Uma dança de esperança

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Sumário: Desenho do viajante Louis Choris ...................................................................... 02 Sobre a musicalidade afrocatarinense .............................................................. 03 Uma dança de esperança ................................................................................... 04 Depoimento de Kwame .......................................................................................... 04 Depoimento de Mikaia ........................................................................................... 05

Alcançando o céu

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Depoimento de Alika .............................................................................................. 06 Depoimento de Mamadou ............................………...........…….…...…….................... 07

Um mar sem fim .................................................................................................. 08 Depoimento de Leeza ............................................………........................................ 08 Depoimentos de Niara ............................................………………………..............…...... 09

Notas do subsolo ou o baile perfumado ............................................................. 10 Depoimento de Iana .............................................................................................. 10 Depoimento de Tenente Manoel ............................................................................11

Epifania de Dança .............................................................................................. 12 Depoimento de Simi ............................................................................................... 12 Depoimento de Ayo .............................……......................................…..…...……..... 13

O Tenente, a Música e a Guerra ................................................................. 14 Depoimento de Louis Choris ................................................................................... 14 Depoimento de Hasan ...................................................………...........…..…...……..... 15

No ritmo do tambor ........................................................................................... 16 Depoimento de Shaira ............................................................................................ 16 Depoimento de Rhama ..................................................………...........…..…...……..... 17

Editorial ............................................................................................................... 18 Como participar ................................................................................................... 18 Ficha Técnica ..................................................................................................... 18


Sobre o relado de Louis Choris:

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“O relato de Louis Choris, pintor e desenhista russo, em viagem a Santa Catarina, no ano de 1815 descreve os divertimentos dos cativos e libertos, situações interessantes para se perceber a musicalidade das populações de origem africana neste local. Essas informações nos dão margem a pensar não só as influências das práticas culturais de africanos e afrodescendentes nas manifestações da musica urbana brasileira do século XX, como as possibilidades de existência de uma musicalidade particularmente afrocatarinense. [...] Ainda que os elementos culturais das populações de matriz africana sejam brevemente citados no que poderíamos classificar como os primeiros registros historiográficos catarinenses, consegue-se compreender que os divertimentos, a dança e a música de cativos e libertos também faziam parte do dia a dia dos (então) desterrenses.”

Desenho do viajante Louis Choris, retratando as danças e as músicas em Santa Catarina no século XIX. Fonte: HARO, Martim Afonso Palma de. Ilha de Santa Catarina. Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX. Florianópolis, Editora Lunardelli, 1996.

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Sobre a musicalidade afrocatarinense: “Um negro e uma negra dançam sozinhos, muitas vezes ao som de um instrumento chamado “Carimba”, pelos portugueses (...). O homem que toca este instrumento serve-se de acompanhamento um canto que faz frequentemente correr lágrimas dos olhos dos negros, de maneira que se veem os negros dançando e chorando ao mesmo tempo”. (HARO, 1996: 243) “O rei ou o mestre do grupo dançante se destacava de todos os outros companheiros do baile pela estatura, as dimensões do corpo e os gestos. Como herói ele conduzia seu povo, que se reunia em círculo em torno dele. (...)Em lugar de músicos, havia um círculo de negros sentados ao chão em um canto e batiam com as mãos sobre uma pele de boi esticada sobre um toco de árvore – Este era o tambor. (...) Negros e negras, como foi dito, circundavam seu chefe e, conforme as habilidades dançavam no centro do círculo, fazendo os movimentos mais estranhos e peculiares; outros cantavam, ou melhor, emitiam alguns gritos africanos que eram incompreensíveis. Eles gingavam de uma maneira incomparável os quadris, girando-os horizontalmente em forma de círculo, enquanto que a parte superior do corpo permanecia quase que imóvel, equilibrando-se nas pernas que se movimentavam velozmente. O objetivo principal de tais danças consiste na representação de atos comuns da vida, por exemplo, da pesca, caça, guerra, etc”.(HARO, 1996: 169) “negro cativo não podia nem ao menos ser músico... por incrível que pareça, um jornal de 1866 reclamava contra a fundação de uma sociedade musical de homens de cor, à qual pertenciam alguns escravos. Nem era admissível, dizia a folha... escravo não tinha direitos (textual) – o que era sabido – e não poderia sair à rua depois do toque de recolher” (CABRAL, 1979: 388)

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Desenho do viajante Louis Choris e citações retiradas da dissertação de mestrado de Lisandra Barbosa Macedo: MACEDO, L.B. Ginga, Catarina: Manifestações do Samba em Florianópolis na década de 1930. Florianópolis, 2011. Dissertação de Mestrado. (História do Tempo Presente) Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2636

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Uma dança de esperança Shaira foi empurrada para o meio da roda, era sua vez de dançar. Levou alguns segundos para perceber que tinha saído de seu lugar e não conseguia distinguir ao certo o que a tinha colocado ali. Estava tão absorta em seus pensamentos que nem notara que era sua vez na roda – foi Alika que, com um empurrão, fez seu quadril ir em direção ao centro; mas isso ela não tinha visto. Os pensamentos de Shaira não demoraram mais que alguns segundos para voltarem ao lugar, esse também foi o tempo que Mamadou precisou para se juntar à parceira no centro da dança. Kwame tocava o carimba, enquanto os demais davam vida ao ritmo com suas vozes – cada uma com o sotaque de sua terra natal. Os dois dançavam como se não houvesse mais ninguém no mundo, como se seus corpos estivessem conectados de alguma forma. Foi quando Shaira avistou a caravela ancorada próximo à costa, e deixou que seus pensamentos fossem guiados novamente no ritmo das ondas que quebravam na praia; enquanto o corpo se movia automaticamente ao som do carimba. Fora um barco como aquele que a arrancara de sua terra natal e a trouxera pra o Brasil, uma viagem que ela se forçava inutilmente a esquecer. Mal conseguia contar o tempo que passou no sobre o mar praticamente sem água, sem comida, sem ar puro para respirar; não conseguia contar quantos irmãos a acompanhavam. Alguns falavam sua língua, outros falavam línguas que não lhe eram estranhas, já outros ela nem compreendia o que pronunciavam. Muitos, outrora, haviam sido seus inimigos, inimigos de seus pais, de sua família, inimigos de sua tribo – agora, jogados naquele navio, eram todos irmãos. Levados por contra gosto a uma terra nova.

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Depoimento de Kwame Sou conhecido como o mestre do tambor, por minhas mãos o carimba chora e ri. Sou eu quem guia o ritmo e a dança dos homens, alguns me chamam de rei. Talvez porque outrora fui rei de minha terra e meu povo. Mas desde que me trouxeram para cá comando apenas meus instrumentos, e o ritmo do corpo dos meus irmãos. Na dança fazemos nossas preces de uma vida melhor, as danças nos trazem de volta a liberdade, que as correntes amargamente nos roubam. Para você pode ser difícil de entender, mas a esperança é o que nos dá forças. Quando Shaira está no meio da roda, toda a África acompanha as voltas de seu quadril, ela nos leva de volta para a nossa terra. Os homens conseguem ver nas saias da dançarina as cores de seus países, as cores de suas casas. É! Certamente você não deve entender. Depoimento transcrito por [M.B]


Ninguém perguntou a Sharia se ela gostaria de ir, ninguém nem ao menos ouviu sua voz, nem a de sua mãe que baixinho recitava os cânticos de proteção de seus ancestrais. E de repente, Shaira lembrou-se de sua mãe e do todos os familiares que deixou em sua terra. Lembrou-se do sobrinho que estava pra nascer, e do querido avô que lhe contava histórias desde quando era criança. Lembrou-se de todos aqueles que ela podia chamar de família, e imaginou onde estariam. Também eles haviam sido trazidos para o Brasil? Sentiu um aperto no peito, o Brasil lhe ensinara a sentir saudades. Quando seus pensamentos iam ainda mais longe, em direção ao continente que havia deixado, Mamadou apertou forte seu quadril fazendo com que ela voltasse. Olhou para o rosto do homem a sua frente e por um momento se sentiu feliz novamente. Eles haviam se conhecido na terra nova, fazia pouco mais de um ano, e ela já o amava de todo o coração. Ao olhar para Mamadou, ela sentiu seu coração bater mais forte; num ritmo diferente, no ritmo do carimba. Foi como se seu corpo quisesse lhe mostrar que ainda existia força dentro dela, que ela ainda podia acreditar. Entregou-se de corpo e alma ao batuque, deixou que o som percorresse seu ser e lhe enchesse de esperança. Pensou em Mamadou ao seu lado, um companheiro no meio de tanta tristeza, pensou na família que um dia poderiam construir; pensou nos amigos que tinha feito naquela longa viagem, seus novos irmãos, seus companheiros de luta. Se foi trazida a força para uma terra nova, faria da terra um lugar de vida nova também. Enquanto dançava com o corpo junto ao de Mamadou, ela soube que apesar de sua condição, eles seriam felizes novamente. Uma lágrima escapou do olho e desceu pela bochecha e antes que Mamadou pudesse secá-la Shaira pensou no dia em voltariam a ser livres.

Historieta narrada por Maria Bonita Florianópolis - Junho de 2012

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Depoimento de Mikaia Já muitas primaveras se passaram desde que o kalunga me trouxe para esta terra de dor. As paisagens desta ilha enchem os olhos de beleza, mas só ajudam a amargar a boca daquele que um dia viu sua liberdade tomada. Não pense que sou uma velha amargurada meu filho, sou filha da mãe-terra e como ela sou cheia de vida e esperança. A mesma esperança que Mamadou compartilha com Shaira em suas danças no meio da roda, a maior parte das vezes contento-me em admirá-los, sua vontade de viver me dá forças. Mas hoje não, hoje é dia de adentrar a roda e mostrar que meus joelhos ainda aguentam bem o peso de meu corpo e meus quadris ainda sabem se mover ao ritmo do carimba. Hoje é dia de mostrar o que esta velha senhora ainda pode fazer. Depoimento transcrito por [M.B]


Alcançando o céu A lua observou por entre as frestas do casebre de madeira o mestre se remexendo por inteiro debaixo dos lençóis brancos rasgados. Ele sonhava um sonho de liberdade alcançada pelo mover rítmico do corpo, ao fundo os muitos amigos-irmãos compartilhavam o tambor entoando os cânticos da terra-mãe, as mãos batiam sobre a pele de boi esticada e a música nascia como se fosse fruto de apenas um ser com uma dúzia de braços, os corações se agigantavam, o sangue pulsando pelas veias e artérias acompanhando a cadência, os gritos das mulheres que dançavam começavam baixos e logo se elevavam aos céus coloridos de laranja, amarelo e roxo do nascente. As almas também se elevavam, o mestre conseguia enxergá-las por causa dos raios do sol que passavam por elas e formavam prismas multicoloridos; do alto todas as almas assistiam aos rebolados dos quadris e sorriam aos deuses. Se tudo isso pudesse durar toda a vida talvez a terra-ilha pra qual foram trazidos aos arrastos não parecesse tão má. Fora do subconsciente do mestre, o sol se espreguiçou por trás dos montes verdes da terra-nova e o homem despertou. Ele espreguiçou-se também, alongando os músculos torneados, as dimensões do corpo fazendo sombras pelo chão, e tão logo se levantou não se preocupou em conter os pés que já dançavam. O bailarino negro parecia um grande pássaro e aos poucos suas gentes acordaram e também se puseram a dançar, sorrisos lindos de dentes grandes foram surgindo nos lábios de irmãos e irmãs, mães e pais e avós e avôs, os gestos encantadores saudavam o novo dia que vinha e pediam boa caça, boa pesca, boa vida, apesar de todos os problemas.

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Depoimento de Alika Quando cheguei na terra-nova eu tinha medo do mar. A velha Mikaia tinha me contado os mistérios do kalunga e eu culpei o monstro de água salgada por ter vindo parar nesta terra. Quando cheguei na terra-nova eu tinha medo de tudo, fui afastada de minha família, jogada num navio fedorento e amarrada por correntes. Uma manhã, ouvi Kwame tocar o carimba, vi os homens saindo a luz do sol e juntando-se ao músico. Formavam um circulo e todos dançavam, muitos nem se falavam, outros tantos estavam de olhos fechados apenas sentindo o ritmo. Meu quadril e meus pés começaram a mexer-se, como se eu não tivesse controle sobre eles. Mas eu fiquei com medo de juntar-me aos dançarinos. Foi quando conheci Shaira, ela me pegou pela mão e me puxou para o centro da roda, e eu dancei. Meu medo desapareceu e meu peito se encheu de esperança. Depoimento transcrito por [M.B]


Já saídos das casas, debaixo de um céu explodido de luz solar ao longe e muito azul acima de suas cabeças, o círculo foi formado e tudo era música e mais e mais danças. Depois de certo tempo, o mestre pediu silêncio, e ao meio veio o casal mais jovem, o fogo do sonho do mestre nos olhos da moça negra Shaira e do moço negro Mamadou que se olhavam e acariciavam apaixonadamente os rostos um do outro. As mãos enlaçaram-se e soltaram-se vagarosamente, o carimba embalou os primeiros passos, a voz do cantor ressoou nos ouvidos e logo os corpos rebolavam e giravam, as lágrimas desciam pelas bochechas magras, desviavam dos sorrisos para deixá-los sempre doces e pingavam sobre a terra. Juntos, os dois seres eram um só, como os irmãos do tambor, como as dançarinas e dançarinos guiados pelo mestre de corpo grande, três grandes seres que, quando formados, forneciam a liberdade muitas vezes só sentida em sonhos. Os pés calejados percorriam o solo desenhando sobre ele os movimentos da esperança que renascia junto ao sol, assim como também representavam a comunicação entre tantos que não falavam iguais, que muitas vezes mal se entendiam, mas que por meio dos sons e movimentos conversavam. Suados e cansados, deixavam a alma voltar pra carne e desabavam no chão, ainda sorrindo, ainda chorando, ainda acreditando em uma vida maravilhosa.

Historieta narrada por Raio de Sol

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Depoimento de Mamadou Por mais dura que fosse a realidade dos nossos dias, o sol nascia todas as manhãs trazendo consigo sussurros de liberdade e gritos de esperança. Os sonhos eram traduzidos pelo som do carimba e o balançar dos corpos. A dança era para todos e muitas vezes vimos estranhas figuras juntar-se a nós nos batuques. Aquela manhã foi a vez de um homem de roupas e modos esquisitos, não falava a nossa língua – nenhuma delas – tão pouco a língua daqueles que nos trouxeram para cá, dizem que ele morava num navio. Gostava de sentar-se próximo a nós e nos desenhar, mas aquele dia tinha bebido a água amarga que vendem na bodega e trançava as pernas. Resolveu entrar na roda e quando o fez todos riram de seus movimentos incompreensíveis. Depoimento transcrito por [M.B]


Um mar sem fim “Mãe, onde fica o outro lado desse rio?”, perguntara Mikaia em uma de suas mais remotas lembranças - uma daquelas que em sua memória já enleada pelo tempo - que confirmavam sua terra não como parte de um sonho, e sim uma distante realidade. Não esquecera dos olhos negros e enigmáticos da mãe, assim como a palavra kalunga de sua resposta. O mal, a morte, o mar. Olhava agora, do outro lado do rio, a imensidão azul, azul cinzento como seu vestido e sua nostalgia. As divagações entre os dois tempos, o passado e o presente, não a impediam de no momento entoar, ao som do carimba, cantigas de sua terra e mesmo de outras. Aprenderaas antes e depois de parar nesse lugar rodeado de mar chamado de Ilha de Santa Catarina, onde nos tempos livres fizera amigos; folgueava, cantava, dançava e mesmo chorava. Não poderia dizer que era fácil se acostumar com a ideia de sentar em roda com os que não eram de seu povo, por vezes inimigos, por vezes recém-chegados naquela Ilha de pouco sol. Mas ao passar dos anos, as horas das danças, das músicas e das alegrias a revivia, reacendia doces lembranças e novas esperanças. Era já quase uma preta velha, como uns a chamavam, mas por que não sonhar? Quando podia, vendia doces na cidade, com ajuda da filha. Sonhava com a liberdade, para além daquelas horas de cantoria, a ela, moça sentada no outro lado do círculo. A esperança que via nos olhos dos jovens que dançavam no meio da roda a encorajava, como os olhos da mãe que vira pela última vez na maldita embarcação, morta.

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Depoimento de Leeza Mamãe não gosta do mar, tem medo dele. Mas tem também um estranho interesse pelas embarcações. Talvez guarde, no íntimo de seu ser, uma esperança de um dia voltar a subir numa nau que a levará de volta para sua terra. Ás vezes ela fala em comprar nossa liberdade, normalmente quando saímos para vender doces na cidade. Outras vezes senta na beira do mar e me conta histórias da terra que a força deixou para traz. Faz umas semanas chegou um viajante na ilha e sua embarcação ficou ancorada pertinho da praia. Não era raro ver Mamãe admirando o navio, como se aquilo a intrigasse. Um dia, o viajante bebeu demais e resolveu entrar na roda de Kwame. Mamãe foi atrás, fazia tempos que não a via entrar na roda. Ela dançou lindamente. Depoimento transcrito por [M.B]


Dela guardara mais que a boneca de panos vermelhos como seu manto, guardara uma vontade de viver, apesar de tudo, levada na alma. E com essa alma de súbito entrou na roda, perdendo-se nos rodopios, buscando a liberdade no ritmo da dança. Viu então no horizonte uma embarcação, menor que as das imagens de sua mente, das que apareceram vindas do kalunga para mudar o curso de sua jovem vida. Quem estaria lá, o que faziam, poderiam ouvir sua música? E como aquele mar sem fim conseguira separar o dia que era sempre Mikaia do dia que a passaram chamar de Maria, debaixo do mesmo sol? Eram incógnitas, como o que teria acontecido com suas irmãs depois de terem atravessado o mar sem fim ou o que teria sido de sua vida se pelo kalunga nunca fosse levada.

Historieta narrada por Talia

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Depoimento de Niara Lembro o dia que a Sinhá resolveu chamar Mikaia de Maria, ela dizia que Maria era um nome mais condizente para uma escrava de sua casa. A Sinhá, cheia de pose e devota aos santos como é, nunca admitiria para ninguém, mas Mikaia foi ama de leite da Sinhazinha. Acho que é por isso que a rapariga é tão chegada aos batuques da nossa terra. A senhora sua mãe que nunca descubra, mas a Sinhazinha anda querendo fugir para uma noite de batuque. Mikaia não querendo despertar a ira da Sinhá ainda não concordou em levá-la, mas nós sabemos que ela pegou afeição pela menina nos tempos de amamentação e que no fim faz todas as suas vontades. Quero só ver o que vai acontecer quando a Sinhazinha trocar as contas do rosário pelo carimba e os batuques. Depoimento transcrito por [M.B]


Notas do subsolo ou o baile perfumado Em meio a banalidade do ordinário, fugas do real são feitas pela sinfonia musical de apenas meia dúzia de instrumentos. Dá-se o nascimento de uma nova realidade. São filhos de Adão e Eva que caíram do paraíso e foram atirados no divino inferno terrestre, onde o pessimismo e a amargura se desmancham enquanto o soar das notas musicais flutuam no ar falam que tudo isso é distração, mas não estariam também se distraindo aqueles que nisso pensam? Em cada batuque a infinita tristeza se dissipa. Ah, o desabrochar da felicidade, o espetáculo do carnal! Dançam negros que nunca d’antes vi. São roupas esfarrapadas, pés descalços, mãos calejadas... homens e mulheres, juntos ou separados, escravos da sensualidade e servos do Sr. Prazer. Sem interrupções de anjos ou trombetas, o som era pelo carimba que seguia o seu ritmo e contagiava até os não falantes daqueles dialetos. Dizem que a língua é uma barreira, mas como aquela algazarra toda era possível? Muitos deles não falavam a língua daqueles que os haviam colonizado, e, mesmo assim, comunicavam-se e proclamavam os sofrimentos e as barbaridades causados em nome da civilização – páginas em branco que foram manchadas de sangue. Histórias que a muitos não interessam...

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Depoimento de Iana Foi o viajante russo que colocou essas ideias na cabeça da Sinhazinha. Antes ela contentava-se em ouvir os batuques de seu quarto à noite, mas desde que o homem esteve aqui falando de como rodopiou e dançou entre os escravos ela encasquetou que queria dançar também. Se a Sinhazinha tivesse visto o fiasco que o viajante fez provavelmente não estaria tão empolgada para entrar na roda. O homem mal podia se manter sobre as pernas por conta da embriagues e depois ainda disse para a Sinhá que “os pretos faziam os movimentos mais estranhos e peculiares”. O que um homem que não tem terra e nem raízes, um homem que mora num navio pode entender das nossas danças? O que um homem como ele sabe de liberdade e esperança? Depoimento transcrito por [M.B]


É nesse vazio da linguagem onde a música encontrou sua moradia. No subsolo daquilo que não pode ser explicado é que residia toda aquela dança. Naquilo que podia ser somente sentido, onde os verbos não cabiam, o âmago da existência conseguia fazer certo sentido, mesmo que ainda fosse breve. Se somos forçados a aceitar a brevidade absurda da vida e poucos temos a ganhar, o que perderíamos se nos juntássemos àquilo? Bebi da água que passarinho não bebe, amarga como esse a quem vos escreve, e me coloquei a dançar com os outros antes que a embriaguez passasse. Louis Choris

Historieta narrada por L!

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Depoimento de Tenente Manoel Se a minha paixão era a música, certamente a de Choris era o desenho. O homem ficava horas sentado numa pedra, ou escorado em uma árvore registrando a paisagem e os costumes pela ponta de seu lápis. Afeiçoei-me dele. Verdade que português o russo mal falava, comunicavase com os superiores com uma mistura de espanhol e francês; mas eu não era estudado nas artes da linguagem e não conhecia nenhuma destas línguas. Curiosamente a gente se entendia mesmo assim e quando a língua se fazia incompreensível, os gestos e a mímica auxiliavam na compreensão. Um dia Choris me viu tocar com os escravos, ficou impressionado com a sonoridade, o ritmo, a dança. Dias depois chegou ao forte a notícia de o russo andou bebendo a água que passarinho não bebe e dançou junto aos cativos. Espero que não me culpem por isso também. Depoimento transcrito por [M.B]


Epifania de Dança Era uma atmosfera estranha. Não tinha medo deles, mas, ao mesmo tempo, o ar ali era hostil – ele sempre o é para quem se sente diferente no meio de uma uniformidade de gentes que se parecem a primeira vista. Entrou na roda a convite de um dos pretos ali dançando. Sempre passava por eles de longe e era simpática, na medida do possível, dadas as proporções do que era considerado admissível. Para sua família, o fato de ser simpática com os escravos passava do limite do bom tom, mas ela não se importava. Balançava-se sempre em seu quarto ao som daqueles tambores e vozes gritando cantilenas ininteligíveis e estranhamente harmoniosas. Havia algo de rude e selvagem naquela música aos seus ouvidos de dondoca que lhe atraía. Faziam-na pensar em homens fortes a lhe carregarem como se fosse uma rainha de alguma terra exótica. Para ela, era tudo aquilo exótico e avassalador. Para ela, havia algo de espiritual naquelas melodias. Algo que transcendia a dança, a música, a carne, e que ao mesmo tempo era uma experiência sensual indescritível, uma espécie de som quase sexual. Em seus aposentos de menina rica, ela girava e abraçava o ar denso e úmido que vinha do mar como se ele fosse um homem. Sentia-se ficar molhada de suor e de outras coisas estranhas que lhe eram desconhecidas. Dissera-lhe o padre que aquilo era pecado. Ela pouco ligava, naquelas horas da noite em que ouvia ao longe – mas perto o suficiente para ouvir – os cativos elevando suas vozes e batidas ritmadas e cadenciadas aos ares da noite fria. “Oras que absurdo! Aquele bando de pretos se movendo daquele jeito grotesco, parecendo possuídos por demônios.” Podia-lhe dizer sua mãe de sotaque açoriano o que jjslajslajsl Florianópolis - Junho de 2012

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Depoimento de Simi A Sinhazinha andava de namorico com um tenente que é amigo dos africanos. Eu mesma já o vi e ouvi tocar em algumas ocasiões na roda do Kwame. O português é tímido e não é de falar muito, até hoje não sei como é que ele e a Sinhazinha acabaram se apaixonando. O fato é que a Sinhá descobriu o namoro e, como esperado, proibiu os dois de se encontrarem novamente; acusando o tenente de ter colocado na cabeça da filha a simpatia que ela tinha pelos pretos. A Sinhazinha ficou inconsolável, acho que ela estava mesmo apaixonada pelo militar. Mas a situação piorou quando, semanas depois do ocorrido, a rapariga descobriu que o tenente Manoel seria enviado para a Guerra do Paraguai. Acho que até hoje ela culpa a mãe pela sina do homem a amado e em segredo espera pela sua volta. Depoimento transcrito por [M.B]


quisesse, seu coração e seu corpo clamavam por aquelas rodas febris. E um dia, juntou-se a eles. Conseguiu que uma das mulheres que trabalhavam na cozinha da casa lhe levasse até lá. Era na verdade chegada aos escravos, seus pais odiando-a por isso, ela provocando-os com frases que revelavam suas ideias liberais e “indecentes”. Marchou resoluta no meio da noite, quando se suporia que devesse estar dormindo, e foi ter com sua criada amiga. Ao chegar perto da roda, impressionou-se que ninguém parou o que estava fazendo para notá-la – nem que fosse para expulsá-la dali. Apenas foi empurrada por corpos de pele escura e quadris deslizantes, um fantasma no meio de tantas cores intensas. Sentiu-se insossa por alguns segundos. Mas então algo mágico aconteceu, e sentiu-se enlevada pela música. Era muito melhor do que ouvi-la de longe, de seu quarto deprimente e silencioso. E pensar que era daquilo que se privavam as pessoas do grupo ao qual pertencia! E pensar que havia outra possibilidade de existência para além da frieza ignóbil do ir para a missa, ser boa dama, cozer, bordar, cuidar da casa... Via aquilo como uma vida selvagem que podia ser vivida pelo homem. E os homens! Os homens ali eram lindos a seus olhos. Ainda que nos primeiros instantes daquilo eles a assustassem, com seus grandes olhos escuros, seus corpos nus da cintura para cima, suas vozes graves – mais graves do que nunca, parecia, naquele frenesi rítmico –: tudo neles era convidativo e assustador. Eles a repeliam ao mesmo tempo em que era impossível não deter o olhar sobre eles. Dançou com eles a dança mais ousada de sua vida. Num piscar de olhos chegou a música ao fim. Teve que voltar para a casa, para o quarto solitário, para as orações absurdas. Voltaria para a vida que lhe cobrava aberrações tediosas e banalidades frívolas, uma vida frígida, sem gozo. Quando morresse, a última coisa que veria, seu suspiro final e epifania antes da morte, seria a noite em que se permitiu ser a Dança.

Historieta narrada por Belo Mar Florianópolis - Junho de 2012

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Depoimento de Ayo Quando Mikaia vai para a cidade com a Sinhazinha, deixa-a sob a minha proteção e vai vender seus doces com a Leeza. Saborosos doces por sinal. A rapariga é diferente da mãe e gosta da minha companhia. Um dia desses, ela estava conversando com o tenente Manoel, mais aquele homem de nome estranho e que mora num navio, quando os três foram até a roda de Kwame. Nenhum deles teve coragem de chegar perto o suficiente e entrar na roda, mas a Sinhazinha bem que quis. Shaira estava dançando e também percebeu, à noite quando nos reencontramos no batuque ela me perguntou quem era a moça que eu acompanhava. Quando contei do gosto da Sinhazinha pela dança e o som do carimba, Shaira disse-me para trazê-la para a roda qualquer noite. Mas e eu lá sou besta de enfrentar a Sinhá? Aquela mulher é feito bruxa. Depoimento transcrito por [M.B]


O Tenente, a Música e a Guerra. Em tempos de crise diplomática entre Brasil e Inglaterra, julho de 1864 transcorria cinzento e molhado na sonolenta Desterro. Manoel cumpria suas tarefas militares com fervor, mesmo com todos os problemas de ordem interna dentro da Fortaleza São José da Ponta Grossa. A alegria do Tenente Manoel contagiava seus camaradas de armas, contagiava, pois o militar tinha como função em seus serviços o comando da banda militar. A rotina tornava-se menos cansativa quando os oficiais se reuniam para cantarolar alguns cânticos comuns dentro de sua organização. Mesmo usando a música como atenuante na rotina da fortaleza, Manoel e os demais militares se revezavam nas folgas. O direito de circular duas vez por semana pela pacata Desterro se resumia em dois grandes objetivos, consumir a quantidade máxima de bebidas alcoólicas, e farejar doces perfumes femininos - algo muito necessário já que alguns destes militares estavam distantes de suas casas há muitos anos. Boa parte do soldo gasto com bebidas e sexo eram atividades comuns a quase todos militares, entretanto, essas práticas mundanas não faziam parte da rotina do católico Tenente Manoel. Os olhos deste homem se concentravam em um único tema, a música. A disciplina traduzida em práticas instrumentais fazia parte do cotidiano deste moço, filho de português. O que era importante para boa parte dos militares, os bares e prostíbulos, para Manoel se equivalia nas práticas de instrumentos musicais e aulas particulares de piano em seus momentos de folga.

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Depoimento de Louis Choris O Manoel virou meu amigo desde que descobrimos que temos paixões em comum, o gosto pela arte. Ele pela música, eu pela pintura. No começo era difícil nos comunicarmos por conta da língua, mas não tardou a desenvolvermos um jeito bem peculiar de conversar. E nos entendíamos daquela maneira. Um dia, encontrei Manoel com sua namoradinha, próximo à igreja do Rosário. Os dois conversavam sobre dança e pelo que entendi a moça gostava das danças dos africanos, levei-os até a roda de Kwame, que tantas vezes desenhei. Foi uma tarde ótima! Triste foi receber a notícia, semanas mais tarde, de que meu amigo tinha sido enviado à guerra. Pena por ter se envolvido demais com os africanos, mas acima disso, castigo por ter se atrevido a namorar a filha de quem não devia. Depoimento transcrito e traduzido por [M.B]


Como a prática musical só era permitida a pessoas de pele branca, a maior possibilidade de um negro ter acesso aos instrumentos musicais seria através do recrutamento obrigatório, entretanto, isso variava conforme a “bondade” dos superiores hierárquicos. Na Fortaleza onde Manoel servia, os negros tinham permissão para tocar os instrumentos, o que em contrapartida possibilitava um clima mais amigável entre militares de baixa e alta patente. Manoel era querido até pelos praças negros, o que gerava certo desconforto em alguns setores, inclusive, na sociedade civil de Desterro. Segundo relatos duvidosos de meretrizes e boêmios, o Tenente Manoel frequentava até mesmo festejo de negros, onde a música de origem africana e outros rituais eram prato cheio para curiosidade do Tenente. Apesar da forte educação católica e todo um conjunto de valores condizentes com o seu tempo, Tenente Manoel era um grande curioso em tudo que envolvia ritmos, cadências e ritos. A curiosidade deste homem era mais pecaminosa que se deitar com uma moça de vida fácil ou anestesiar-se de álcool. O homem católico que não bebia e não se deitava com cortesãs, acabou pagando por outro pecado, misturou-se demasiadamente com negros. O destino do Tenente Manoel findou-se em Novembro de 1964 com ordens expressas de transferência para a Guerra que começaria no mês seguinte. Uma Guerra que marcaria destinos diferentes tanto para os negros músicos de Desterro, como para o Tenente Manoel. A Guerra do Paraguai.

Historieta narrada por Cevador de Solidões

Florianópolis - Junho de 2012

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Ano III N° 10

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Depoimento de Hasan Eu me lembro da primeira vez que o tenente Manoel juntou-se a nós na roda. Foi uma experiência quase assustadora, nunca antes um português ou brasileiro – seja lá como eles se intitulam – tinha se misturado conosco. Pelo menos não de forma tão amistosa. Você sabe, africano não podia fazer música; mas mesmo assim nós tínhamos nossos jeitos de driblar a autoridade hipócrita dos portugueses e nos deliciar ao som do carimba. Manoel entendia o que a dança e a música significa para nós, dava pra ver nos seus olhos quando tocava que ele entendia. Não demorou muito para fazer amizade com Mamadou, os dois passavam horas trocando ritmos. Depois de um tempo sumiu e os rumores eram de que tinha sido enviado para guerra. Alguns dizem que foi pelo relacionamento com uma rapariga rica, outros culparam as noites que passou fazendo música ao lado de Kwame. Depoimento transcrito por [M.B]


No ritmo do tambor O sol mal tinha ocupado o seu lugar no céu quando a moça acordou, pelo menos foi isso o que ela pensou, acostumada como era a acordar horas passadas do desjejum. Sob o pretexto de comprar laços de fita para o cabelo, naquela manhã Ágata poderia acompanhar a velha Mikaia e sua filha Leeza até a cidade. Mas todos na casa sabiam que a Sinhazinha estava mais interessada num certo tenente que por vezes frequentava a cidade do que em laços de fita. Mikaia, ou Maria, como a Sinhá insistia em chamar, fingia que não via as conversas, risinhos e olhares trocados entre o tenente e a Sinhazinha e aproveitava o tempo livre para vender doces com a filha e juntar seu suado dinheirinho; sonhando no dia em que compraria sua alforria. Chegando a cidade Ágata despediu-se da mucama e seguiu para a igreja do Rosário. Já que sua mãe insistia que fizesse suas preces como católica fervorosa, ela as faria ali; na igreja que abrigava a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e dos Homens Pretos. “Uma irmandade de escravos e ex-escravos”, berraria a sua mãe caso soubesse onde a filha andava, e completaria “já mandei não se misturar com essa gente”. Sua mãe não sabia de nada, pensava Ágata entre uma oração entediada e outra. Depois das preces feitas, ao descer as escadarias da igreja encontrou, assim como esperava, o jovem tenente Manoel saindo de uma venda onde comprava aparatos e instrumentos para a banda da fortaleza. O tenente, diferente dos outros de sua patente, não gastava seu tempo e dinheiro correndo atrás das saias que seus colegas corriam. O homem católico e de fé acreditava que a música era suficiente para preencher seu espírito de prazer, mas é bem verdade que quando conheceu a Sinhazinha viu seu coração bater mais forte. E sem poder resistir, em pouco tempo se viu apaixonado. Quando se encontravam, o que era bem raro, os dois conversavam sobre música, dança e compartilhavam a simpatia pelos africanos. Naquele dia, Ágata estava contando que às vezes, à noite, da janela de seu quarto, escutava o som de vozes e batidas de tambor e que as adorava. Florianópolis - Junho de 2012

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Ano III N° 10

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Depoimento de Shaira Quando danço é como se minha alma se transportasse para minha terra e eu reencontrasse minha família, a dança me enche de força e me faz acordar para um novo dia. Ontem, enquanto Kwame tocava o carimba e eu dançava com Mamadou no centro da roda, vi três pessoas nos observar. Pode parecer engraçado, mas não é comum se aproximarem de nossa roda para simplesmente admirar a dança. E era o que os três faziam. Fiquei intrigada quando olhei para a mulher e vi que ela me olhava sem quase fazer movimento. Seus olhos diziam, não berravam, quero dançar! Nos olhos daquela moça vi a força de quem anseia por liberdade. Fico a me perguntar, liberdade do que ela poderia desejar? Depoimento transcrito por [M.B]


Empolgava-se para dizer que sonhava em, um dia, participar daquilo tudo quando foi interrompida por um homem que falava um linguajar estranho. Era Louis Choris, um viajante russo que tinha se tornado amigo de Manoel. De uma maneira completamente bizarra, entre palavras, gestos e grunhidos, Manoel conseguiu explicar ao estrangeiro sobre o que falavam e em resposta Choris sugeriu que o casal o acompanhasse. Não precisaram caminhar muito para começar a ouvir aquela batida tão agradável aos ouvidos. Debaixo de uma árvore, sentado num pedaço de tronco estava um homem de proporções gigantescas tocando algo que parecia com um tambor. As batidas seguiam o ritmo do coração de Ágata e faziam-na sentir vontade de se balançar. Ao redor do tocador, juntavam-se homens e mulheres batendo palmas e cantando. Palavras incompreensíveis, mas que soavam tão harmoniosas. No meio da roda, um jovem casal. Ela, linda, de pés descalços, uma saia surrada e mesmo assim enfeitada com as mais belas cores. Ele, forte, com o peito descoberto e os pés também no chão. Os dois dançavam com amor, compartilhavam os maiores segredos através da mais sutil troca de olhares. Dançavam em sintonia, como se fossem um só corpo. Ágata sentiu sua respiração desacelerar até o ponto de quase parar, enquanto o coração batia cada vez mais forte, acompanhando o ritmo do tambor. Queria entrar naquela roda, queria dançar daquele jeito e compartilhar dos segredos dos dois amantes. Mal sentiu quando Manoel aproximou-se, colocou a mão em seu ombro e falou baixinho no seu ouvido: “O nome dela é Shaira. Dizem os homens que quando dança ela traz a própria África para o centro da roda”. Aquilo não fazia sentido, como uma dança transportaria um continente?! Mas a lógica já não importava mais, Ágata queria sentir o som, entrar na dança. E quando voltou a olhar para o casal, viu seus olhos cruzarem com os de Shaira e naquele momento sentiu seu peito se encher de esperança. Uma esperança que ela mal compreendia tão pouco sabia explicar, mas que batia mais forte do o seu coração. Historieta narrada por Maria Bonita Florianópolis - Junho de 2012

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Ano III N° 10

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Depoimento de Rahma Shaira ficou encanta com uma rapariga que ontem a observava enquanto ela dançava na roda de Kwame. Shaira é assim, às vezes encasqueta com algumas coisas. Ela me disse que a moça estava presa, mas eu não vi nenhuma corrente e com aquela cara de Sinhazinha duvido que um dia tenha sabido o que é ficar sem a sua liberdade. Mas a Shaira é assim mesmo, sensível. E é por isso que ela é tão forte na dança, é por isso que ela tem tanta garra. Minha amiga dança como se tivesse a África nos pés. Engraçado, só depois que cheguei na terra-nova que comecei a chamar minha terra assim: África! Lugar de cantos e danças, lugar de homes e mulheres de fibra, lugar de esperança. Depoimento transcrito por [M.B]


Editorial: Olá! Nós somos a Revista Travessa em Três Tempos. Ouve-se pelos corredores que o âmago desta idealização nasceu despretensiosamente, em blog, com o objetivo de três autores-amigos pass[e]arem pelos três tempos históricos, tendo a travessa como cenário, sem ser revisitada. De mais, “não sei, só sei que foi assim...” Hoje, somos um projeto de extensão do Laboratório de Imagem e Som da UDESC. Nos definem como revista histórico-literária e dizem que nosso objetivo é o entretenimento do público em geral ao brincar com as diferentes versões da história. Bem, concordamos com isso! Porque, como bem sabemos, na história não existe uma verdade, mas várias. E é por isso que a gente se propõe a colocar a imaginação – histórica ou não - pra funcionar e criar novas versões dos fatos trazidos prontos pelos documentos históricos. Assim, a revista se forma, com várias possibilidades para a história principal. Dizem que dá um bom resultado. Confira!

Como participar: Um ou mais contos antes que o mundo acabe Que a Travessa em Três Tempos é uma revista que narra a história de todas as formas possíveis você já sabe. O que talvez você não saiba, é que pode participar disso e contar a sua versão – como você gostaria que a História se desenrolasse? Você é quem tece: damos o tema, a fonte, alguns fatos. A você cabe inspirar-se e escrever! No endereço http://revistatravessaemtres tempos.blogspot.com.br/, você pode acompanhar os editais e mandar sua história! Conte, reconte, aumente quantos pontos quiser – desde que sua narrativa não tenha diálogos e tenha a ver com o documento (para mais detalhes, consulte os editais). E então? Não vai escrever antes de o mundo acabar?


Ficha Técnica:

Atenção!

As historietas, depoimentos e nomes contidos nesse exemplar são todos fictícios. O termo “pretos” é uma expressão de época utilizada para fazer referência aos africanos. Documento Base: MACEDO, L.B. Ginga, Catarina: Manifestações do Samba em Florianópolis na década de 1930. Florianópolis, 2011. Dissertação de Mestrado. (História do Tempo Presente) Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2636 Autores Participantes: Thiago de Oliveira Aguiar Textos de Redatores: Ana Terra de Leon – Luccas Neves Stangler – Luiza Tonon – Taiane Santi Martins Tainah Lunge Capa:

Revisão: Luiza Tonon

Foto: Mariana Rotili

Edição e Diagramação:

Arte e design: Taiane Santi Martins

Taiane Santi Martins Equipe Travessa em Três Tempos: Ana Terra de Leon - Luccas Neves Stangler Mariana Rotili – Luiza Tonon Taiane Santi Martins - Tainah Lunge Idealização: Taiane Santi Martins Apoio: Laboratório de Imagem e Som – LIS Orientação: Profa. Mariana Joffily Endereço para contato: revistatravessa@gmail.com @revistatravessa http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com


Idealização: Taiane Santi Martins

Apoio:


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