe importam essas coisas, canalha impertinente? rugiu Humphrey Chetham, corando em

—De nada isso servirá senão de guardá-la para a

parte de raiva, mas é possível que em parte de

forca, observou o oficial.

24. Do mesmo modo como Ainsworth recria a cronologia dos fatos ao implicar William Radcliffe em eventos posteriores a seu óbito, também a personagem Viviana é obra de sua imaginação.

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LITERATURA

—Não é sua maldade que me impedirá a tentativa, retrucou o jovem mercador. Ha! o auxílio está próximo. A exclamação fora ocasionada pelo inesperado surgimento do soldado em trajes espanhóis, que arremeteu para a margem esquerda do rio—ali, como em toda a extensão, composta de rocha de arenito vermelho25—e, seguindo a direção da correnteza, aguardou por uma nova aparição da mulher que se afogava. Mas isso só aconteceu depois do rio tê-la arrastado uma distância considerável, quando o soldado, desfazendo-se do manto às pressas, lançou-se à água e puxou-a para a margem. —Sigam-me, gritou o passavante para os auxiliares. Essa caça não me escapará. Mas antes que chegasse à margem do rio, a mulher sob sua custódia e o soldado já tinham sumido—e nem deixaram pistas que ele pudesse rastrear.

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Traduzido por Luiz Otávio Talu

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25. A menção a esse detalhe não é de todo ociosa, uma vez que, mesmo indiretamente, os Radcliffes devem seu nome ao barranco vermelho (em inglês, red cliff) que margeia o rio Irwell.


O leitor comum, Virginia Woolf Tradução do ensaio “The Common Reader”, publicado em sua coletânea de crítica literária, “The Common Reader” (1925).

H

á uma sentença em “Life of Gray” do Dr. Johnson 1 que poderia perfeitamente ser escrita em todos aqueles recintos, simples demais para serem

O senso comum define suas qualidades.

chamados de bibliotecas, mas repletos de livros,

ensino, que se deve finalmente decidir para quem

onde pessoas privadas preservam a busca pela lei-

irão as honras poéticas.” O senso comum define

tura: “Tenho o maior prazer em concordar com o

suas qualidades; dignifica seus objetivos; empre-

leitor comum; pois, é pelo senso comum dos lei-

ende uma busca que devora uma grande parte do

tores não corrompidos por preconceitos literários,

tempo, e ainda assim está sujeito a deixar para trás

após todos os refinamentos sutis e dogmatismo do

nada muito substancial: a sanção da aprovação por

1. Samuel Johnson (1709-1784). Foi um escritor e pensador inglês. Autor do famoso “Prefácio a Shakespeare”.

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LITERATURA

parte do grande homem. O leitor comum, como Dr. Johnson sugere, difere do crítico e do erudito. Ele tem uma educação inferior, e a natureza não lhe foi tão generosa em seus dotes. Ele lê mais para seu próprio prazer do que para compartilhar conhecimento ou corrigir as opiniões dos outros. Acima de tudo, ele é guiado por um instinto para criar para si mesmo – a partir de quaisquer minúcias com que possa se deparar – algum tipo de papel: um retrato de um homem, um esboço de uma época, uma teoria acerca da arte de escrever. Ele nunca para, enquanto lê, de remendar o tecido de uma trama frágil e precária, que lhe dará a satisfação temporária de parecer o bastante com o verdadeiro objeto, para permitir a afeição, o riso e o argumento. Precipitado, impreciso e superficial, apanhando ora um poema, ora aquele resto de uma mobília velha, sem se importar onde o encontra ou de que natureza possa ser, contanto que sirva a seu propósito e arredonde sua estrutura, suas deficiências como crítico são tão evidentes que não precisam ser mencionadas; contudo, se o leitor comum tem algo a dizer na distribuição final de honras poéticas, como o Dr. Johnson defendia, então talvez possa valer a pena escrever algumas das ideias e opiniões que, mesmo sendo insignificantes em si, ainda contribuem para um resultado tão poderoso.

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Traduzido por Leonardo Lopes

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