Sumário: Carta de Manoel Joaquim de Souza ...............................................… 02 Um negócio de vinténs ........................................................................ 04 Depoimento de Maricota ...................................................................... 04 coDepoimento de Luizinho ....................................................................... 05
Uma Maria Maculada ....................................................................... 06 Depoimento de Policial Alcides ............................................................. 06 Depoimento de Tenente Rodrigues ............………...........…….…...……..... 07
Sobre a felicidade [im]pura ...………………......................................... 08 Depoimento de Carlos Alberto ...............................………...................... 08 Depoimentos de Rosa .....................……………………….....................…...... 09
Era de família ....................................................……..…........…….......... 10 Depoimento de Tia Abelaide ................................................................ 10 Depoimento de Tio Heitor .....................................................................11
E não diga que não avisei ................................................................... 12 Depoimento de Salgueiro ..................................................................... 12
Foi por pouco ....................................................................................... 13 Depoimento de Berenice ...................................................................... 13
Trez vinténs por um marido ............................................................... 14 Depoimento de Clarice ......................................................................... 14 Depoimento de Euclides .............................………...........…….…...……..... 15
De cama e vento ................................................................................. 16 Depoimento de Telma .......................................................................... 16 Depoimento de Maurinho ...........................………...........…….…...……..... 17
Editorial ............................................................................................... 18 Ficha Técnica ...................................................................................... 18
Carta de Manoel Joaquim de Souza
Rio de Janeiro, 22-2-923 Amigo Pias,
Desejo que esta te vá encontrar perfeitamente bom, assim como a toda a tua família etc. Pois eu ao fazer esta encontro-me bem de saúde assim como todos os rapazes dessa terra. Participo-te que entreguei a carta ao Carvalho, o que agradeceu. Estimei muito saber a tua vida atual, que passas nessa terra. Pois a minha é bonita, mas é um pouco atrapalhada. E perguntarás pelo quê? Eu te explico como meu maior amigo, que até hoje conheci. Em maio de 922 amei uma pequena, mas pouco tempo. Depois deixei-a porque os pais queriam que eu casasse. Mas casar só pela Polícia! Em 7 de setembro principiei a amar outra, até que breve a vou deixar. Em 12 de outubro de 922 principiei a amar outra, imagina fez hontem 130 dias, quer dizer 4 meses e dez dias pois Lucrecio peçote que nunca confesses nada a ninguém, mas tirei os trez vinténs dela! Aqui aplica-se o nome de cabaço. Hoje sinto o prazer ainda, mas ando com medo que até me doe o coração. Farei sempre tudo para não me casar. Mas aqui é perigoso. O Salgueiro conhece ela muito bem que ainda domingo dia 18 andei com éla mais ele na Quinta da Boa Vista aqui no Rio. Não dês piada a ninguém quando escrevas para aqui porque até hoje ainda ninguém sabe. Eu fui sempre um pouco guloso pela mulher apesar que só me dão prejuízo.
será um falatório imenso.
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Amigo Pias, peço-te como maior meu amigo que nada digas porque se aí o souberem
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Destes maiores segredos eu terei sempre o prazêr de enviar. Porque aí também sabíamos da vida um do outro. Lucrecio, desejo que sejas sempre victorioso nestas coisas [...].
Rio Caixa 1442 Desculpa peço e segrêdo De tudo que te enviar Guarda as cartas e tudo Até quando lá voltar.
Esta carta, apreendida pela Polícia na pensão onde morava Manoel Joaquim de Souza pouco depois de ter sido escrita por ele, estava por transformar-se numa evidência das mais incriminatórias contra o rapaz. Enquanto Manoel escrevia ao amigo, sua namorada, que trabalhava numa casa próxima à pensão, revelava á patroa, aos prantos, o segredo contido na carta. Assustada, a patroa mandou chamar o pai da moça, trabalhador da roça em Jacarepaguá, que imediatamente apresentou queixa à Policia. Manoel foi levado ao terceiro distrito policial, acusado de ter deflorado a menor. Confessou o crime e, três semanas mais tarde, casou-se com a vítima, Maria Imaculada Pereira.
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(Fonte: CAULFIELD, Sueann. A defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918 – 1940). SP: Unicamp, 2000.)
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Um negócio de vinténs No Rio de Janeiro da década de 20 os rapazes ansiavam em ser aqueles a roubar os trez vinténs das donzelas. É fácil concluir que o esporte de adrenalina da época era a sedução e conquista das estudantes dos colégios católicos. Eram elas as principais vítimas da lábia solta dos malandros, isto porque, achavam eles que as normalistas eram as raparigas mais castas do Rio de Janeiro. Pelo menos isso é o que eles achavam. O risco do malfeito era ser descoberto e ser levado ao matrimônio indesejado. Indesejado pelos rapazes e, muitas vezes, pelas donzelas também. O que as inocentes raparigas desejavam era viver sua juventude, sem que isso representasse a rígida defesa de sua castidade. Maria Imaculada era moça de família, pelo menos na frente de seus pais e da sociedade carioca; já na Quinta da Boa Vista os comentários a respeito da moça bem que poderiam ser outros. Era à Quinta da Boa Vista que os jovens iam para fazer aquilo que seus pais reprovariam. Diziam as más línguas que “O que acontece na Quinta, fica na Quinta”. E foi na Quinta que Manoel Joaquim conheceu Maria Imaculada e caiu de amores por ela. Na época a rapariga estava de chamego com o Clodoaldo, um amigo do Salgueiro. Mas o cara tinha fama de gostar de mulheres mais velhas, costumava dizer que “as raparigas podiam ficar com os vinténs que quisessem, pois o que ele gostava mesmo era de experiência”. Maria Imaculada estava inconformada, pois aquele tinha sido o primeiro homem a lhe dizer um não e tudo por conta dos vinténs que ela tinha mantido a tanto custo. Manoel Joaquim, que não era bobo, se ofereceu a ajudar Maria a conquistar o Clodoaldo. Dessa forma, ganhava a confiança da moça e tempo para conquistá-la. Pois se Maria Imaculada saísse liberando os vinténs, nem Clodoaldo negaria fogo por muito tempo. Florianópolis - Abril de 2012
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Depoimento de Maricota Andam dizendo por aí que o Manoel Joaquim era apaixonado por aquela bisca da Maria
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Imaculada. Aonde já se viu falar uma coisa dessas? O Maneca era gamado na minha pessoa e só queria saber da minha pessoa. Era aquela sem sal da Maria Imaculada que vivia correndo atrás do meu homem. Aliás, do meu homem e de mais meia dúzia deles. Também acho muito estranho o povo afirmar pelas esquinas que o Maneca teve de convencer a Maria a lhe entregar seus vinténs. Aquela lá nunca teve vintém nenhum, não me surpreenderia se eu descobrisse que ela já nasceu sem vintém. Desavergonhada! Depoimento transcrito por [M.B.]
Manoel Joaquim era diferente dos outros de sua idade: o que queria era encontrar uma bela dama para se casar e com ela construir uma família. Ele não se importava em colecionar raparigas, nem vinténs. Quando viu Maria Imaculada pensou que tinha encontrado a dona de seu coração, mas parece que ela não pensou o mesmo quando o viu. Então Manoel Joaquim decidiu que faria de tudo para tê-la ao seu lado e arquitetou seu plano mirabolante. Primeiro convenceu Maria Imaculada a lhe entregar os seus trez vinténs, pois se no final tudo desse errado ele já teria os vinténs e assim o pai da moça não lhe negaria a mão da filha. Para a moça disse que era de extrema importância que ela lhe entregasse os vinténs, pois Clodoaldo só ficaria com ela se ela não os tivesse mais. Foi um pouco trabalhoso convencê-la, mas no final Manoel conseguiu o que queria. Malfeito feito, instruiu Maria Imaculada a contar a sua patroa o ocorrido, “assim que Clodoaldo soubesse da novidade viria correndo a seu encontro” – foi o que ele lhe disse. Enquanto a moça fazia o que lhe foi pedido, Manoel Joaquim escrevia uma carta incriminatória e escondia em seu próprio quarto. Ele sabia que Dona Lisete, patroa de Maria Imaculada, mandaria chamar o pai da rapariga e esse chamaria a polícia. Maria Imaculada não queria saber de casar, ainda mais com o homem que tirou seus trez vinténs. Ela queria aproveitar suas tardes livres na Quinta da Boa Vista, flertar com alguns rapazes, se livrar dos seus vinténs, flertar com mais rapazes... somente uma ordem judicial faria com que ela se casasse com Manoel Joaquim, e foi exatamente isso que ele arranjou. E agora? Quem ousa dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração? Historieta narrada por Maria Bonita
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Depoimento de Luizinho Nem consigo contar as vezes que o Manoel Joaquim chegou aqui choramingando por conta daquela rapariga que ele andava saindo. Como é mesmo o nome dela? O cara tinha sido fisgado –
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foi o que eu disse pra ele na ocasião. Sabe! Quando um homem começa a pensar de mais numa mulher: meu amigo, não tem mais volta. Parece que o problema era que a rapariga estava enrabichada por outro. O Manoel ficava repetindo para si mesmo que iria conquistá-la e que o Clodoaldo iria ajudá-lo a fazer isso. Eu fiquei sem entender nada, ele e o Clodoaldo não se bicavam. Por que o Clodoaldo iria se meter nesse assunto? Mas parece que deu certo, esses dias o Manoel Joaquim voltou aqui pra me convidar pro casório. Depoimento transcrito por [M.B.]
Uma Maria maculada De Maria Imaculada até mulher casada, um pulo – de gato. Gato malandro e sem vergonha como aquele tal de Manoel. Eu sempre ficava quieta escutando dos amores de Maria, aquela menininha tola que gostava de um rapaz a lhe cortejar. Gabava-se de manter-se casta, mas não era nem um pouco pura. Saracoteava de um lado pra outro, andando pelas ruas como uma avezinha enérgica, balançando os cabelos com os dedos finos e rápidos, os olhos oblíquos disparando de um lado para o outro, como quem não perde um movimento ao seu redor. Tínhamos frequentado o mesmo colégio. Sendo ela mais nova, eu apenas a observava de longe com olhos de mocinha pra cima de uma moleca desvairada que ela era. Eu conhecia seu gênio brincalhão e seus maus hábitos de irritar freiras. Toda pequena desordem que podia causar, ela causava, e ria-se tolamente de qualquer coisa que deixasse os adultos enfurecidos. Por isso não me surpreendi quando sua vida amorosa virou caso de polícia, e na verdade até me regozijei com seu choro pela inconsequência. Onde já se viu moça direita ou com miolos sair por aí toda rebolado com um homem como Manoel Joaquim? Esse era outro que não me apetecia. De humor cafajeste e jeito de conquistador, seus hábitos me davam nos nervos. Gabou-se sem dizer palavra, apenas com o olhar, quando tirou de Maria os trez vinténs, como tivesse sido apenas uma presepada pra cima da moça. Não que ela valesse um vintém, creio até que sua virgindade era meramente a da carne, pois a alma daquela era tão suja que só aos becos poderia ser comparada. Eu, do meu lado, assisti a tudo sem dizer palavra. Tudo começou quando a mocinha principiou a ir à Quinta da Boa Vista – que de boa não tinha nada -, e contava de suas pequenas aventuras com risinhos entre suas amigas. Era difícil ser patroa daquelazinha. Um dia chegou a mim dizendo que estava desesperada. Que sua vida tinha acabado, que era uma tola – concordei mentalmente -, que deveria ter me ouvido, e todas essas outras coisas que meninas dizem quando recebem conselhos e não os acatam, só para se arrependerem mais tarde. Disse que tinha se dado ao desfrute e que agora estava pagando pela própria burrice. Não aguentou mais, irrompeu em choro, lágrimas aos borbotões. Eu não era muito dada a ter pena de meninas, mas quis ajudar a pobre.
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Depoimento de Policial Alcides Sim senhor! É comum isso virar caso de polícia. Essa juventude de hoje em dia não
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consegue conter os hormônios e nós somos chamados para resolver problemas que não deveriam ter saído das quatro paredes onde começaram. Já casei mais de dezena de filhas que sequer tinham meu sangue. No início eu ficava comovido com a choradeira das moçoilas, mas depois de um tempo isso vira rotina. É sempre a mesma desculpa: “ele me prometeu casamento”, “ele disse que me amava”, “ele era meu príncipe encantado”. E quem ainda acredita em príncipe encantado? No final, as que não conseguem a ajuda da polícia acabam sem marido e sem vinténs. Essa Maria Imaculada teve sorte de termos lhe conseguido um bom casamento. Depoimento transcrito por [M.B.]
ajudar a pobre. Disse então que contaria ao pai dela. Ao ouvir isso, ela se desesperou e chorou ainda mais, pedindo que eu por favor não fizesse aquilo, ela implorava, o rosto vermelho e verdadeiramente bonito transfigurado de horror, a perspectiva de ser forçada a casar tirando-lhe a pouca compostura que tinha. Era jovem, muito jovem, e agora eu me dava conta de como era linda, de como seus cabelos claros eram sedosos e como as mechas terminavam coroadas de cachos viçosos e macios. Toquei-lhe as bochechas rosadas, a pele de menina ainda, apertei-a contra o peito. Fiquei genuinamente sentida naquele momento, pensando no que essa menina armara para si mesma – mas também, difícil não cair na lábia de Manoel. Perguntei-lhe então por que ela aceitara dar-se ao rapaz e ela me disse que estava era querendo chamar a atenção de outro, fazendo-lhe ciúmes. Disse que Manoel não se contivera, e que na hora ela própria cedeu ao que o corpo lhe pedia. O outro rapaz nem um olhar lhe lançou, antes ou depois do ocorrido, e Manoel agora falava de casamento com a pobre. Ele de início não quisera se atar à menininha, mas depois de muito considerar – menina bonita, jovem, ele já tinha vivido o bastante, essas coisas todas de homem -, decidiu-se por se casar. Ora, contei logo ao pai da moça, depois de acalmá-la e explicar que a vida de casada era uma obrigação e um fardo de qualquer forma, e que era melhor para ela sair por cima como a mulher que laçou Manoel Joaquim de Souza. O ego se acendeu e ela me olhou com malícia. Eu tinha razão, disse, agora sem lágrimas nos olhos. Fui falar com seu pobre pai, que muito contrariado e irritado foi à polícia, que entrou no quarto do hotel de Manoel e pegou a carta incriminatória que escrevera a um caro amigo, contando-lhe sua mais nova aventura – não era, certamente, a primeira. Ambos os lados felizes, Manoel por ter laçado mocinha bonita e de dar inveja noutros marmanjos, Maria por ter sido maculada por um dos mais desejados homens da Quinta, voltei para casa como tivesse cumprido um dever. Pelo menos agora aquela menina não me dava mais prejuízo com falatórios e nem seria mais uma desregrada – aprenderia com a vida de casada o que é ser mulher. Eu, bem casada e direita, fui passar um café pra esperar pelo meu esposo, pensando em como aquela não era a última menina deflorada que acabava por virar mulher direita. Se bem que do jeitinho dela, era bem capaz de se separar. Credo!
Historieta narrada por Belo Mar. Florianópolis - Abril de 2012
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Depoimento de Tenente Rodrigues Se fosse filha minha, um casamento seria pouco para livrar a cara do matuto que a
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deflorou. Se fosse filha minha, esse tal de Manoel Joaquim ia passar a noite de núpcias no xadrez para aprender a não mexer com os vinténs de moça direita. Conheço os pais da Mariazinha e sei que deram educação direita para a filha deles, menina inocente e trabalhadeira desde criança. Não sei como aquele doce de menina foi se envolver com alguém como Manoel Joaquim. Aliás, se esse mal aconteceu, é certo que a culpa é do gatuno. Já ouvi falar desse sujeito, vive pela Quinta da Boa Vista fazendo proposta indecente às normalistas. Casamento? Casamento é o mínimo que o malandro deve a filha do meu compadre, sujeitinho como esse tem que viver no xilindró. Depoimento transcrito por [M.B.]
Sobre a felicidade [im]pura Conheci Mariazinha logo pequena. Todos que ficavam ao redor dela ou que transitavam pela casa - casa simplória, com menos de três quartos e bastante pequena, construída lentamente com o pouco que ganhava seu pai na roça - conseguiam ter os cinco sentidos atiçados ao perceber o quanto ela era e permaneceu sendo até a juventude de agora uma pequena encantadora, singela e delicada. Os cabelos graciosos saíam ondulados pelas raízes até abaixo dos ombros, os ombros pequenos na linha da cintura um tanto espartilhada, e os movimentos sensíveis de criatura que é moça frágil e mulher capaz de dar prejuízos aos homens. Puro perigo em forma de anjo. Pois que eu andei passeando com Maria pelos lados da Quinta da Boa Vista, ela e eu juntos a seu um tanto recente namorado: Manoel Joaquim, estudante, bonito e conquistador em seus 20 e poucos anos, morava em uma pensão amarela próxima à saleta onde Maria trabalhava sob as ordens de Dona Lisete. Essa Dona Lisete, aliás, que através dos seus olhos observadores e muito profundos, carregados pelas olheiras de acordar para passar café pro marido no meio da noite, que através desses olhos negros eu conseguia enxergar um quê de mulher que adivinha o que acontecerá, de mulher que cuidava de Maria e supunha um futuro bagunçado. E eu acertei sobre ela, e ela acertou sobre o futuro. Eu era muito amigo de Clodoaldo, o namorado antigo de Maria Imaculada. Ao que tudo me indicava, Maria era louca por ele, e por isso era capaz de qualquer coisa, inclusive macular sua alma pura e mentir ou seduzir qualquer outro contanto que em troca o ciúmes de Clodoaldo lhe visitasse trazendo flores vermelhas. E então, Manoel apareceu na história, e eu não me surpreendi tanto assim quando ela veio toda faceira, falando aos sussurros com medo dos mexericos, “veja, só, Salgueiro, pois arranjei alguém que me trará de volta o Clodoaldo! E ele Florianópolis - Abril de 2012
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Depoimento de Carlos Alberto Eu sei tudo o que aconteceu com o caso dos vinténs da Maria Imaculada, a verdade é que ela não deu vintém nenhum pra ninguém. Isso é a mais pura verdade, prova disso é que eu sou tipo unha e carne com o Clodoaldo e ele me contou tudo. Ele a Maria tiveram um caso passageiro, como eram todos os casos do Clodoaldo. Mas acontece que a Maria tava apaixonada e queria reatar a todo custo. Dizem que até contratou o tal do Manoel Joaquim para fazer lhe ciúmes, mas era tudo uma armação e o Clodo sabia disso. Pra se livrar da mocinha apaixonada, ele plantou uma carta incriminatória no quarto do Manoel, depois chamou a polícia. Com provas como aquela qualquer juiz mandaria o casório acontecer o mais rápido possível e Clodoaldo estaria livre da Imaculada para sempre. Depoimento transcrito por [M.B.]
ele disse que me ajuda, que sabe o que tenho de fazer, que me guiará pelo caminhozinho tortuoso que é ter de volta o amor de minha vida!”, e piscou os olhinhos oblíquos rapidamente, cheia de ilusões apaixonadas. Eu apenas suspirei, tentando manter a mente vazia. E então me sentei em minha cadeira de balanço, na varanda, em minha casa que de velha rangia e ficava do outro lado da rua da pensão. Eu ia de dentro da casa à varanda e da varanda pra dentro de casa, só esperava. Dali a algumas semanas aconteceria o rebuliço. Era Maria chorando no colo de Lisete, Lisete olhando pro céu e com o olhar até um tanto enternecido por Maria, fofocas e fofocas pelos cantos sobre uns tantos vinténs, e eu já sabia o que pensar. Dona Lisete contou tudo ao pai de Maria, e pela rua de terra batida, veio o homem correndo. Após sair da saleta, subiu as escadas da pensão amarela aos urros, e desceu com Manoel desesperado, aos pontapés, e gritava “Ah, que tu casas! Casas, sim! Que minha filha é pequena, é mulher e eu sei o quanto mulher é um perigo, mas é pequena, e tu casas!”. Sacudia violentamente a mão direita; só depois de reparar bem é que eu percebi que não era simplesmente um punho raivoso fechado, mas que segurava também uma carta - e essa carta confessava o crime de Manoel: ter roubado os trez vinténs de Maria. Ai ai ai, Maria... A bagunça ia trotando pela ruela e eu cheguei junto à Manoel Joaquim, tentando acalmar um pouco as gentes. O rapaz me olhou de revesgueio e piscou, eu bem que sabia que aquele rapaz amava a Maria! E Maria chorosa veio até meus braços, jogou-se em meu peito aos prantos, não sabendo direito se a perda da liberdade que valia trez vinténs. Ou se valia mais, ou se valia a pena o esquecimento do grande amor Clodoaldo. Três semanas depois o casório acontecia e eu vi a felicidade entrar na igreja vestindo o branco - que agora representava a pureza já inexistente. E Clodoaldo ao meu lado sussurrava “mas tu viste que linda a priminha de Maria, a tal de Rosa?”. Lisete ao meu lado soltou um riso abafado. Historieta narrada por Raio de Sol
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Depoimento de Rosa Conheci o Clodoaldo no casamento da minha prima Maria, alguém me disse que ela mais
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ele tinham sido namorados por um tempo, mas que tinha sido antes dela conhecer o noivo Manoel. Eu não acreditei muito não. Como um homem tão bonito como Clodoaldo foi se envolver com minha prima? Parece que a Maria se casou porque entregou indevidamente os vinténs dela. Será que meus tios não disseram para ela que vinténs é uma coisa que a gente só entrega depois do casamento? Quando Clodoaldo me fizer a corte vamos sempre sair acompanhados e ele só vai poder me beijar depois que o noivado for oficializado. Conversa sobre vinténs?! Só depois que a aliança estiver no meu dedo. Depoimento transcrito por [M.B.]
Era de família… Não era ontem o dia em que cantava à Lala nos meus braços? Hoje, ela já é Maria Imaculada de Souza. Não era a primavera passada ainda quando andei até a Paróquia, a da Imaculada Conceição, prometendo à Virgem o nome Dela no meu bebê se Ela, e ele, não me deixassem sem um pedido no altar? Nessa primavera, ela é quem subia ao altar, também com aquela mistura de desespero e alegria. E não foi há pouco que estava a apertar ao máximo aquele vestido branco para disfarçar a saliência de meu ventre? Nesses tempos, ela já lavava seus brancos lençóis de núpcias. Branco como o meu. O pai dela não era homem de posse, mas era homem de palavra. Não me desonrou, eu, (que parecia) mulher de família, ao saber da barriga: disse “sim” no altar, na frente da Virgem, e me prometeu vida digna. Vida digna e de virtude que sempre quis pra ela também. Porque, honestamente, honra e dignidade não foram bem minhas melhores virtudes quando “moça honesta”. Quando ele chegou contando o que aconteceu com Imaculada, e que providência ele tomou – não era espinhado, mas não deixaria que levasse a honra de sua filha assim, não, não. Não sem conseguir um casamento em troca. Honra dela, que por sinal, não deve ter pensado quando pensou “levar” a minha. O pensamento que eu sei que ele estava pensando – o do suposto nascimento prematuro de sua filha, do qual não falávamos – apenas pairou no ar como o silêncio que sucedeu. Nascimentos prematuros, pareciam ser comuns aqui em Jacarepaguá. Não me surpreenderia se logo Maria me noticiasse um. Mas melhor que no Rio de Janeiro, onde, diziam as- más virtudeem logo caíam na vida, porque os 08 desavergonhados Florianópolis Abrillínguas, de 2012as sem Travessa Três Tempos Ano III N° – Ed. Especial logo escapuliam. Se elas não escapulissem antes, como também acontecia.
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Depoimento de Tia Abelaide
Não me admirei nem um pouquinho quando soube que minha sobrinha Maria Imaculada iria se casar para evitar o falatório da cidade. Acho que interiormente eu já sabia que, mais cedo ou mais tarde, isso iria acontecer. Não que a Maria fosse de se dar ao desfrute com qualquer par de pernas que passasse por perto dela, mas todos sabiam que aquele Manoel Joaquim não valia nada. Sabiam também que a Maria arrastava uma asa para ele desde criancinha, em boa coisa é que não podia dar. Além do mais, Maria nasceu de 6 meses e você sabe o que isso quer dizer. Minha irmã e meu cunhado nunca comentaram nada sobre o nascimento prematuro de minha sobrinha, mas é fato que menina que nasce prematura tem propensão a usar o branco mais cedo do que o esperado. Depoimento transcrito por [M.B.]
Não me surpreenderia se logo Maria me noticiasse um. Mas melhor que no Rio de Janeiro, onde, diziam as más línguas, as sem virtude logo caíam na vida, porque os desavergonhados logo escapuliam. Se elas não escapulissem antes, como também acontecia. Mas sim, ela me surpreendeu. Era moça de família, de igreja. Levava jeito pro lar, doce que era, bonita que se tornou. Por isso logo foi chamada pra trabalhar na cidade. Não queria deixar, por mais que precisasse, sei como o povo de lá é, como os malandros de lá são. Não que eu não tivesse aproveitado a malandragem, não que aqui ela não existisse, e muito menos que toda menina doce da igreja fosse tão de família como parecia. Deu no que deu: minha Maria, agora moça da cidade, desonrada e na boca do povo! E casada. O que compensava o crime e o falatório. Soube eu me cuidar melhor. O pai dela não desconfiou, os outros não desconfiaram assim como não desconfiei do destino quando o vi pela primeira vez. Ele não era tão desavergonhado assim, tinha vinte anos feitos e já, quietamente, feito barulho suficiente. Será que pensou Maria como pensei de minha mãe, mais tola do que realmente era? Será que por acaso errei ao cumprir o acordo de silêncio entre mãe e filha? Ou será que ela era menos silenciosa do que pensava? Era de família então. Historieta narrada por Talia
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Depoimento de Tio Heitor Isso tudo é porque a fruta não cai longe do pé, quando a esposa de meu irmão pariu de 6
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minha família, achamos que minha cunhada tinha tido alguma complicação durante a gravidez.
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meses eu achei um pouco estranho. Mas meu irmão não falou nada sobre o assunto então eu, e a Mas quando eu fiquei sabendo do que aconteceu com a minha sobrinha Maria, eu soube qual tinha sido a tal complicação. Minha cunhada não devia ter casado de branco, assim como minha sobrinha provavelmente não deveria usá-lo também. O que eu tenho pra dizer é que minha sobrinha é feliz por ter encontrado um bom homem disposto a cuidar dela. Espero que seja um casamento feliz para a Maria, Imaculada. Depoimento transcrito por [M.B.]
E não diga que não avisei Meu amigo Manoel Joaquim de Souza, suspeito que os antigos, quando ainda era possível se comunicar, diriam algo mais sábio do que agora escrevo e certamente teriam um ditado popular para resumir o que agora escrevo. É a ansiedade que nos faz florear e criar novas palavras, uma poética forma de invalidar o valor daquilo que já existe. Não quero tomar muito do teu tempo. Serei breve: está alerta para o mistério do desejo e aos perigos de um doce e jovial beijo. A tentação anda à solta! Andar pelas beiradas é mais perigoso quando se anda com pequenas tentações. Digo, com as pequenas. És reconhecido como um sujeito namorador, disso já estás ficando careca de saber – literalmente. Não é segredo algum. Aliás, Carvalho, senhor de respeito, também está inteirado nas tuas andanças, Manoel Joaquim. Tua fama de mulherengo está atravessando mares e arrasando lares de pequenas senhoritas. É isso o que desejas? Falando em desejo, anda um falatório na vizinhança sobre um tal cigano chamado Melquíades – um sujeito de poucas palavras. Ele trouxe meia dúzia de invenções e um misterioso pergaminho que, ao que se tem dito, contém as verdades do universo. Cada dia ele vai à praça do centrinho e lê um trecho para os mortais que buscam a imortalidade pelo pecado capital e que almejam transcender para o outro lado do mundo que está escondido ou entendido de modo inverso. Aí vai um trecho: ‘’Mais vale um passarinho na mão do que dois voando.’’ Não quero ser alcoviteiro, Manoel. Longe disso! Mas quantos passarinhos tens e que não estão voando? Pias. - 07.02.923 Carta transcrita por L! .
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Depoimento de Salgueiro Eu sei que antes do malfeito feito o Pias andou escrevendo para o Manoel Joaquim lhe
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moralista, como costumava fazer quando os dois tinham alguma discussão. Toda vez era a mesma
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dando alguns conselhos. Como era esperado o Manoel jogou a carta fora e chamou o Pias de coisa, sempre que os argumentos do Manoel acabavam ele apelava chamando alguém de moralista. Era evidente que o caso do Manoel com a Maria Imaculada não iria acabar bem, a Maria é moça de família e todos sabiam o que o pai dela seria capaz para assegurar a sua honra perante a sociedade carioca. O fato é que ele não pode dizer que não foi avisado. Mas eu até acho que ele tem é sorte, a Maria é uma moça linda e direita – apesar dos pesares. Depoimento transcrito por [M.B.]
Foi por pouco... Dourados dias na Lapa, brilhantes noites na Quinta. Eles de branco, elas de vermelho. Eles, os chapéus, elas, as fitas. De dia, as fofocas da noite. De noite, os sonhos dos dias. Essas são minhas lembranças dos meus melhores anos. Ai que saudades deles! E delas! Não havia quem não conhecesse Clodoaldo Silveira. Ai, os batuques, os bailes, as rodas e os clubes! Que tanto originaram causos: e não poucas vezes atuei como principal neles. Mas um até hoje se destaca das memórias risonhas da juventude, dos risos das jovens que muito bem lembro: o de Maria Imaculada de Souza. Era uma mocinha meio sem sal, bonitinha, mas com jeito de tola das meninas do interior. Era doméstica e estava num baile, pela primeira vez – o que estampava nas bochechas pintadas – quando a conheci. Mostrou-se sem jeito, e continuou sem me chamar atenção nas próximas vezes que a via e percebia sua insinuação de mocinha. Atenção e algumas coisas a mais a qual preferia dar às mulheres, aquelas mais formosas e de experiência. E em troca da atenção recebia emoção: pular janelas, fugir de becos escuros ou se esconder nos matagais. Prendia um pouco mais de graça na vida; de graça e sem vida presa, de casado. Vida a qual ela, a Maria, encontrou com um conhecido do meu amigo, o Manoel. Como eu desconfiava, os trez vinténs que ela mantinha eram um preço alto pela liberdade de um homem. Acontece que só depois do casório, forçado – abençoada seja a Virgem por ter me livrado de um - fiquei sabendo pelas bandas da Quinta que essa tal queria mesmo era eu. Mais uma vez abençoados sejam os Céus, porque por pouco não caio na trama que o Salgueiro me confessou depois: Manoel tinha com ela um plano pra empurrá-la pra mim. Por alguma razão, talvez por culpa da patroa ou do arrependimento da moça, casou e a tramoia não se firmou: continuo solteiro, festeiro e apaixonado. Por ela, a vida. Historieta narrada por Talia
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Depoimento de Berenice Safado, cachorro, sem vergonha é isso que aquele Clodoaldo Silveira é. O matuto bem que acha que é o maior garanhão da Quinta da Boa Vista. Aliás, o ego dele deve achar que ele é o maior conquistador do estado do Rio de Janeiro. Tu acredita que depois que a Maria casou mais o Manuel, ele saiu por aí dizendo que ela tava interessa é nele e que tinha casado por conta de um plano mirabolante elaborado pelo Manoel Joaquim? Todo mundo sabe que a Maria só tinha olhos pro Manuel e que o Manoel só tinha olhos para Maria. Agora aquele machão de meia tigela fica tentando elevar o ego dele à custa da felicidade do recém-casal?! Eu fico muito braba com esse tipo de coisa, eu acho que nós mulheres tínhamos que nos unir para lutar contra malandros como esse Clodoaldo Silveira. Depoimento transcrito por [M.B.]
Trez vinténs por um marido Toda Quinta da Boa Vista, quiçá todo Rio de Janeiro, sabia que a Maria Imaculada era apaixonada no Manoel Joaquim desde a época de criança. Afinal de contas, ‘segredo’ era uma palavra desconhecida no vocabulário daquela menina. Os dois, ela e o Manoel, tinham crescido juntos em Jacarepaguá; eram o que se pode chamar de amigos de infância. Apesar de que Manoel nunca se acertou muito com a menina de trancinhas que vivia em seus calcanhares, isso porque ela contava para Deus e o mundo que seu sonho era casar de branco com o dito Manoel. Ele saiu de Jacarepaguá tão cedo lhe foi possível. Foi estudar em um colégio para rapazes, o que na época significava fazer escola de malandragem. Dos seus amigos era o mais moço, mas a idade não lhe impediu de ser um assíduo frequentador da Quinta e por conta disso foi um dos mais jovens a ganhar fama de conquistador. Ela continuou trançando os cabelos até que trocou os tramados das madeixas pelos pontos do bordado que começou a fazer para ajudar no orçamento da família. É verdade que era moça trabalhadeira, desde nova era assim, afinal de contas não era de uma família abastada. Gostava dos bordados e o crochê, mas ficou sabendo que a Dona Lisete estava precisando de alguém para auxiliá-la e decidiu partir de Jacarepaguá. Para a felicidade de Maria Imaculada a casa de Dona Lisete ficava próxima à pensão onde morava Manoel Joaquim. Já fazia mais de ano que os dois não se viam, mas o tempo não mudou os sentimentos da donzela apaixonada.
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Depoimento de Clarice Eu estava na casa da Dona Lisete quando a Maria lhe procurou para contar tudo o que tinha acontecido com o Manoel. É claro que eu não vi, nem ouvi a conversa, mas tem coisas que a gente não precisa ver para saber. Lembro que no dia a Maria chegou na casa da Dona Lisete com um sorrisinho estranho no rosto. Sabe! Nós duas trabalhávamos juntas e eu perguntei para ela qual era o motivo da alegria, foi quando ela disfarçou e disse que era riso de preocupação. Pareceu uma desculpa esfarrapada porque aquilo era riso de felicidade. As lágrimas vieram dos olhos dela subitamente – assim como o sorriso – e ela foi ter com a patroa. Lembro da Dona Lisete saindo da sala onde as duas conversavam com um olhar complacente e resmungando: “pobre garota”. Mas para mim aquela ali não tem nada de pobrezinha. Depoimento transcrito por [M.B.]
O fato é que a única coisa que não havia mudado em Maria Imaculada eram os seus sentimentos pelo matuto, já que Maria estava irreconhecível. De menina franzina passou a moça bonita e atraente, Manoel Joaquim já não lembrava mais de sua admiradora de infância, tampouco relacionou aquele mulherão com a pequena que lhe assustava com conversas de casamento quando morava em Jacarepaguá. Foi amor à primeira vista. Manoel – sem saber que a moça há anos ansiava em contrair matrimônio com a sua pessoa – passou a usar todos seus dotes de sedução para lhe fazer a corte. E Maria virou a pessoa mais sorridente e saltitante do Rio de Janeiro, mas dessa vez ela mostrou que aprendera a lição – guardou para si mesma os planos que tinha em mente. Não tardou para os dois engatarem num romance – que teria fim tão logo começou, já que Manoel não passava muito tempo com a mesma rapariga. Bom! Pelo menos era assim que Manoel pensava. Mas já tinham três meses de namoro e a moça ainda não tinha liberado os vinténs. E uma coisa que Manoel prezava eram vinténs. Por conta disso, resolveu dar mais tempo a rapariga, certo de que se ela não liberasse logo, terminaria o dito namoro. Se ela liberasse aproveitaria um pouco mais, antes de fazê-lo. Maria, que não era boba, só estava esperando o momento certo para lhe entregar seus trez vinténs. Apenas trez vinténs, um preço baixo para o prêmio que ela ia receber – assim ela pensava. Quando o grande dia chegou todos ficaram satisfeitos. Ele tinha conseguido seu objetivo e ela tinha feito sua barganha. Três dias depois contaria para Dona Lisete o que tinha acontecido e receberia sua recompensa. Três dias depois receberia seu noivo das mãos de um policial e seria feliz para sempre. Historieta narrada por Maria Bonita
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Depoimento de Euclides Até hoje eu sinceramente não acredito nessa história de que a Maria Imaculada liberou ou
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vinténs dela para o Manoel Joaquim. Não que a Maria fosse assim... uma santa. Mas é que o Manoel Joaquim de malandro só tinha a pose. O matuto vivia contando vantagem dos vinténs que tinha tirado por aí, mas a verdade é que ele mesmo não tinha perdido os dele. É verdade que a Maria Imaculada andava querendo se aquietar e arrumar um bom casamento, acho que ela armou para cima do pobre coitado. Mas se alguém tinha que entrar de branco naquela igreja, esse alguém era o Manoel Joaquim. Depoimento transcrito por [M.B.]
De cama e Vento Os sons das árvores e pessoas se confundiam ao ar livre. Não queria prestar atenção em nada, nem ninguém específico. Queria apenas sentir que todos caminhavam e respiravam e formavam um grupo que era indiferente às necessidades, amores, vontades uns dos outros. “Ele achou meu cabelo bonito, riu-se de minha inocência e me encantou. E agora cá estou eu, despida.” Sabia que queria aquele homem, e sabia o preço. Nunca fora mulher de se prender e nem tampouco de fazer nada que fosse pra lá dos limites do reversível. Consideravam-na boba e frívola, como eram as meninas daquela idade. A patroa não lhe dava muito crédito e, na verdade, nem suas amigas – essas apenas gostavam de ouvir suas histórias. Mas apesar de parecer uma pequena ave no meio de humanos odiosos e cheios de malícia, conhecia bem como funcionavam as articulações deles. Sabia que perder o que convencionalmente chamavam de trez vinténs lhe custaria um vestido branco e entrada numa igreja. Sabia também que lhe renderia também falatório. Mas também sabia que não seria a primeira e nem a última. O homem por quem se interessara não era, certamente, tão puro quanto ela. Sabia-se que era homem de muitos amores e aventuras, e na verdade temia que ele a odiasse depois que casassem. “Só que se ele já teve tantas mulheres talvez seja bom para ele que se assossegue!”, pensou com amargura.
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Depoimento de Telma Eu alugo quartos da pensão para estudantes. São ótimos quartos, bons demais para aquela
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rapaziada que vive na Quinta da Boa Vista, mas não tenho muita alternativa já que eles são o maior público nessa região. Já pensei em abrir outro negócio, mas o mais lucrativo ainda é o aluguel dos quartos. Por causa da pensão eu fico sabendo de tudo que acontece na Quinta, preferia não saber, mas... Agora andam falando do casamento da Maria Imaculada com o Manoel Joaquim. Alguns dizem que a moça foi enganada, na verdade ela deu, eu sei que deu! Deu sim, porque eu ouvi! O quarto do Manoel fica em cima do meu, infelizmente! Lembro-me da noite que ele levou a rapariga para lá, estava chovendo e ainda assim eu consegui ouvir os gritinhos abafados. Você pode imaginar como estavam as coisas lá por cima. Depoimento transcrito por [M.B.]
“Eu te amo” é frase fácil. Ela facilmente se desprende da boca, despejando-se sobre uma orelha molhada de saliva. É também frase perigosa. Tão curta e tão significativa. Representativa e letal. E, no entanto, sentia que devia dizê-lo. E não era de hoje. Quando encontrou-se com Manoel, à noite, depois de despedir-se da patroa desaprovadora, sentiu que devia dizer. E disse. Se ele sentia o mesmo, ela não sabia, mas ele sorriu, e levou-a para colchão de lençóis brancos. Quando deu por conta de si, estava nua. Rebentou-lhe no peito uma vontade que lhe parecia vagamente sua. Era como se uma nova moça tivesse submergido de seu ser e lhe tomado o corpo, agarrando-se ao homem sob ela com afinco, como se ele fosse algo vital para sua existência. Rugiu (um “ugh!” desesperado) e pôs-se a morder o travesseiro, na ânsia de dilacerar o ombro amigo, amante, branco do rapaz. Que carne! O vento continuava zunindo lá fora. Morta de lutar por cima dele e de confrontar quadris, jogou-se na cama e esperou que ele a atacasse. E ele atacou. Fez-se muda por uns momentos pra ouvir o que ele tinha a dizer "Posso senti-la pulsar." - e então o ouviu dar seu suspiro final, desabando sobre ela. As janelas mostravam uma chuva insistente que brigava com o vidro. Também o corpo dele pingava. Um vento frio fugia para dentro do quarto por entre as frestas ocultas da janela. Quisera ela que o dia fosse infinito. Como se nada tivesse acontecido, ergueu o vestido sobre si. Com as meias em seus lugares, foi para a rua, sorrindo. Historieta narrada por Belo Mar
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Depoimento de Maurinho A Dona Telma fala isso porque já faz anos que seu marido faleceu. Você sabe como as
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coisas funcionam não?! Depois de um tempo, a pessoa começa a imaginar coisa onde não existe. Talvez se ela arrumasse um novo namorado, ela não ouviria besteira a cada rangido de madeira que a velha pensão solta. Eu lembro da noite em que o Manoel e a Maria tiveram aqui – a Maria é toda pudica e todo mundo sabe disso, se ela foi pro quarto do Manoel é porque tinha um bom motivo. Os dois tinham ido passear na Quinta naquela semana e a Maria tinha a mania de tirar o calçado e caminhar na grama. Parece que num desses passeios ela pegou um bicho de pé, descobriram naquela tarde. Já parecia um furúnculo, o Manoel levou-a pra casa para tirar o bicho – foi por isso que Maria tava soltando gritinhos. Depoimento transcrito por [M.B.]
Editorial: Olá! Nós somos a Revista Travessa em Três Tempos. Ouve-se pelos corredores que o âmago desta idealização nasceu despretensiosamente, em blog, com o objetivo de três autores-amigos pass[e]arem pelos três tempos históricos, tendo a travessa como cenário, sem ser revisitada. De mais, “não sei, só sei que foi assim...” Hoje, somos um projeto de extensão do Laboratório de Imagem e Som da UDESC. Nos definem como revista histórico-literária e dizem que nosso objetivo é o entretenimento do público em geral ao brincar com as diferentes versões da história. Bem, concordamos com isso! Porque, como bem sabemos, na história não existe uma verdade, mas várias. E é por isso que a gente se propõe a colocar a imaginação – histórica ou não - pra funcionar e criar novas versões dos fatos trazidos prontos pelos documentos históricos. Assim, a revista se forma, com várias possibilidades para a história principal. Dizem que dá um bom resultado. Confira!
Ficha Técnica: Atenção! As historietas, depoimentos e nomes contidos nesse exemplar são todos fictícios. Documento Base: CAULFIELD, Sueann. A defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918 – 1940). SP: Unicamp, 2000.
Textos de Redatores: Ana Terra de Leon - Luccas Neves Stangler - Luiza Tonon – Taiane Santi Martins - Tainah Lunge
Ficha Técnica: Capa: Foto: Mariana Rotili Arte e design: Taiane Santi Martins Revisão: Luiza Tonon Edição e Diagramação: Taiane Santi Martins
Equipe Travessa em Três Tempos: Ana Terra de Leon - Luccas Neves Stangler Mariana Rotili – Luiza Tonon Taiane Santi Martins - Tainah Lunge Idealização: Taiane Santi Martins Apoio: Prof° Márcia Ramos de Oliveira Laboratório de Imagem e Som – LIS Orientação: Profa. Mariana Joffily
Endereço para contato: revistatravessa@gmail.com @revistatravessa http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com
Idealização: Taiane Santi Martins
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