Aconteceu em blumenau

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Aconteceu em Blumenau

Travessa em TrĂŞs Tempos

20110 - Ano I N° 02



Sumário: Agradecimentos….......................................................…………...…………………….… 03 Carta escrita por Frau Schelle, no ano de 1855, relatando um assalto de bugres. ……………………………...........................................................................................… 03 “Pó de Milho” .................................................................................................... 04 [H.] ..................................................................................................................... 04 De fim a princípio............................................................................................... 06 E a vaca [não] foi pro brejo ................................................................................ 07 Maria Bonita [M.B.] ........................................................................................... 07 História tem moral? ........................................................................................... 09 Flor do Cerrado .................................................................................................. 09 Do Sertão ........................................................................................................... 10 Assombrações .................................................................................................... 11 Zé do Trilho ..................................….…………………………………..…………………..…….. 11 Imensidão …………..………………………………………........................……………………….... 13 Sonoramente …………………………………………….…………………………...................…… ..14 *L!+ ...................................……………………………...……………………………………………....14 Memórias de Peterle ….......……………………………...…………………………………………...16 Peterle …………….………...............................……………………………………………………....16 Travessa em Três Tempos …………………………………………………………………………......18 Indicações da Travessa ...................................................................................... 18 Comissão Editorial ............................................................................................. 20

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Agradecimentos: A Travessa em Três Tempos ganhou sua primeira edição no dia 02 de maio de 2010, com a impressão de 146 exemplares, os quais foram distribuídos na FAED. A publicação da revista só foi possível graças ao apoio de professores que disponibilizaram o remanescente de sua cota de xerox. Dessa forma, queremos iniciar essa segunda edição com os devidos agradecimentos aos seguintes professores: Prof. Edgar Garcia Júnior, Prof. Fábio Feltrin, Profa. Geysa, Prof. Luiz Felipe Falcão, Prof. Rafael Rosa Hagemeyer, Prof. Reinaldo Lohn, Profa. Sílvia Arend e Prof. Tito Sena. Queremos também agradecer ao Cica pela paciência para fazer as 770 cópias.

Florianópolis - Outubro de 2010

Travessa em Três Tempos

Ano I N° 02

Carta escrita por Frau Schelle, no ano de 1855, relatando um assalto de bugres. “Certo dia eu estava lavando fraldas à beira do ribeirão enquanto meu Peterle brincava no pedregulho. De repente, ele começou a gritar: Mãe, lá ! Olha lá, mãe ! Angustiado, agarrava-se às minhas saias, sem tirar os olhos da plantação de milho. Convenci-me que algo estranho ele deveria ter visto. À noite o espetáculo começou: os porcos fugiram do curral, ou foram soltos, em altos grunhidos. A vaca refugiou-se dentro de casa, berrando. As pedras do fogão, num vão aberto, encostado à casa, voaram em todas as direções. Os bugres, em gritos contínuos, batiam com a pá de ferro do fornos nos pilares da casa, jogando feixes de lenha para cima na cobertura, enquanto sacudiam intensamente o barracão que julguei,não resistisse. Eu gritava a plenos pulmões e meus filhos também. Foi um balaiado infernal. Pelas 3 horas da madrugada, depois de terror inconcebível, amarrei minha filha recém-nascida no meu avental, sentei o menino nos meus ombros e fugi, acompanhada da vaca e da cabra que, de tanto medo, se encostavam em mim, de tal modo que eu mal podia caminhar pela picada. Depois de uma hora de boa caminhada, chegamos à propriedade do primeiro vizinho, Rodolfo Harbs, onde cai esgotada. (...)“ Arquivo Histórico José Ferreira da Silva – Blumenau Extraído: RENAUX, Maria Luiza. O Outro Lado da História: O Papel da Mulher no Valle do Itajaí. 1850/1950. Editora da FURB, Blumenau. 1995.

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[H.] Eis que aqui chegamos, depois de tanto, depois de tudo. Olhamos nos álbuns de fotografia e, de repente: quem sou eu? Venho apresentar-me, mas não porque eu queira. Mostrarme escondida por um pseudônimo é cômodo. É paradoxal. Acima de tudo, é misterioso. Quem não conhece as façanhas já feitas por

escritores

e

compositores

que

se

mostravam

por

pseudônimos? É um misto de tempos após contratempos, fazendo com que o momento fosse propício à medida que a história se desenrolava.

Florianópolis - Outubro de 2010

Travessa em Três Tempos

Ano I N° 02

“Pó de Milho” Disseram que aquele dia foi um alarido incrível; era vaca, era cabra, eram porcos, aquela mulher gorda e os rebentos... Até acharam que “o” Lua também estivesse envolvido naquilo tudo, porque a doidura era muito grande. Era tardinha, quando foi visto o Lua surgindo no céu. Ninguém esperava por ele naquele dia, alguma coisa diferente tinha acontecido. Ainda não tinham se preparado pra fazer a colheita do milho e o sinal já estava dado. Como diziam os anciãos: “uma hora as regras vão ser exceções” – imagino que ninguém entenda bem o que eles querem dizer, mas disseram que se ouve isso desde curumim. Rodolfo Harbs até pensou que fosse o fim do mundo. O Harbs era um dos únicos brancos que falava com o pessoal da aldeia. Dava pra ver neles, que ninguém entendia o motivo – mas por que eles tem tanto medo? Ora, a gente também sabe se comunicar e faz as coisas todas bem feitinhas, a diferença é que é do nosso jeito e não aceitamos o que eles dizem. Quer dizer, a gente até que aceita, sim. Tanto que convivemos muito bem com seo Harbs e sua moça, mas o Harbs é diferente. A gente não tem medo dele, nem ele da gente, porque a gente se ajuda... Eu colhia o milho, ele ajudava na plantação... – era o que sempre falavam quando esse assunto começava. Mas aquele dia, ah! Alguma coisa de muito estranha estava acontecendo. Soube que eles pensaram até que tinham chateado o Sol, mas tudo que buscavam na memória dizia o contrário. - A gente sempre foi muito cumpridor das coisas, a menos que alguém tenha feito algo de muito errado e o Sol estivesse zangado, mas Ele não descontaria em toda a aldeia. O Sol é justo e responsável, não faria isso. – foi o que me disseram quando os perguntei o motivo. Bom, o que se sabe mesmo é que o Lua apareceu. Comentavam entre si dessa esquisitice. Logo depois, viram que o rebento-doido da Schelle ficou de pirraça, 3


Histórias boas ou ruins, bem ou mal escritas, dramáticas ou hilárias, sobretudo, despretensiosas são as que me formam. Hoje, sou uma; amanhã, mantenho a essência; depois, já serei outra. Nem frágil que desmonte, nem forte demais que não se adapte. Desse jeito me mostro: querendo ser exatamente como sou, para ser levada além. Vinda não se sabe de onde, indo para um destino incomum. No trajeto, lágrimas; de felicidade e de tristeza, que se completam. Pedras no caminho foram vistas, logo após, retiradas. E apoderando-me delas, venho fazendo minha rua ladrilhada.

Florianópolis - Outubro de 2010

Travessa em Três Tempos

Ano I N° 02

apontando pro milharal. Mas não podiam ir checar naquela hora; eles seriam postos pra correr. Era aquilo que já falei antes, eles olhariam e teriam medo. E se nota que eles também não gostam desses cara pálida, não. - Não os conheço, prefiro ficar aqui. Já vieram dizer que é importante a gente se misturar, mas não gosto. – era sempre a resposta, já na ponta da língua. Só mais a noite, quando todos os outros já estavam em casa, que foram até o milharal. Foram três: irmãos e primo. Andavam por entre aquele monte de milho, esbarravam nas folhas que os cortavam e o primo já começava a espirrar quando um dos irmãos sentiu as primeiras coceiras no braço. O Lua iluminava todo aquele milharal, diziam ser realmente bonito! Isso tudo faz lembrar as histórias que contavam sobre o milho, principal alimento, que para tê-lo em abundância, aquele menino sacrificou a vida. É uma história realmente bonita, e eles a contam aos curumins uma vez por semana. Quanto ao milharal, no fim, parece que eles não viram nada de mais, pararam no riacho onde ouviram um barulho nas pedras, mas acabaram mesmo voltando para a aldeia. Mais à noite, todos sentaram à beira da fogueira. Enquanto conversavam sobre o dia, o primo foi ficando mais vermelho. As bolotas de coceira ficaram imensas e logo também foram vistas em um dos irmãos, que se coçava rolando no chão. Disseram que a cena era muitíssimo estranha. Só aí que, depois de ver os pequenos olhando assustados, notaram o outro irmão: era sangue. Não! Parecia sangue. Eram vergões incríveis, que inchavam à medida que eram tocados. E ele tocava muito porque coçava muito. Nessa altura da situação, os três saíram correndo por todos os lados, se enroscando nas árvores, tentando coçar com o tronco, no chão, em panos. O desespero com aquela coceira era tanta que os curumins todos choravam diante da loucura que viam; as mulheres não sabiam se ajudavam a coçar, se preparavam gosma branca pra passar, ou se jogavam água... até que a mais velha que era muito amiga da moça do seu Harbs disse que os brancos teriam como ajudar, porque tinham muitos potes com pedrinhas de pó que sarava aquilo na hora. 4


De fim a princípio Escondi meu rosto para mostrar-lhe minha mão; não aquela que toca, acaricia, ou manuseia, mas a que dá cordas aos confins de minha imaginação. A mão que preenche o papel branco, que colore as lacunas do pensar e assim dá vida. Aqui! Não é a boca e sim a mão que ganha a incumbência de contar; contar histórias, quaisquer que sejam elas. Porque antes de tudo nada era; e no princípio tudo era verbo, e só depois veio a palavra. Da palavra veio o contar e do contar, a história. Eisme aqui, exatamente aqui entre o contar e a história!

[Maria Bonita]

Florianópolis - Outubro de 2010

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Ano I N° 02

Dizem que foi aí que a bagunça se formou, porque eles saíram correndo como se estivessem correndo de onça, pularam a cerca - passando longe do milharal - e entraram na casa da Schelle, procurando as pedrinhas brancas. Tentaram, antes, chamá-la batendo nos pilares da casa. Não tendo resposta, entraram, levantaram lenha, levantaram mesa, se enrolaram na cortina pela pressa. Só mais tarde Harbs contou a eles, e a mim também, que Schelle não esperava aquela invasão. Que tinha até muito apreço pela gente da aldeia, mas que aquilo tudo assustou muito ela, principalmente porque ela estava sozinha com os rebentos, já que o marido tinha saído a viajar havia tempos. Antes de saberem disso, eles ficaram um bom tempo achando que ela era uma ingrata, por não os ter ajudado naquele dia. Por fim, parece que o pote fora achado e levado para aldeia, mas acabaram que nem tomaram, porque a anciã já tinha preparado uma gosma boa praquilo. Em duas faíscas do fogo, depois de tomarem e passarem aquilo no corpo, não se sentia mais nada. Descobrimos depois, que a Schelle saiu correndo apavorada para a casa do Harbs, onde ela sabia que estaria protegida. Foram ela, os rebentos, a vaca e a cabra. Dizem que a vaca é quem cuida da família; eu acredito nisso. O que não foi descoberto foi o motivo daquela coceirada toda. Os anciãos da aldeia contam que foi uma traquinagem do Sol e do Lua, os irmãos, e que jogaram pó no milharal, “pó de milho”. De muito mais eu não sei, só sei que a colheita daquele ano foi a melhor que já se teve notícia por essas bandas até hoje. Historieta narrada por H.

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Maria Bonita [M.B] Quem dera eu transpor nestas frases meus sentimentos a respeito de quem sou. Mas as palavras, outrora tão amigas, neste momento me parecem não compactuar com esta idéia. Para desvendar a pessoa que hoje sou, precisarei lhe contar de onde vim, por onde passei, com quem conversei, quem tocou meu coração e nele permaneceu e também aqueles que partiram depois de deixar uma pequena parcela de seu próprio ser. E agora? Como me definir? Se é que palavras definem alguém, prefiro acreditar que não meus atos que me definem. Isso significa dizer que prefiro saber do uso que faço de minhas palavras do que delas em si.

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Ano I N° 02

E a vaca [não] foi pro brejo... A tarde começou tranqüila. Já fazia uns dias que o sol nos presenteava com o ar de sua graça e não foi diferente naquele dia. Eu estava contente! - nesses dias de inverno quando se tem uma semana de sol é motivo de muita comemoração. Schelle estava na beira do ribeirão lavando as fraldas do pequeno. Aquilo que é mulher! Já fazia quase ano que o marido tinha saído atrás de um trabalho e até aquela data não tinha dado notícias de que encontrara – duvido muito que um dia daria. Frau Schelle tomava conta de tudo: cuidava da horta, da plantação de milho, da casa e dos bacuri dela. E ainda ia pra beira do ribeirão lavar as roupas dos filhos e da vizinhança pra conseguir uns trocados para ajudar no sustento da família. Eu também ajudava nessa função - e claro que a Schelle também cuidava muito bem de mim e dos outros. A vida na fazenda sempre foi muito boa. O ar do campo traz uma tranqüilidade para gente – tranqüilidade demais para meu gosto até. Eu até que queria dar uma inovadinha na minha vida, mas que opções uma vaca tem para sair da rotina? Não posso reclamar também, sempre fui uma vaca de pedigree. A cabrita reclama o tempo todo que minha ração é de melhor qualidade do que a dela, então eu lhe respondo que dou muito mais leite do que ela, logo preciso de um alimento que me sustente – encher de leite duas tetas magrelas é muito fácil, quero ver aquela cabrita produzir leite para encher um úbere do tamanho do meu. Mas não quero me perder na minha história - com a cabrita me entendo depois. Eu estava lá comendo o pasto nosso de cada dia quando ouvi o bacuri da Schelle se encrencar com alguma coisa que se mexia dentro do milharal; pensei que era um dos cachorros do vizinho, mas era coisa maior. Não dei muita bola porque eu não sou de ficar dando trela para coisa de humano; como meu pasto, produzo meu leito, cedo minhas tetas e só. Gosto também de receber um carinho da Schelle, mas a Schelle é quem cuida de mim; ela não é qualquer humana. 6


Palavra, o fato de pronunciá-la acarreta numa força da qual a maioria das pessoas não consegue compreender. Sua palavra pode perturbar a paz, mas também, e felizmente, trazê-la ao coração de quem precisa. Inquietante saber que uma simples palavra pode ser o bater de asas da borboleta; isso lhe faz responsável pelo que pronuncia, isso lhe faz responsável por uma possível lágrima derramada, ou um belo sorriso esboçado. Qual a distância entre a lágrima e o sorriso? Talvez uma única palavra; talvez uma centena; talvez ela não esteja em você. Entretanto a ciência de que aquilo que você diz não pode ser desdito, não lhe deixa mais cauteloso a respeito do que proferir? Quem sou? Sou alguém impossibilitada - mesmo que por hora - de ver o mundo como ele é, sou alguém que olha o mundo do jeito que eu sou.

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Ano I N° 02

Sei que não tardou os dois voltarem da beira do ribeirão. Isso não é uma coisa lá muito comum porque quando a Schelle vai pro ribeirão ela costuma passar a tarde toda lá. Achei estranho, mas como bicho cuida de assunto de bicho e gente cuida de assunto de gente, fiquei quieta no meu canto me dedicando ao meu pasto. No cair da noite comecei a ouvir uns barulhos estranhos. Não é por nada não, mas intuição de vaca é uma coisa que não se pode desconfiar e a minha me disse que era pra eu ir pra perto da casa para ver se a Schelle tava bem. Cheguei lá e vi aquela bagunça; era lenha voando para todos os lados, os porcos correndo de um lado pro outro destruindo a horta da Schelle – sempre desconfiei que aqueles porcos fossem um bando de medrosos mesmo. A noite era de lua minguante, então eu não conseguia ver direito quem é que tava fazendo aquela confusão toda. Por um momento, pensei que aquele bacuri tinha endoidado e tava dando trabalho pra mãe dele; foi quando eu ouvi a Schelle gritar de dentro da casa, e logo em seguida veio o grito dos filhos. Descobri que não era brincadeira de criança, alguma coisa tava acontecendo e a Schelle tava correndo perigo. Me muni com o toda a coragem que uma vaca pode ter e adentrei a casa berrando: - Ninguém se mete com a Schelle! – Acho que minha atitude assustou quem tava fazendo aquela bagunça toda, pois não demorou muito para que tudo do lado de fora ficasse calmo novamente. A Schelle deve ter ficado impressionada com meu ato de coragem, pois quando decidiu pegar os filhos e ir para a fazenda do vizinho me levou junto para os proteger. Eu achei que era arriscado deixar a cabrita sozinha em casa aquela é outra que não agüenta passar uma noite sozinha - e como os porcos já tinham há muito fugido, dei um jeito de convencer a Schelle de levar a cabrita com a gente. Vocês podem até se perguntar como uma vaca convence alguém que não fala vaquês, mas a Schelle é inteligente e entende o que eu falo para ela. Assim foi, o bacuri se agarrou nos ombros da mãe enquanto a bebezinha ia amarrada no avental; a cabrita tava tão assustada que mal conseguia sair de perto da Schelle. E eu indo na frente – como tinha de ser – para garantir a segurança de todos. Historieta narrada por Maria Bonita 7


Depoimento 06

Flor do Cerrado Quem sou eu? Quem foi/é calango do cerrado, sabe da secura do vento da poeira que avoa no fim da tarde, sob o pôr do sol encarnado quando embreagado com cheiro do pequi e o sabor do buriti pronto pra transmutar e virar a mais linda flor... Qual será? A do cerrado.

Florianópolis - Outubro de 2010

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Ano I N° 02

História tem moral? Eu sei que Frau Schelle fora abandonada pelo marido. Sozinha cuidava dos filhos, uma franzina menina que nascera há uns cinco meses e um garoto levado de sete anos que dava tanto trabalho que seus cabelos de trinta e cinco anos já estavam prateados pelo tempo. Trabalhava na terra, experiência de vida aquecida pelo sol da labuta, que lhe ardia a face diariamente, aspectos de uma vida que se faziam visíveis na sua cara, no seu corpo magro. Os traços que compunham o seu ser foram esculpidos com o suor da lida na lavoura e o cuidado dos bichos; além de um coração partido e um par de filhos que a sorte lhe reservou. Eu sempre a observava, e Schelle, como de costume, em todo anoitecer sentava-se numa cadeira de palha e fitava o crepúsculo que lhe intrigava com suas diversas nuances coloridas que se faziam e desfaziam sob seu olhar. Naquele dia, posto completamente o sol, ela entrou porta adentro e contemplou por um instante a sua pequena Francile que começara a resmungar de fome em seu bercinho de madeira. Sem tempo de demonstrar a fome de forma plena através do choro, a mãe se antecipou e deu à pequena seu seio, o qual foi pego com a voracidade infantil de quem tem apenas o leite materno para regozijar-se. No pátio estava Peterle, seu pequeno varão, que não parava de jogar pedras com o bodoque na tentativa de derrubar os frutos amarelos do pessegueiro. Schelle sentia-se vazia pelo abandono do seu amor Caspriano, era notório. Ele a traiu da maneira mais vil, deixando-a. Esse homem, eu conhecia bem, era muito amigo do Chico do bar; ele sempre sonhara em ir morar na capital, seja qual fosse o preço a pagar. Com a notícia da vinda da pequena Francile, Caspriano viu seu horizonte se afunilar e culminar numa vida regrada sem grandes expectativas. Porém, há tempos que Caspriano se apoderou de uma valiosa informação: "descobrira" uma mina de carvão lá pelas bandas de Criciúma, nas terras que os índios habitam há inúmeras gerações. Caspriano trabalhava de peão no interior de Santa Catarina, conhecia muito bem a terra, suas riquezas e, sobretudo, suas potencialidades de progresso, e claro, era um homem ambicioso que pensava grande, muito grande. Há uns cinco anos, quando foi pra Criciúma trabalhar de peão, acabou tendo contato com os bugres de lá, que viviam em vastas terras ricas. Não tardou, e o olhar aguçado de Caspriano percebeu o tamanho da riqueza em carvão que lá havia; nessa época ninguém falava em carvão, mas Caspriano enxergava longe... 8


Do sertão Das flores trazidas pelos ventos da primavera a que mais me encanta é aquela que cautelosamente encontra espaço entre a terra ressequida do sertão e o desejo de florescer. Quem já sentiu no rosto o sopro quente do ar do sertão entenderá tamanha admiração. Enquanto espera pacientemente que a chuva venha presentear suas folhas, a intrépida flor conta com o brilho do luar para afagar as pétalas que durante o dia cederam suas cores aos raios do sol.

[Maria Bonita]

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Ano I N° 02

Se fez de amigo, ouviu histórias, conheceu segredos, compartilhou momentos com os indígenas que depositaram confiança na sua pessoa. Ele relatava tudo isso, com um riso no rosto, nos bares dos fins de semana; a cidade é pequena e notícia quentinha é como cheiro bom de comida, se espalha fácil. Astuto como era, forjou uma escritura falsa das terras dos índios de Criciúma, nas quais "brotavam" carvão. As vendeu a um rico fazendeiro das Minas Gerais que andava por ali em busca de novos "desafios". Essa escritura abandonava os índios à própria sorte e também Schelle, Francile e Peterle, mas realizava os sonhos de Caspriano. A Schelle, nada sabia sobre essa empreitada do marido. Por mais que a notícia corresse, todos a respeitavam e nunca falavam nada pra ela. E numa manhã, como de costume, Caspriano saiu para mais uma jornada de labuta, na qual sempre passara pelo menos dois meses fora, porém, dessa vez ele nunca mais retornou ao lar e aos braços de sua mulher. Schelle, agora abandonada, conseguiu forças, ergueu a cabeça, pariu Francile com saúde, continuou a educar Peterle e a trabalhar na terra como já fazia desde menina quando seus pais ainda eram vivos. Tudo corria bem, mas a vida dela ainda não tinha se aquietado como deveria. Num rompante que veio rasgar a noite, surgiram em meio a sua intimidade um bando de bugres que gritavam a plenos pulmões: “Vingança!” Saindo de súbito de sua aparente complacência, Schelle agarrou a filha com intensa força junto ao peito e nisso Peterle agarrava a cintura da mãe com a mesma intensidade. Como somos vizinhas, eu pude ouvir tudo, e quando saí para ver o que estava acontecendo, só avistei um velho bugre tomado de fúria, que não conteve seu ódio e ordenou ao seu bando que revistassem toda a propriedade de Schelle atrás de alguma pista do paradeiro de Caspriano. Ela tentou os alertar que de nada sabia. E a plenos pulmões, vociferava que eles não podiam deixar o ódio os cegar pelo golpe daquele homem, e que assim como ela, deveriam ser dignos. Schelle sempre proferia palavras sábias, mas de nada adiantou. Eles reviraram tudo, desde a casa até o chiqueiro. Desta forma, sem êxito, a ordem deu lugar ao caos e Schelle não perdeu tempo em sair daquele lugar para fazer a vida junto ao amigo da família, Rodolfo Harbs. Historieta narrada por Flor do Cerrado 9


Zé do Trilho O sorriso é terapia celeste, o peregrino caminha sem medo de errar, firme e forte segue o eremita em busca de modernas formas de olhar. Em muitos trilhares o poeta que carrega a modernidade nas costas percebeu que a maior abstração de nossa existência só é plena se a compartilhar. Nascido na serra chamada de talhada, foi criado por Padre, com quem aprendeu as primeiras letras. Novo, partiu em busca de prosperidade em aventura à Amazônia, para construção da ferrovia Madeira-Mamoré.

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Assombrações Há de muito que migrei para o oeste paulista em busca de encontrar prosperidade nas fazendas cafeeiras da região, rica em terras férteis. Nasci no interior de Santa Catarina e na juventude fui viver na capital Nossa Senhora do Desterro. Diziam que, após a visita do imperador D. Pedro II na cidade, ocorreu uma série de mudanças que a tornaram muito rica. Em meu imaginário, sonhava com grandes multidões, comércio e pessoas de diferentes partes do mundo vivendo em um mesmo espaço, tudo construído pelas histórias contadas por Rodolfo Harbs, um alemão radicado nas proximidades da região em que nasci, com quem tive contato na infância. Ele falava das cidades prussianas e da Baviera, regiões desconhecidas para meu mundo infantil, mas que me faziam sonhar alto. Ao chegar em Desterro, sofri algumas decepções; a cidade da forma como a imaginava era bem diferente daquela bagunçada vila que encontrei. Conheci alguns prédios públicos construídos para o imperador, mas nada comparado às histórias de Harbs. Comecei a trabalhar nos armazéns do porto que, dentre os biscates oferecidos, passavam a impressão de ser os mais movimentados. Ficava encantado com as histórias dos marinheiros e viajantes advindos de diversas regiões do império e do mundo. Instigava-me entender outras línguas e adquirir as experiências daqueles homens do mundo. Um dia conheci um soldado de um destacamento de São Paulo que me contou sobre a vinda de uma enorme leva de indivíduos provenientes da região germânica e itálica para o porto de Santos, a fim de trabalhar nas lavouras de café do interior da província. Disse que era a chance de enricar. Falou que não contratavam apenas imigrantes, mas também trabalhadores livres nascidos no Brasil. E destacou: “Se quiser ir, arrume teu trapos e algum farnel que o navio parte hoje à noite, sei como te fazer ir.” Não pensei duas vezes, parti na aventura. O navio primeiro subiu até o Rio de Janeiro; embasbaquei-me ao entrar naquilo que chamavam de baía da Guanabara; a ilha de Santa Catarina era bela, contudo, nunca esquecerei do que vi no dia que entrei naquela baía. Já estava decidido a ficar quando Eusébio - assim era denominado o soldado - me alertou que não teria tanta oportunidade de prosperar lá como em São Paulo. Inicialmente não me convenci, mas algo em meu coração fez-me partir para Santos. Ao chegar no porto referido, o achei muito movimentado e bonito. 10


Ainda na viagem descobriu os prazeres da carne e alforriou suas idéias quando começou o processo de transpassá-las ao papel. Sobrevivente, viajou o país fazendo biscate e compondo cordéis. Preso em sentimentos sórdidos, encontrou a redenção no retorno ao sertão nordestino, quando se prostrou diante da esplendorosa rosa púrpura. O poeta hoje peregrina convicto, reúne vestígios, liberta pensamentos. Por eles a mente atribui-se de entender, ao limite, deixa os passos de cada batida trilhar pacientemente a compreensão.

Florianópolis - Outubro de 2010

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Logo me encaminhei a um barracão onde me inscrevi para trabalhar em uma fazenda lá para as bandas de Itu, junto a uns germânicos. Achei que como conhecia algumas palavras ensinadas por Harbs, conseguiria me entender bem com eles. O café era realmente um produto muito próspero, tanto que construíram uma ferrovia para escoá-lo até o porto e dinamizar a produção. Porém, para o trabalhador, a vida era muito dura, iniciamos um sistema de parceria no qual ficávamos eternamente endividados com o patrão, desde a construção de nossa moradia até a compra de alimentação e vestimenta. Ainda sofria com a falta de comunicação com os imigrantes, descobri que as palavras que conhecia eram de um dialeto diferente da dos meus colegas, pois eles provinham de região diferente da de Rodolfo. O resultado de tanta exploração foi uma revolta, os germânicos em um ponto eram semelhantes ao que Harbs contava, eram um povo muito bravo. Como também estava insatisfeito, encontramos um ponto em comum para o entendimento: a insurreição. Derrotamos os capatazes do patrão, invadimos a casa grande e a saqueamos, e antes da chegada dos reforços, fugimos com poucos pertences. A maioria buscou regiões distantes para fundar suas próprias lavouras, eu segui sozinho para Santos em busca de conseguir retornar para o Rio de Janeiro. No caminho, encontrei uma fazenda abandonada e resolvi pousar por lá. Antes, encontrei por acaso um habitante de região próxima e contei de minhas peripécias. Quando falei que iria pousar na casa grande abandonada, ele prontamente me alertou: “Estas doido! Essa casa é mal assombrada. Moravam nela um senhor e sua família, eram muito ricos, mas padeceram de doença desconhecida. Os antigos escravos disseram que foi castigo dos orixás pelos maus tratos praticados com o povo deles. Desde então, todo mundo que passou perto começou a ouvir barulhos estranhos de dentro da casa: fogão acesso, talheres mexendo, música e até discussão de família. Nunca ninguém teve coragem de ficar por perto, daí ela ficou abandonada.” Para mim aquela história soou como balela. Lembrei que quando era pequeno estava em companhia de minha falecida mãe na beira do rio. Morávamos junto a uma aldeia de bugres, em região muito bela. Brincava no pedregulho quando vi vultos esquisitos em meio ao milharal, tomei um susto e me agarrei às saias de minha mãe gritando de medo. À noite, ainda assustado, estava em casa pensando sobre o acontecido quando começou a zoeira na plantação; era porco grunhindo, vaca berrando e invadindo a casa, pedras do fogão caindo 11


Imensidão Ponho-me a refletir ao passo que projeto meu corpo para trilhar sobre as linhas férreas que conheci desse país; elas levam-me ao longe, mesmo que meus pés estejam de fato cravados ao chão. O emaranhado de trilhos carrega meu pensamento pelo chão extenso até a Amazônia e aos seringais. Terra que carrega um tesouro, e berço da estrada de ferro; peregrino até a Amazônia para que consiga encontrar-me dentro de meu próprio ser.

[Maria Bonita]

Florianópolis - Outubro de 2010

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Ano I N° 02

e os bugres gritando. Vi lenha voando para tudo quanto é lado. Assustada, mamãe me colocou sobre os ombros, amarrou minha irmã no avental e fugimos juntos da vaca e da cabra. Fomos para casa de Ronaldo Harbs e ficamos lá um bom tempo. Foi a época na qual ele me ensinou todas aquelas coisas. Mais na frente, voltei à antiga casa, já mais velho, e tive contato quase inédito com os bugres de minha idade. Foi quando soube que o alarido foi causado pelos próprios quando pegaram estranha doença no milharal e entraram em desespero. A partir daí desacreditei em assombrações. Por este motivo não dei ouvidos ao nativo e fui dormir na casa. A noite estava tranqüila até que comecei a ouvir barulhos estranhos. Porta começou a ranger e ouvi talheres caindo na cozinha. Levantei de súbito meio assustado, mas tentei acreditar que fosse o vento. Até que mais na frente comecei a ouvir um zumbido distante e tentei ficar ouvindo. Num dado instante percebi que o zumbido eram vozes, entrei em desespero. Quando fiquei de pé novamente, vi um vulto. Encontrei não sei onde coragem para observar melhor e esse tomou nitidez: era um velho senhor com bonitas vestimentas e munido de arma de fogo. Então, tomei decisão que transformou minha vida, parti de forma insana em sua direção gritando EU NÃO ACREDITO EM ASSOMBRAÇÕES! O resultado foi que não reparei que havia uma parede em minha frente, colidi violentamente batendo corpo e cabeça. Fiquei uns minutos caído com muita tontura. Levantei os olhos e vi que havia provocado uma grande rachadura e feito uma leve fissura. Dela apareceu uma moeda grande de forte brilho. Quando a peguei, não tive dúvidas, era ouro puro. Comecei a desmontar a parede e começaram a aparecer várias, muitas, dezenas, centenas; estava rico. Agradeci ao senhor. Não apenas a Deus, mas ao senhor que apareceu em minha fronte. Tempos depois soube que era costume dos fazendeiros esconder suas riquezas nas paredes e assoalhos das casas e também enterrar seus entes queridos dentro das mesmas. Desde esse dia passei a acreditar em assombrações, mas não mais a temê-las. Pelo contrário, tornei-me endividado e eternamente grato para com elas. Tornei-me então grande fazendeiro do café, conheci as cidades européias contadas por Rodolfo Harbs e adquiri novos costumes e práticas dos chamados burgueses. Participei da proclamação da República e investi na transformação da capital do agora estado de São Paulo em cidade modelo para nosso novo país. Historieta narrada por Zé do Trilho 12


[L!] Dos escombros das inquietações, eu surjo - ou não. Dos fragmentos das palavras, eu escrevo. Dos vestígios do sentimento, eu sinto. Minto, desminto: em várias perspectivas; nenhuma. Nas invenções não fictícias, minhas mãos calejadas são traduzidas e, sobretudo, traduzem.

Florianópolis - Outubro de 2010

Travessa em Três Tempos

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Sonoramente Fracasso... Minha filha, pequena Helga, nasceu com essa palavra. Sua mãe – nem gosto de me recordar! – tinha tendências suicidas. Eu, pobre de mim! não soube controlar a situação. Sonoramente fracassada. A melancolia... A pequena Helga conheceu Sir. Ludwig Schelle, homem de posses. Dizia-se homem de posses na América. Para um pai em desespero, ele, Ludwig, veio a calhar e a pequena Helga, minha filha, a desencalhar. Perfeitamente sonoro. Parecia. Nas bordas do desespero, minha esposa encurtou sua vida – numa fração de hora. Não tive escolha: tive - e logo - que casar meu rebento. Foi a opção. Melhor ou não, foi a opção. Dê-me uma razão para casar, disse meu fruto. Razão? Ela, como fracasso, nunca foi boa com possíveis trocadilhos. Havia-me esquecido que nesse mundo havia razão. Sonoramente estúpida seria a justificativa. Em silêncio, então, me mantive. E eu os declaro marido e mulher - disse um religioso qualquer. E a burocracia divina se resolveu naquela mesma tarde em que a pergunta me foi feita. Uma trouxa de roupas foi o suficiente para a – permanente – viagem à América. Nunca soube como ou o porquê, mas se dizia que a América era o mundo novo. De novas ilusões, possivelmente. Mas cá entre nós, logo, logo isso irá terminar: fracasso foi o que eu disse antes. 13


Nos gritos que não foram ouvidos, ecoa a minha literatura de idéias. Ali, onde ninguém viu, eu estava. Restava, aos que não me observavam, fingir - e isso eles bem sabem! No vestíbulo, recluso, escrevia e ainda escrevo. Me atrevo a escrever. De modo solitário, muito solitário, me atrevo a escrever...

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Carta para o senhor, seu Fritz. Era de minha filha. E para ser franco, nem sabia que - agora não tão pequena – Frau Helga Schelle escrevia. Deve ter pagado para alguém escrever. Mastiguei isso no meu pensar... Dizia, com poucas letras, que as posses não eram Posses. Uma cabra, uma vaca e um emprego no campo (Itajaí). Ludwig era, na verdade, Caspriano e estava apenas de veraneio em minha cidade. Para não perder a viagem – literalmente - casou-se com Helga, mas no fundo – o fracasso, no fim, triunfou, eu sabia! – era para ela cuidar do pequeno Peterle, filho da sua falecida esposa. Depois, Caspriano fugiu e deixou Peterle. Sonoramente perfeito! O fracasso de minha filha – nunca pude saber se era mesmo minha filha – foi sonoramente perfeito. Mas como seria isso, sonoramente perfeito? Apenas os que se alegram com o sofrimento alheio, mesmo o de uma filha, é que escutam a trilha sonora da vida: um sonoro fracasso, perfeito fracasso. Se não pude ser feliz com a mãe de Helga, por que ela, sendo meu rebento, seria? Novelas, contos ou romances que terminam em casamento pretendem nos enganar! Não há final feliz! Há final – apenas. Sonoramente enganosos foram os casamentos. Sonoramente eles o serão.

Historieta narrada por L!

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Peterle “Ele era um menino valente e caprino, um pequeno infante sadio e grimpante. Anos, tinha dez, e asas nos pés. Com chumbo e bodoque era plic e ploc, o olhar verde gaio parecia um raio para tangerina, pião ou menina. Seu corpo moreno vivia correndo, pulava no escuro, não importa que muro, saltava de anjo melhor que marmanjo e dava o mergulho sem fazer barulho. Em bola de meia, jogando de meia-direita ou de ponta passava da conta de tanto driblar.”*

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Memórias de Peterle Não me lembro de nada daquele dia. Eu era muito pequeno, como você sabe. Não vou conseguir me lembrar de nada disso que você está falando... Bem, lendo esses relatos, acho que até me lembro de alguma coisa, sim. Era um dia muito bonito. Fazia tempo que não víamos um dia assim, porque era inverno e inverno é sempre aquele tempo meio cinzento. Passarinho não canta... é aquela tristeza. Eu passei o dia inteiro com a mãe perto do riacho, porque a Francile tinha acabado de nascer e eu tinha que ajudar, já que o papai deixou a gente pra trabalhar. Mamãe contava que um Ludwig também viveu um tempo com a gente, mas eu era muito pequeno. É só disso que me lembro... Pra falar a verdade, lembro também que vi sim algo de estranho no milharal; não sei o que era. Parecia uma poeira esquisita, algo que eu nunca tinha visto antes, mas veja, eu tinha apenas sete anos. Talvez se eu visse a mesma coisa hoje, com dezoito, eu soubesse dizer; mas ainda acho que eu não saberia, de qualquer forma. Sabe como é, a memória às vezes nos prega peças, e podia muito bem ser imaginação de criança. Era tipo um pó mágico, assim, desses que a gente imagina de contos de fada; ao menos era o que eu imaginava. Aquilo brilhava muito, muito mesmo. Chamei a mãe pra ver, mas ela não me deu muita atenção, não. Afinal, eu sempre dei muito trabalho pra ela; era meio travesso. É, mamãe sempre foi muito batalhadora, mas também muito maltratada pela vida. Ela me criou e criou Francile com uma dedicação que é rara de ver hoje em dia, ainda mais depois de ser abandonada duas vezes como ela foi. Eu disse que não me lembrava do Ludwig, mas me lembro, sim. Aquele homem era meu pai. Dizia-se meu pai, porque mesmo Frau Helga Schelle não sendo minha mãe de sangue, ela conseguia ser pai e mãe e me acolheu como fruto de seu ventre. Por isso, eu sempre criei em mim uma admiração muito forte por ela. Admiração que me fazia cuidar dela enquanto ela estava distraída ou quando estava trabalhando; eu brincava, fingindo que era soldado e vigiava a região. Daí que naquele dia tinha aquilo no milharal. 15


Ainda nessas sapequices de garoto, era um fiel zelador da casa Schelle, além de, é claro, ser também da dona e da filha dela; sua mãe e irmã. Amanhecia soldado, almoçava agricultor e dormia filho. No dia seguinte já era aventureiro. Aventureiro que, na realidade, ele sempre fora. Sonhava em conhecer lugares, pessoas e vidas diferentes da dele. Por tal que quando menino-moço partiu em direção a outros caminhos. E por “lá” se encontra até hoje, revisitando antigas histórias e vivendo à sorte do que o acaso coloca a sua frente.

[H.] *Poeta aprendiz – Vinícius de Moraes e Toquinho

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Lembro que mesmo ela dizendo que era bobagem, eu fiquei olhando praquela luz. O sol se foi e entramos em casa, pra fazer a janta e irmos dormir, porque mamãe estava muito cansada. O dia, como havia sido de sol, foi aproveitado pra fazer várias tarefas atrasadas ali pela plantação e pela casa. O jantar daquele dia foi o melhor dos que já tivemos; acho que mamãe estava feliz. Nada mais me lembro. Pensando melhor, você falou em bugres... Pois é, sempre desconfiei que houvesse aldeias ali por perto; dizem que também havia lá pro sul do estado, mas aquelas eu nunca vi. Mamãe dizia pra não entrar no mato, que eles podiam me machucar, mas eu sempre quis vê-los, sempre quis saber o que eles pensavam e nunca entendi porque eles viviam tão distantes da gente. Só Rodolfo Harbs, um vizinho amigo nosso, que tinha mais contato com eles. E veja só, eles nunca o machucaram e nem o Harbs os machucou. Não parece estranho? A primeira vez que realmente tive medo deles foi quando eles apareceram lá em casa que nem uns loucos. A vaca, mais louca ainda, correu pra dentro da cozinha. A gente tinha recém terminado a janta e aquela bagunça toda tinha sido formada. Vi desespero nos olhos de mamãe, como jamais tinha visto. Digo, desde o sumiço do papai que eu não via mamãe assim. Foi desolador. O que podíamos fazer era fugir, mas eu queria muito ficar ali e ter um dedo de prosa com aqueles bugres; ah, como queria! Mas eu tinha que zelar pela segurança daquela mulher. Depois disso, fomos pra casa do seo Harbs, que nos recebeu com toda a atenção. Casa onde ainda vivo, agora sozinho – mas penso em ampliar meus horizontes por aí. Mamãe morreu. Não sei se de desgosto pelos abandonos – também de Francile que saiu para viver da vida – ou se por essa nova condição, de hóspede e amedrontada. Agora estou cuidando de tudo que o seo Harbs me deixou. Ele foi o pai que eu não tive, foi a atenção, e me trouxe o conhecimento que eu precisava. O contato com os bugres ele também me deixou de herança. E isso é tudo que eu lembro...

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Historieta narrada por H.


Indicações da Travessa:

Além das Cortinas [http://alemdascortinass.blogspot.com/] A sala dos Medos [http://asaladosmedos.blogspot.com] Do lado de Dentro [http://hellenrios.blogspot.com/] Dos arcos ao exílio – escritos em prosa e verso [http://letrasnoexilio.blogspot.com/]

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Travessa em Três Tempos Aquela “rua de mão única” do andarilho de Benjamin dobrou a esquina e caiu na travessa, onde a possibilidade da experiência se alargou “no zúo de um minuto mito” pelo esbravejar de Riobaldo nos chapadões. Então a visão do andarilho clareou todas as palavras perdidas na rede do pescador. E toda linguagem, deu conta de nomear tudo, como Funes, o memorioso, não suportou e a narrativa tornou-se o único sentido da existência. Sentido que se confunde no tempo e, por vezes, foge dele. Futuro, presente, pretérito; perfeito, imperfeito, mais-que-perfeito: verdade fora do tempo! Insensatez perene, numa periodicidade recorrente de revistas, vistas e revistas, visitadas e revisitadas. Continuidade em um fluxo, como uma constante que perpassa conhecimento, que divide experiências que simbolicamente narra diferentes caminhos, diferentes travessas, outros planos, prismas, histórias em perspectivas. Outros homens, mulheres, crianças; outras pessoas, animais, trecos; outros malandros escondidos, sujeitados a ter a cabeça nas nuvens e os pés no chão, assim como outros tantos, e a gente, como o clareamento na visão do andarilho, enrolando-se no fio da memória e na linha do tempo. Três aprendizes, um bocado de palavras sem sentido, agregando outros aprendizes com diversos sentidos e outras palavras. O encontro se dá na travessa, regados à bebida amarela que traz memórias, micros, macros, estas, outras, aquelas, de antes, de agora, de depois; juntam-se, separam-se. 17


Indicações da Travessa:

'Let them eat cake', she says [ http://likemarieantoinette.blogspot.com/] Luccas Neves Strangler [http://luccasneves.blogspot.com/] não sei, só sei que foi assim... [http://travessaemtrestempos.blogspot.com/] Trilhos Perenes [http://trilhosevaporados.blogspot.com/]

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Travessa em Três Tempos

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Assim vaga o andarilho a perder-se na travessa, aquela que, mesmo fugindo do pensar esquemático da casa do andarilho, se mantêm plena de pensar. Eis o mistério da “rua de mão única” desvendado pelo fluxo do narrar, visto da perspectiva dos olhos do flaneur tão bem descrito por Baudelaire, visto de tantas outras perspectivas. Reside aí o mistério, do olhar, do pensar, do narrar.

Abstrai-se da necessidade empírica do

raciocinar, e se joga na via das palavras. Assim versões, diferenças, contrastes, se unem no propósito de desconstruir as teias da verdade única, da história única; tecidas à custa de séculos de visões unilaterais. Nós aprendizes, rumamos até a travessa e lá despojamos nossos métodos meticulosamente apreendidos. Livramo-nos desse peso, sem esquecer que somente aquilo que é caro pesa, para que possamos clarear o olhar, perceber novos olhares; desfrutar dessa capacidade de idear do historiador, e se não do historiador, pelo menos do andarilho de Benjamim. O que sois vós além de andarilhos vagando sem destino, até deparar-se com a travessa? Aquela entranhada na miscelânea de tempos: futuro, presente, pretérito. Aquela desvinculada da supremacia da verdade. Aquela repleta de pensar. Faço a vós um pedido, quando o mistério se apresentar: perceba-o. Composto pelas mãos de: [estrateiro mor] de vereda acima, H., Maria Bonita 18


Comissão Editorial Idealização: Taiane Santi Martins Organização: Hellen Martins Rios Luccas Neves Stangler Taiane Santi Martins Capa: Foto: Daniel França Lunardelli Arte e design: Taiane Santi Martins Edição e Diagramação: Taiane Santi Martins Textos: Fabiane Gabriela Lubian Marques Felício Mourão Freire Hellen Martins Rios Luccas Neves Stangler Taiane Santi Martins Revisão: Hellen Martins Rios Endereço para contato : revistatravessa@gmail.com http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com

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Idealização: Taiane Santi Martins

Apoio:

http://www.ibet-sc.com.br/

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