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TRAVESSA EM TRÊS TEMPOS Ano VII - Número 19 - Revista semestral ISSN 2318-3632
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TRAVESSA EM TRÊS TEMPOS Ano VII - Número 19 Periodicidade semestral ISSN 2318-3632 Editores: Andrezza Postay Frederico Dollo Linardi Davi Boaventura Taiane Maria Bonita Revisão: Andrezza Postay Davi Boaventura Frederico Dollo Linardi Taiane Maria Bonita Ilustração da capa: Walter Pax Projeto gráfico e diagramação: Caroline Joanello © Todos os direitos reservados aos autores Os autores são responsáveis pelo conteúdo de seus contos e não representam o ponto de vista da revista ou de seus editores.
Autores
Adele Lazarin Allan Fonseca Amanda Dimer Silva Andrezza Postay André Teixeira dos Santos Davi Boaventura Flávio Oliveira Fred Linardi Gustavo Czekster Lamara Disconzi Leonardo Wittmann Lucas Gelati María Elena Morán Matheus Fernando Silveira Sara Albuquerque Stéfanie Medeiros Taiane Maria Bonita Viviane Lima Ferreira
Indice Editorial 5 Prosopopeia, ou a verdadeira história da turma 83 (de acordo com o seu assassino) 6 Gustavo Czekster Pingos 14 Allan Fonseca Como é coisa da vida dos mortos, viajar María Elena Morán
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Seus olhos 30 Amanda Dimer Silva
Da morte em diante 32 Andrezza Postay
Fragmentos 39 Flávio Oliveira
O espectro da srta. K.
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Matheus Fernando Silveira e Viviane Lima Ferreira
Matrioska 51 Sara Albuquerque O homem no retrato 58 Adele Lazarin A garota desenhada 65 André Teixeira dos Santos
Abigail 70 Lamara Disconzi
Religare 73 Fred Linardi
A quinta madrugada 78 Leonardo Wittmann
A morte de Gregor Samsa
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Stéfanie Medeiros
A Invocação 90 Lucas Gelati
Catuaba 95 Davi Boaventura e Taiane Maria Bonita
Travessa em três tempos - Ano VII - número 19
Editorial A literatura fantástica é o terreno da hesitação, nos afirma Tzvetan Todorov. O solo argiloso de onde brotam elementos sobrenaturais aptos a romper com as lógicas e as leis que regem a realidade. É a incerteza, a dúvida, a pergunta que reside no fundo de nossas mentes. O frio na espinha que sentimos ao ver um vulto no meio da noite. A arritmia causada pelos estalos vindos do sótão. A palavra que congela na garganta e quando vem se torna grito. O fantástico bagunça, bagunça o homem e a realidade. É a infração da ordem dos nossos dias e nos obriga a pensar em outras e novas possibilidades. É essa a reflexão que interessa a Travessa em Três Tempos, a quebra da lógica de uma realidade que não é única, não é fixa e não é absoluta. O que apresentamos aqui é um Catálogo de realidades possíveis. São 18 autores que rompem com a lógica do mundo natural, cada um a sua maneira, e nos colocam a pergunta: e se a realidade não for exatamente aquilo que acreditamos que seja? Porto Alegre, sexta-feira, 13 de julho de 2018. A Comissão Editorial
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Prosopopeia, ou a verdadeira historia da turma 83 (de acordo com o seu assassino) Gustavo Czekster
Dizer que a narrativa contida nessas páginas é a mais pura expressão dos fatos vividos teria a força de transformá-la em verdade? Creio que não: se está em uma folha ou em uma tela de computador, ela saiu do mundo e passou por dentro da minha cabeça e, no decorrer do processo, a pureza da história foi conspurcada por sonhos, reflexões, indiretas, visões de mundo, preconceitos e tudo o que um autor pode possuir de bom e de ruim. Em algum momento, a verdade morreu sufocada pela ficção; se mudei a posição de um copo de água na cena original, já estou mentindo. Escrever uma história, então, é criar vida? Desconheço a resposta, mas sei que grandes pessoas se debruçaram de forma insatisfatória sobre a questão, e falharam em responder. No entanto, posso afirmar com certeza que a história que vocês lerão aqui é a mais legítima expressão da verdade; nenhum fato foi ficcionalizado, e a única imaginação a que esse autor se permitiu foi um leve ajuste da sequência cronológica e a utilização um pouco beletrista de algumas palavras. Da mesma forma que não sei responder se a arte cria vida, posso declarar sem medo que ela traz a morte ao mundo. Ler um texto é morrer um pouco, e todo escritor é um assassino impune de personagens que, mesmo quando as páginas cessam de serem lidas, mesmo quando os livros fecham, continuam a infestar o mundo de fantasmas de criaturas imaginárias. Há quase 30 anos sou perseguido pela mesma história. Ela some por longos períodos e depois volta, em um movimento cíclico, e a cada retorno causa uma nova onda de problemas 6
e de perplexidades. Hoje sei que não posso fugir de nenhuma
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história; escrever é criar responsabilidades consigo mesmo e com os outros, mas, em especial, com as narrativas. Tudo começou em maio de 1990 quando, a pedido de alguns colegas da oitava série do colégio Santo Antônio, escrevi um conto intitulado “Zona Proibida”. É tolice imaginar que qualquer artista nasce pronto, bafejado pelas Musas, e não escondo que é uma péssima história, mal escrita, repleta de clichês e, ainda por cima, infantil, conforme se percebe pelo resumo do argumento: a minha sala de aula, a turma 83, depois de lutar contra os professores, isolou-se no terceiro andar do colégio, fechou as extremidades com cercas de arame farpado e constituiu um governo paralelo com a intenção de se desvincular do país. O uso de personagens reais – meus colegas e amigos – e os fatos verdadeiros explicados dentro de um contexto ficcional fizeram com que “Zona Proibida” atingisse certo grau de sucesso. Mesmo com a possibilidade de aproveitar a relativa “fama” de ser a mente responsável pela narrativa – e quem foi adolescente sabe o quanto precisamos de reconhecimento dos nossos iguais -, recusei-me a assumir a posição de autor. A história não me pertencia: ela era dos meus colegas. Curiosamente, o único aluno da turma 83 não retratado no conto era eu: incomodava-me assumir qualquer posição. Não queria ser herói, vilão ou personagem secundário; achava trapaça aparecer em meio à narrativa, pois não tenho isenção suficiente para me ver como um personagem autônomo. Depois de anos estudando teorias, entendi que não quis ser personagem para assumir o papel de narrador. Desculpem, é difícil contar essa história de uma história e, ainda mais dilacerante, escrever outra história a respeito dela. Existem baús que preferiria não mexer, memórias que funcionam melhor como uma recordação de um sonho ruim do que a imutabilidade de um passado doloroso pelo qual passei. Mas devo exorcizar meu demônio; é necessário confessar o crime. Apesar de pedir discrição, foi impossível manter a história confinada entre meus amigos e, logo, o conto caminhava até mesmo por entre os grupos de alunos dos quais eu não participava. O sucesso foi tanto que pediram mais e, por conseguinte, 7
nos meses seguintes, escrevi “Zona Proibida II”, “Zona Proibida
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III” e o definitivo “Zona Proibida IV – Réquiem para a 83”. Em todas as continuações, realizei novas abordagens dos fatos rotineiros, recontando a realidade de uma maneira mais épica. Meus amigos contavam-me as suas histórias, sempre com a expectativa de verem os casos entrarem na ficção. Notei que os meus colegas procuravam adaptar as suas atitudes para se encaixar na minha imaginação; as palavras que eu colocava nos “Zona Proibida” afetavam de forma danosa a sua espontaneidade, e não era inusitado que os colegas usassem as minhas frases como se fossem um bordão deles. Iludido pela fama, ignorei esses indícios, e talvez esse tenha sido o meu erro: imaginar que sou o dono da história e que ela poderia passar pelo mundo sem mudar ou destruir vidas. A cada conto, a história crescia de maneira inquietante. Acelerei três anos na vida dos meus colegas. Os inimigos tornaram-se mais sofisticados: ensinei as outras turmas a sentir inveja enquanto facções adversárias surgiam entre a nossa coesão, levando-nos à ruína. No “Zona Proibida IV”, a turma 83, que então se encontrava no último ano do segundo grau, tentou uma revolta definitiva e perdeu a luta que não podia ser perdida, sendo fuzilada. Foi um final memorável, e todos concordaram com a lógica do fim. Fui a única voz dissonante; existia uma sombra perturbadora pairando entre as minhas palavras (ainda lembro a folha de papel em que as escrevi, a cor da tinta da caneta, as rasuras involuntárias). Eu era o mais próximo do impacto da granada da história: não é muito saudável matar os amigos e colegas, mesmo que na imaginação. Perturbava-me que as pessoas comemorassem as próprias mortes, por mais bonitas que tenham sido as descrições. O ano letivo acabou, e fomos para a série seguinte. O tempo continuava correndo, mas não para os quatro “Zona Proibida”, que deslizavam como neblina pelo colégio, contaminando outros leitores. Desconheço o número total, pois a história escrita foi contada oralmente em muitas ocasiões (inclusive testemunhei algumas, e foi impressionante ver o quanto o contador de histórias era capaz de lembrar os detalhes com tamanha acurácia, maior inclusive do que a memória do próprio autor). Um dos meus colegas era o guardião oficial dos textos originais, 8
organizando o seu trânsito entre os alunos. Algumas vezes, em
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meio às suas andanças de sala em sala, eu os via: a tinta da caneta desbotava, as páginas ficavam cada vez mais amareladas e com as pontas retorcidas, mas a história mantinha-se ilesa. O aspecto manuscrítico dos quatro contos tornara-se um atrativo, e os novos leitores o encaravam com veneração, como se estivessem diante de um evangelho apócrifo visto por poucos escolhidos. O autor da obra, de desconhecido, tornou-se supérfluo. Os quatro “Zona Proibida” não me pertenciam, e eu sentia indiferença pelo seu destino. Às vezes, entretanto, sentia forte vontade de lê-los, para lembrar uma época de glórias. Era muito estranho requisitar para alguém o empréstimo das minhas próprias histórias e submeter-me ao seu mal-humorado questionário, tudo para ler uma letra que já fora lambida e decorada por tantos olhos quanto os que decoraram o Mahabharata, uma letra tão minha e tão diferente. O primeiro ano do segundo grau passou e outro ano letivo teve início. Em um processo mitótico, a turma 83, dividida no primeiro ano, repartiu-se ainda mais no segundo. Facções surgiram no seio daquilo que outrora tinha sido um grupo unido, acirrando antagonismos que até então eram inexistentes. A tensão cresceu até explodir em uma briga generalizada entre pessoas que outrora tinham sido amigas, com lances de covardia e outros de heroísmo; as facções lutaram pela hegemonia, e uma delas perdeu. No meio dessa guerra, conversando com leitores do “Zona Proibida”, foi levantada a hipótese dos fatos reais estarem acontecendo de acordo com os contos. Talvez o desejo da realidade de se ajustar à ficção estivesse indo longe demais. Com um pouco de imaginação, era possível ver, por trás das metáforas e símbolos, a minha ficção se revolvendo como uma cobra, sussurrando ideias e manipulando condutas. Mencionei aqui como acabava a história da turma 83: um fuzilamento. Em qualquer hipótese, a interpretação do símbolo era o anúncio de um desastre. Angustiado e usando de muitos subterfúgios, consegui roubar as quatro histórias e, sem coragem de perpetrar o crime, solicitei para que um amigo próximo me ajudasse. No dia seguinte, ele afirmou que os quatro “Zona 9
Proibida” estavam queimados, inclusive mostrou-me as horri-
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pilantes cinzas. Foi uma decisão da qual me arrependi, mas sei que fiz o certo: não acredito em profecias, mas as evidências eram claras demais para serem desconsideradas. Bastou destruir as histórias para que as agressões cessassem ou, ao menos, não acontecessem com a fúria que eu imaginara. O assunto estava resolvido. Os “Zona Proibida” estavam mortos. Dez anos se passaram quando, então, voltei a ser assombrado pela minha criação. Conversando com um casal de amigos cuja filha estava estudando no colégio Santo Antônio, percebi, com espanto, que as histórias continuavam dentro das paredes do colégio, e estavam furiosas. Eles não sabiam de nada a respeito dos contos que escrevi – mantenho isso em cuidadoso segredo, quase como se fosse uma vergonha -, mas, no interior dos fragmentos que me passaram como se fossem “curiosidades” ou “estranhezas”, reconheci, perturbado, as minhas digitais de escritor. Desconheço como aconteceu, mas os quatro “Zona Proibida” insurgiram-se contra mim da mesma forma com que, no passado, enfrentaram os professores em pé de igualdade. A história que criei está substituindo a realidade aos poucos, e é uma guerra em que a ficção está levando vantagem. As pessoas não falam mais nos meus contos como se fossem literatura, mas fatos consumados. Não deveria ter queimado os originais, pois poderiam provar as mentiras que criei, mas receio que mesmo a apresentação desses documentos não seria suficiente. Lutando contra a minha ficção, sinto-me em completo desespero, pois não sei como vencer. Depois da conversa com meus amigos, outros relatos desencontrados chegaram ao meu conhecimento. O terceiro andar do colégio Santo Antônio tornou-se um ponto referencial. Grupos de alunos costumam visitá-lo, escutando relatos sobre o que aconteceu à pobre turma 83, o grupo de alunos que desafiou o sistema e acabou expulso (um curioso eufemismo para fuzilamento). Existem pontos históricos: o local da primeira batalha, a sala onde foi declarada a independência, o lugar exato em que meu colega Francisco derrubou o coordenador com um soco certeiro, mostrando que até mesmo gigantes intocáveis eram humanos. Os olhos infantis brilham ao imaginar as len10
das que outrora percorriam aqueles corredores. É impossível
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não sentir que a essência de algo continua impressa naquele concreto, mesmo que seja uma mentira. Apesar de mortas, as histórias ainda percorrem o colégio, mas somente eu, o suposto autor, sabe que são exageradas. Junto ao que criei, agora vicejam amores ocultos, interpretações duvidosas e alianças que não estavam no original. Até mesmo a figura de um traidor surgiu, e não é tão difícil de imaginá-lo ao estilo de Brutus ou Judas Iscariotes. É a história crescendo, amadurecendo, devorando a imaginação alheia em um processo evolutivo incontrolável. Queimar a versão original libertou a trama, e agora as palavras correm soltas das linhas em que as aprisionei, um demônio fora do pentagrama. O dia da queda da turma 83, que coloquei no “Zona Proibida IV” como 13 de agosto de 1993, virou uma data repleta de comemorações ocultas e cerimônias inventadas no decorrer dos anos. No ano passado, durante o intervalo, a rádio do colégio veiculou uma “programação em homenagem aos que caíram”, e os alunos pararam todas as atividades para prestar seus respeitos. Enquanto estavam correndo ao redor do campo de futebol, três turmas uniram-se e, mesmo com os professores apitando o fim do exercício, realizaram uma última e teimosa volta. Velas foram acesas junto à parede do saguão, local onde se acredita que o fuzilamento – ou expulsão – tenha se consumado. Próxima ao parque de brinquedos das crianças, uma pira fúnebre ficou acesa o dia inteiro, vigiada por alunos da turma 83 de então. Uma inexorável tradição oral se forma em torno da minha antiga turma. A mistura entre ficção e realidade acabou pendendo para a ficção e a realidade desapareceu, ou melhor, a realidade de uma turma insossa e sem atrativos virou ficção da saga da 83, grupo de jovens indomáveis que morreram em prol da sua causa. Criei a história perfeita, caminhei entre o ser e o não-ser e consegui tamanho ajuste que as próprias pessoas que viveram naquele período juram ser verdade aquilo que imaginei. Acredito que vocês ainda não entenderam o meu verdadeiro problema, ou o fato de me sentir assustado ao invés de experimentar uma silenciosa alegria pelo sucesso da história. 11
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Qualquer escritor sonha com isso: sobreviver aos tempos. No meu caso, não é o que acontece. O terceiro andar do colégio Santo Antônio é assombrado pelo espírito da 83. Luzes acendem de forma inesperada, portas abrem e fecham. O som de risadas e de gemidos, assim como o ruído de batalhas inexistentes, continua percorrendo os corredores. O vigia do colégio disse que, durante a noite, viu silhuetas caminhando na sala de aula do último andar, e elas paravam nas janelas, olhando para os lados como animais enjaulados procurando o ponto fraco por onde possam escapar da prisão. Em outra ocasião, ao entrar no corredor do terceiro piso, uma faxineira disse ter visto um cenário de guerra, com pedaços de classes por todos os lados, vidros quebrados e fumaça; nas extremidades dos corredores desertos, em que cercas de arame jaziam destroçadas, ecoavam gritos horríveis, assim como uivos e risadas histéricas. A última batalha da 83, aquela em que foi derrotada pela união dos professores com outras turmas do colégio, repete-se para todo o sempre, violentando a linearidade do Tempo como um disco de vinil arranhado. Entre os alunos, é pacífica a noção de que os espíritos da turma 83 vigiam o colégio, e isso me apresenta um grande problema: se não existem fantasmas de pessoas vivas, então quem está lá? Quem foi que eu coloquei para assombrar o terceiro andar do colégio Santo Antônio? Não lembro se foi Neruda ou García Lorca quem afirmou que caminhamos sobre os ossos de pessoas, que a Terra não passa de um gigantesco cemitério sobre o qual vivemos em ignorância feliz. Uma ex-namorada assistiu a um filme de fantasmas e não conseguiu dormir duas noites, aterrorizada pela ideia de estar sendo constantemente seguida por olhos invisíveis; com riqueza de detalhes, descrevia o que era estar deitada em uma cama imaginando um cortejo de espíritos silenciosos diante de si, olhos sempre fixos, condenações mudas pairando nos seus lábios repletos de vazio e sombra. E se cada história em que eu mato uma pessoa imaginária gerar um fantasma dessa fantasia? E se cada escritor for um criador de fantasmas? E se eu próprio for um fantasma escrevendo sobre pessoas reais? O que me dá certeza da minha verossimilhança 12
sou eu mesmo, mas, em um mundo distorcido no qual a reali-
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dade seja formada por fantasmas, a ficção é a única forma de chegarmos até a precária verdade dos fatos. São dúvidas inquietantes. Aterroriza-me a ideia de ter matado meus verdadeiros colegas e amigos, deixando os seus fantasmas para trás. Não recordo mais como eram as situações que vivenciei; lembro do meu texto, não dos fatos que os geraram. A minha realidade já foi substituída pela ficção, e o mundo em que as pessoas estão vivendo, agora, neste exato momento, é reflexo direto daquele que imaginei. Talvez escrever seja realmente envenenar o mundo real; não podemos escapar ilesos das mortes que engendramos na ficção, algum resquício deve continuar por aí. Não tenho mais segurança nem mesmo a respeito da minha própria realidade. Lembrem, nos quatro “Zona Proibida”, nunca fui personagem, sempre me vi como o escriba que transmite as histórias para as outras gerações: ora, não é exatamente o que faço através desse conto? Existe algo em mim que sabe o que aconteceu, algo que insisto em recusar. Contudo, a verdade é uma só: acorrentado à criação, perdi minha vida e alma, não estou mais entre os humanos. Sentado em um canto do terceiro andar do colégio Santo Antônio, o verdadeiro eu anota os últimos movimentos da turma 83 na sua batalha derradeira, enquanto o mundo desmorona ao redor e meus colegas caem, morrendo eternamente, eu, para sempre assassino.
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Pingos Allan Fonseca Cada ser é um pingo. Uns se juntam, verdade, e engendram lagos, rios, mesmo um oceano são capazes de formar, com suas ondas indecisas e solene indiferença pelas terras que segregam. Outros se rebelam em maremotos, gêiseres, infiltrações, toda uma vontade, mais ou menos declarada, de se catapultar sobre a sina molecular. Tamanha a sede do mundo, que, natural, suba à cabeça, mesmo dos tipos mais pacatos, o projeto temerário de sonhar em saciá-la. Importante, no entanto, não esquecer: mesmo para a boca seca que se quer salvar, para a entranha árida que se pretende reavivar, um pingo continua sendo apenas um pingo. Não há heroísmo. Não há protagonismo. O maior deles é tão insignificante quanto o menor, isolado dos demais. Dito isso, à guisa de incompetente filosofia de boteco – embora, deva-lhes esclarecer, não seja eu sujeito que se encontre em qualquer bar, sambando em horríveis rodelas, dessas que varam noites, impressas nas mesas, sob os copos de cerveja –, conto-lhes, doravante, a história de quando me esqueci de minha condição de pingo. Incensado que estava por sentimentos incompatíveis com a arrasadora verdade dos fatos, deixei-me iludir em tal grau, que julguei ser o último oásis do deserto, quando tudo não passava de caótica miragem. Divirtam-se, bons camelos, deixem estalar, de escárnio e riso, estas corcovas pétreas que carregam sobre o lombo, como coroa ou fardo. Façam troça de mim, porque a mereço, também porquanto o saber somente avança quando os erros fazem cócegas e viram comédia na lavra diamantífera dos sonhos exagerados. Tem largada a narrativa, como não poderia ser diferente, com ironia das graúdas, para tão aquática reflexão: não houve, que me recorde, dia mais quente e ensolarado, em toda 14
a minha passagem pelo seminário de loucos, que aquele em
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que a conheci. Um risquinho de algodão não se assanhava na vastidão lilás do céu – que, para piorar as coisas, tinha sido rebaixado quase ao nível dos topetes dos alunos mais compridos, a fim de que se concluíssem reparos inadiáveis na estrutura elétrica da abóbada. Todos os internos vagavam no pátio, à procura de sombra. O que perfazia, em si, a primeira lição de loucura do dito seminário, instalado em uma planície na qual não se avistava uma árvore sequer. Numa dessas desarrazoadas expedições, uma voz exclamou: – Ei! Desnecessário frisar o susto que engoli. Bambearam-me as pernas como se cordas de harpa fossem nos dedos de quedo arcanjo. Bem se conhece a fama de chamados desta estirpe: são as hordas do Além, intimando-nos a prestar contas dos suspiros dados em vida. E o fato é que os débitos andavam, com efeito, para lá de acumulados, três meses que eu não honrava as salgadas mensalidades. Dia sim, dia não o Além ligava, batia na minha porta, era infernal a persistência do velho, embora hoje o compreenda melhor, também ele tinha suas obrigações para com a diretoria, precisava do emprego, o cargo dependia de resultados. Pois bem, uma voz exclamou e, ante a patética reação que lhe votei, tornou a descargar: – Aqui, sucupira! Era uma gotinha, apoiada com as costas no alambrado, as pernas cruzadas uma sobre a outra, aparentando despreocupação que, até hoje, não arrisco dizer se sua mínima essência ou máxima encenação. – Sim? – Já vai dizendo sim, assim, sem nem saber o quê? Haja confiança, claraboia! Sucupira, claraboia... Não fazia a menor ideia do que significavam aqueles polissílabos, do porquê de me apelidar com eles, com outros tantos vocábulos que usaria no futuro, sem nunca perguntar meu nome, minha origem, meu número de matrícula. 15
– Melhor um Sim amedrontado a um Não valente. Ou será?
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– Melhor ou pior, não sei, pois, para haver melhor e pior, é preciso que haja bem e mal, e bem e mal não existem. Não veio na primeira aula, não, garatuja? – O que você quer comigo, afinal? – perguntei-lhe, direto como não costumava ou sabia ser. – Nada importante. Só lhe informar que você vai se apaixonar por mim daqui a três meses. Não pude conter o riso. – É mesmo? – Definitivamente. Tão certo quanto amanhã irá chover. Lancei um olhar teatral para o alto, ao céu impecável, cujos fios soltos acabavam de ser amarrados pela equipe de reparos. Um solão de rachar retina espalhava-se de ponta a ponta. – Chover amanhã? Faz dois mil anos que não chove aqui. Nem ensinam mais este verbo às crianças. – Que posso fazer? Não sou eu que decido, apenas relato e dou fé dos fatos. – E você sabe desses supostos fatos como, se ainda não aconteceram? – Eu sou médica. Leio mentes. Médica da cabeça. Tirando um estetoscópio e um martelinho de reflexos da mochila, como a dizer que a posse dos instrumentos provava que ela dizia a verdade, examinou uma rosa, desenhada no livro que repousava em seu colo. Com expressão contristada, segredou-me ao ouvido: – Coitada! Não passa desta noite. Vai morrer de solidão. Crucial explicar, nesta altura da história, que o seminário de loucos admitia, basicamente, duas classes de pupilos: os que tinham plena consciência de seu estado desvairado e buscavam, portanto, aprimorar-se nas birutices, tornando-se bons tantãs; os que dele não faziam ideia. Os que tínhamos consciência éramos infinitamente tolerantes com os que não a possuíam. – É mesmo? – perguntei-lhe novamente, acarinhando a rosa com a ponta dos dedos. Se realmente lesse mentes, coitada, a gotinha saberia o desdém com que eu escutara a sua profecia. Apaixonar-me por ela em três meses, vejam só! – É a reação típica. 16
– Como assim?
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– A sua. De colocar em descrédito o que eu disse. Não me ofendo, parouvela, pode pensar o que lhe der na telha. Como falei antes, não sou eu que decido nem depende de mim, as coisas são o que são. – E serão o que serão. O futuro não nos pertence. – provoquei. – Aí é que você se engana, jenipapo. São o que são e serão o que são. Já está em curso. – Em curso o quê? – A sua paixão. Tornei a gargalhar. Ela não se intimidou. – O processo começou e não é de hoje. – Se acabo de conhecê-la? – Vá lá, parangolé. A mente é sua, não minha. Acha que me alegra ver tudo isso e saber o quanto vai lhe custar? – Vai me custar, ainda por cima? – Se vai! Custar um bocado, isso vai. – Claro, porque não serei correspondido e definharei de amor... – Como vou saber se você será ou não correspondido? – Ora, não é você que prevê o futuro? A gotinha enfezou-se. – Eu leio mentes. Vidência não é comigo, não, farinhota. – Como afirma, então, que vou me apaixonar e vou sofrer? Não é do futuro que você está falando? – Talvez não me tenha expressado adequadamente. Quando leio sua mente, detecto os processos em andamento. Neste caso, o que você chama de futuro é apenas a coroação de algo que já se movimenta há muito tempo. O ápice de uma longa cadeia de eventos. Quando atinge o limiar da consciência, vem à tona. Sua paixão por mim virá à tona em três meses. Até lá, você não perceberá, o que não significa que já não exista e esteja em plena ebulição. – E o sofrimento? – Vai durar alguns anos. Também está em curso, é inevitável. Faz parte da sua integridade cognitiva. Resolvi apertá-la um pouco mais. Estava divertida a conversa. Das raras companhias, até então desfrutadas, no recinto 17
escolar, a sua me parecera, mesmo em tão poucos minutos de
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vigência, a única verossímil. Todos os outros alunos pareciam sombras, bruxuleios, vozes fugidias projetadas de um gramofone, enquanto a gotinha era de carne e osso, suas palavras tinham algo de madeira ou de veludo, algo que me dava o esteio inefável das coisas reais, raízes, terra. – Se você lê mentes, deveria saber se serei ou não correspondido. O que diz a sua mente sobre seus sentimentos por mim? – A minha mente não consigo ler. Digo, algumas partes até posso, mas não tudo. Se fosse assim fácil, nós médicos não precisaríamos ir a outros médicos. Além de vaticinar os mais terríveis desígnios contra minha pessoa, o raciocínio da gotinha era irrepreensivelmente lógico. O que começou, naturalmente, a me inquietar, acostumado que era, no ambiente do seminário, às curvas serranas de pensamento dos colegas e professores. – Seja como for, só me resta pedir a você que me cure, quando o mal chegar. É o que fazem os médicos após o diagnóstico, não? – Não posso. – Por que não? – Por motivos óbvios. Dizendo isso, levantou-se e foi embora, sem se despedir. Ia esquecido o intrigante diálogo quando, pelas três da madrugada, despertei. Era um silêncio só, silêncio duro como a nudez do dormitório. O único móvel permitido no recinto, um criado-amordaçado, gemia com aflição à beira da cama, olhando em direção ao minúsculo tijolo de vidro, no alto da parede. De repente, um estrondo, causa provável de minha súbita vigília. Outro rugido, outro e, para minha surpresa, angústia e perplexidade – a chuva. Tal qual a gotinha previra. Ninguém de minha geração conhecia a chuva, senão pelos livros antigos. Desde o Segundo Dilúvio, de acordo com a lenda dos científicos, o papel das precipitações no equilíbrio osmótico da matéria perdera seu propósito, razão pela qual não mais acontecia, à exceção de muito bem supervisionadas simulações de laboratório. Todo o léxico ligado ao fenômeno climático tor18
nara-se domínio exclusivo de poetas e comunidades epistêmi-
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cas, que se acusavam, mutuamente, de enviesar a semântica dos termos. Passos e gritos alternavam-se no corredor, em meio aos estrugidos – estes, cada vez menos intervalados. Logo uma sirene disparou, seguida de ordens expressas, dirigidas aos seminaristas, de que deixassem as celas e acorressem ao porão. Na penumbra, em meio aos passos açodados e desencontrados de alunos e funcionários, uma voz balbuciou, viva como os relâmpagos que fagulhavam lá fora: – Ei! Não me assustei desta vez, muito menos precisei procurá-la. – Bem que você disse! – comecei a admitir, na crença tola de que o reconhecimento da acurácia das previsões lhe faria agrado. – Disse o quê, curiango? – A chuva. – Que tem a chuva? – Você acertou. Disse que ia chover e está chovendo. – Deve estar me confundindo com alguém. Eu te conheço? – Ora, não conversamos ontem mesmo? Você contou que lê mentes, que vou me apaixonar por você em três meses, que isso era tão certo quanto hoje choveria. Olha o toró que está dando! – Na certa, está me confundindo. Ou então está bêbado, só pode, seriguela! – Se não me conhece, por que me chamou? – Porque precisava de uma caneta. Trouxe umas palavras cruzadas, enquanto passa o furacão. Na correria para cá, deixei cair a minha. – Que furacão? – Não ouviu a trovejada, não? Por que acha que descemos para o abrigo? É o único lugar seguro. – Mas... Um estranho zumbido fez-me tontear. Agarrei-me ao tecido branco que envolvia a gotinha. – Você já tomou o seu remédio hoje? – Remédio? 19
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– Coitado... Espere só um minuto! Tranquilinho, sim, jacupemba? Afastou-se com o olhar, mantendo suas mãos quentes sobre as minhas. Rapidamente, um vulto aproximou-se com a lua aconchegada na palma – o que virara hábito, visto que o céu, estando tão baixo, era constantemente saqueado de seus cósmicos tesouros. – Engole! – Engolir a lua? – Vai te fazer bem. – Não vão dar falta? – Já puseram outra no lugar, não tá vendo? Numa tela portátil, tirada do bolso do avental, a gotinha mostrou-me a lua substituta, brilhando bonita, envolta por um sem-fim de estrelas. Os estrondos continuavam, mais e mais próximos. Sentíamos as fundações balançarem. Apertei mais ainda a mão da doutora. Sussurrei-lhe: – Você fica aqui comigo, gotinha? – Eu sou uma gotinha, é? Como que posso ser uma gotinha, pitiguari? – questionou-me, com a ternura de quem soubesse de antemão como desarmar as travessuras do destino. – Porque eu sou um pingo. Cada ser é um pingo... Senti que o Além se aproximava, vinha cobrar os débitos atrasados. A única saída era dormir o quanto antes, dormir até tudo esquecer, caso quisesse escapar de sua contábil lengalenga. Não podia deixar outra dívida começar. – Eu vou sofrer muito, gotinha? – Do que você está falando, quiriquiri? – Dos três meses. Você me disse que eu vou me apaixonar em três meses e vou sofrer. Eu não quero sofrer, gotinha. Ainda mais agora, com a invasão... A chuva... Finalmente vamos ser livres. – Não pense nisso! Durma, que amanhã tudo terá passado! O furacão passou, os três meses passaram, a manutenção no céu passou, subiram-no de volta aos pináculos indizíveis da Criação. Só o que não passou foi meu amor pela gotinha, amor que, seguindo à risca a leitura de mente, emergiu rigo20
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rosamente no prazo determinado. E, confirmando o vaticínio, trouxe-me, sim, dilatadas aflições. Não por causa dela, da estranha médica de cabeça, coitada, que, afinal, nunca saberei que sentimentos nutriu ou deixou de nutrir por mim, permanecida que ficou no seminário dos loucos, enquanto eu, literalmente, vazei, escorri por uma esquina qualquer da vida, sem nada ter aprendido ou elucidado como lição. – Corrijo-me: quase nada! – Aprendeu o quê, grumixama? – Cada ser é um pingo... – Outra vez esta ladainha? Não cansa dela, não, jupiara? – Desta vez é diferente. – Diferente como? – Cada ser é um pingo. E, como todo pingo, toda água, na cadência dos elétrons ou na foz dos oceanos, cada ser é também um espelho. Reflexo fugaz de seus amores, suas dores, suas flores e os calores que, afinal, fechado o ciclo germinal, banalmente o evaporam.
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Como e coisa da vida dos mortos, viajar Maria Elena Moran Antes viajei tão pouco que me sinto roubado pela vida, pai. É sério. E olha que tentei, mas como é caro viajar; como é sempre um luxo viajar; como é coisa da vida dos outros, viajar. Por isso agora, com a mulher na Venezuela, uma filha no Brasil e outra na Alemanha, estou saldando uma dívida antiga comigo mesmo. Não do jeito que eu teria desejado, mas já é algo. Tinha anos me preparando para essa aposentadoria. Mas é uma grande mentira que alguém possa se preparar coisa nenhuma. Tinha sido necessária tanta degradação, tanto ensañamiento? No começo, para mim só existiu o não entender e o não saber se tinha alguém a quem pedir explicações. Logo vi que não tinha ninguém. Eu sempre tive certeza disso, mas, nos últimos tempos, assustado, comecei a duvidar. O que eu podia fazer agora, no meu novo estado, quais eram minhas novas atribuições, quais as vantagens e quais as limitações? Aliás, tinha limitações? Era o choque da folga prematura. Aquela sala fria, fechada, metálica, me oprimia. Me mandaram esperar, mas ninguém vinha me dizer nada. Então uma força, uma sucção, me levou de um pulo até um jardim. E lá estavam elas três, La Nené, María e Nana, sendo abraçadas e acariciadas, três rostinhos arrasados, três corações amarrotados como uvas passas. A mesma força que me levou até aí, de repente me fez começar a fazer a dancinha que, tempos atrás, eu tinha convertido em símbolo durante uma viagem familiar a Cuba, numa tentativa de tirar da minha bengala, última aquisição do quebranto, esse peso de velhice e pouca mobilidade, só que agora eu fazia aquilo e só ela, só Maria, me via enquanto eu dançava engraçadinho e terminava com jazz hands e meu tradicional “qué hubo?”. Me aproximei, invisível e volátil, entre os presentes, e devo 22
confessar que não foi um bom passeio. Não tinha como sê-lo.
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Ainda bem que durou pouco. De novo fui puxado até o jardim e meu corpo começou a se mexer vez mais e mais outra, num loop dançante e os “que hubo?” como uma espécie de remix sentimental. Era ela, María, que se abstraía de tudo e me fazia acontecer do jeito que ela queria. Eu, chegando dançante no meu funeral, de chapéu de aba curta, bengala e sorrisão. Deduzi então que existia uma sobrevida, mas que ela não dependia já da minha vontade, e sim daqueles que me pensavam. Batizei esses momentos como “convocações”. Pena que não consigo sistematizar o processo e fazer algum manual para ajudar aos colegas que ainda estão do outro lado da cerca. Boa menina, tua neta, pai. Me pensar dançando é o melhor jeito de me pensar. * Mas, luto é luto, e de um luto pós hospital, pós hospital público de sala e imundícias compartilhadas, não se sai ileso. Nos dias seguintes, os convites foram desastrosos. Os pesadelos se apoderaram das meninas e de La Nené. Aí, não tive outra opção a não ser ficar pulando de uma para outra e fugir da agonia que os subconscientes teimavam em lembrar. Mesmo que eu quisesse – e eu não queria – não conseguia ficar muito tempo com ninguém que tivesse vivido a agonia junto comigo. Então ia visitar a Mamá Ucha, que desde o primeiro dia recuperou as imagens mais bonitas e refrescantes e as usou como tábua de salvação. Eu criança, jogando baseball com meus irmãos sem quase conseguir segurar o taco de beisebol direito. Eu, adolescente, defendendo com unhas e dentes e toda a rebeldia que cabia em meus hormônios meu direito a deixar crescer o cabelo. Eu, na universidade, namorando La Nené, com seu cabelão comprido e pretíssimo, com seu ar tímido-elegante e sua cintura fininha; eu levando-a para conhecer a família. Foi um refúgio habitar as lembranças dispersas da minha mãe, da minha velha e impossivelmente triste mãe. Coitada da velhinha. Nenhuma mãe no mundo devia sobreviver aos filhos. Isso é um erro da natureza, da física e das metafísicas. Mamá Ucha também escorregava, é claro. Volta e meia se deixava arrastar a imagens do lado besta da saúde e então eu fugia. Ficar era reviver algo que já não me doía no corpo, mas que me 23
espichava a alma, e alma é tudo que eu tenho agora.
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* Demorei um tanto para entender que minha relativa autonomia não se limitava a escolher qual convocação atender, mas que se estendia inclusive a me antecipar e eu mesmo possibilitar as situações. Existia a opção de semear sonhos e lembranças? Esse já era outro patamar. O além começou a ficar mais interessante. Os colegas daqui, você os conhece bem, pai, são uma quadrilha de defuntos por vocação, alguns realmente queridos e divertidos, e outros — que eram uma praga da que eu fugia em vida e com a que nunca imaginei ter que compartilhar a eternidade —, ficam dando pitaco, exigindo que eu assuma o novo estado e (re)conheça pessoas. Abuela Herminia manda eles calarem a boca e me aconselha a exercitar mais as convocações autônomas, coisa que ela mesma teria gostado de fazer mais, mas naquela época tinha muita interferência das orações que os parentes faziam para a paz de sua alma e tudo aquilo e ela se deixou convencer daquela ideia do descanso eterno e o céu e ficou esperando e esperando, até que foi tarde demais. Quando percebeu a cilada em que tinha se metido, era tarde: já não era convocada com tanta frequência (embora cada invocação fosse agigantada e amorosa) e tinha sérios problemas para criar ela mesma os momentos; por teimosa, não tinha exercido a devida prática, não tinha o ofício, como se diz, de promover encontros nos sonhos. Então, eu prefiro ouvir a minha avó – umas das poucas pessoas, junto contigo, pai, que, em vida, me faziam querer morrer para encontrá-la. Você poderia tentar fazer o mesmo que eu, pai. Dá até para tentar ir juntos. Já pensou, você e eu visitando Mamá Ucha? A velhinha ia adorar. * Decidi acompanhar María em sua volta ao Brasil, onde ela morava fazia três anos, com Rafael, meu genro, um cara que sorri de dente pelado e de quem eu gosto muito porque ele faz por merecer minha filha. Claro que eu poderia ir direto, mas lembrei que ela dorme pouco durante os voos e pensei que podia ser uma boa ideia 24
ir de avião, com ela. Foi durante a viagem que fiquei sabendo.
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Aconteceu que ela não estava dormindo, mas, mesmo assim, me via, me via! Fixava seus olhos em mim e me dirigia cada palavra do monólogo fragmentário de seu pensamento. Eu não só conseguia convocar em sonhos ou lembranças, como nós dois éramos capazes de criar novos momentos, que em vida não vivemos, só pela força das nossas vontades? Se eu achava que a saudade era a tristeza derivada da incapacidade de criar novas memórias com os seres amados, então nós tínhamos encontrado a forma de matar a saudade. Você podia ter me contado, pai, dos alcances da comunicação com o além, né? Tudo bem que a gente aprende mais quando experimenta, mas ia me economizar um tempo. Já sei, nem precisa me dizer nada. Tempo é só o que temos, então para quê economizar. Com a nova faculdade em pleno funcionamento, eu queria fazer de conta que estava tudo certo, normal, durante o voo, mas eu não tinha assento. É verdade que eu poderia me sentar em cima de qualquer um no avião, que ninguém ia sentir, mas ela estava me vendo e isso ia deixá-la mais nervosa ainda. Decidi ficar como papagaio no encosto do assento. E ela querendo que eu me sentasse. Lá pelas tantas, me deitei no espaço da saída de emergência e só então ela conseguiu dormir. O Brasil me chamava mais a atenção porque lá, nas convocações de María, eu permanecia menos gasto, menos doente. Ao ter vivido a parte mais cruenta da minha doença desde a distância, ela estava mais a salvo do horror e por isso seus convites logo ficaram limpas de hospital e viraram as mais felizes. Embora eu sentisse nela, em cada encontro, um remorso que não sabia como desfazer. No desembarque, em pleno estresse de recuperar as malas, ela se distraiu e eu fui parar de novo com meus colegas. De novo viajando, Morán? Maldita inveja de outro mundo, é igualzinha em tudo que é lugar. * Aconteceu então que um dia as minhas três mulheres me chamaram ao mesmo tempo. La Nené, num sonho tranquilo, desses em que a morte e o reencontro não são o assunto principal. Nana, numa lembrança interrompida por imagens de 25
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réquiem, mas bonita, afinal. María, numa falsa ou uma nova lembrança. Isso já tinha acontecido antes, mas até então eu achava que precisava escolher. Assumi que o teletransporte era uma virtude natural do estado defunto, talvez pela tradição que aprendi em vida. Mas a ubiquidade era um assunto novo. Nunca me detive para pensar isso, inclusive porque, até pouco tempo antes de mudar de estado, eu achava que morrer era um ponto final. Nunca contei com esta simpática, embora desajeitada, sobrevida onírico-memorial-performática. O ponto é que aí estávamos, os três eus, em três idades distintas. Você não vai acreditar, pai. Imagina só a cena: Caminho com Nené em Rubio, onde as ruas que antes percorríamos, na realidade da vigília, alguns anos atrás, hoje são como de E.V.A. e ela tira os sapatos porque diz que quer sentir o fofinho e eu, que não posso ficar para trás e que não perco oportunidade de desafiar as noções locais de ridículo, também os tiro e não só os tiro como protesto por não ter tido essa ideia antes. É bem fofo mesmo. E é limpo, coisa que minha grima de andar descalço agradece. Como se a cidade toda fosse uma grande escolinha ou um tatame. Revivo com Nana o momento em que cheguei de Ciudad Ojeda, dirigindo o carro recém-comprado, um mustang prata de duas portas, de 83. Vejo as caras de Nana e de María e são de um brilho que não há dicionário que consiga ter palavras para contar. Primeiro carro da vida delas. Tivemos algum outro quando María era bebê, mas disso nem eu lembro muito bem, imagine ela. E com María, me permito minha já testada capacidade de invocar soberanamente novas situações. Fazia dias, ela andava me convocando em suas tristezas, entre outras coisas, porque estava prestes a trocar de apartamento e de repente percebeu que esse espaço tinha sido a última morada dela em que eu, de fato (o de vida, digamos), estive presente. O que que eu fiz? Escrevi e encenei (que é o mesmo que viver, no caso) todo um sonho mirabolante, cheio de aventuras imobiliárias, de surrealismos e plasticidades, bem do jeito que ela gosta, que terminava com ela chegando a uma casa chique que ela, ou uma versão 26
rica dela, estava cogitando alugar e quem é que estava lá, na
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piscina, com os olhos vermelhos e a pele já enrugada de tanto ficar de molho, segurando um mojito na mão? O mesmo que fala. Euzinho, desdobrado e poderoso. Sucesso total e rotundo. Ela parou de se atormentar com esses detalhes técnicos de ir para uma casa que eu não tivesse conhecido; pegou certinho a mensagem: eu estou onde ela estiver e isso nem se discute. * Você acha que eu convoquei o senhor o suficiente, pai? Com o tempo, os convites são menos, fala a verdade... Ainda bem que eu deixei uma legião de fãs lá, somando a família e a parentela, os amigos e os conhecidos, as centenas de estudantes que passaram por minhas aulas. Genética boa para a simpatia, mas vergonhosa para a saúde cardiovascular, né, Seu Gonzalo? Acho que não exagero com minhas expectativas de trotamundos. Nos últimos três anos, fiz ótimos passeios que todo mundo ficou com vontade de repetir. No Brasilzão, já não sou mais um desconhecido. Brinco com meu português aprendido com Zeca Baleiro e aprimorado na base de muito Caetano e Novos Baianos e muitas aulas de literatura e grupos de estudo em que acompanho María, que não termina uma coisa quando já está engatando outra e quando eu for ver já vai estar fazendo pós doc vai saber onde e La Nené e eu só esperando os netinhos. Com Nana, estou conhecendo uma Europa que nunca pensei que fosse gostar tanto. O alemão está melhorando, mas devo aceitar que daquele lado eu aprendia mais rápido. Também, né, os coleguinhas e parentes deste lado são uma preguiça só e a preguiça é uma doença animicamente transmissível. Enfim, que sou a inveja dos parceirinhos lá do além, por esta minha sede de mundo e por ter quem me ajude a saciá-la. O corpo que eu tinha virou pó cinzento que foi parar em Paraguaná, na Venezuela; no Guaíba, no Brasil; no Mediterrâneo, na Espanha; e em Varadero, em nossa querida Cuba. Pequenas cerimônias que elas acharam necessárias. E eu, que estava mais nelas do que nas cinzas, dei um jeito de participar ativamente: em Paraguaná, criei toda uma aventura burocrática a partir da necessidade de encontrar uma lancha porque, de outra forma, com a corrente em direção à terra, o pozinho acabaria nas 27
barraquinhas dos turistas e não no alto mar, e ninguém quer
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isso, por favor. Já na lancha, quando era para o pozinho cair na água, assoprei um vento travesso no sentido contrário e o rostinho de Javier, meu sobrinho, ficou coberto de pó, causando uma gargalhada geral que todo mundo estava precisando, ao meio dessa coisa dilacerante que é uma despedida. Rasgar a cortina de dor que asfixia nesses primeiros dias. O riso que abre os pulmões e as ideias. No Mediterrâneo, roubei um balão vermelho de uma criança – que ficou chorando horas a desgraçada – e o arrastei até onde estava Nana e o deixei por aí, dançando para ela. A coitada estava frustrada, nunca foi boa com trabalhos manuais, então o pobre do barquinho em que colocou minhas cinzas parecia mais uma balsa-maravilha da engenharia da miséria caribenha, daquelas que os cubanos faziam para chegar a Miami. E como não chorar por uma nova despedida, e como não rir de ver a tentativa-de-barquinho se afundar a escassos centímetros enquanto um balão parece, inexplicavelmente, imantado ao píer. Em Varadero rimos demais. Maria levou as cinzas num tubo de ensaio. Bem coisa de La Nené fazer isso: roubar um tubo de ensaio do laboratório da universidade e botar as cinzas do professor Morán nele para serem transportadas ilegalmente de um país a outro. O assunto é que lá eu nem precisei mexer no set. Acontece que água salgada entrava e saía sem levar consigo mais do que alguns pontinhos de pó. Se recusava a se misturar. E eu juro que eu não fiz nada. María e Rafa ficaram um tempão tentando “me esvaziar”. Os primeiros minutos, ela ficou tensa, frustrada, mas logo veio o riso, uma luta fodida contra as ondas, mexendo o tubinho, virando o tubinho, submergindo o tubinho, assoprando o tubinho. Altas gargalhadas. Toda tristeza em nós é tragicômica. Uma guachafa absoluta, como em nossos melhores momentos. Só no Guaíba, me deixei ir, triste, num barquinho, desta vez benfeitinho. Aí, nem eu estava animado. O dia era cinza e Porto Alegre era uma cidade em que eu queria ter vivido e não deu tempo. Do outro lado também temos nossos altos e baixos. Você sabe bem disso, pai. É claro que ninguém queria ter morrido tão cedo. E menos eu, que tinha uma bucket list que 28
rendia umas cinco ou seis vidas ordinárias. Mas passa. Passa.
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E tem suas vantagens. A ubiquidade é um negócio fascinante, pai. Sem passagem, custos de hospedagem nem de alimentação – essa parte eu não gosto, nós, deste lado, não precisamos comer, aliás, não podemos comer, então eu sinto uma fome que não é fome verdadeira senão uma gula da pior categoria, queria comer até explodir de tanta coisa por aí, agora que não preciso me cuidar mais, queria beber toda a água e os sucos e a cerveja e o vinho e todo o líquido que a doença me roubou durante os últimos anos de vida de vivo. Apesar das reclamações de alguns colegas do além, que querem que eu tenha uma vida de morto sedentário, de jogar dominó e cartas, de passear só com horário agendado, de filosofar a morte, mais chatos em morte do que eram em vida, viajar é o que mais faço. Ah, pai, como é bom viajar; como é coisa da vida dos mortos, viajar.
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Seus olhos Amanda Dimer Silva
A manhã chega sem que eu perceba, uma transição lenta após mais uma noite sem sonhos. Estico um braço e sinto o outro lado da cama vazio. Lá fora pássaros cantam e uma voz de criança parece chamar por alguém. Levanto e encontro meu roupão em seu lugar usual sobre uma cadeira. O caminho até o banheiro é curto, mais simples desde que removemos os móveis do corredor. Conto meus passos até lá e o descubro vazio como o quarto. Descendo a escada, posso ouvir melhor a voz que vem de fora. É meu filho Gabriel. Ele corre e grita e ri como já ouvi tantas outras vezes. - Mãe! Olha! Mãe! Olha o que eu sei fazer! Mãe! Ainda sem sinal de meu marido. Por um instante, me pergunto se ele não está lá fora com o Gabriel. Não, claro que não. Certamente deve estar no escritório. Com certeza passou pela sala, o rádio já está ligado. Será que o Gabriel está com fome? Deve estar com fome. É um menino tão cheio de energia. Vou preparar um lanche para ele. Terminando de preparar um sanduíche, ouço o rangido de sua bicicleta do lado de fora. É engraçado. Demos aquela bicicleta a ele anos atrás, em seu aniversário. Todas as crianças do bairro ficaram com inveja. Ele cuidava tão bem dela, e agora é só um monte de lixo enferrujado, rangendo como se cada virada de suas rodas lhe causasse dor. Queria poder jogá-la fora. - Olha mãe! Sem as mãos! Mãe! Olha! Atravesso novamente a sala, com o prato em minhas mãos. O rádio ao fundo continua tocando. Já ouvi essa transmissão tantas vezes, é praticamente ruído branco. Esta é uma transmissão de emergência do Departamento de Defesa. Isto não é um teste. Repito: isto não é um teste. É recomendado que todos os cidadãos se isolem em suas casas. Cubram portas e janelas e evitem contato com o exterior. Ig30
norem os chamados da rua. Eles não são seus entes queridos.
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Repito: ignorem os chamados. Eles não podem pegá-los se vocês não olharem. Alcanço a porta da frente e largo o prato em um criado-mudo para ajustar minha venda. É importante garantir que esteja firme. Pego novamente o prato e saio porta afora. Posso sentir o sol em minha pele e uma brisa suave. Que bom que o tempo está bom. Assim o Gabriel não fica doente. Sua voz anda rouca ultimamente, talvez deva trazer um cachecol para ele da próxima vez. Estico um braço e pego minha vassoura, deixada de cabeça para baixo, para usar como guia. O rangido da bicicleta para de repente. Posso sentir os olhos de Gabriel fixos em mim. Ou talvez seja só um desejo meu. Será que ele ainda tem olhos? -Mãe! Olha! Mãe! Olha o que eu sei fazer! Mãe! Viro-me na direção da voz, ofereço um sorriso. Minha venda começa a ficar úmida pelas lágrimas. -Sim, meu amor. Que bom. A mamãe está vendo. O cabo da vassoura encontra o prato que deixei para ele no dia anterior. Ajoelho-me para trocar os pratos. Pelo peso, posso sentir que ele não tocou no sanduíche. Ele nunca come, mas não posso deixar de preparar um lanche para ele. Não posso. -Mãe! Mãe! Olha! Sinto sua mão empurrando meu ombro. É um movimento um pouco desajeitado, quase duro. Posso sentir que meu rosto está perto do dele, mas não sinto sua respiração. Ainda assim ele insiste, sacode meu ombro e chama. -Mãe! Mãe! Olha mãe! Olha pra mim! A venda parece me sufocar, quase escorregando com o peso das lágrimas. Estou chorando tanto assim? Cuidadosamente, largo o prato do dia anterior no chão, ao lado do de hoje e sorrio novamente para meu filho. -Claro, meu amor. E tiro a venda.
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Da morte em diante Andrezza Postay E o dia amanheceu ensolarado na Grande Porto Alegre e pelo resto do estado. Mais ao Norte temos possibilidade de pancadas de chuva, as famosas chuvas de verão, devido ao aumento na convergência dos ventos verticais. Mas dessa vez parece que o clima bom chegou para amenizar os efeitos da primavera com cara de inverno que tivemos esse ano. Paulo Ricardo, agora com você, a voz do ouvinte. Bom dia, José Carlos, queridos ouvintes, seguimos nossa conversa pelas redes sociais. Dona Cida de Vacaria avisa que as pancadas de chuva já começaram. Moradores de Galópolis mandam reclamações sobre um mau cheiro que nessa madrugada cobriu o território do lugarejo, se estendendo da cascata Véu de Noiva até o quebra mola em frente à Pousada Charme de la Ville. O senhor Edevaldo Alves pede que as autoridades locais investiguem o caso. Não sei o que a polícia pode fazer quanto ao mau cheiro, talvez a Secretaria do Meio Ambiente tenha respostas. Era verdade. Raquel fazia a tarefa de casa na mesa da cozinha enquanto a avó com quem morava ouvia o rádio e remendava os joelhos de suas calças do colégio. Um cheiro estranho entrava pela janela, não era assim tão ruim, era até meio doce, como uma bergamota que passou do ponto, ou o lixo orgânico antes de ser levado para fora. Ruim ou não, o cheiro era marcante, pesava no ar normalmente fresco das manhãs interioranas com que estava acostumada. Deixou as equações matemáticas de lado e levantou, farejando o ar até a porta. – Aonde tu vai, guria? – Ver esse cheiro. – Não se vê cheiro coisa nenhuma. Tem que terminar teu tema. – A avó parecia incomodada, mas não o bastante para 32
impedir que saísse, então Raquel ignorou as reclamações. Ela
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desceu as duas quadras em direção ao centrinho, perto da igreja. Não sabia dizer se o cheiro ficava mais forte ou não, logo continuou andando. Quase 500 metros longe de casa, decidiu voltar. Melhor não forçar a barra com a avó. Nona Matilde adorava lembrar os netos da existência da vara de marmelo que guardava atrás da TV. Temos informações sobre o mau cheiro em Galópolis, a região administrativa de Caxias do Sul com cerca de 2200 habitantes, declarou que o odor desagradável parece vir de dois pontos, ambos cemitérios afastados do centro. A associação de moradores busca entender a origem do problema, suspeita-se que o longo período de frio interrompido abruptamente pela onda de calor tenha causado um tipo de extrapolação nas sepulturas. O cheiro pareceu se dissipar ao longo do dia, ou talvez seu nariz tivesse se acostumado com ele. Raquel estava saindo da aula no fim da tarde, pensando sobre isso, quando uma mulher muito gorda passou tropicando em um orelhão. Ela usava um vestido florido muito justo que expunha panturrilhas grossas como as salsichas brancas que sua avó cozinhava na água. A mulher deu três passos cambaleantes e caiu de joelhos em um canteiro. – Profe Jandira? – Ela e um grupo de colegas se aproximaram para ajudar. Jandira os encarou com olhos vidrados e movia a boca tentando articular palavras, porém sua voz não saía direito, estava com a garganta empoada. O rosto antes corado da ex professora estava pálido e inchado, o que talvez fizesse sentido, considerando que seu velório havia acontecido duas semanas atrás. A mulher tentava levantar e lançava olhares que foram interpretados por Raquel como suplicantes para os ex-alunos a sua volta. Foi Augusto, colega de classe desde o pré, quem teve o tino de ir buscar a filha mais velha da falecida, também professora de Geografia. O reencontro das duas teve algo de tocante, mas acima de tudo foi desajeitado. As duas semanas debaixo da terra afetaram a motricidade de Jandira, que não 33
sabia o que fazer com o próprio corpo. Depois de um copo de
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chá milagroso (de Erva Luísa, comumente encontrado na secretaria das escolas do interior, capaz de curar da birra ao câncer terminal) a cor pareceu voltar para o rosto da ex-professora, que foi levada aos tropeços de volta a casa da filha. No caminho, Raquel cruzou com alguns outros errantes, olhava fascinada para os reencontros aleatórios que aconteciam bem no meio da rua. Não escondia a animação com os eventos, era como fazer parte de uma novela da Globo, ou de algum filme legal da Netflix que só podia ver quando sua avó ligava a internet para jogar candy crush no facebook entre as sete e as dez da noite. Uma epidemia de ressuscitações teve início na manhã dessa sexta-feira no interior do Rio Grande do Sul. Nossa repórter Ana Laura da Rosa está ao vivo em Galópolis, distrito de Caxias do Sul, para mais informações, boa noite, Ana, com você. Boa noite, Renata. O que começou com um mau cheiro vindo dos cemitérios acabou se revelando uma verdadeira benção. Acredita-se que todas as pessoas que faleceram no último ano estejam voltando à vida. Uma equipe especial de coveiros equipada com pás e pés de cabra está focada em auxiliar os mortos que encontram dificuldade em romper com a barreira fúnebre. A associação de moradores, em conjunto com voluntários de Caxias do Sul, organizou um abrigo na quadra de basquete próxima à igreja. Os errantes encontrados devem ser levados para lá imediatamente. Espera-se que até amanhã, todos os 46 mortos dos últimos 365 dias tenham conseguido se libertar de suas sepulturas. A guarda municipal está a postos em ambos os cemitérios aguardando para guiar os ex-mortos às instalações de suporte até que eles sejam reclamados por suas famílias. Estou aqui com o presidente da associação de moradores, Jaime Lunelli, ex-viúvo de Jandira, uma das primeiras errantes a ser identificada e devolvida ao lar. - É muita emoção, nem sei o que dizer, ter a mulher de volta em casa. Os neto ficaram muito felizes, meu filho já 34
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comprou até a carne pro churrasco, essas benção de Deus a gente tem que fazer festa, né? Mas nem todos os reencontros foram felizes, dona Maria Odete Vaccari teve um ataque do coração quando esbarrou com seu recém-falecido marido ao voltar da feira. O ex-morto tropeçou nos tomates que rolaram da sacola e foi ao chão batendo a cabeça no meio fio. Ambos foram socorridos pela SAMU e passam bem. Após receber transfusão de sangue e fluidos intravenosos, o ex-morto recobrou a consciência que lhe escapava. O mau cheiro foi amenizado com um banho quente. Ana Laura da Rosa, para o Jornal Nacional. – Se o afobado do teu Nono tivesse esperado 15 dias mais pra morrer, mas nem isso ele teve consideração de fazer. – Deixa o Nono Nicássio descansar em paz, vó. – Vitor, irmão mais velho de Raquel, fuçava no celular enquanto a avó matraqueava. – Aonde tu vai, guria? – Passear com o Respeito. – Raquel pensou rápido, alcançando pela guia do cachorro que pendia de um prego torto atrás da porta. – Olha, hein. Tu não te mete lá no meio dos morto. – Só vou dar uma volta, vó. Respeito puxava na guia com tanta força que chegava a engasgar, Raquel tinha que correr para acompanhar o ritmo do cachorro. Ele farejava o odor dos mortos, desesperado que era por revirar lixeiras. Estavam virando a rua para o ginásio quando Respeito se soltou e, se esquivando de um guarda municipal, passando pelo meio das pernas da mulher que fazia as vezes de recepcionista, invadiu o ginásio. Seus latidos ecoavam e o som vazava pelas janelas, Raquel disparou atrás dele, o cachorro estava pendurado na perna de uma moça. A moça olhava para a frente, relevando o cachorro, parecia sentir tanta dor quanto a parede de tijolos que encarava. Enquanto puxava Respeito para longe, deu uma olhada na moça, pensava que era moça por que não devia ter 35
mais de vinte anos, mas também era mais velha que Raquel.
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Cabelos loiros emolduravam seu rosto, tinha embaixo dos olhos grandes círculos vermelho-arrouxeados, olheiras acabaram se revelando efeito colateral de morrer. Combinando com elas, um hematoma contornava seu pescoço, o aspecto inchado da carne branca acentuava a faixa púrpura, centro do machucado. Parecia que usava uma gargantilha apertada demais. – Desculpa. – Murmurou para a moça, depois de dar um peteleco no focinho de Respeito, que ganiu e se aquietou. – Não. – Ela respondeu sem tirar os olhos dos tijolos. – Não foi nada. – FAZ O FAVOR DE SAIR DAQUI COM ESSE CACHORRO! Três dias depois do surto de ressuscitações no interior do Rio Grande do Sul, a associação de moradores de Galópolis fica feliz em informar que 45 dos errantes foram resgatados por amigos e familiares. As famílias comemoram o retorno de seus entes queridos, alguns, como Terezinha, se preocupam com a idade avançada de certos ex mortos, como seu pai, Faustino Guerra, que tinha 104 anos quando faleceu e sofria com Parkinson e demência senil. “Já passou da hora dele.” Afirma a professora aposentada, que beira os 80 anos de idade. Casos como o de Terezinha motivam pesquisadores da Universidade de Caxias do Sul a estudarem os dilemas éticos da eutanásia post-mortem. Outra coisa que intriga os moradores do distrito é o caso de Elisa, a jovem errante que ainda aguarda ser recolhida na quadra de basquete de Galópolis. O nome Elisa Masoli consta em sua sepultura, porém não existem moradores com esse sobrenome em Caxias e região. A própria ex-morta não foi capaz de dar maiores informações sobre o paradeiro de sua família e os contatos que constam no registro do cemitério não pertencem a números habilitados. Caso tenha maiores informações sobre Elisa Masoli, entrar em contato no número (054) 99652 – 9944. Raquel voltou ao ginásio na segunda feira depois de ver a foto de Elisa no jornal. A mulher da recepção a deixou entrar a contragosto, o incidente com Respeito ainda muito recente 36
para ser ignorado. Porém ninguém vinha visitar a errante re-
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manescente e a psicóloga voluntária havia dito que interação com outras pessoas seria bom. A menina puxou um banquinho e sentou na frente dela. Não sabia o que dizer, então não falou nada. Depois de uma hora de silêncio, percebeu que começava a escurecer, levantou e foi embora. Repetiu o processo todos os dias daquela semana. Saía da aula direto para o ginásio. Às vezes levava comida, que oferecia em vão para a ex-morta. Elisa lançava em sua direção olhadelas ocasionais, que validavam sua presença e garantiam seu retorno no dia seguinte. Depois de 13 dias aguardando contato da família, a jovem errante que permanece abrigada em condições precárias no ginásio de Galópolis será acolhida em casa de passagem de Caxias do Sul até ter recursos suficientes para se manter sozinha. Elisa será escoltada até a nova morada pela Guarda Municipal. Já era parte de sua rotina, visitar Elisa no ginásio. Por mais que não trocassem palavra, Raquel gostava do tempo que passava com ela. Sentia pela ex-morta um carinho semelhante ao que tinha por Respeito, como se ela fosse um bichinho de estimação sob sua responsabilidade. – Tu sabe que é o último dia aqui, né? – Ela puxou assunto, não esperando uma resposta. – Está feliz em ir pra uma casa? Talvez tenha banheiros melhores que os vestiários. Tu vai no banheiro? – Nunca tinha visto Elisa sequer levantar da maca. Não tinha certeza se os errantes precisavam ainda comer e ir ao banheiro depois de ressuscitados. – Porque tu nunca responde minhas perguntas? – Por que não me importo. – A voz da ex-morta parecia pequena, como se ela tivesse engolido uma caixinha de som que ficou entalada na garganta. – Não se importa comigo? – Raquel ignorou a mágoa que sentiu, feliz por ter algum retorno da moça. Olhos esverdeados piscaram em câmera lenta, desgrudando dos tijolos e caindo sobre os da menina. – Não me importo 37
em ficar aqui. Ou ir pra outro lugar.
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– Porque não? Não quer ir pra casa? – Em outras circunstâncias, Raquel talvez escolhesse melhor as palavras. – Tu ganhou a vida de novo. – Eu não estou viva. – Como não? Tô aqui falando contigo. Elisa levantou um braço magro e branco, cheio de veias, levando a mão ao pescoço com uma delicadeza que era estranha a quem vivia na colônia. Usava uma camisa branca de segunda mão, manchas amareladas de suor antigo enfeitavam a gola e suas axilas. – Só sei que morri. E acordei aqui. – Falava muito devagar, parecia doloroso enunciar cada palavra, as sentenças acabavam junto com seu folego. Inspirava com a boca aberta antes de continuar. – Não conheço ninguém. E não me deixam em paz. – A gente só quer te ajudar. Sorriu com a boca. Era bonita quando sorria. – É assim que eu sei que não estou viva. – Como assim? – Eu não quero ajuda. O que vocês estão fazendo, é o oposto do que eu quero. – Cravou as unhas no próprio pescoço, Raquel se perguntou se doía. Será que os ex-mortos sentiam dor? – Eu quero morrer. A menina soltou o ar sem ter percebido que o prendia. Sua expiração precedeu um instante de silêncio.O sorriso de Elisa atingiu seus olhos, não feliz, cínico. – Tenho certeza que estou no inferno.
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Fragmentos Flavio Oliveira Acordou com mais certezas do mundo. Autofágico. Partiu. Acenou para o sol. Afagou as plantinhas da sacada. Extraiu um diminuto botão de rosa vermelho, que acomodou ao lado da xícara de café. Saiu de casa espargindo felicidade, confiante em sonhos que nascem. Perambulou pelas ruas em busca de solidão. Congelou o cotidiano nos arquivos das retinas. Sem esperas e desvelos, saltitou, batendo as solas dos pés, entre as rosas que serpenteavam a alameda, despertando inveja a coelhos e pererecas do percurso. Ignorou o esmero da clarineta em solo virtuoso, num exílio existencial involuntário. Subsistiu, excentricamente, à ternura. Beijou e conversou com todas as flores do caminho. Com as mãos em conchas, tomou água do laguinho. Libertou da coleira o fiel companheiro, que abanando o rabinho em sinal de gratidão, solidário, pulou, um a um, os obstáculos que separavam o gramado da trilha de pedrinhas, fustigando os pombinhos que se arriscavam nos pedaço de pipoca derramados do carrinho; rolou na grama, barriguinha ao sol, patinhas apontadas para o alto numa inconfundível molecagem; inúteis pulinhos para alcançar os balões coloridos presos à mão do pequeno vendedor; lambeu o que restou no palito da vistosa maçã do amor, jogada ao chão pela garota; deu inúmeras voltas entre as pernas de pau do palhaço, sentou por fim, assustado, encolhido junto à mochila do dono, olhando os malabares do artista que expelia fogo pela boca. Percorreram sem rumo a floresta semi-adormecida, alçando pequenas pontes, riachos onde a luz do sol penetrava em réstia pela densidade das samaumeiras, aroeiras, castanheiras e jatobás do entorno. Arremessou, com desleixo, pedrinhas sem relevo, colhidas pelo caminho, esperando pelos círculos concêntricos despidos de fronteiras, retidos apenas por aguapés, caniços d’água e mururés; brincou com as roliças tilápias em recepção na margem, lançando-as de volta à água; distraiu-se com os buraquinhos das árvores de onde brotavam colônias de 39
poderosas formiguinhas transportando alimentos além de suas
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massas, sanhaçus cinzentos atentos por pedacinhos de frutas, esquilos fugidios, borboletas multicoloridas, lagartas desfolhadoras, abelhas, joaninhas e outros coleópteros. Subtraiu do chão uma folha, de intensas nervuras, para transformá-la em marcador de livros. Apanhou com persistência as sementes do frondoso flamboyant, colocando-as no saquinho de pano amarrado à cintura, na esperança em espraiar a beleza, revelada à sua frente, em lugar hostil. Tatuou a felicidade em cada tronco. Caminhou por uma extensa galeria de bambus entrelaçados, finda a qual, num quiosque escondido entre samambaias pendentes, encontrou refúgio para descansar sua ventura e colorir seus pensamentos, sem desprezar da irrequieta companhia, encostada agora ao pacotinho de livros, disposto sobre o banco. Juntos, assistiram ao teatrinho de fantoches, construído entre duas pequenas azinheiras, em peça encenada sobre o bem contra o mal. Compartilharam o sorvete e o amor à natureza. A noite chegou de repente. Com ela, escuridão, pesares, amargores, angústias, a envenenar a existência e a subtrair ternura e afeição. A caminhada de volta impunha coragem e disposição. A densidade das árvores transformava o lugar, exigindo agasalho e atenção. Um vulto atravessou correndo a trilha, desaparecendo num tronco volumoso. Latidos vigorosos do fiel companheiro, que retornou uivando à mochila, afugentaram o intruso. Alcançaram finalmente a guarita do parque. O vigilante permanecia em sua mesa de trabalho concluindo seu relatório de atividades para a troca de turno. Dele indagaram sobre a visão que tiveram. - Este local já abrigou um grande cemitério. Esses fenômenos já são quase normais em nossos registros. Levantou-se em direção à estante para apanhar o fichário e acomodar mais esse relato. Encaixou a pasta na prateleira e dirigiu-se ao pequeno lavabo. Não abriu, no entanto, a porta que o separava do plantão. Simplesmente a transpôs, desaparecendo no interior da guarita. Um frio ainda mais intenso tomou conta do visitante e do cãozinho que agora não parava de uivar. Inconformado, forçou a maçaneta do cubículo, soltando-a. Abaixou-se, olhou pelo orifício da fechadura, porém nada 40
visualizou no interior do lavabo. Juntou, rapidamente, seu ami-
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go do chão, apertou a mochila de encontro ao peito e chispou do local sem olhar para trás, até chegar à soleira da casa onde morava. Subiu para o quarto, desvencilhando-se da sacola na poltrona de leitura. Seu companheiro acomodou-se no tapete, próximo à cama. Corações em descompasso, fragmentaram fantasias. Insone, dirige-se à biblioteca, entreabre o gaveteiro. Falta ímpeto para encarar o passado recente. Inflexivo controla o fôlego. A mão hesita entre sonhos revolvidos, eternizados naquele cômodo. A peça extraída da porta, de forma insólita, jaz entre o soldadinho de chumbo destinto e o velho pião carcomido pelos arremessos. Como sonda submarina, rastreia a correspondência desbotada. Imaginação, lembranças, vagueiam juntas, o interior do escaninho. Paixões inconfessas, utópicas, retidas em papel de cartas, confidências, sem garantias de sigilo, transmutar-se-iam como borboletas nas planícies em busca de liberdade ou como tartaruguinhas na praia, correndo em direção da água. Aprisiona o passado entre os dedos, como quem posterga um prazer que não pretende findo. Desatina entre as estantes repletas, detendo-se em cada uma, livros, autores, souvenires de viagens. Delira sobre cartões postais, lugares visitados, registros fotográficos. Pereniza contentamentos – felicidade efêmera – sem regressos. Apalpa a poesia promíscua e visionária do primeiro amor, encarcerada no imaginário do arrebatamento imaturo. A tudo confina. Desesquestra o passado em desassombro, desata inconveniências, relembranças, incapacidade em refazê-las. Mão e coração se comprimem. Efervescente estação das paixões pretéritas. A foto feminina que adornava a mesa do excêntrico vigilante do parque jazia agora sobre a prateleira da biblioteca como informação banal, inalcançável a afetos e discernimentos, tal qual o vulto que passara entre as árvores. Um mero fotograma, entidade sobrenatural. Após, nem isso. Apesar do pânico, prometeram retornar ao local, sucumbir à felicidade e voltar para casa palmilhando estrelas.
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O espectro da srta. K. Matheus Fernando Silveira Viviane Lima Ferreira A srta. K. morreu. A questão é que ninguém percebeu isso. *** Na casa de madeira de meio século, num bairro pacato, o telhado baixo e ondulado estala com a chuva. Meia dúzia de felinos passeia pelo quintal, e o observador atento pode notar várias entradas para os gatos entrarem no chalé; algumas construídas pelo tempo, outras propositais. Os bichanos ocupam todos os espaços, deixando o cheiro deles impresso. Larga, de cômodo único, a casa repousa entre árvores que crescem desgovernadas pela força da natureza. A velha, sob lençóis encardidos, acorda ofegante. Será que ela tinha enchido o pote de ração para os gatos de rua? Existem tantos abandonados neste mundo, mas não os que estão com ela - estes estão salvos, seguros. Ela garantiria isso, e mais ninguém. A Srta. K senta na cama e uma faísca aparece; a unha acinzentada arrasta no piso de madeira carcomida. Cof, cof: uma tosse repentina. Faz meses que ela não se sente bem, e sua mente fraqueja. Desde que Bitsy havia morrido, pensa constantemente – até nos sonhos – que sua família está em perigo. Ela parte para pegar um copo d’água, buscando aliviar a secura da garganta já não mais tão jovem. Vários olhinhos se abrem e a observam da penumbra e inúmeras cores de pelos brilham em resposta a chama de uma vela – uma necessidade recente. A luz elétrica da rua oscila agora, com a fiação roída. Ela lembra daquele vizinho estrangeiro dizendo tolices, culpando seus gatos. Os olhos verdes da velha, fundos, parecem arregalados e vazios. Ela mais desliza que caminha. O silêncio é quebrado por um miado ocasional, e por um som, muito leve, das chinelas 42
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raspando contra o assoalho. O vento está forte esta noite, mas a velha não tem nenhuma memória de como foi a manhã, se fazia sol ou chuva. Pouco importava o clima, agora que Bitsy tinha sido assassinada. Sim, envenenada! Podiam falar o que quisessem, mas ela sabia das coisas... e acharia provas. Na sua cabeça, aquele policial não sabia nada. A Dra. Amarante não sabia nada. Dona Margot não sabia nada. – Bola de Neve, Bitsy morreu vomitando, não foi? Verde, verde pior que gosma de caracol, foi sim! Envenenada! Eu não consigo acreditar... Como eles mataram um bichinho tão fofo e tão lindo? Foi aquela vizinha cretina, D. Margot? Ou foi aquele imprestável do gringo? Todos eles me odeiam. Querem me atingir de alguma forma, você não acha, Bola de Neve? O gato de pelos brancos olha para a sua dona e lambe a pata. Ele vai até o comedor e mia, ela agacha, lhe dá um pouco de comida. Ele não parece estar mais interessado naquela conversa; Bola de Neve é o mais novo do grupo, e ainda assim, já é velho. Ela resolve deitar novamente, resignada. *** A Srta K. sai de casa, determinada a descobrir o que houve com Pipi. Sabe que a polícia nada vai fazer. Neste momento, ela pensa: Por que não veio tomar café da manhã comigo? O que os astros estavam fazendo com o meu destino? Bate palmas fortemente na frente de uma casa cor de rosa, com muros altos. A velha grita: – Dona Margooooooooot! – A vogal aberta ecoa pela rua, sem parar, cobrindo seu resmungo seguinte – Maldita campainha que não funciona...! Sai da casa uma senhora de bobes e roupão, com cara de irritada, já esbravejando: – O que foi dessa vez? – Dona Margot, a senhora viu o Pipi? – choraminga a Srta. K. – É um destes bichos asquerosos? – Os meus gatos não são nojentos! – a Srta. K. dá uma réplica ríspida e rasteira. As defesas de Margot abaixam, ela olha para a Srta. K. num misto de pena e falta de paciência, porque ela preferia 43
estar deitada com seu momo fazendo maratona do que falando
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com a louca da rua. Num gesto de piedade, pergunta: – Como é que ele era? – Não fala assim como se ele já estivesse… ele é laranja tigrado, muito bonito... – Hmm… Não vi não. Sinto muito. passar bem! *** Passos curtos sobre um telhado, a visão de cima de sua rua. Uma percepção de cheiros vem forte, como se estivessem impregnados na própria carne da srta. K. Seus movimentos mudaram: é capaz de dar saltos altos, e se equilibra sobre o muro como se dançasse. Por um milagre, não sente nenhuma dor no corpo e nenhuma preocupação toma sua mente, clara e vívida. Um ruído. Ouve os passos de um homem, quer se esconder, mas não é necessário, não é ameaça visível. Em estado de bênção, está forte, sem tosse. Ele está com uma lata de atum na mão, quando a abre, mesmo estando longe, ela se sente alvoroçada, olfato e paladar são quase a mesma coisa. Fica insana, sente fome, mas os resquícios da racionalidade a fazem desconfiar e se segurar. Os protegidos se aproximam um a um, ela está com eles. Ficam rodeando o careca de óculos, e sua cara não lhe é estranha. Está sentada no muro e vê tudo; de repente está perto, um deles aceita o carinho e defende sua lata fortemente, contra os outros, contra ela mesma. O homem agarra o gato e coloca dentro de um saco, a despeito dos demais. Uma lágrima escorre pelos pelos quando ela se depara com o desgraçado que está acabando com seus bichanos! Quem? *** Levanta e passa um café. Pipi adora cheiro de café e sempre vem quando o pote é aberto, só que ele não aparecia há tempos, cadê o gato? – PIPIIIIIIII?? Talvez Pipi tivesse sentindo falta da Bitsy. Pobre Bitsy, a mais velha e mais comilona de todos, a Srta. K. pensa. Suspira fundo. Está velha demais para tudo isso. Não poderá passar mais café sem lembrar de Pipi. *** O período era: antes do desjejum; o dia: não importa, mas faz algum tempo. A Srta. K. está na praia sentindo a brisa nos 44
cabelos ralos e esbranquiçados e sonhando em levitar, quando
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encontra um gato correndo, a cara apavorada. Ele pula direto até ela, com um miado esganiçado de pavor, olhando para trás, para um inimigo invisível. A Srta. K. nada enxerga e nada ouve que possa ter amedrontado o animal, mas seu abraço é reconfortante. O gato tem uma mancha preta em formato de oito no entorno dos olhos. – Calma, calma, está tudo bem. Vou cuidar de você. Ela olha nas íris alaranjadas do bicho. No mar, um trovão corta o céu. – Vou te chamar de Eterno. *** A Srta. K. olha para fora, despreocupadamente, e vê o lixo esparramado na rua, para além de seu portão. Isso vinha acontecendo um bocado ultimamente. E Dona Margot insistia que eram os gatos dela que faziam isso. Balbucia: – Hunf. Sempre dão um jeito de culpar meus amores. Vinte anos moro aqui e eles nunca fizeram nada... Plaft! A xícara de café se espatifa no chão. Um gosto amargo na boca, com atum, um lampejo do brilho de sol num vidro, um borrão de cor, uma sensação de dor. A Srta. K. leva um susto, um cochilo? Seu olhar recai sobre uma gata virada de barriga pra cima, os olhos vidrados, próxima do muro. – Bitsy! *** O Sargento Fonseca recebe com surpresa o chamado da rádiopatrulha. Ele conhece a rua, todos os policiais do bairro conhecem a rua. Era a campeã de reclamações acerca de barulhos e outros problemas com animais – havia uma velha que, dizia-se, tinha dúzias deles. Mas, dessa vez, o endereço batia com a fonte de todas as queixas. Era a própria velha quem realizava o chamado! Ele lamenta a falta de seu parceiro, que sabia lidar com idosos como ninguém. Suspira e lança uma blasfêmia em voz alta, que faria o padre de sua igreja levantar as sobrancelhas grossas em reprovação. Liga o carro, indo em direção ao que promete ser uma noite de lamúrias de uma velha solitária. Ao se aproximar, é recepcionado por uma sinfonia de miados. Agradece secretamente a Santo Onofre por não ser 45
vizinho daquela mulher, e buzina. No portão vem uma senhora
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com um robe velhíssimo, pantufas coloridas e olhar perdido. É tão esquálida e de andar tão leve que por pouco Fonseca não a atropela. – Ainda bem que chegou, seu Polícia! Algo tem que ser feito, algo tem que ser feito...! – se inicia a choradeira. No sofá empoeirado e coberto de pelos de gato, o sargento senta. Tenta se lembrar da forma como seu parceiro fazia: balança a cabeça com firmeza e abre um grande sorriso, sem ouvir direito a torrente frenética de palavras da velha, com aquele falar estranho de quem tem língua presa. – Do que se trata, Srta. K.? – Bitsy morreu, eu lembro, agora Pipi sumiu, me ajude! Ele foi raptado... – Srta. K...? – Há um exterminador de gatos! Um assassino! Meus gatos são tão bonzinhos... eles não fazem mal a ninguém! Todos culpam meus gatos! – Por favor, Srta. K., explique do começo... – Seu Polícia, só sei que se não fosse por mim, meus bichos estariam abandonados, passando fome e frio. E ninguém faz nada! Só querem falar mal deles! E agora estão matando! Como pode? São tão queridos... O sargento Fonseca conta até dez em sua cabeça enquanto sorri. Eram mais que lamúrias, ele conclui: a mulher é completamente louca. – Pode ter certeza que vamos verificar isso, Srta. K. Maus-tratos contra animais é crime, se tem alguém mexendo com os bichos da senhora, logo saberemos. *** – Dra. Amarante, desculpe interromper, mas a Srta. K. Trouxe uma gata enrolada em uma toalha branca, toda vomitada, e está fazendo um escarcéu na recepção... – De novo, a Srta. K. está aqui? Cada dia é um gato diferente. Já perdi a conta de quantos bichos eu tratei... – Ah! Hoje é uma gata grande e gorda, malhada em cinza e branco. – Pfffffffff..... A veterinária se vira para sair da sala de cirurgia, ainda 46
de luvas, e encontra a Srta. K. no corredor, aos prantos, o olhar
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ensandecido e desesperado, com um gato duro e frio nos braços. Só de ver o bichano, detecta que não há prognóstico; uma gata obesa que ela sabia que tinha problemas cardíacos. – Por favor, salve a Bitsy, acho que ela foi envenenada!! A Dra. olha nos olhos vidrados da velha e diz: – Não há mais esperança.... *** Cansada. Todos os dias, cansada. E agora, ela não consegue mais raciocinar direito. Pior, não pode mais proteger seus gatos. Na noite do atropelamento de Franjinha, a Srta. K. chora copiosamente e ignora a sopa de ervilhas diária, já posta na mesa, sua ceia a mais de dez anos. O corpo sacode em impulsos incontroláveis, um ódio sobre as próprias limitações, uma raiva de sua incompreensão. Ela não conseguira nem recolher o corpo, dessa vez. Anda desorientada até a casa e adormece molhada de lágrimas, na poltrona em frente à televisão. Todos os gatos estão a sua volta, quase num círculo perfeito. Ali mesmo, ela para de respirar. *** Sabe que essa não era a melhor forma, sim, ele sabe. Mas está esgotado. Apesar do tempo na prisão ter aprimorado sua paciência, os vinte anos esperados já eram o bastante. O que queria estava ali, tão perto, debaixo da casa da velha. Era completamente impossível recuperar a mala sem despertar os – ele contara minuciosamente – vinte e oito gatos que estão na casa, todos os dias. Ele não é um assassino, mas é do tipo pragmático. Tenta de tudo, antes. Estuda a movimentação da casa, uma rotina que consistia na velha andar de um lado para o outro do terreno, receber visitas, falar sozinha e cuidar dos gatos. Finge ser um turista. Sonda a possibilidade de compra a casa. Nada. Como um vendedor, oferece um pacote de férias para idosos, para longe dali. Nada. Começa a espalhar boatos sobre o comportamento da velha e culpa os bichanos por toda sorte de incomodo no bairro, criando-as quando necessário: vêm os primeiros sinais de progresso. Ele não tem fibra para atacar a velha, para dar cabo nela. Mas a vida dela eram os gatos. Seu plano derradeiro era se livrar dos bichos e ver o caos se instalar. 47
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Hoje a noite é o teste final. Uma prova de seu desespero. Vê o gato dormindo na estrada. Uma noite sem vento: os pelos finíssimos do gato são muito compridos, mas mal balançam na brisa suave. Os óculos dele escorregam pelo nariz suado. Engole seco, endurece o coração e acelera. O carro sacoleja menos que previra, mas ele acha que não haveria tempo para um último miado de dor. Houve. *** O Sargento Fonseca entra no carro com uma pulga atrás da orelha. Dona Margot chamara no fim da manhã sobre o atropelamento do gato na frente da sua casa. Engraçado, pensa calado, nenhuma palavra da velha e, certamente, o gato era dela. Em sua mente, sabe que é um bom profissional e fez seu trabalho conforme o protocolo. Neste momento, engrena um bocado de ideias e muda de direção, já se dirigindo para o chalé da velha senhora. Quais são os fatos? Segundo a veterinária, a gata grande morrera de ataque cardíaco por comer porcaria; ninguém na região se lembra de jamais ter visto um gato com a descrição de – olha seu bloco de anotações para confirmar – Pipi; mas, e se fosse real? Tudo parecia loucura e exageros de uma velha que não conseguia mais controlar seus bichos, pelo que ouvia dos moradores da região. E foi isso que, com uma gentileza destreinada, ele tentara reportar. Contudo, com toda a certeza, perder dois gatos em menos de um mês é um baita azar. Que dirá três. Talvez fosse mera coincidência, porém, Fonseca não gostava de coincidências. Elas o deixavam nervoso. *** Eterno é o primeiro a pousar sua pata na Srta. K. Bola de Neve, o segundo. Depois, cada um dos animais, numa sequência ensaiada, sai da posição do círculo e toca a pata esquerda na velha. Os rabos balançam, chicoteiam o ar, sincronizados. A poltrona range com o peso extra dos animais se equilibrando; uma leve brisa enche a casa, apesar de todas as janelas fechadas. A Srta. K. abre os olhos. Eles faíscam, verdes como são, na escuridão da casa. Muito devagar, suas pupilas se contraem 48
verticalmente, numa fenda. A Srta. K. sente uma vitalidade fora
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do comum, uma tranquilidade em seus pensamentos. Vira a cabeça a sua volta e recebe vários olhares cintilantes em retorno. Ainda tem seis vidas para viver. *** Seu corpo de humana velha está preso na familiar poltrona, mas sua mente vê pelos olhos deles. Vivera algo parecido, ela sabia, mas nunca com essa intensidade. Passa a noite saltando junto com eles, de um espaço para outro. Nunca sentira tanta liberdade, os felinos urbanos comem o que encontram, caçam se preciso, não se prendem nos lugares. Tinham muitas casas, muitos amigos humanos, e os cheiros viram seus novos mapas de orientação. Todos os movimentos são percebidos pelo corpo todo – algo que a Srta. K. leva algum tempo para se acostumar. Logo aprende, porém, a ser a própria horda de felinos; todos os seus companheiros, neste momento, se tornam hospedagem para seu movimento. Sua alma pulula, é todos e um, eles também são ela. Ela não sabe onde o homem mora, mas eles sabem. Ao passar num muro alto, com vidros quebrados nas pontas, as patinhas não se ferem, pois sabem onde pisar; descem lentamente, um a um, e chegam à casa de paredes brancas. O siamês pula sobre a maçaneta e escancara a porta, é Grafite; abre como aprendeu a abrir a porta do banheiro da Srta. K. Entra civilizadamente, sem fazer barulho algum. Um senhor de meia idade dorme na poltrona com uma cerveja na mão, prestes a cair – a televisão está ligada, só fazendo cenário. A gataria mia baixinho, sentanda no tapete em frente à poltrona, escutando os roncos que fazem subir os óculos na cabeça careca do homem comum. É como se fosse um acontecimento orquestrado, eles querem, ela quer. Os bigodes de Grafite tremem; ele é o primeiro a subir na poltrona e atacar a jugular. A dor e o sangue jorrando acordam o algoz, que corre. Todos os demais seguem e atacam parte por parte do homem, comendo sua carne, rasgando suas roupas. Não adianta gritar pedindo por socorro, os vizinhos dormiam e seu sangue escorre pela casa. Ele puxa um por um pelas mãos, soca, esperneia, mas eles voltam, lentamente, agarrando com suas bocas pequeninas, dentes afiados, garras ferozes e velocidade letal. A Srta. K. sabe onde a mordida seria fatal. O homem perde 49
as forças.
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E Bola de Neve se tornou vermelho. *** O Sargento Fonseca estranha a demora no portão. Ela finalmente vem, parecendo, se é que era possível, ainda mais magra que antes. Desliza, quase levita. – Srta. K., boa tarde, eu sinto muito, mas vim pelo gato atropelado… – Não se preocupe, seu Polícia. Franjinha terá um enterro muito bonito. A velha encara o sargento fatigado; a voz dele falha e ele titubeia sob o olhar doce, não obstante implacável. Ele não vê mais loucura alguma nos olhos dela. O Sargento Fonseca se sente nervoso como nos tempos de recruta. Finalmente, a resposta treinada de anos na corporação surge em sua boca: – A polícia está sempre à disposição para ouvir a população e ajudar como possível, senhora. – Ora, eu aposto que não haverá mais nenhum problema com os meus gatos, seu Polícia. Um bom dia para o senhor. O guarda entra novamente na viatura. Sem se dar conta, faz o sinal da cruz enquanto se vira para ir embora. Ele também apostava.
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Matrioska Sara Albuquerque
venha aqui agora, Leonardo Ribeiras é sério Quando Tita me chama com nome e sobrenome dessa forma, logo me ponho de sobreaviso para uma possível bomba atômica, especulando na memória recente o que será que eu posso ter feito dessa vez. Certeza que postei o trabalho de farmacologia ontem, dentro do prazo. Pouco antes do final da meia-noite, admito, mas me lembro bem: acordei sobressaltado dum cochilo na escrivaninha, terminei de adaptá-lo às normas da ABNT e acrescentei na capa Felipa Santos de Alencar, a Tita. Faz quase três meses que realizo as atividades acadêmicas por nós dois. Não sou tão organizado e cricri como Senhorita Perfeição, mas também não deixo a desejar. Minha média fica ali pelos oito, oito e meio, às vezes, um setezinho, e, para quem dá conta de dois estágios na semana, concluo como um excelente resultado. Ora, pelo menos ela não corre o risco de levar a pior nas disciplinas. E, se fosse o caso de querer reclamar, nem teria forças. Por causa das dores abdominais, Tita não faz outra coisa além de vomitar, ter diarreia, constipação, gases e perder aula atrás de aula. O celular apita novamente e não duvido seja outra mensagem dela. Aproveito o sinal vermelho para conferir, tá chegando? Aperreio da moléstia, já avisei que ia demorar uns quarenta minutos devido ao trânsito neste horário. Estou engarrafado, mulher, tenha paciência, digo em voz alta, sem tempo de digitar porque o sinal abre e não posso me desconcentrar, senão algum espertinho mete o capô do carro na frente do meu. Ponho o aparelho no modo silencioso e deixo-o no console, enquanto estouro o volume de Psycho killer no rádio, puxa, há quanto tempo não escuto essa música. Tita não merece nada disso que vem acontecendo. E al51
guém merece? Um estuprador, talvez. Ou o Caio, filho da puta.
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O Caio merece um câncer de pulmão, aquela caipora fedorenta em corpo de gente. Ai, já sei, um futuro médico não deveria nem deixar passar pela cabeça esse tipo de pensamento. Superego de merda. Este mundo é uma loucura mesmo. A Tita, tão boazinha, metida a fazer caridade aonde chega, encabeçou o projeto de saúde coletiva na comunidade Poquenta, quando todo estudante fugia da responsabilidade, alegando ter compromissos demais e aquele lugar, pela misericórdia, era um deus nos acuda. Se fosse um bingo, apostaria que ela tem síndrome do intestino irritável, embora bata o pé e não queira aceitar, só de cogitar a dieta braba à qual teria de se submeter. Três meses. Andou em tudo quanto é especialista e não tem uma alma que descubra a causa ou dê um diagnóstico mais conclusivo. Raios-X, ultrassom, tomografia, cintilografia, endoscopia, colonoscopia, exames de sangue, urina, fezes, nada. Até à cirurgia de apendicite a menina se submeteu. Que erro. Quando tiraram o apêndice, o órgão estava limpinho, em bom estado, sem um pingo de inflamação. E as dores não cessaram, óbvio. Foi aí que Tita parou de correr para emergência. Agora se entope com analgésico em casa, de seis em seis horas, procura umas curas alternativas, homeopatia, incensos, óleos, florais, imposição de mãos, começou meditação e ioga semana passada e, na seguinte, confessou-me que já marcou a ida num centro espírita para tomar um tal de passe. Na frente do prédio Alcachofra, nunca encontro nem sombra de lugar para estacionar. A sorte é ter uma amiga queridíssima pelos porteiros. Termino sendo conivente com as regalias que eles lhe concedem. Talvez, sintam dever-lhe algum favor, pois, não existisse a Tita a mexer uns pauzinhos, seriam remotas as chances de terem conseguido marcar ou adiantar consultas com os melhores profissionais da rede de saúde pública, tampouco seus filhos veriam a cor da vacina contra a gripe, e ainda de forma gratuita, mesmo os pequenos estando fora da faixa etária permitida pelo SUS. Ela se vira nos trinta, fala com um e outro, e fim da história: alcança o que quer. Por baixo dos panos, o famoso jeitinho brasileiro, mas ninguém recusa. Abaixo o vidro elétrico e quem me direciona um boa noite, 52
com a voz estupenda de muso grego, é o Seu Otávio. Nos tur-
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nos dele, o homem costuma vestir aquelas calças apertadas de cantor sertanejo, deixando bem avolumado o pacote de chumbo grosso na frente. Adoro. Pena que deve ser casado. Pior, hétero. Dando uma piscadinha leve que deixa qualquer pau endurecido, minha nossa senhora, subiu até um calor, o dito cujo aciona a abertura do portão elétrico e me encaminho, pela garagem, para a vaga do 503, geralmente vazia, o proprietário viajando. Tem umas dez mensagens de Tita no telefone, apenas enxergo as notificações na tela e nem abro. Calma, querida, estou quase aí. Gostaria muito de poder ajudá-la melhor, mas minha única opção tem sido oferecer companhia, ouvindo, muitas vezes retesado em silêncio, a uma sequência de reclamações diárias. Sem dúvida, a mais frequente é sobre como os médicos da atualidade, quando não sabem como proceder, seja porque não encontram uma resposta orgânica ou são irresponsáveis a ponto de nem investigarem os sintomas do paciente, caem de prato cheio na desculpa: seu problema tem origem psicológica. Em seguida, recomendam fazer exercício físico, melhorar a alimentação e alguns, embora não sendo sua especialidade, receitam de próprio punho os famosos antidepressivos. Lembro-me com vivacidade quando ela se queixou disso, da última vez, psicológico é o meu cu, escarrando e cuspindo no chão da sala. Os acontecimentos recentes a deixam endiabrada com tudo e todos. Não é para menos. Tão moderno que dá nos nervos, esse elevador daqui. Funciona por biometria e, às vezes, tem umas frescuras de não reconhecimento, demorando um século para chegar no andar solicitado. 902, aperto. Vixi, vou precisar aparar as pontas desse cabelo, super ressecadas, necessito de um reparador, urgente. Pelo espelho, noto a câmera no canto direito, próximo à porta. Será que o Seu Otávio está observando? Faço biquinho sexy e me paquero como se pudesse me beijar. Viro de costas pro reflexo, curvando apenas a cabeça para reparar a minha raba na bermuda. Empino um pouco para trás e a aliso, por cima do jeans, fingindo procurar alguma coisa na abertura dos bolsos, quem sabe uma mínima linha solta da costura. Estou gostoso pra porra. Até eu me comeria. Duvido que esse peste não tenha me percebido agora. 53
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A Tita teria dado uma risada escandalosa se visse isso, daquelas que ela prende por um tempo até não se segurar e solta com tudo, junto a um barulho de pum pela boca, jorrando pingos de baba pelos ares. Ela, sim, já me auxiliou pra cacete. Se não fosse aquela baixinha, vai que eu nem estivesse mais vivo. No episódio com o Caio, contou-me depois, sequer cogitou esse negócio de não se meter em briga de marido e mulher. No caso, namorado e namorado. Calminha do jeito que é, a voz mansa, ainda meio criançona, ninguém imaginava que seria capaz de quebrar um vaso na cabeça do infeliz. Eu, todo ensaguentado, mal me aguentava em pé e ela quem tomou conta de toda a situação. Levou-me não somente pro hospital, como à delegacia, assinando na condição de testemunha da violência doméstica. Atualmente, o Caio não pode se aproximar menos de cem metros de mim, graças à insistência dela que me instigou a continuar o processo adiante, mesmo com todo o desgaste emocional. Pego a chave no jarro de flores rupestres pendurado na parede e toco na campainha para avisar que estou entrando. Amora, demorei, mas cheguei. A casa cheira a bile e comida estragada. Há vômito nas cerâmicas desde a cozinha ao corredor. Prendo a respiração, encontrando Tita perambulando pelo quarto, aos sussurros como se conversasse com alguém, igual a quando organiza a lista de afazeres nos pensamentos, mas acaba falando em voz alta e eu pergunto oi, e ela responde nada não, só tô pensando. Desta vez, olho para minha amiga desnorteada, a camisola suja de amarelo-laranja, fugindo-me qualquer palavra. Seria burrice questionar você tá bem? As espumas que preenchem as almofadas se espalham desordenadas sobre o forro de cama e ao longo do chão. Lembram aqueles filmes americanos onde meninas afortunadas de quinze anos fazem fuá, jogando penas de ganso para cima, depois de uma guerra de travesseiro, toda a cena em câmera lenta, ao som de Miley Cyrus. Contudo, não. Por aqui, nenhuma ilusão de alegria. Resultados de exames, folhas de cadernos e páginas arrancadas de livros compõem o cenário. Tita sobe os olhos e vem até o meu pescoço farejando, isso 54
mesmo, farejando. O branco da sua esclera quase sumido. No
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lugar, um azulado escuro, contrastando com sua íris amarronzada. Meu deus, Tita, o que buceta você tá fazendo?, ensaio falar, nenhum ruído sai. Ela me cheira as orelhas, as bochechas, o queixo. O azedume do seu hálito me causa náusea. A boca, Leonardo, respire pela boca. De repente, para com aquela esquisitice e meio que me abraça, deixando as lágrimas escaparem, os quarenta e sete quilos da minha amiga desabados nos músculos do meu antebraço. Havia perdido seis, seis quilos, durante aquele período. Carrego-a em direção ao colchão e nos sentamos. Calma, amora, tudo vai se ajeitar, juro pela minha mãezinha que tá no céu, forço um sorriso sem graça. Tita pega minhas mãos, encarando-me com os olhos rígidos, seus lábios se movimentam como se balbuciassem algo, como se água, você quer água?, enxergo sua língua tremelicando. Nem sinal da sua voz, quando, de súbito, ergue-se e paralisa em frente ao espelho da penteadeira, tocando o reflexo do rosto com a ponta dos dedos. Sobre a colcha azul-bebê, a fotografia do exame de raio-X do abdômen tem data e horário impressos de hoje pela manhã. Impossível. Seus últimos raio-X tinham ocorrido há dois meses, por insistência dela mesma a um colega de estágio, na radiologia. Eu mesmo a acompanhara. O resultado deu normal, para o desgosto de Tita, que preferia tivesse algum esclarecimento, a permanecer na agonia de não compreender o que se passava consigo. Este aqui, porém, é novo, ainda exala tinta fresca. A imagem está borrada. Pouco abaixo do esôfago, não consigo visualizar bem, há uma inespecificidade em formato cilíndrico, que se assemelha a uma minhoca com uns cinco centímetros de diâmetro, e tem também uma, jesus cristo, isso é uma cabeça? Uma cabeça de porco? Sou surpreendido pelas costas com uma abraçadeira grossa de nylon me apertando o pescoço. Tita me enforca por trás, mantendo metade do meu corpo inclinado sobre o colchão, enquanto minhas pernas se estiram, dobram e balançam descoordenadas, os tênis deslizando no chão com a espuma. Tita, Tiiii, Taa, eu não esperava morrer desse jeito, a minha melhor amiga, a confidente de todas as horas, a defensora, a fã número um, o que faço, porra? O que faço? O que Tita fa55
ria se não fosse Tita, mas, sim, eu agora? Leonardo Farias, se
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concentre e bote esses miolos bichas pra pensar, era isso que Tita aconselharia, Tita, a minha Tita. Por um segundo, obtendo atrito com a borracha do solado no piso, dou um curto impulso para trás, forte o suficiente para que Tita se desestabilize e folgue o lacre. Ela se desequilibra caindo de bruços no chão, arrastando o fio do abajur. Minhas mãos e braços adormecidos, um formigueiro atravessando os músculos. Oxigênio, oxigênio, nunca foi tão aliviador tossir, o ar entrando morno pelas narinas. Engato pelo corredor, arrastando meu trapézio pelas paredes. As réplicas das pinturas de Van Gogh, nosso artista favorito, giram, giram, dançam gafieira. Eu quem a havia ajudado a pendurar cada uma delas, enquanto não fôssemos podres de ricos para comprar uma original. Escolhemos a dedo. Deixamos A Noite Estrelada bem no centro. Num tom prepotente de quem entende todos os babados da história da arte, Tita contara que o pintor a havia feito para representar como enxergava o mundo, após suas crises de enxaqueca com aura. Escorrego numa poça de vômito no caminho. Tita vem logo atrás, emitindo um barulho rouco com a garganta. Para, Tita, sou eu, sou eu, Tita, jogo-lhe cada um dos objetos que alcanço no criado-mudo da sala, o sapinho da fortuna, a matrioska, o porta-retrato com a foto 3x4 de quando tinha doze anos e tirou depois da primeira menstruação, enquanto a minha amiga se mantém inerte no corredor, protegendo-se dos arremessos com os braços em cruz, à frente do rosto. Ergo-me, a respiração retornando. Você não é a Tita. Se sua casa estivesse pegando fogo, o que você pegaria primeiro? Eu havia lhe perguntado uns quatro anos atrás, quando ainda nem tínhamos passado na faculdade, os dois bêbados, sentados no meio-fio, em frente ao bar da Cidinha. Tita encostou as maçãs do rosto no meu ombro. Depende, Leo. Do jeito que você vive enfurnado lá em casa, acho que tiraria você lá de dentro. Rimos numa boa dose, ambos repletos de juventude, tendo ela me dado uns cascudos, ao ouvir que a coisa mais preciosa que eu havia pensado fora meu abridor de latas, o que ganhei numa promoção da coca-cola. Você não é a Tita. 56
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Os meus passos saem correndo na direção daquela coisa imunda, que não é a Tita, engoliu a Tita. Caímos exaustos no chão, eu por cima, minhas mãos no seu pescoço, sentindo aquecer a jugular, suas pernas se debatendo, enquanto chuta com os joelhos a minha bunda. Você não é a Tita. Você não é a Tita. Você não é a Tita. Percebo meus olhos se umedecendo, a visão turva, a Tita nunca me mataria, nunca, nunca, embora o sinal na têmpora esquerda do rosto, as sobrancelhas mal desenhadas, as sardas ainda pareçam da Tita. Então, seja o que for, apenas deixa de se mover. Os olhos fixos em mim, endurecidos. A não ser pela minha respiração ofegante, o resto do silêncio é quebrado segundos depois, quando vomito diversas vezes seguidas no rosto deste corpo pálido, frio, enrijecido, do corpo de Tita.
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O homem no retrato Adele Lazarin Trovejou. João olhou para o céu e arregalou os olhos enquanto um calafrio percorria todo o corpo. Outro trovão e gotas geladas de chuva começaram a cair, molhando o cabelo, as roupas e a mochila do jovem viajante. O céu esbravejou novamente e desta vez João começou a tremer, não só de frio, mas também de medo. Odiava trovões. A chuva se intensificou. Encharcado, João olhou ao redor procurando descobrir onde estava, mas era impossível encontrar algum sinal da trilha na escuridão que o envolvia. Mais um trovão se fez ouvir no céu nebuloso e um novo arrepio percorreu sua espinha, lágrimas permearam seus olhos e o desânimo caiu sobre seu corpo como um estrondo. João realmente odiava aquele barulho. Mas algo não estava certo. Em vez de enfraquecer e logo sumir, o som do trovão se prolongou até se transformar em uma gargalhada aguda, fria e perversa. João se virou rápido, como se sentisse a respiração de quem quer que estivesse rindo sobre o pescoço, mas não havia ninguém ali. Ele se virou de novo, apertando os olhos e tentando enxergar através da chuva, mas não havia nada. O coração estava acelerado e as mãos tremiam. A gargalhada continuava, ora mais perto, ora mais longe, mas sempre presente. João nunca pensou que uma risada pudesse provocar tanto medo e desconforto assim. E então ela parou, subitamente, como se alguém tivesse simplesmente desligado o som. Em seu lugar, João ouviu passos apressados muito perto de onde se encontrava. Perto demais para o seu gosto. Cerrou os punhos e se preparou para correr, mas quando levantou o pé para dar o primeiro passo, simplesmente não conseguiu sair do lugar. Estava paralisado. Antes que pudesse 58
pensar no que fazer, algo grande e pesado bateu contra seu corpo e ele caiu no chão.
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“Que diabos…? João! Encontrei você! Que fantástico, cara!” João abriu os olhos e demorou um pouco para conseguir focar o rosto redondo do amigo bem à sua frente. As costas doíam e a boca estava cheia de lama. Mário, empolgado por ter encontrado o amigo, continuava deitado em cima de João, sem se importar muito com o desconforto que estava causando. “O quê? Mário? De onde você saiu?” Sem muita pressa, Mário se apoiou levemente no amigo e se levantou, pingando chuva e lama. Ofegando um pouco, João virou de lado para poder se levantar também e sentiu uma fisgada de dor enquanto se ajeitava. Tentando tirar um pouco o barro do rosto e das roupas, olhou para o amigo que estava de costas encarando o caminho por onde viera. João tremia de frio e de dor, e ainda estava um pouco abalado pelo susto que acabara de levar. “Ali!”, gritou Mário e apontou para frente. “Eu fui buscar ajuda, e consegui, não é mesmo? Eu disse que conseguiria!” João olhou para frente tentando enxergar através da escuridão e conseguiu vislumbrar, quase imperceptivelmente, um pequeno brilho ao longe. “É um hotel, cara”, disse Mário ao ver a expressão confusa no rosto de João. “Fantástico, não é? E bem quando precisamos.” “Sim…” Mas João não sabia se aquilo era tão fantástico assim. Ainda se lembrava da risada maligna que tinha ouvido havia pouco tempo e o medo que aquilo lhe causara. Sentiu outro arrepio percorrer o corpo. “Mário, escuta, você chegou a ouvir algum barulho agora, como uma risada?” “Uma risada? É claro, cara! Sou eu rindo da minha genialidade!”. E Mário riu. “Vamos logo, cara. Você pode gostar de ficar aí deitado na lama, mas eu preciso de uma cama quente e seca”, disse, dando as costas para o amigo. João não teve outra escolha a não ser segui-lo. *** Paredes frias de pedra logo se agigantaram à frente dos jovens e uma luz amarelada brilhou de uma das janelas entreabertas logo acima das enormes portas de ferro. Mas não era 59
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uma luz acolhedora. A expressão preocupada de João contrastava visivelmente com o sorriso satisfeito de Mário. “Mário, você tem certeza? Tem algo errado aqui, posso sentir…” Mário arregalou os olhos para o amigo. “Você está com medo, cara?”, e riu. “Eu não acredito! Olha só, eu preciso dormir, tudo bem? Eu só quero dormir em uma cama, não aguento mais esse chão duro da estrada. Eu procurei por um lugar para podermos passar a noite, não foi? E achei, não foi? Então é aqui que vamos ficar.” Mário se virou e já aproximava a mão da maçaneta desgastada, quando voltou a se virar para João e sorriu. “Você também pode ficar aqui fora na chuva ouvindo esses trovões, se preferir. Eles estão ficando cada vez mais fortes, não estão? Ainda bem que eu tenho um lugar quente onde dormir”, disse com uma risada. Enquanto Mário falava, um novo trovão se fez ouvir, mais forte do que os anteriores, e João sentiu novamente que havia alguém ali próximo dele, observando todos os seus passos e rindo para si mesmo. Ele não tinha escolha. “Tudo bem, só não me apresse. Já estou indo. Só… toma cuidado…” *** O interior do hotel não era mais quente do que o lado de fora. O saguão parcialmente iluminado com candelabros empoeirados e velas escuras era rodeado por paredes cobertas de retratos velhos. As escadas subiam em espiral até um teto que mal podia ser visto. Tremendo de frio, João olhou ao redor com um sentimento crescente de desconforto. Os olhos dele pousaram sobre uma fotografia em preto e branco de um homem jovem com um meio sorriso estampado sobre o rosto. Não havia nada de excepcional na imagem, nada que pudesse chamar tanto a atenção de alguém, mas João não conseguia desviar o olhar. Os olhos do homem no retrato pareciam brilhar com vida e vigiavam atentamente o jovem à sua frente. Era como se soubessem de algo que ninguém mais poderia saber e se divertissem com isso. Era como se estivessem desafiando João a descobrir esse segredo. 60
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Estático, o jovem não conseguiu se afastar. Até ouvir um grito. “João!” “O quê?!” João pulou com o susto, tropeçou nos próprios pés e caiu de costas no chão. Com os olhos arregalados e o coração batendo forte, olhou assustado para onde Mário o esperava com um ar irritado. Ao lado do amigo, se encontrava um homem esquelético, pálido e corcunda. Longos cabelos cor de palha caiam por sobre o rosto, enquanto olhos pequenos e escuros iam do jovem no chão para o homem no retrato. Ele parecia se divertir com a situação, mas ficou sério quando se dirigiu ao rapaz: “É espantosa, não é?”, disse. “A história de nosso querido mestre, quero dizer.” “O quê?”, exclamou João mais uma vez. Sentindo que tinha sido grosseiro, tentou falar de novo. “Peço desculpas… Não entendi o que o senhor falou. Não sei bem o que aconteceu, mas acho que tomei um susto.” “Você tomou um susto bonito e me passou vergonha, cara”, resmungou Mário. “Agora levanta daí. Este é o Riff. Ele trabalha aqui no hotel e ia me mostrar nosso quarto até você resolver se espatifar no chão.” “Então vocês não conhecem a história de nosso querido mestre?”, comentou o homem chamado Riff, ignorando Mário. “Intrigante…” João se levantou com cuidado e olhou para o homem à sua frente. “Desculpa, mas o que é intrigante?” Riff observou por alguns instantes o retrato em preto e branco e depois se virou para João e deu um sorriso. “Este é o retrato de nosso querido e falecido mestre, meu jovem. É intrigante que você tenha ficado encantado justamente com esta imagem, considerando… tudo.” João arregalou um pouco mais os olhos. “Considerando o quê?”, exclamou com a voz um pouco acima do tom. “Ninguém se importa!”, interrompeu Mário. Os olhos anteriormente vazios de Riff brilharam levemente na direção do rapaz. “Me desculpem, interrompi vocês? Olha só, João, para de 61
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criar confusão. Já falei que estou cansado e quero dormir. Vamos logo ver nosso quarto, cara.” “Certamente, jovem senhor”, concordou Riff. Os olhos do homem voltaram a ficar sem vida e ele seguiu à frente dos jovens para indicar o caminho. O grupo seguiu até as escadas na lateral do prédio e começaram a subir lentamente. Após avançar alguns andares, Mário começou a perder a paciência novamente. “Por que precisamos subir tanto? Não imagino que tenham muitas pessoas se hospedando aqui, não poderíamos ficar em um dos quartos do primeiro piso?” Riff parou e se virou para falar com os rapazes. Embora Mário tenha feito a pergunta, o homem olhava diretamente para João. “Imaginei que seria interessante colocar vocês no quarto de nosso querido mestre esta noite, já que vocês se mostraram tão interessados na fotografia dele. É o nosso quarto mais luxuoso e o reservamos sempre para as pessoas mais… importantes.” “Que fantástico!”, disse Mário com uma risada. “Viu só, João? Até que você não é um desastre tão grande assim.” Mas João estava apreensivo. Ele esperou que Riff virasse de costas e voltasse a subir as escadas para conversar com Mário. “Não sei se isso é tão fantástico assim”, murmurou João enquanto segurava o braço do amigo. “Você não acha isso meio mórbido? Ficar no quarto de um cara morto? E isso tudo é muito estranho. Esse tal de Riff é muito estranho! Sei não, cara. Acho melhor ir embora.” Mário se soltou da mão do amigo e olhou para trás com o cenho franzido. “Para de ser tão medroso, cara! Você quer voltar lá pra fora na chuva? Então volta! Eu vou ficar aqui, tomar um banho quente, dormir em uma cama macia e curtir esse luxo todo que acabamos de ganhar! Você pode fazer o que quiser, não me importo”. Virou as costas e continuou a subir as escadas, levemente ofegante. João ficou parado por um momento, olhando as costas do 62
amigo e pensando. De repente, um trovão se fez ouvir, mesmo
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dentro daquelas paredes grossas, e as luzes piscaram por um momento. João engoliu seco e recomeçou a subir as escadas. Ao chegarem ao quarto, que ocupava todo o último andar, Mário logo entrou e se jogou na maior cama que havia ali, enquanto João se demorava um pouco mais na porta. Ele se virou para Riff, que o encarava, e perguntou: “Por favor, me conte o que aconteceu”. Riff sorriu e os olhos dele brilharam novamente. “Nosso mestre era tão querido, mas tão cruel. Ele era jovem como vocês e adorava receber convidados aqui no hotel. Mas também era bastante comum que muitos convidados não fossem mais embora. Nosso querido mestre gostava de… brincar com eles. As mãos dele estavam sempre vermelhas e ele tinha um constante sorriso no rosto. Mas um dia uma dessas brincadeiras não deu certo e ele foi encontrado sem o coração neste mesmo quarto. Enquanto tentávamos descobrir o que tinha acontecido, seu corpo sumiu e nunca mais o encontramos. Intrigante, não é?” Riff deu uma risada e seus olhos perderam o brilho. “Este é o nosso melhor quarto, espero que gostem. Ele carrega muitas lembranças”, disse e saiu, batendo a porta atrás de si. João olhou exasperado para a porta sem saber o que fazer. Respirou fundo para se recuperar do choque e tentou empurrar a porta, mas ela estava trancada e por mais força que o jovem fizesse, ela não se movia. Desesperado, ele olhou em volta procurando por algo que pudesse ajudar. “Mário! Mário, precisamos sair daqui!” Mas ele só recebeu um ronco como resposta. “Mário, acorda! Anda, precisamos sair!”, gritou João, enquanto sacudia o amigo na cama. “Me deixa em paz, João. Vai embora se quiser, eu vou dormir.” João encarou o amigo que voltara a roncar e depois se afastou. Caminhou até a porta e tentou chutá-la, em vão, e depois escorregou até o chão com as mãos apoiadas na cabeça, sem saber o que fazer. Ele conseguia ver a chuva através das janelas de vidro, mas sabia que não adiantava nada tentar abri-las. Eles estavam muito alto e não havia chance alguma de 63
conseguirem escapar por ali.
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Respirando fundo, João tentou pensar no que poderia fazer. Ele não conseguira fazer nada sozinho até o momento e provavelmente teria que esperar até que Mário acordasse. Talvez a porta só estivesse emperrada e, juntos, poderiam abri-la. Mário era muito mais forte que João. Ou talvez Riff aparecesse logo de manhã para abri-la. João teria então que esperar. João poderia se levantar e deitar na cama menor, dormir um pouco e recuperar as energias. Afinal, estava tão cansado… Mas ele não conseguiu se mexer. Tirou as mãos do rosto e se abraçou. Tremia, não tanto de frio, mas de medo. Vários trovões se fizeram ouvir ao longe e a pouca luz que tinha no quarto logo se extinguiu. João não poderia fazer mais nada agora. Ele se encolheu um pouco mais contra a porta, fechou os olhos e tentou dormir. Em pouco tempo, entrou em um sono agitado e sem sonhos. *** Uma risada ecoou ao fundo. Começou de forma quase inaudível, mas foi crescendo, crescendo, crescendo até se tornar insuportavelmente alta. João abriu os olhos, mas não conseguiu enxergar nada por causa da falta de luz. A risada estava ali, tão terrível como quando a ouvira pela primeira vez sob a chuva. Havia alguma outra coisa ali também. Enquanto esperava que seus olhos se acostumassem com a escuridão, João tentou reunir coragem para se levantar e tentar descobrir de onde vinha. Não precisou esperar muito. Logo os contornos de um homem começaram a aparecer. Ele estava sentado na cama de Mário, bem à frente de João. Tinha a pele muito pálida, os cabelos elegantemente penteados e repartidos no meio, um meio sorriso e olhos brilhavam vivamente, mesmo no escuro. As mãos estavam sujas de sangue, que pingava e escorria pela cama, transbordando pelas bordas e caindo no chão. Aquele sangue era recente. João então percebeu que não conseguia mais ouvir os roncos de Mário. “Seja bem-vindo à minha casa, João. Espero que goste da estadia aqui.”
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A garota desenhada Andre Teixeira dos Santos Ela não desenha com luz o suficiente, por isso os olhos ardem tanto. A cadeira na altura errada faz as costas pesarem. O álcool faz o corpo ficar leve. Apenas torpor ameniza a ânsia. O pulso, um borrão preciso que se movimenta no ritmo dos olhos e da mente. Força demais. Tendões inflamados demais. Há coisas piores que dor física para se colocar para fora. Os medos tomam forma na tela em que desenha uma garota. Mas por que tão claro? Por que tão alegre? Aquele busto na pintura não é ela. Não é ninguém. É apenas uma menina vazia. A sua dor não está ali, o sentimento é diferente. Está errado. Por que aquela rua? Aqueles prédios? O quadro diz quase nada. Significa quase nada. Ela deixa o lápis amarelo cair e encara a própria mão como se não lhe pertencesse. As horas de trabalho refletem no pulso dolorido. A raiva exala contra o mundo, contra o suor que ela acumula e contra o próprio cheiro. Ela fecha o punho, agarra a tela com as duas mãos e rosna, ergue acima da cabeça, pronta para arremessar contra a parede branca e a pilha de quadros e panos sujos. Respira. Conta. As técnicas passam todas pela sua cabeça. Ela apoia o quadro ao lado dos outros. A mesma garota. Várias vezes. Em todos os quadros. Em alguns momentos, feliz, com roupas coloridas em meio a um bosque. Em outros momentos, triste; rosto banhado em lágrimas, escondida em um canto escuro. Ela coloca os tênis sujos que não amarra desde quando os ganhou, veste a calça jeans rasgada e o casaco preto sobre a camisa que ela cortou. Um último gole de vinho e uma apertada extra na órtese de punho e a rua a convoca para mais uma caminhada, até que as dores das pernas fiquem mais fortes que as outras. 65
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Na rua, o mundo é apenas um quadro surrealista mal feito. A cidade voa por ela enquanto nenhum estímulo chama sua atenção, a não ser o anseio pela queimação nas coxas, panturrilhas e solas dos pés. Ela enxerga um conhecido antes que ele a veja. Atravessa a rua. Invisibilidade é sua maior arma. À noite, um sonho sob o efeito de remédios. Pesadelos carnais. Alguém perdido. Talvez ela mesma. Procurando, caminhando. Perseguindo. Ela já sabe, ao acordar, que será mais um dia desperdiçado. Ela não tem forças, mas luta de novo. Tenta criar coragem para pegar o lápis, mas acaba fazendo café e se arrumando para caminhar mais uma vez. Mais uma hora de movimento sem sentido, de medo do próprio bairro, até que um estalo visual quebra em sua visão periférica. Um movimento diferente. Um descompasso. Ela vira o rosto e vê um sorriso. Do outro lado da rua. Entre carros e árvores e cabeças e rostos. Ela ignora. Três passos mais tarde, ela decide voltar. Sua respiração pesa. O coração acelera, a garganta estanca. Quem deveria ser apenas mais uma conhecida a se evitar, torna-se o mais íntimo dos seres com quem ela já conviveu. A mesma roupa, o mesmo cenário. Um momento, até então fictício, transmutado em existência. Uma pintura viva. Um homem se aproxima. Envolve a garota desenhada sob um braço gordo e segura o seu queixo, forçando sua boca contra a dele. O sorriso dela já não é mais tão grande. Mas ela continua lá. Ambas. A garota das suas pinturas e ela. Durante todo o tempo em que esteve observando, ela a vê tentar ir embora seis vezes. Na sétima, o homem a segura pelo queixo mais uma vez e força sua língua grande dentro da boca dela, revirando-a três vezes antes de libertá-la. Em seguida, entrega um maço de dinheiro, que a garota logo esconde no casaco. Ela segue a garota através de lugares desconhecidos, mas que ela já pintara antes, até descobrir o prédio onde a menina vive. Ela corre até a sua própria casa, arranca a ôrtese, mune-se de lápis e de uma tela em branco. A dor suprimida, o foco, o transe e o medo. E mais nada. Uma arte quase sem sentimento 66
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próprio. Quase sem espírito. Uma quase-obra. Quando ela desperta do seu vazio, o cenário que ela pintou é de um chão de madeira escura. O busto da garota desenhada chora ao redor de notas espalhadas. Um por um, ela ajeita todos os quadros da garota na parede oposta a da cama. Deita-se os observa. Volta até eles e troca dois de lugar. Uma olheira mais escura. Uma pequena marca. Expressões. Olhares. Cada detalhe que ela encontra é uma nova troca de posições. Até que, por fim, ela tem uma parede de quadros em ordem cronológica. As quase-obras, juntas, formam um todo. A deterioração física de uma garota. Os últimos quadros, mesmo aqueles em que ela ainda sorri, não são iguais aos primeiros. Ela não dorme. Mesmo que quisesse não conseguiria. Caminha pela casa, ouve o som dos poucos carros que cruzam a noite na madrugada, fazendo a claridade dos faróis percorrerem o forro através dos vãos da persiana. Ouve música até a playlist começar a repetir. A noite se arrasta, e, no escuro, ela acompanha as luzes nas janelas dos prédios vizinhos apagando. Na manhã, os olhos ardem e lutam para manter o foco. Uma olhada no relógio. Ela se veste. Seus passos agora tem destino. Do outro lado da rua, fica invisível por algumas horas. Aguardando na frente do prédio que ela nunca viu, mas que conhece muito bem. A casa da garota desenhada. A espera se estende até à tarde, quando decide voltar para seu apartamento. Remédios, sono, massa instantânea, café e lápis. Persianas fechadas. Ela prefere o quarto com pouca iluminação. A mão dolorida se move por conta própria. A garota toma forma. Ela nota que há mais branco do que era de se esperar. Não apenas ao redor, mas também no tom pálido da pele. Um hospital. Uma maca. Os olhos entreabertos. Ela larga o lápis. O que aconteceu? Por quê? Ela se veste, volta até a casa da garota. Pergunta por ela na portaria. Descobre o hospital, mas não a deixam entrar. Alguns familiares informam que a garota do desenho está em estado grave. Desnorteada, ela caminha por ruas distantes. Tudo passa 67
ainda mais rápido. Uma garrafa de vodka em uma sacola de
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plástico a acompanham. Em casa, ela derruba alguns quadros. Joga a garrafa quase vazia em um canto. Arruma a tela no cavalete da melhor maneira que consegue. Tenta manter a mão firme, mas a tela gira rápido demais. Ela grita. O mais alto que pode. E então, desliga. A mão se move com raiva e medo, mas o sentimento que se desprende não é o dela. As lágrimas quase não deixam que enxergue o que está fazendo, ainda assim, a mão continua. Move-se ágil, firme, cheia de dor. A tela mostra a boca da garota aberta. Olhos revirados em um rosto sem vida. Ela grita. Derruba o quadro. Ajoelha-se. As unhas arranham o chão, como se buscasse algo em que se agarrar. Abraçada às próprias pernas, dorme. Não sabe quanto tempo permaneceu ali deitada. Levanta-se com dores no corpo inteiro, coloca o quadro final ao lado dos outros. Uma miríade de cores e rostos que morriam lentamente até culminar na última pintura, como uma estrela cadente branca seguida de uma longa cauda multicolorida de retratos em uma gradação de tons. Ela senta na cama. Esfregando a mão, por um momento, sente vontade de arrancá-la. Olha para a sua obra formada por múltiplas telas e, chorando, percebe que uma ideia lhe invade com uma força que não será capaz de controlar. Ela corre até a pia, joga água gelada no pulso e nos cabelos. Volta para o cavalete. Apoia uma tela nova e, em prantos, percebe que se desligou mais uma vez. A mão se move. E a tinta agora é negra. Ela tenta se afastar, mas não consegue. A pintura continua. A noite toma conta do quarto. Ela não vê nada, mas continua. As lágrimas secam no rosto. Ela limpa o nariz com a manga da camisola. Os riscos continuam mesmo na total escuridão. Todo seu corpo vibra, os ligamentos do pulso doem a ponto de a mão ficar dormente. Ela segura-se no cavalete tentando manter-se firme, enquanto o lápis se move sem parar. Ela grita por socorro, mas consegue no máximo um chiado rouco, sem forças. Sente o próprio corpo caindo contra o encosto da cadeira. O som do lápis contra o chão. A mão estremece. O pulso enrijecido. Um carro passa lá fora. A breve visão do quadro a faz gemer. Um urro de deses68
pero que a faz queimar toda a energia que lhe resta.
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Na tela, criaturas riem ao fundo da cena, sorrisos largos e olhares de julgamento, olhos rubros lacrimejantes, árvores abrem-se em um manguezal. O luar, como uma cicatriz negra, perfura o manto celeste vermelho pulsante. No centro de tudo, em um lago de piche, a garota vaga em desespero. Seu pálido corpo branco, um fantasma esquelético do que fora, agoniza, uivando através de uma boca cujos dentes foram arrancados, lutando para respirar pelo furo que uma vez fora um nariz, rasgando com as unhas o escalpo onde antes existiram cabelos enquanto lágrimas sanguíneas escorrem ferventes dos seus olhos, a ponto de evaporarem em filetes de fumaça negra. Ela acorda de novo. A luz da manhã invadindo. Lá está o quadro. Um monstro. Uma aberração parada no meio da sua casa. Ela retira do cavalete e o coloca ao lado dos outros, cobrindo-o com um pano sujo de tinta. Na cozinha, prepara o café da manhã. Um barulho de chave na porta. Alguém entra. Era ele, com os outros caras. Mais uma vez, ele pergunta o que tem de novo. Morde um pedaço do sanduiche dela. Sorri. Deixa pacotes com remédios e comida. Ele olha os quadros e fica maravilhado. Retira o pano da monstruosidade final e o admira, extasiado, por vários segundos. Manda os caras embrulharem tudo. Dá um beijo na testa dela e larga em cima da mesa um maço de dinheiro, que ela pega e guarda no casaco. Ele vai embora satisfeito. Ela caminha até a sala, agora vazia. O dinheiro cai no chão. E ela também.
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Abigail Lamara Disconzi Depois de cem anos com o mesmo homem, Abigail se apaixonou novamente. Seu primeiro amor era proibido. Eles se encontravam à noite, longe dos olhos atentos da vila. Às vezes passavam semanas sem se ver. Para sanar a saudade, ela presenteou o amado com um retrato seu, que acabou sendo sua ruína. O retrato fora encontrado e o casal exposto. Abigail defendeu sua paixão com fervor. Era capaz de qualquer coisa por ele. Era capaz de morrer por ele. E assim aconteceu. Ele não reagiu da mesma forma. Não assumiu o romance. Na verdade, negou qualquer envolvimento voluntário, acusando a amante de ter feito uso de forças sobrenaturais para conquistá-lo. Mesmo sabendo que se tratava de uma mentira, o amor cego atrapalhou seu julgamento e Abigail confessou pelo crime que não cometeu. E acabou indo para a forca. Mas Abigail não se foi. Decidiu que ficaria perto do amado da maneira que fosse. Mas logo sentiu que não bastava apenas estar próxima, precisava que ele estivesse junto dela. Afinal, ele era a causa de seu destino, portanto lhe parecia justo que se casassem. Não importava que ele nunca tivesse verdadeiramente correspondido seu amor. Importava ter ele ao seu lado. Por fim, Abigail conseguiu o que por tanto tempo desejara. Fez dele seu esposo. Finalmente estavam juntos. Os primeiros anos passaram rápido. Passaram feito as pessoas que eles viram crescer, envelhecer e morrer. Mudaram de cômodo uma, duas, três vezes. Iam da sala, para o corredor, para o quarto de hóspedes, de volta para sala. Ganhavam olhares enviesados e comentários maldosos. Mas ninguém tinha coragem de se livrar deles. Quem poderia saber o que aconteceria se o fizessem? E assim, o casal foi deixado em paz, geração após geração. 70
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O amor que Abigail acreditava que seria eterno, todavia, começou a desaparecer. Já não via mais o amado com os mesmos olhos. Não lhe parecia mais tão interessante, tão bonito, tão sedutor. Tudo que antes lhe parecia encantador, agora a irritava. Além disso, estava ficando velho. Não fisicamente, claro, mas por dentro. Cada dia ele se tornava mais rabugento, mais tedioso, mais chorão. Ralhava com ela sem emitir sons, chorava sem derramar lágrimas, se exasperava sem mover músculos. Ela revirava tanto os olhos que ficou estrábica. Passou a considerar se havia feito um bom negócio ao dar sua eternidade por ele. Foi quando decidiu que o trocaria por outro. Passou um tempo procurando alguém por quem valesse à pena trocar. Seria mais categórica dessa vez. Não mais se basearia em algo tão volátil quanto a paixão. Estava mais experiente, mais propensa a tomar uma decisão que lhe favorecesse a longo prazo. Criou uma lista de exigências. O escolhido precisava ser bonito, pois ela passaria muito tempo olhando para ele. Precisava ser engraçado, pois queria alguém que finalmente a fizesse rir. Precisava ser gentil, pois estava cansada das brigas e das acusações. Enfim encontrou. Um rapaz jovem, de aparência saudável, bochechas rosadas. Não que isso fosse fazer diferença. Cores não tinham a menor importância. Importava que ele tinha uma risada bonita e era muito educado. Que tratava bem as outras pessoas da casa e era paciente. Que tinha um coração bom e era bem-humorado. Que era culto e sabia contar histórias. Estava decidido. Faria dele seu novo marido. Abigail ainda levou mais um tempo tentando lembrar como havia feito da primeira vez. Tentava de todas as formas e nada acontecia. Tinha algo a ver com a posição da lua? Seria necessário ingredientes? Alguma planta, uma raiz talvez? Temeu perder o rapaz de vista e ser obrigada a ficar com o chorão grosseiro. Já começava a se desesperar. Então lembrou. Precisava de velas. Logo veio uma tempestade, que trouxe raios, que cortaram aquela tal eletricidade, que deixou tudo escuro, que obri71
gou a mulher da casa a acender os candelabros.
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Precisava de fogo. A tempestade também trouxe um vento frio. As pessoas da casa não demoraram a colocar lenha na lareira para queimar. Precisava de música. Sem nada para fazer no escuro, a criança da casa teve uma vontade súbita de tocar piano. Precisava do sangue. O vento derrubou um lampião no caminho do novo amor de Abigail. Ele pisou no vidro quebrado e seu pé sangrou. Um dia depois caiu de cama. Dois dias depois teve uma convulsão e morreu. Três dias depois apareceu ao lado de Abigail no retrato.
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Religare Fred Linardi Foi sem amor ou romantismo algum que decidi vir a Paris. Vim com espírito livre e aliviado, após anos que não passaram de um grito mudo. Se há algo de bom no meu caso é que esta é a minha primeira vez aqui, de maneira que não tenho a desvantagem da comparação. Vim comemorar o fim do meu casamento, em busca do oposto do que vivi nos últimos anos. Minha decisão pelo divórcio e minha a ideia de fazer essa viagem foi uma surpresa até para os mais próximos. Sou calado em matéria de confidências e outras ladainhas amorosas. Fujo de rodinhas assim e, quando são inevitáveis, prefiro me calar. Isso me constrange. Mas ontem vivenciei um oposto inesperado. O oposto da morte do matrimônio era passar uns dias em Paris, pensei. Vim só, mas em busca do prazer de estar só. Na verdade, também vim à procura deste prazer luxurioso. Não estou falando de turismo sexual, algo que me causa nojo mesmo sem saber direito o que é. Não vim fazer nada que beire o ilícito, mas não conseguiria realizar o que tinha em mente perto de olhos de amigos ou de conhecidos em comum, ou nos limites da minha cidade. Conheço gente que terminou uma relação sólida no tempo e no espaço e já se concedeu o direito de viver o que bem entendesse, com quem bem entendesse. Noites de bebida e sexo, a despeito de um passado tão presente. Sem jeito para essas coisas, preferi fazê-las num lugar distante. Paris é fria e tenho desconfiança de lugares assim. Para encontrar alguém como eu, que compartilhasse do mesmo desejo fugaz, cheguei a ir a cafés e boates. Saunas e casas de strip-tease nunca me agradaram, mas cheguei a cogitá-las. De qualquer maneira, antes de qualquer decisão, eu precisava de um lugar para me hospedar. Se a minha geração ganhou uma década na escala etária social, considerei que meus 40 anos equivalem aos 30. Assim, caberia me vestir como um jovem em busca do mundo. Ao invés de um hotel, cedi à sugestão de 73
um colega do escritório. Aluguei o apartamento de um velho
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conhecido seu, o professor Maurice, que havia herdado o imóvel de seus pais no sexto distrito. Após a morte da mãe, uma fotógrafa chamada Augustine Le Roux, Maurice passara uma temporada por lá, até ser chamado para lecionar filosofia em Montreal. O apartamento, mantido como sempre fora, se tornou uma inútil joia num silencioso museu, de modo que Maurice decidiu anunciá-lo para conhecidos ou pessoas que julgasse de confiança. Por trinta euros a diária, eu passaria as três semanas lá, absorto em minha própria vida e pelos móveis e objetos de arte da família Le Roux. Pequenas esculturas, belas pinturas e um autêntico Sandy Calder pendurado na divisão entre a sala de jantar e a de estar. No que sobrara de parede, protagonizavam fotos de cenas do interior da França com suas paisagens e pessoas em preto e branco. Situações cotidianas do passado que perduram na vida que segue, do mesmo jeito. Plantadores de morangos, colhedores de damascos, médicos familiares, jornaleiros, professoras do primário que ensinam palavras que não entendo para aquelas crianças que hoje envelhecem como eu. Para as fotos familiares, no entanto, a fotógrafa havia escolhido o limitado espaço que envolve a moldura dos porta-retratos, distribuídos sobre mesas de centro e de canto. Família Le Roux ao longo das décadas. Turistas na Holanda, Inglaterra, Suécia, Egito, Rússia, e na própria cidade, que lhes dava o Jardim de Luxemburgo como quintal. O casamento de Augustine e Georges – o nome dele eu ouviria naquela mesma noite. De todas as imagens, a que interessa agora é a fotografia do quarto separado para mim. A exceção de todas é um retrato familiar enquadrado e pregado na parede da cabeceira da cama, uma ampliação do tamanho de um pequeno pôster, na posição vertical. O casal ainda jovem, diante da porta deste mesmo prédio. Entrada e adornos idênticos à fachada de pedras claras. Ao ver a imagem pela primeira vez, imaginei que estivessem comemorando a mudança para o apartamento novo, a casa que haviam escolhido para formar uma família. O registro em preto e branco seria a constante alegria de uma vida nova. O casal com um sorriso eterno observava a nova movimentação em sua casa. A ausência do filho trocada pela 74
presença de pessoas estranhas.
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Ao voltar correndo de uma chuva no fim da tarde de ontem, cheguei cansado e precisando de um banho para me aquecer e talvez me revigorar para outro passeio mais tarde. Quem sabe simplesmente sair para mais um dos cafés e, depois um cigarro à margem do Sena, ou numa escadaria qualquer, esperando que algo acontecesse, mesmo sem estar num filme do Woody Allen. Ou que nada acontecesse, como se estivesse num filme francês, porque não é preciso acontecer nada numa cidade que já é o próprio acontecimento. Eu caminhava querendo acreditar numa coisa ou na outra. Voltei para o apartamento ainda com alguma esperança, que deu espaço a desagradáveis tonturas e suores durante o banho quente. Minha visão perdeu a nitidez. Segurei com a mão esquerda o trilho que dá suporte à ducha. Com a outra, me apoiei na torneira e fiquei assim até recobrar o equilíbrio e sair dali para o quarto num momento seguro. Respirei tranquilo, certo de que tudo estava em ordem, exceto pela presença da moça e do jovem, Augustine e Georges, que me observavam. Ele, ao meu lado direito; ela, ao esquerdo, ainda na distância dos meus pés. Elegantes como nas fotos em preto e branco, olhavam para mim em cores, com curiosidade e afeto, como eu fosse um forasteiro, uma alma abandonada, salva do perigo das ruas. O casal translúcido apresentava-se tal qual aquele da imagem sobre minha cabeceira. Não faltava jovialidade. Companheiros que ainda pareciam ser, o doce sorriso dela, ao encontro da cumplicidade dele, invejavam a minha condição pelo simples fato de eu estar vivo, composto daquilo que eles não tinham mais. Eles já sabiam o que nós ainda não sabemos. Esses mundos tão opostos são mais complementares do que podemos pensar. A vida e a morte, o amor e a raiva, a carne e o espírito. Os dois se sentaram perto dos meus pés. Ela, enquanto apoiava a mão esquerda na minha perna, foi até ele e deu-lhe um beijo no pescoço, de modo que ficaram mais nítidos e concretos. Ela sussurrou o nome de Georges e, apesar de eu não entender aquela língua, soube que as palavras celebravam a vida. Sorrindo para mim, ele fez um gesto para que eu fechasse 75
os olhos. Assim o fiz e senti que outras portas se abriram. Co-
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mungariam os corpos deles através do meu. Se o oposto complementar da luz é a escuridão, essa dualidade se fez mais complexa diante daqueles corpos que se encontravam tendo o meu como condutor. Perdi o ar, sufocado não só pela sensação de entrar num lugar de onde não saberia se conseguiria sair, e em quais condições eu sairia. Naquele espaço da vida e da morte, sequer tinha ideia se eu precisaria respirar. Meu corpo, envolvido por eles, era também aquele que envolvia os dois espíritos, na urgência incompreensível de um lugar onde não se conta o tempo. Ofegantes, encontravam o meu desespero por fazer parte de uma festa na qual eu não havia pedido para entrar. No encontro de dois espíritos junto ao meu corpo, meu entendimento já não era o bastante. Minha matéria, essa que contorna a alma, no entanto, sentia, mas minha mente não compreendia o que poderia ser de fato, pois o fato é este que vemos, concreto e palpável. O ritmo dos batimentos cardíacos se triplicou. Senti como seu eu abrigasse mais duas bocas, que se espalhavam e se moviam pelo meu corpo inteiro. Meus pensamentos no tórax, minhas pernas envolvendo meu pescoço. Até que, na profusão de membros, dos quais os meus pareciam estar amordaçados nos primeiros minutos, eu já não sabia mais quais pertenciam a mim. Foi quando todo meu senso de autoproteção se esvaiu, pairando em planos que não este, terreno e tão cheio de dores, ameaças e humilhações. Como ponte entre um e outro, que não se tocavam diretamente, não perdi minha lucidez por um instante que fosse, e senti minhas terminações nervosas ainda mais aguçadas. Pois com os olhos fechados, eu tudo via; e, além do corpo exclusivamente carne, eu me entregava ao etéreo. Eu tinha ali o meu papel. Cumprindo-o, não havia mais diferenças ou opostos entre nós. As horas que se passaram me trouxeram mais do que o simples desfecho que se espera – o que, de fato, aconteceu em três gemidos complementares. Olhando para mim, ainda de forma terna, os dois entendiam o que eu sentia, como se eu não fosse o primeiro corpo usado por eles desta forma. Meu peito estava preenchido de gratidão pura, aquela difícil de alcançar, pois há séculos vem sido maculada pela culpa humana. A gra76
tidão por ter encontrado naquela tríade a santidade da luxúria,
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vivenciada pelos pais vindos da morte e concedida pelo filho, que havia aberto seu apartamento sem saber o que acontecia na cama que também já havia sido sua. Ergui-me do colchão e me sentei, pleno de algo que suspeito ser amor, o que me trouxe angústia. Augustine interrompeu o suspiro de Georges, sorrindo para a fotografia sobre a cama. Virei-me também para o quadro do casal. Permaneciam lá, felizes por uma intensa conquista terrena e como cores que agora eu já conhecia. Ela, de vestido florido e chapéu de feltro, segurando na altura do peito um maço de margaridas brancas; ele, terno marrom, camisa verde musgo, sapatos lustrados. Seus braços – os mesmos que, no começo seguraram os meus com força dominadora –, envolviam o ventre dela, que acabara de se descolar das minhas vísceras; os dois em sorrisos verdadeiros. Virei-me de novo para frente e naquela mesma cama já não havia mais ninguém além de mim.
Muitos dos prazeres físicos que se manifestam se-
gundo a segundo no mundo todo, em especial nesta cidade, só vim conhecer ontem à noite, graças a eles. Outros prazeres, reservados ao mundo que tanto tememos, agora sei estarem à nossa espreita, dentro destes que tentam um fugaz reencontro, prontos para nos mostrar que, em outras dimensões, podemos mais, tanto em carne quanto em alma. Passei a tarde de hoje nesta sala, olhando de novo este mundo em retratos a minha volta. Sinto ainda um leve cheiro de éter exalar da minha pele, e tento decidir o que fazer na última noite de viagem. Meus desejos também conhecem as fronteiras da escolha entre ficar aqui à espera, ou sair para uma caminhada mais longa, rumo aos portões do Père-Lachaise e às centenas de almas a nos olhar e nos escolher através dos seus pequenos relicários.
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A quinta madrugada Leonardo Wittmann Foi um ruído estridente e desconhecido que o acordou naquela madrugada. S. era um aficionado por literatura, principalmente a norte-americana. Seu trabalho, embora muitos achassem o contrário, o deixava bastante satisfeito: era dono de uma pequena livraria (sempre organizada, sempre limpa) em Montmartre. Todas as manhãs, S. levantava, tomava uma ducha, vestia-se com seu estilo habitual – uma combinação um tanto destoante de jeans, blusão quadriculado, blazer e tênis esportivo –, comia torradas e pegava o metrô. S. era (ou ainda é, dependendo do seu estado atual), além de aficionado, um profundo conhecedor de literatura. Nunca desejou ser escritor, pois o prazer do texto lhe era, sempre, o principal em um livro. Considerava que a escrita de ficção causava um arrefecimento (e certa desilusão) em qualquer narrativa que fosse ler posteriormente. Tinha feito a sua escolha, e assim estava satisfeito. S. tinha uma ajudante duas vezes por semana, nos dias de trabalho braçal mais pesado (que consistia em rearranjar as estantes, trocar os livros em destaque ou apenas tirar o pó). Chamava-se Sophie e concluía seu mestrado com uma dissertação sobre Paul Auster. Embora fosse muito simpática e dedicada, S. não conseguia deixar de pensar que, sim, ela permanecia naquele trabalho apenas por causa dele, fosse por amizade ou por um afeto maior. Após o final do expediente (fechava a livraria às 19h), S. ligava para seu amigo Marcel, um funcionário público e amigo de infância, para saber se ele aceitava tomar uma cerveja e, eventualmente, assistir ao jogo do PSG. O amigo, na maioria das vezes, aceitava o convite. Tendo saído com Marcel ou não, S. chegava em casa por volta da meia-noite. 78
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Não há muito o que dizer sobre os pais de S., exceto, talvez, o que foi extraído do seu diário1 pelos agentes do bureau2. A mãe era uma professora de química aposentada. Depois de deixar o colégio em que lecionou por trinta e dois anos, dedicou-se, em tempo integral, a pintar, desenhar e esculpir em um pequeno atelier que alugou a três quadras de casa. O pai de S., depois de uma longa carreira como guia turístico, se especializou em romances históricos, que lia, de acordo com o filho, em escala industrial. Por que confiou em mim, e não em pessoas mais próximas – como Marcel, Sophie ou seus pais –, ainda me intriga. Disse ser um grande fã do meu trabalho, principalmente de A paz em Yurght3, que considerava o grande expoente da ficção científica europeia dos últimos quinze anos. Um exagero, é claro. *** Aqui seguem, de acordo com o relato que me deu, os acontecimentos cruciais para a mutação de S. Um estranho ruído o acordou durante cinco madrugadas, quase sempre às três da manhã. Um som estridente, que começava baixo e depois aumentava gradualmente, até se estabilizar. S., apesar disso, não sentia desconforto físico ou mental. As dores de cabeça vinham quando o ruído se encerrava (perto das seis horas da manhã), e desapareciam duas horas depois. Durante os primeiros incidentes, S. perambulava confuso pelo apartamento. Abria a janela, tentava ouvir o tal ruído na rua, no corredor do prédio ou mesmo em algum aparelho eletrônico. Mas, na terceira madrugada, percebeu que aquele som vinha diretamente da sua cabeça, sendo ele o seu único receptor. Por algum motivo, decidiu não contar a ninguém sobre o ocorrido. Na quinta madrugada, saiu para caminhar por Paris. O ruído pareceu diminuir no início do trajeto. Alguns minutos depois, entretanto, quando se aproximou de Montmartre, o desconforto veio com estridência total, numa elevação que S. ainda não tinha experimentado. Ele correu, com as roupas já ensopadas de suor, até a livraria. Ao encarar a fachada do lo-
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1 O referido diário, embora estraçalhado e um tanto rasurado, foi recomposto por peritos do bureau após ser encontrado nos subterrâneos parisienses. (N. do E.) 2 O nome do bureau, bem como o de seus representantes, permanece em sigilo absoluto. (N. do E.) 3 Livro vencedor do Nebula de 2017, considerado, ao lado do Hugo, como um dos prêmios mais importantes da ficção científica mundial. (N. do E.)
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cal, o ruído já havia lhe tomado quase todas as forças e, S. tinha certeza, o chamava lá para dentro. Ao entrar, derrubou alguns livros perto do caixa e outros encostados na estante. S. se ajoelhou no chão para tentar recobrar o fôlego. Quando levantou a cabeça, viu um estranho vulto parado no fundo da livraria. S. tentou se colocar de pé, mas o desgaste físico, combinado com a dor de cabeça, o impediu. O vulto se aproximou aos poucos, e de maneira um tanto curiosa: o desconhecido parecia se arrastar ao invés de andar, como se as suas pernas se fundissem com o chão e o tornassem trôpego. Quando ficou cara a cara com o invasor, S. conseguiu distinguir apenas dois detalhes antes de desmaiar: o manto preto puído que o estranho trazia ao redor do corpo, e as aparentes descargas elétricas que vinham do peito e das mãos – as únicas partes que a figura deixava a descoberto. *** S. abriu os olhos em sua cama, na manhã seguinte. Tinha certeza de que o encontro com o invasor fora real. Levantou cambaleante e, ao encarar o espelho do banheiro, percebeu pequenas fagulhas elétricas em seus olhos. Aguardou mais algumas horas, aterrorizado, até decidir verificar a livraria. Não encontrou nenhum sinal de arrombamento ou do estranho: moveu estantes, procurou possíveis alçapões, portas secretas, verificou as janelas – nada4. S., sabendo que meu apartamento não era longe, resolveu me procurar. Devido ao seu descontrole e apreensão, o recebi de imediato. Precisou de quase quarenta minutos para dizer uma palavra e, quando o fez, explicou-me o sucedido em fragmentos, muitas vezes num discurso não linear, que precisei juntar mais tarde. Não soube o que lhe aconselhar. Ele disse que naquela situação, ainda pouco crível, a polícia e a imprensa nada poderiam fazer. Foi apenas quando se despediu, algumas horas depois e ainda bastante nervoso, que percebi as fagulhas elétricas em seus olhos5. S. perguntou se agora eu acreditava. Sim, respondi, e completei: “Você pode me procurar a qualquer momento”.
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4 O bureau realizou uma busca metódica na livraria de S., mas o resultado em nada auxiliou as investigações. (N. do E.) 5 O autor é, até o momento, a única testemunha a ver S. no referido – e ainda não confirmado – estado físico. (N. do E.).
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O seu declínio já era evidente quando voltamos a nos encontrar, uma semana depois: caminhava de forma um tanto desengonçada e vestia luvas para esconder as mãos. Agora, os braços e o peito também emitiam fagulhas de eletricidade. S. disse que o seu rosto, em breve, teria as mesmas características. Procurei, em vão, dissuadi-lo da ideia de abandonar a vida na superfície. Pediu que eu entregasse uma carta para Sophie, onde dava uma explicação (não verdadeira, é claro) sobre o seu afastamento. *** Foi um erro deixá-lo ir embora. Quando decidi procurá-lo, já era tarde: desaparecera por completo. Um mês após o nosso último encontro, dois representantes do bureau me prestaram uma visita. Exigiram sigilo total. Um deles disse que caçavam um homem, que o caçavam há vários anos. “Que homem?”, perguntei. “Não é bem um homem”, um deles respondeu. “Sabe de algum comportamento anormal do senhor S.?” Expliquei que falara com ele apenas uma vez, em sua livraria, e que, mais tarde, viera me procurar bastante transtornado. Os dois agentes me encararam. Um deles mostrou o diário de S. e me pediu que o lesse ali mesmo. “O senhor S. não lhe comentou nada sobre os acontecimentos aqui descritos?” “Apenas uma parte”, respondi. Os agentes se foram duas horas depois. Pensei muito em S. nos dias seguintes, em como tudo aquilo parecia um enredo de ficção científica de classe B, ou um filme de terror do mesmo escalão. Decidi ir até a rua em que ele passara a infância (não me dissera o número da casa, apenas a sua localização). Depois de algumas horas perambulando por ali, vi dois outros agentes do bureau saindo de uma casa ao longe. Pela janela, distingui um senhor e uma senhora sentados à mesa da cozinha, sorumbáticos: eram os pais de S. Não quis importuná-los, então fui embora. A escrita de O declínio de Yurgth estagnou. À editora, disse apenas que passava por um momento pessoal turbulento e que não entregaria o livro dentro do prazo. A situação de S., e tudo o que ele pode estar sofrendo desde que desapareceu, impede a minha concentração em qualquer outro assunto. Ele me pediu por conselhos e ajuda, mas, até agora, eu pouco ou 81
nada fiz.
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Em certa noite da semana passada6, quando voltava de uma mostra dos filmes de John Carpenter (fui, não por motivação genuína, mas por insistência de um amigo), percebi um homem, vestido com algo semelhante a uma longa túnica preta esfarrapada, me observando do outro lado da rua. Eu sabia não se tratar de um ladrão ou mendigo, mas, sim, do invasor que S. tinha encontrado em sua livraria. Quando o procurava com o canto dos olhos, para evitar qualquer ataque surpresa ou perseguição, ele se embrenhava na escuridão do beco às suas costas. Tomei aquilo como uma advertência, e não saí mais à noite desde então. Hoje, enquanto preparava o jantar e ouvia a chuva caindo no telhado, resolvi espiar a situação da rua logo abaixo, provavelmente inundada devido ao acúmulo de lixo nos bueiros. Abri a cortina. Na esquina, olhando em minha direção, estava o homem de manto preto. Minha primeira reação foi a de fechar a cortina, mas me contive. Encarei o estranho. Permanecemos ali por alguns minutos, nos desafiando, até ele seguir em frente e desaparecer do meu campo de visão. A chuva amenizou logo depois. Ainda intranquilo, deixei a louça secando perto da pia e peguei alguns livros, jogados na minha mesa, para recolocá-los na estante. Ouvi uma respiração leve e aguda vindo de trás da porta. Me virei: uma luz azulada entrava por debaixo dela. O estranho estava do outro lado. Para evitar qualquer possível ataque frontal, fui para a lateral da sala, ainda com os livros na mão. Aos poucos, a apreensão deu lugar à raiva e, num ímpeto, joguei os livros contra a porta. Nenhuma reação poderia ter sido mais cômica, mas era o que me restava. Eu sabia que o estranho permanecia estático, apenas aguardando o momento de um possível ataque. A respiração aguda e a luz azulada, entretanto, diminuíram de súbito, como se ele tivesse se tele-transportado dali. Fiquei mais duas horas de pé, olhando em volta, sempre com a certeza de me deparar com o intruso dentro do apartamento. *** Não posso negar um pedido de ajuda. Mesmo que essa 82
6 De acordo com a programação da mostra “John Carpenter: o terror e a criatividade no cinema independente”, o dia exato seria 02/10/2019. (N. do. E.)
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decisão se mostre mais tarde equivocada, vou procurar S. nos subterrâneos. Não contatei o bureau, pois desconheço as suas reais intenções e questiono a sua honestidade. Lá embaixo, em algum lugar, talvez eu encontre o meu amigo. Estas são, por enquanto, as minhas últimas linhas7.
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7 O autor, até o momento, é dado como desaparecido. A existência de mutantes elétricos, vivendo nos subterrâneos de Paris, não foi confirmada por nenhuma autoridade. (N. do E.)
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A morte de Gregor Samsa Stefanie Medeiros I Ariel, como em todos os outros dias, acordou querendo não estar acordada. Apertou o botão da soneca três vezes até se convencer de que, sim, tinha que levantar. A única parte aconchegante de seu quarto era a cama. O resto do cômodo estava um caos de caixas de papelão, roupas, sapatos, livros espalhados entre a mesa, a estante e o chão, cremes e cosméticos desordenados pelo banheiro. Em resumo, o quarto de alguém que havia chegado há pouco tempo. Mas, tratando-se de Ariel, sabemos que ela já estava acomodada há três semanas, sem ter se dado o trabalho de organizar seus pertences. Ainda embaixo do edredom, mesmo com os perfeitos 28 graus lá fora, Ariel olhava em volta, as sobrancelhas franzidas, levemente confusa, talvez um pouco assustada. Começou a olhar com mais urgência, agora querendo levantar, mas sem ter a coragem para tanto. Mas afinal de contas... -Que diabos é essa voz? II Segurando uma raquete de tênis em uma das mãos e carregando o sentimento de impotência por todo o corpo, Ariel olhava seu entorno, apreensiva. - É sério, muito engraçada a brincadeira, mas já deu! Pode aparecer, seja lá quem for! Mas ninguém aparecia. Ariel estava começando a questionar: Será que estou acordada? Será que isso é um sonho lúcido, daqueles em que a pessoa sabe que está sonhando? Mas eu não sei se estou sonhando ou não. Em que universo é real uma pessoa acordar com um narrador? Talvez naquele filme... mas aqui? 84
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- Em nenhum! Isso não é normal. Se for você, Helena, saiba que isso não tem graça! No fundo, Ariel sabia que não era Helena. A voz era diferente. E no mais, como a amiga leria seus pensamentos com tanta propriedade? Respirando fundo três vezes, esperando que partículas de coragem atravessassem seus pulmões e atingissem o seu sangue, Ariel deu mais um passo. Alguma coisa lhe dizia para checar o banheiro, embora seu medo de sair sangrando daquele cubículo fosse grande. Mais um passo, mais outro, o ranger da porta, o olhar escaneando cada centímetro a frente. Então, o grito, a raquete no chão, o dedinho na quina da porta, o passo descoordenado para trás, a queda. Não era um narrador, não era Helena, não era nem sequer uma pessoa. Apesar do pânico, Ariel não pode deixar de fazer a seguinte associação: um inseto monstruoso, ventre marrom, dividido por nervuras arqueadas, antenas que movimentavam-se furiosamente, numerosas pernas... - Não vai me dizer que você é realmente o Gregor Samsa. É claro que eu não diria tal coisa. Meu tamanho era o mesmo de uma barata comum, tudo em mim era dolorosamente ordinário. - Exceto a capacidade de falar. Exceto a capacidade de narrar. Ariel, lembrando-se de súbito do seu pavor, esqueceu-se da dor no dedinho, levantou-se com rapidez e bateu a porta antes que aquela monstruosidade saísse voando. - Isso só pode ser um sonho. Não era um sonho. III O relógio marcava nove horas. Ariel já estava atrasada para a aula. Seu mindinho do pé esquerdo sangrava e estava vermelho. Como é que uma barata falante chamada Gregor Samsa de repente acordou narrando sua vida?, perguntou-se Ariel. Mas a verdade é que a barata já estava acordada há horas e não tinha nome. No entanto, somente o pensamento da palavra “barata” causava-lhe arrepios, então de agora em 85
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diante aquele ser mutante seria chamado de Gregor Samsa, Gregor Samsa, Gregor Samsa. Nove e vinte. O atraso era irremediável. A primeira parte da aula já estava perdida. - Se você fosse embora, eu conseguiria chegar na segunda parte e assinar a lista. Então Ariel franziu a testa, como que saindo de seu corpo e olhando para si mesma, encontrou-se em uma situação ridícula. Estaria mesmo ela negociando com uma... com um Gregor Samsa? - Meu Deus. Meu Deus, de fato. Ariel sabia muito bem que eu, Gregor, não iria a lugar algum. Culpou-se também por não ter comprado o veneno na primeira semana. Como pode ser tão desprevenida? Ah, quem precisa de banho, não é mesmo? -Eu preciso, mas parece que não tenho muita opção! E com isto, Ariel ignorou seu dedinho sangrento e dirigiu-se ao guarda-roupas, onde várias caixas estavam espremidas. Onde é que estava a caixas de camisetas? -Humm, onde é que estava? No topo da montanha de caixas. -Ah, sim. Ariel ficou na ponta dos pés para alcançar a caixa. Apesar do tamanho, ela sabia que a caixa estava leve, com algumas poucas camisetas amassadas no interior. O que ela havia esquecido, no entanto, é que a poeira acumulada já era abundante a esta altura. Coberta de pó, a caixa aberta caída sob seus pés, Ariel colocou as duas mãos na cabeça, irritada, furiosa. Quem dera estivesse em casa, em sua verdadeira casa, assim alguém resolveria seu problema em menos de cinco minutos. Mas este caos era seu lar agora e não havia ninguém além de si mesma para resolver qualquer obstáculo que aparecesse em sua frente. Mesmo um medo infantil de... - Com licença, mas fobia é uma doença! Exceto que Ariel não tinha fobia de baratas. Tinha um medo socialmente inserido em sua personalidade, que, no entanto, não impedia diálogos, pequenos surtos de raiva e, no momento, um olhar assassino com uma resolução renovada: 86
Gregor Samsa tinha de morrer.
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- Gregor Samsa vai morrer. Era isto que Ariel pensava. - Não, não. Era isto que Ariel sabia. IV Quantas coisas cabem em um conto? Quantas almas mortas enterradas nos livros espalhados entre a mesa, a estante e o chão estão presentes nas pequenas linhas? Embaixo de uma pilha de obras, com as páginas manchadas por respingos de café, Ariel avistou seu exemplar de “A Metamorfose”. A verdade é que nunca havia lido aquele livro. Comprou-o na livraria, colocou embaixo do braço e foi até um café. Pediu um espresso e ficou mexendo no celular o tempo inteiro enquanto o livro, fechado, marcava presença na mesa. Por um descuido, o café caiu, manchando parte das páginas. Quando reconta esta história, Ariel também omite o fato de que o café era no meio de um shopping center. Nada romântico, nada poético. - Pode filosofar o quanto quiser, isso vai acontecer. “Isso”. A morte. Não era ela a principal causa de todas as divagações sobre a vida? - Não. Mas na verdade era. Ariel tomou fôlego mais vezes do que conseguia contar. Que arrependimento era não ter comprado o veneno! Mas e... - E se eu for comprar o veneno agora? Coberta de poeira, lá fora não estava nem frio para disfarçar o pijama com um sobretudo. Ariel, no entanto, estava decidida. A mão enfraquecia toda vez que fazia menção de aproximar-se do banheiro. Em duas tentativas, a raquete escorregou. E, no mais, teria que jogar a raquete fora depois que meus pedaços estivessem grudados na rede de acrílico. -Argh. De fato, argh. Uma morte dolorosa, porém rápida e digna. Mas não era isso que me esperava. A covardia já havia se apossado de Ariel, que, de pijamas e coberta de poeira, saiu do quarto resoluta, deixando a pobre barata falando sozinha, pensando que o fim estava próximo. 87
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V O veneno estava em mãos. A coragem, porém, teimava em não aparecer. - Você podia simplesmente ir embora e nenhum de nós precisava passar por isto. Ah, fosse a vida tão simples! Eu podia ir embora, decerto. Mas não demoraria que Gregor Samsa voltasse, se não eu, um outro qualquer, menos gentil, mais ousado e sem medo de voar. Porque a verdade é que o medo não cobre apenas os seus ossos, mas preenche cada fibra do meu exoesqueleto. - Pelo amor de Deus... Ariel fechou os olhos, segurando a lata de veneno com força. Ela então destravou o lacre e apertou o botão. A nuvem de veneno saiu da lata, impiedosa e potente. Tudo o que faltava agora era a coragem de abrir a porta. Um rangido incômodo depois e lá estava ela. - Você pode ir embora. Eu podia ir embora, mas não mexi um centímetro do meu corpo. Minhas antenas estavam frenéticas, a presença de Ariel palpável. Da soleira da porta, ela olhou para mim. Estávamos frente a frente, o coração de Ariel acelerado. - Eu não quero fazer isso. Eu não quero que você faça, mas algumas coisas são como são. Temos escolhas, mas muitas vezes escolhemos o que já estava escolhido para nós. Ariel deu um passo para a frente, com medo de que eu fosse abrir as asas e tornar aquela situação pior do que já era. Ela precisava chegar mais perto, mais dois ou três passos. Não me movi. Queria ela estar em casa, onde não precisaria resolver esse problema pessoalmente. Mais um passo. Eu era um problema? Era apenas uma barata, dificilmente uma monstruosidade, sem chance nenhuma de machucá-la. Mais um passo. Agora era o suficiente. A narração chegava ao fim e, com a nuvem de veneno, o fim tornava-se cada vez mais visível, palpável. Eu não era um problema. Eu podia ir embora, mas Gregor Samsa voltaria, fosse ele eu ou outro. Eu não era um problema, nem um obstáculo... O veneno atingiu meu corpo, senti o impacto da nuvem... 88
e agora não podia mais saber onde estava Ariel, onde eu esta-
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va, caído, contorcendo, por quanto tempo? Não lembro quanto tempo, não sei. Ariel estava em algum lugar, eu não sabia, mas sentia que ela olhava. Eu podia ter ido embora, podia ter morrido mais rápido com uma chinelada, mas a coragem não se apresenta por inteiro, às vezes nem pela metade. Eu não era um problema, eu não era um problema, eu não era um problema. Era um rito de passagem.
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A Invocacao Lucas Gelati - Tá, mas o quê que isso faz?, pergunta Antônio ao atendente do brechó. - Cara, já te falei, o tio do meu amigo faz brinquedos e deixou esse baú aí, mas não faço ideia de como essas geringonças funcionam. Nem sei se elas funcionam mesmo, o cara é meio lunático. - Mano, você nem sabe se a mercadoria que tá vendendo funciona… isso é meio escroto. - Cinco pila. - Fechado. Vou levar a camisa havaiana também. - Essa tá vinte. - Poxa. Antônio leva o brinquedo para a casa de seu sobrinho, Alexandre, ou Xandi para os íntimos. Com quase dois de idade, ele já sabe falar um punhado de palavras e umas frases simples. Na última vez que ele o viu, um “tio, brinquedo” foi como um ultimato para ele levar um presente na próxima visita. Ele olha para o que comprou. A caixa de madeira cheia de desenhos com uma manivela sugeria: 1. Aqueles brinquedos terríveis de onde sai um palhaço ao girar a manivela, que dão calafrios nele até hoje; ou 2. Uma caixa musical, que é o que ele espera que seja, e mais provável, sendo que ele ouviu umas notas soltas saindo da caixa ao sacudi-la. A manivela, porém, mostrou-se inútil para a produção de qualquer música. Ele chega em frente da casa da irmã e aperta a campainha, que toca uma melodia clássica de forma meio tosca. Renata sai pela porta da frente e arregala os olhos. - Guri, que crime ao bom gosto é esse que você tá usando? - Não resisti mana, tinha que estar decente pra te ver hoje. - Se esse era seu objetivo errou feio, caramba! Entra aí. A casa dela é grande, e no primeiro andar há uma sala enorme com alguns brinquedos espalhados no chão. Xandi ob90
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viamente está na cozinha brincando com um conjunto de medidores. - Oi tio! – grita a criança ao vê-lo, mas não chega mais perto. - E aí garotão, toca aqui! – Xandi parece não se importar e o deixa parado lá. - Tô ensinando ele a não cair nas tuas piadas de tiozão. - Renata, que propósito teu filho vai ter, se não ser alvo das minhas piadas? Os dois conversam por alguns minutos, reclamam do primo que causou encrenca aquela semana, do tio que parou de beber (de novo), e o assunto chega no presente. - O que trouxe aí, será um presente, Xandi? – ao que Xandi dá atenção por dois segundos, depois se vira e corre pra sala. - É sim, deixa eu mostrar pra ele lá. – e os dois seguem a criança. Antônio tira a caixa de palhaço musical da sacola e mostra para Xandi. O brinquedo finalmente captura sua atenção e ele o rouba das mãos do tio. Ele pega na manivela e gira… o que falha em fazer aquilo que devia fazer (a menos que o objetivo fosse não fazer nada, o que nesse caso foi realizado com sucesso). - Droga, deve tá quebrado mesmo. Não devia ter comprado do brechó. - Pão duro. - responde Renata, com um olhar indignado. - Sou mesmo. Bom, acho que ele gostou mesmo assim. Eles olham para a criança, que continua atento ao brinquedo. Eles nunca sabem o que vai prender a atenção dele. - Ah, bro, você queria ver a coleção de moedas que o vô trouxe, né? Está lá em cima no meu quarto. - Verdade! Deve ter alguma coisa que eu ainda não tenha, vamos ver. Os dois sobem as escadas, e Renata dá uma última olhada em Xandi antes de perdê-lo de vista no segundo andar. Xandi continua com a caixa em suas mãos, se senta no chão de madeira e gira novamente a manivela, desta vez com mais força. Uma nota perdida é ouvida pela criança e pelo urso de pelúcia virado de bunda para cima perto dele. 91
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Ele gira de novo e duas notas agora são ouvidas, com sinais de uma terceira. Ele apoia a caixa no chão e gira com toda a velocidade que uma criança é capaz de fazer. A música que a caixa toca certamente não é aquela que foi feita para tocar. Há muitas notas dissonantes e aleatórias, soa mais como um free jazz do que uma melodia para crianças. Xandi não para de girar a manivela, indiferente às sombras que agora o cercam. Bilhetes e pequenos brinquedos começam a girar na sua volta, num ciclone apavorante. O urso de pelúcia começa a levitar em sua frente, lentamente virando sua bunda para trás e mostrando os botões dos seus olhos, enquanto a melodia cacofônica preenche a sala. O urso começa a tomar uma forma alternativa, seus membros explodem para os lados, um de cada vez, fazendo aquele som de gota d’água que fazemos com a boca. Revelam-se braços vermelhos e musculosos com garras afiadas e pernas de no mínimo dois metros com veias azuis saltadas. Por fim, o corpo diminuto do urso some e dá lugar a MYRKURO, O DESTUIDOR. Nisso, finalmente Xandi dá atenção para o que está acontecendo. Ele para a música e olha para MYRKURO, O DESTUIDOR, porém ele não tem nem dois anos de idade, e não faz ideia do perigo que criou para toda a humanidade. MYRKURO, O DESTUIDOR abre os olhos completamente negros e fala: “QUEM OUSA ACORDAR MYRKURO, O DESTUIDOR?” - Oi! Ele olha para baixo, procurando a origem do som de tom alto. Não conseguindo ver a pequena criança sentada do lado de seus pés, pergunta: - REVELE-SE, TOLO QUE TEVE A AUDÁCIA DE CHAMAR... - Sou Xandi – interrompe a criança. A raiva possui MYRKURO, O DESTUIDOR, que se abaixa e encontra a criança. Ele olha direto nos olhos de Xandi. - HUMANO, VOCÊ VAI SE ARREPENDER DE TER INTERROMPIDO O GRANDE, O PODEROSO, MYRK – e Xandi pega no nariz dele. A audácia, a estupidez! Myrkuro não consegue acreditar. 92
Ele se contém e analisa o humano, percebendo seu erro.
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- VOCÊ… Você é um humano bebê. Xandi dá uma risada. Como pode, como pode um simples infanto ter conseguido invocar o seu poder? Todos os passos a serem seguidos, todos os sacrifícios, a melodia de Byrjunenda, como… E sua atenção muda para o brinquedo. A caixa estava parada ao lado da criança. Myrkuro a pega, parecendo ridiculamente pequena em suas mãos. - Será? – E ele gira a manivela. Sons desconexos começam a sair da caixa. Não, não são a melodia de Byrjunenda, mas é perto. Será possível? - Humano bebê, onde você conseguiu este artefato? Xandi o olha com interesse, pensa bastante, olha para o brinquedo e responde: - Caixa. Ele para, incrédulo. E pela primeira vez, em toda a história desta dimensão e do domínio de Heima, ele, Myrkuro, ri. Enfim, ele se contém, e pensa: O que foi isso? O que este humano está causando em mim? - Não, pequeno Xandi, quero saber de onde este item peculiar saiu. Acredito que por um acidente do universo, esta caixa tocou uma melodia proibida, algo que nunca – e Xandi joga a caixa com tudo no chão. O fundo dela se abre e o mecanismo quebra por todo o piso de madeira. Myrkuro se assusta. Quanta audácia, quanta estupidez… quanta coragem! O pequeno humano não pensou duas vezes em destruir tal objeto peculiar, semelhante ao que tantos humanos antes dele matariam para conseguir, séculos atrás. - PORQUÊ, XANDI, PORQUÊ DESTRUIU ESTE OBJETO? Xandi olha para aquilo tudo, sem um pingo de remorso, e responde: - Porquê sim. Inacreditável. Imagine quanta escuridão existe em sua alma para realizar um ato desses? Ele não treme diante da presença de Myrkuro. Deve possuir um poder inimaginável. - Você me intriga, pequeno. A criança dá uma fungada, que faz com que o destruidor ria novamente. 93
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- Xandi, o Corajoso! Lembra a mim mesmo, antes de ter destruído minha primeira realidade. Os tolos, não acreditavam em mim, mas eu acredito em você. Um dia, será um grande destruidor! Xandi abraça Myrkuro, que não sabe como reagir. Um sentimento surge dentro de sua treva corpórea, algo novo. É afeto. - Gostei de você, Xandi. – e retribui o abraço. Antônio e Renata olham aterrorizados do fim da escada. Myrkuro finalmente os vê e fala: - Ah, olá, será que vocês estão precisando de uma babá?
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Catuaba Davi Boaventura Taiane Maria Bonita Este conto é uma homenagem ao grupo de estudos: Cartografias narrativas em língua portuguesa – redes, enredos e subjetividades.
Leonardo Wittmann acorda e olha suas mãos: ele não vai conseguir nunca explicar o porquê de estar com as luvas de goleiro: ele se levanta, ele está de pijama, calça as pantufas e sai do quarto, ele ainda está com as luvas na mão. É a sua casa, mas não parece sua casa, a casa está terrivelmente limpa e arrumada e ele é quem está sujo, não como se ele tivesse vomitado ou se mijado, ele está todo sujo de terra, é como se ele tivesse jogado futebol. Só que era um aniversário, porra. Em um terraço. De cimento. Oitavo andar. Não tinha nem bola no lugar. Ele retira as luvas e na mão direita tem uma frase escrita à caneta, ainda legível, apesar das letras meio apagadas por causa do suor: “aquele creminho pra passar na cara”. Leonardo Wittmann, obviamente, pensa em “Se Beber Não Case”, mas não tem nada a ver, e não tem nada a ver porque, além de ser uma situação cem por cento clichê, Leonardo Wittmann não bebe. Ele manda uma mensagem para Davi Boaventura: “velho, que foi que aconteceu ontem? Acabei de acordar e estava com minhas luvas de goleiro nas mãos”. Para o que Davi Boaventura responde: “cara, não faço a menor ideia do que aconteceu. Porque eu também acordei com umas luvas de goleiro na mão e Sarinha acabou de mandar mensagem dizendo que ela e Christian também acordaram assim”. Leonardo Wittmann tem certeza de que é mentira, deve ser mentira, só pode ser mentira, os três combinaram alguma história para o sacanear. Na verdade, eles já estão de brincadeira desde cedo, os três, ou os quatro, porque Julia Dantas também acaba de enviar uma mensagem de texto: “Leo, você deixou umas luvas de goleiro aqui em casa”. Mas isso não aconteceu, caramba. Ele não levou luva nenhuma. Ele saiu da 95
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festa, caminhou até o ponto de ônibus, pegou o último carro da linha, chegou em casa e dormiu. Nada de diferente. Não bebeu, não fumou, tudo tranquilo, beijou na boca uma colega e um colega e um cachorro, foi embora. Gabriel Bortulini ofereceu uma garrafa de catuaba, só que ele não bebeu. Ninguém bebeu a catuaba, aliás. Até onde ele sabe, Fred bebeu a garrafa inteira e depois escondeu a outra, que Taiane só encontrou por acaso no quarto de Julia quando foi acender um incenso para defumar Gabriela, porque Gabriela estava meio mal por causa de uma briga sua, parece que com Andrezza. Ele olha suas luvas, são as mesmas de sempre, as luvas que ele usa para jogar toda quarta-feira. Não existe nenhuma explicação para elas estarem em suas mãos fora de uma quarta-feira. Não existe nenhuma explicação para a terra no pijama, no rosto e nos braços. Leonardo Wittmann deixa as luvas na estante do quarto e vai tomar banho. Embaixo do chuveiro ele revira a memória atrás de um sentido para aquele início de dia. Veste a primeira coisa que encontra no guarda-roupa e vai para a casa de Davi Boaventura porque é brincadeira. Só pode ser brincadeira. E se não for brincadeira, alguma coisa muito séria deve ter acontecido entre a saída da festa e o pijama sujo de barro. Sarinha abre a porta da casa de Davi Boaventura e manda Leonardo Wittmann entrar. Ela não está com cara de quem está brincando sobre as luvas de goleiro. Ela está com cara de quem não joga futebol e acordou vestindo um par de luvas que não tem. Ela fala que os meninos estão no quarto com Taiane ao telefone. “Leo, a Tai disse que marte tá retrógrado e a lua tá fazendo um trígono com o sol e mercúrio nos signos de ar e isso talvez explique as luvas”, Davi Boaventura entra na sala ainda com o celular na mão. Leonardo Wittmann se pergunta o que marte tem a ver com futebol. Leonardo Wittmann não sabe o que é um trígono nos signos do ar e acha pouco provável que isso explique a situação. O interfone toca e é Julia Dantas quem chega com um par de luvas de goleiro embaixo do braço. Incrível, são as mesmas luvas que mais cedo Leonardo Wittmann deixou na estante de seu quarto. Ela lhe entrega as luvas e puxa uma conversa sobre 96
a fragilidade do ego masculino. Leonardo Wittmann sempre
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acha os apontamentos de Julia Dantas pertinentes, mas naquele momento ele não entende por que ela não esta se questionando de onde diabos surgiram àquelas luvas. Christian diz que Julia Dantas deveria escrever uma matéria para o jornal sobre o assunto, ao que Sarinha concorda empolgada e emenda que ela deveria mencionar também o cansaço de ser mulher. Julia Dantas diz que é uma ótima ideia e segue conversando com Sarinha sem se dirigir a Leonardo Wittmann e suas luvas de goleiro. Davi Boaventura dá pitacos lá do quarto enquanto procura uma música de Baiana System no Spotify. Leonardo Wittmann ainda não saiu do lado da porta, nem soltou seu novo par de luvas e o interfone toca mais uma vez. São Andrezza e Gabriela que chegam rindo como se o mal entendido entra as duas jamais tivesse acontecido. Andrezza traz um estoque de incensos de sálvia branca que ela e Gabriela acabaram de comprar. Gabriela acende uma das varetas e explica que Taiane disse que nas culturas ameríndias a sálvia branca é uma das plantas mais usadas para a limpeza energética. Gabriela começa a defumar a sala da casa de Davi Boaventura, mas não consegue lembrar ao certo das instruções de Taiane e prefere fincar a vareta acesa no vaso de uma das plantas de Davi Boaventura. Andrezza tira um par de luvas de uma sacola e entrega a Leonardo Wittmann: “Leo, acho que suas luvas ficaram no meio das minhas coisas”. Andrezza não ri ao entregar as luvas para Leonardo Wittmann. Ela age como se fosse a coisa mais natural do mundo entregar um par de luvas de goleiro a Leonardo Wittmann. Ela nem percebe que Leonardo Wittmann já segura um par de luvas nas mãos. Ela entrega as luvas e vai colocar um fardinho de cervejas para gelar na geladeira. Gabriela segue falando sobre a sálvia branca e a fumaça do incenso já toma conta do ambiente. Sarinha vai pedir para que Taiane a defume quando chegar. Christian liga para Gabriel Bortulini e pede para que ele traga mais um quilo de carne e um mate. Christian não toma chimarrão, mas sabe que Gabriel Bortulini vai trazer um mate de qualquer jeito. Fred chega no final da noite com duas garrafas de catuaba embaixo do braço. Esconde uma das garrafas no quarto de Davi Boaventura e coloca a outra no centro da mesa da sala. 97
Ninguém sabe por que Fred mantém o hábito de esconder gar-
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rafas de catuaba nos quartos alheios. Depois procura um copo na cozinha e descobre que Davi Boaventura só tem copos de 500 ml. Fred enche o copo amarelo de 500 ml com a selvagem. Esvazia uns dois dedos do copo no primeiro gole. Fred vai qualificar sua dissertação de mestrado em dois dias e precisa mais do que catuaba, ele precisa de abraços. Davi Boaventura insiste para que Leonardo Wittmann beba um gole da catuaba, mas Leonardo Wittmann não está com sede. Leonardo Wittmann nem bebe. A única coisa que Leonardo Wittmann quer é entender que merda está acontecendo ali, mas Leonardo Wittmann não entende. Leonardo Wittmann acorda e olha suas mãos: ele não vai conseguir nunca explicar o porquê de estar com as luvas de goleiro. Ele se levanta, ele está de pijama, calça as pantufas e sai do quarto, ele ainda está com as luvas na mão. Ele retira as luvas e na mão direita tem uma frase escrita à caneta, ainda legível, apesar das letras meio apagadas por causa do suor: “o mundo cada vez mais sofisticado e meu coração continua tão rudimentar quanto uma roda d’água”.
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TRAVESSA EM TRÊS TEMPOS Ano VII - Número 19 Periodicidade semestral ISSN 2318-3632 revistatravessa@gmail.com https://revistatravessa.wordpress.com/ 99 Facebook: /travessa.emtrestempos