Todo mundo já andou na corda bamba

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TRAVESSA EM TRÊS TEMPOS

ISSN 2318-3632

Ano VI - Número 17 - Revista semestral


TRAVESSA EM TRÊS TEMPOS Ano VI — Número 17 Periodicidade semestral ISSN 2318-3632 Editores: André Luiz Costa Davi Boaventura Taiane Maria Bonita Revisão: Leonardo Wittmann Taiane Maria Bonita Projeto gráfico e diagramação: Caroline Joanello © Todos os direitos reservados aos autores Os autores são responsáveis pelo conteúdo de seus contos e não representam o ponto de vista da revista ou de seus editores.


ÍNDICE Editorial

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Preservação de acervo mantém viva a história 6

do circo no Brasil O fazedor de lágrimas

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Camila Maccari

A fuga em um ato de quatro cenas 19

Bruna de Souza Fiorentin e Juliana Milman Cervo

Essa sua flexibilidade toda 27

Caroline Joanello

O solo de seu Sinhô 33

Frederico Dollo Linardi

O último circo de pulgas 42

Gustavo Melo Czekster

O senhor macaco 50

Alexandra Lopes da Cunha

João Peregrino 59

Irka Barrios

Vou fugir com o circo 66

Taiane Maria Bonita

La magia útil 74

María Elena Morán

Nem todo mundo pode pagar para ir ao circo do Beto Carreiro Sara Albuquerque

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Sally Seton Leonardo Wittmann Porto Alegre - junho de 2017

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A Lira Ciro Nogueira de Oliveira

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Love #7 Alexandre Rodrigues

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Gente Digna Gabriela Richinitti

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Um-dois-três Davi Boaventura

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Fragmentos sobre um dia André Luiz Costa

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EDITORIAL

Nós, da Travessa em Três Tempos, acreditamos na arte popular, na inventividade das pessoas comuns que transforma lona velha em centro de espetáculo e chão batido em picadeiro. Acreditamos na importância de olhar pra a diversidade desse país e valorizar o jeito que essa gente brasileira tem de fabricar cultura. Foi esse o motivo que nos levou a escolher as HISTÓRIAS DE CIRCO como tema do décimo sétimo número a ser lançado pela Travessa. Os autores aqui publicados usaram como base de inspiração uma notícia vinculada no site do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — IPHAN — sobre o trabalho do Centro Memória do Circo, mas tiveram total liberdade para criar narrativas ficcionais que estivessem em diálogo com o tema proposto. Dos contos recebidos surgiram diferentes formas de ver e vivenciar o circo, mas uma coisa podemos afirmar: o imaginário circense está presente mesmo naqueles que proclamam odio a los circos. Todo mundo já andou na corda bamba é a maneira que encontramos para homenagear essa arte capaz de alegrar a muitos, mesmo com muito pouco, e o trabalho daqueles que ainda lutam para preservá-la. Porto Alegre, 16 de junho de 2017. A Comissão Editorial

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PRESERVAÇÃO

DE ACERVO MANTÉM VIVA

A HISTÓRIA

DO CIRCO NO BRASIL Notícia publicada em 22 de setembro de 2016, no site do IPHAN: http://portal.iphan.gov.br/

Do palhaço à bailarina, passando pelo trapezista e os

saltimbancos e o adestramento de animais, a arte do circo sempre encantou as pessoas, sejam eles os mais mambembes e pobres ou os mais imponentes e ricos. O resgate de pelo menos dois séculos da história dos espetáculos circenses no Brasil é o foco principal do projeto Memória do Circo. Apesar da grande atração que os espetáculos circenses ainda provocam na população em geral, muito dessa arte vem se perdendo com o passar dos anos. Foi com essa preocupação que Verônica Tamaoki começou a colecionar histórias de circo, adereços e objetos para o Memorial do Circo, que fica no centro de São Paulo (SP). Da coleção de histórias e entrevistas gravadas com velhos palhaços e frequentadores do Café dos Artistas, no Largo Paissandu, Verônica passou a reunir os acervos de figurinos e adereços de circo. A pesquisa histórica alcançou circos pioneiros do século XIX, avançou pelo século XX e chegou ao XXI. Com esses registros, o projeto montou um rico acervo, capaz de mexer com o imaginário de cada um por séculos, como se os espetáculos estivessem parados no tempo. O trabalho teve início em 1999, quando Verônica Tamaoki escreveu o romance O fantasma do circo, onde conta a história de amor entre o poeta Fagundes Varela e a amazona Alice Guilhermina Luande, considerada a grande mãe do circo brasileiro. O romance inclui outros personagens, como Benjamin de Oliveira, um dos primeiros palhaços negros, e Piolin (Albelardo Pinto), cuja história

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contaminou a antropofagia literária de Oswald de Andrade. Mas foi com o projeto Circo Nerino que Verônica fez da intersecção da memória oral com a documental uma das marcas de suas pesquisas. Ainda em 2007, ela recebeu a guarda do acervo do Circo Garcia (1928–2003), e já tendo a do Circo Nerino (1913–1964), acabou por reunir importante documentação, possibilitando, em 2009, a criação do Centro de Memória do Circo. Já em 2015, após ter construída uma reserva técnica específica para objetos tridimensionais, o centro recebeu o figurino completo do palhaço Piolin, cuja data de nascimento, 27 de março, consagrou-se como o Dia do Circo. Além de uma exposição permanente, o Centro de Memória do Circo se dedica a oficinas sobre a arte circense e a um resgate minucioso dos saberes do circo. Os temas vão desde os bordados antigos e adereços até a comida servida nos espetáculos. Para maiores informações: https://www.youtube.com/watch?v=6kVod0zRJBo

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O FAZEDOR DE LÁGRIMAS

CAMILA MACCARI

Ele não ficava ansioso porque não tem como se ficar ansioso com uma coisa que é feita dia após dia em quase todos os dias que se lembra da vida até porque a primeira lembrança de estar vivo surge a partir de algum lugar lá pelos onze ou doze ou ainda treze anos, não tem certeza. Mas também não faz diferença morrer com oitenta ou oitenta e um ou oitenta e dois anos e, como a vida tem sido uma constante desde o momento em que se lembra, acordar, fazer o que tem que fazer e dormir, a importância da idade exata é mais para demarcar por quanto tempo esteve acordado, fazendo o que tinha que fazer e dormindo antes de morrer e, de qualquer forma, ainda falta bastante tempo para morrer, caso a morte se dê por causas naturais mas isso também não faz diferença. Então estava normal, o que não queria dizer que estivesse tranquilo, queria apenas dizer que não estava ansioso porque estar tranquilo provavelmente é outra coisa, o extremo oposto de estar ansioso, um oito, outro oitenta e ele só estava normal, meio termo, qualquer coisa, mas isso também não faz diferença. A única vez em que ficou ansioso foi quando da primeira vez na corda, a vez em que disseram você vai andar na corda e, por um tempo, aprender a andar na corda constituía toda a bagagem de memória que ele tinha porque, desde o momento em que é consciente de si, ele está neste exato lugar, aos onze ou doze ou treze anos, com alguém dizendo você vai andar na corda. No circo falam que ele é um talento natural tão natural que vai ver que a vida se organizou para que ele chegasse lá daquele jeito, zeradinho, sem nada, vontade do destino para que ele atingisse a perfeição, coisa que era uma besteira sem tamanho mas ele deixava que falassem porque o convívio Porto Alegre - junho de 2017

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social tinha dessas coisas, de ouvir o que as pessoas têm a dizer e ignorá-las completamente sem deixar claro que as ignora completamente e isso também pode ser uma coisa que ele tinha de antes de lembrar de qualquer coisa e sempre fora assim, socialmente aceitável. Então naquela noite quando ele subiu e subiu para andar na corda, estava normal, estava acordado, ia fazer mais uma das coisas que tinha que fazer e depois faria mais algumas coisas e, então, dormiria, como sempre, um sono limpo, sem saber se tinha trinta ou trinta e um ou trinta e dois anos porque isso não fazia diferença nenhuma. Subiu e subiu, olhou ao redor, viu as pessoas, muitas pessoas, tantas pessoas, mais hoje do que em todas as noites na cidade qualquer porque a primeira noite em uma cidade qualquer é a noite que enche, a primeira, a que mais tem sucesso, a que as pessoas mais querem ver, chegar antes e checar antes, descobrir a mágica antes que os outros, dizer que viu o que o outro perdeu. Nunca tinha ido ao circo como uma pessoa de fora do circo e nem a circo algum que não esse circo em específico, do qual lembra desde o dia em que chegou e ficou porque a Dona Esther, mulher do dono, disse daqui ele não sai e agora ele é meu e ele fica feliz que ela tenha feito isso porque gostava muito da Dona Esther, que sempre cuidou dele e defendeu ele e tinha nele um jovem grato pela sorte do momento em que ela se proclamou sua proprietária dizendo agora ele é meu. O rosto das pessoas era uma coisa muito interessante de observar e ele sempre gostava de prestar atenção ao máximo de expressões que conseguia, mesmo antes de ser seu número ou de chegar perto do momento de ser seu número, gostava de ver de que maneira as pessoas reagiam às outras performances também, aos palhaços e mágicos e ao globo da morte mas pessoas não crianças porque crianças sempre têm expressões demais e todas as expressões são muito puras e espontâneas, simplesmente não há surpresas lá, não como nas expressões que os adultos deixam escapar sem querer, coisa contida que vaza, quase como se fosse segredo, uma expressão que sempre era quase todas as coisas, pessoas à beira de todas as emoções. Gostava de pensar que o trabaPorto Alegre - junho de 2017

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lho deles, a trupe toda, contribuía para que adultos cheios de histórias e responsabilidades e dramas e vergonhas quase acessassem suas emoções, quase esquecessem de fechar a cara o corpo a mente, ele mesmo ficava profundamente tocado com isso, com a interpretação do número de mágica cheia de oh, a vida é mesmo um truque barato ou o encantamento com o cara que cospe fogo porque na vida quem brinca com fogo pediu pra se queimar, mas não ali, como se o circo fosse, para os adultos, um lugar onde as coisas ainda podiam acontecer sem peso, podiam quase acontecer com os outros. Lá em cima já, a oito metros do chão, podia ver a ansiedade na cara de todos, das crianças que juravam que ele cairia, nos adultos que pensavam que a vida, hehe, era mesmo feita para equilibristas, que triste, que coisa mais triste o peso da bagagem que é viver e, enquanto pisava na corda, segurando a barra de ferro para se equilibrar embora segurar a barra de ferro não fosse uma constante, imaginava que ironia as pessoas lá embaixo ansiosas com sua performance enquanto ele próprio não estava e nem nunca estivera, salve o momento inicial, quando você vai andar na corda, mas depois tudo bem porque você é um talento natural. Nunca pensou em ter medo de cair ou de se machucar, isso nunca foi uma possibilidade, desde que aprendeu a andar na corda, andaria na corda e nunca erraria o passo, nunca afrouxaria o pé, nunca abandonaria o corpo, talvez fosse sobre isso que falavam quando diziam que ele era um talento nato, então pensou em todas aquelas pessoas lá embaixo que olhavam para ele apreensivas e preocupadas e ansiosas e se caísse? Elas, que vieram pela possibilidade da queda, do perigo do número, do fim e, enfim, estavam sendo enganadas já que essa possibilidade não existia de forma alguma, então foi e voltou da corda, o silêncio primeiro, ele não se importava com o silêncio e também não se importava com o barulho e no seu trabalho as condições do trabalho não lhe pareciam relevantes, tudo sempre ia bem, tudo estava, inclusive, indo muito bem até que, do nada, ele começou a chorar e as lágrimas podem ser um empecilho já que elas embaralham a visão e prejudicam o número e, ainda por cima, Porto Alegre - junho de 2017

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mudam o foco do pensamento dele porque ele nunca chorava, então, quando veio assim, do nada, sem aviso prévio, sem motivo algum, quando veio uma ardência estranha no nariz e uma coceira nas bochechas bem abaixo dos olhos e ele ouviu sua boca emitindo algo parecido com um soluço enquanto teve que fazer um esforço maior que o normal para conter um espasmo aleatório do corpo ao mesmo tempo em que os olhos se enchiam de água, quando todo esse processo de formação e expulsão de lágrima aconteceu, ele obviamente precisou perguntar-se não sem um olhar para si, não sem um choque com seja lá quem ele era, não sem espanto, que merda está acontecendo comigo. Conseguiu chegar até a plataforma — coisa que nem chegou a ser uma questão — desceu, evitou os colegas, respondeu alguns tudo bem e foi para o trailer chorando e chorando e chorava sem saber, mas logo aceitando o desconhecido porque, se começaram, cessariam, assim também, sem motivo. Ou, ainda, quem sabe, o porquê viria à luz, lembraria de um pesadelo ou de algum dia dos anos que vieram antes dos onze, doze ou treze, isso ainda poderia acontecer, afinal. Apesar das lágrimas, seguia normal, não estava ansioso, não estava tranquilo, só estava como sempre, embora a constância agora fosse levemente abalada pelas lágrimas quentes e gordas que escorriam pela face. Tirou a maquiagem, tomou o banho que sempre tomava e quem sabe o banho quente fizesse alguma coisa que parasse as lágrimas. Fora do chuveiro não vencia secar o rosto porque logo ficava encharcado de novo e percebeu que nunca reparou exatamente em pessoas chorando e em quanta lágrima dois olhinhos poderiam produzir, mas tinha certeza absoluta que em breve secaria que ninguém chora sem motivo e já passava de hora o tanto de choro. As lágrimas escorriam silenciosas até o momento em que ele soluçava e, soluçando, se perguntava se não o fazia apenas por hábito, agora que sabia que chorava, queria representar o choro. Então, de repente, percebeu-se muito cansado, mas muito cansado nunca era um estado no qual percebia-se, então, também, o que sentia podia sentir porque chorava e não o contrário embora o contráPorto Alegre - junho de 2017

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rio fizesse mais sentido tirando o fato que não fazia sentido nenhum essas lágrimas todas vindas dos olhos mas de lugar nenhum. Quem sabe era uma onda forte de tristeza e, daquelas inconscientes. Também, quem sabe, fosse essa uma tristeza específica que ficava num daqueles lugares que ele não acessava e que vinha antes dos onze ou doze ou treze anos e agora, de repente, o corpo sentiu-se pronto para curar a dor e essa coisa toda. Duvidava dessa ideia mas quanto a isso não tinha o que fazer porque ele próprio não sabia o que estava guardado lá atrás e, se as lágrimas inexplicáveis vinham por causa do passado, ele próprio teria que aceitar e esperar que acabassem porque dizem por aí também que todo homem tem que fazer as pazes com o passado, escuta isso a todo momento e todos sabem que ele não tem passado nenhum. Foi para o trailer em que dormia, ainda estava vazio, deitou na cama e automaticamente se aninhou em um abraço em si mesmo, a posição fetal e pensou em como era confortável estar assim e também pensou que nunca antes deitara assim, talvez no antes anterior mas, quem sabe, deitar assim era como os soluços e o cansaço: só existia por causa do choro. Antes de dormir precisou trocar a camiseta que vestia porque já estava ensopada, assim como toda a sua cara e o seu pescoço que, aliás, parecia grudento, como se as lágrimas fossem feitas de alguma água melequenta, mas, provavelmente, a sensação vinha do fato de não estar seco há mais de hora. Deitou na cama e voltou a soluçar, chorar aquele choro alto, que dificulta a respiração, impede a fala, convulsiona o corpo, um choro exagerado, daqui a pouco os companheiros viriam dormir, queria poder se desculpar, mas sabia também que a desculpa deveria acompanhar uma explicação ou uma sugestão e ele não tinha o que dizer. A porta abriu e, pouco depois, ouviu um cara, o que aconteceu e tudo o que pode responder foi estou tão terrivelmente triste e essa frase, estou tão terrivelmente triste soou tão verdadeira, tão forte, tão aniquiladora, terrivelmente triste, que aceitou o peso que ela emitia e deixou o choro se transformar em soluços e gritos desesperados. Vai ver fosse tristeza mesmo, vai ver saísse do corpo em Porto Alegre - junho de 2017

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forma de lágrimas, vai ver amanhã amanhecia não apenas normal mas, mais que isso, amanheceria tranquilo, estaria no outro extremo, não ansioso e nem normal, mas tranquilo e dormiu. Acordou com o travesseiro ensopado, o rosto molhado, um único colega sentado no próprio colchão olhando-o desesperado e exausto porque não pôde dormir a noite inteira já que ele chorou o tempo todo e cara, isso não é normal. Os próximos dias foram de muitas lágrimas porque, ao contrário do que parecia óbvio, ele não parava de chorar nunca, em nenhum momento, nem dormindo, nem comendo, nem conversando com os companheiros, coisa que só conseguia fazer nas horas mais calmas de choro — nas outras, quando as lágrimas vinham acompanhadas de soluços fortes e dolorosos, ele mal conseguia se coordenar para respirar. O médico da cidade disse umas coisas, pediu uns exames, chamou o psiquiatra. Tentaram hipnose, diziam que a técnica acessava tudo, as memórias mais dolorosas, a infância mais obscura, os medos mais intrínsecos e todas outras coisas que não pareciam fazer muito sentido e, de fato, não fizeram nenhum sentido porque ninguém chegou a lugar algum e ele continuou sabendo de si só a partir dos onze, doze ou treze anos, equilibrismo e lágrimas. No acampamento em que ficavam, num terreno alugado na cidade, logo tornou-se atração entre as crianças. Ficava sentado em uma cadeira e elas reuniam-se em sua volta, quando o choro evoluía de lágrimas escorrendo para um desespero convulsionado, elas se colocavam em fila diante dele, enquanto uma responsável marcava o tempo. Ganhava quem, encarando-o, começava a chorar primeiro. No começo todas as crianças participavam mas, conforme se organizavam e aprimoravam as regras, todas as crianças que já eram ou se preparavam para ser palhaços estavam vetadas — no começo elas reclamaram mas o momento não perdia a graça só porque não podiam brincar. O neto da Dona Esther estava ganhando a disputa, tendo caído em lágrimas com apenas 11 segundos de contato visual com a aparente dor profunda na alma do equilibrista. Sentia-se feliz em fazer-se útil porque não achava interessante Porto Alegre - junho de 2017

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o fato de não poder apresentar-se mais já que sua vida consistia, primeiro, em andar na corda bamba para que as pessoas tivessem acesso às suas emoções. Se não parasse logo de chorar, as lágrimas também seriam uma outra grande parte de sua vida, iniciada aos trinta ou trinta e um ou trinta e dois. Além de tudo, gostava da sensação de fazer as crianças chorarem, sentia que isso era um pouco como a vida na corda bamba — e em todas as outras áreas do circo, fazer adultos quase sentirem alguma coisa. Crianças choravam fácil, como seria se o jogo fosse jogado por adultos que não sentiriam pena do homem que chora mas sentiriam pena de si mesmos porque poderiam, eles próprios chorar também? Apresentou a ideia para Dona Esther e dona Esther abraçou e beijou o menino que ela tinha dito que era dela porque ele era mesmo uma preciosidade, talento nato ele tinha para o circo inteiro, isso sim. Só fez tanto sucesso na corda bamba porque foi o primeiro lugar em que colocaram o menino que ninguém sabia de onde vinha. Aquela noite foi a primeira vez que um show do circo lotava tanto numa cidade em um dia que não fosse o primeiro, mas ele não achava essa constatação grande coisa porque era um show que tinha uma coisa pela primeira vez. Foi anunciado como O Fazedor de Lágrimas. Depois de testes muito específicos com os companheiros de circo, o cartaz anunciava o artista da alma que fazia a pessoa acessar o que tinha de mais escuro em seu coração e trazer isso à face em trinta segundos. Mulheres choravam em menos tempo que homens, mas Dona Esther disse que isso acontecia porque eram como crianças, em sua maioria: sofriam pelo que ele sofria porque eram treinadas, desde cedo, a permitir-se sentir pelos outros mais do que permitiam sentir por elas próprias, como você acha que uma mulher aguenta tornar-se mãe, queridinho. Crianças choravam em treze segundos, mulheres em vinte segundos e homens em 28 segundos. Crianças e mulheres choravam, na maioria das vezes, por ele próprio, cujo pranto demonstrava um terrível sofrimento — coisa que ele não sentia e Porto Alegre - junho de 2017

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não precisava dizer mais. Homens choravam porque imaginavam que eles poderiam, eventualmente, sofrer tudo o que ele estava sofrendo. A trupe toda tinha grandes expectativas quanto à grande noite e já estavam preparados para aceitar ficar face a face com o Fazedor de Lágrimas já que a possibilidade de as pessoas estarem excitadas para ver a fragilidade e a obscuridade dos outros mas nem um pouco disponíveis para acessar a própria vulnerabilidade era muito grande e isso não era nem algo específico às coisas da alma, até mesmo o número do mágico funcionava desse jeito e, desse jeito, funcionava o circo inteiro. Sempre é melhor que seja o outro a experenciar algo, que pode ser ele e não eu a experienciar, eis o mantra, diz Dona Esther mas acontece que Dona Esther também ficou muito surpresa porque as pessoas realmente ficaram mobilizadas pelo Fazedor de Lágrimas, o homem que chorava as dores de todo mundo, mas que, na verdade, chorava as dores ninguém sabia de quem ou, então, chorava as dores de não ter dores porque quem ele era aos onze, doze ou treze anos talvez nem importasse mais. O permitido era cinco pessoas no palco, uma de cada vez. Por questão óbvia de primeiro espetáculo, foram escolhidas duas crianças, duas mulheres e um homem. O Fazedor de Lágrimas sentou em uma cadeira no meio da arena e, em frente a ele, outra cadeira. A ideia inicial era colocar uma mesa separando as duas pessoas, aquele que chora daquele que vai chorar, mas, como bem lembrou Dona Esther, a mesa barrava um pouco a vulnerabilidade, era um apoio do qual eles não tirariam nada de bom e ainda tinha o adendo de poder ser um instrumento para violência, pois você nunca sabe o que um homem ferido é capaz de fazer. Em pouquíssimo tempo, O Fazedor de Lágrimas passou a ser a atração principal do circo e o Homem Que Não Parava de Chorar virou manchete em jornais com matérias acompanhadas por entrevistas com ele, com Dona Esther, colegas de circo e sempre muitos médicos. Ele sentia-se normal e chorar já era algo que fazia parte de quem ele era, um equilibrista/ chorão e, antes disso, sabe-se lá, mas isso também não fazia diferença. Dona Esther que sempre cuidou dele com Porto Alegre - junho de 2017

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carinho e olhou para ele com orgulho redobrou as suas gentilezas. A bailarina principal da companhia passou a dormir com ele as noites que ele queria que ela dormisse e, no começo, a experiência de dormir com alguém que não parava de chorar era incômoda, até que ela assumiu para si a tarefa de curar ele seja lá do que fosse. Logo após abraçar e divulgar essa missão, desapareceu de sua cama, o que lhe deixou meio confuso mas logo depois a segunda bailarina da companhia veio fazer-lhe companhia. As matérias fizeram com que alcançasse projeção nacional e o circo, acostumado a percorrer pequenas cidades de interior, passou a ser convidado para turnês junto a grandes grupos. Dona Esther mostrava-se muito preocupada que toda essa exposição pudesse fazer mal para a alma do Fazedor de Lágrimas mas ele não se importava muito, a mudança em sua rotina não mudava exatamente a sua rotina. Seguia acordando, fazendo o que tinha que fazer e dormindo. Apenas chorava o tempo inteiro mas já estava acostumado, vai ver fosse um dos talentos naturais que ele tinha porque não tinha mais nada. Um dia uma equipe de televisão começou a fazer um documentário sobre ele e o seguia por todos os lados filmado dia após dia lágrima após lágrima. Todo mundo no circo estava empolgado porque a vida nova havia batido na porta de todos. As viagens eram mais interessantes, as roupas mais bonitas, as maquiagens novas não davam alergia e a televisão deixava todo mundo bonito e orgulhoso. Ele sentia-se normal, nada de mais, um dia após o outro, perguntava-se se eventualmente voltaria à corda bamba, sentia saudades, ser equilibrista era a coisa primeira que o definia depois de todas as coisas primeiras das quais ele não lembrava. Uma noite, os produtores do documentário organizaram uma festa no circo porque achavam que ficaria bem no vídeo e, apesar de todos estarem ali porque todos moravam ali, foram todos filmados chegando, elegantes e alinhados, os homens firmes e fortes, as mulheres sorridentes, as crianças tímidas e ele, chorando, quem chora em festa, homem! e várias gargalhadas e ele mesmo ria em meio às lágrimas porque nessas horas você ri só para seguir o protocolo de sociabilidade e isso, é Porto Alegre - junho de 2017

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incrível, ele sempre soube como seguir e as fotos da festa ficaram ótimas. O documentário foi lançado e fez sucesso até o grupo todo voltar para o ostracismo porque chorar, na verdade, no fundo, todo mundo sabia e ele chorou para sempre, sem parar, até o fim dos seus dias e isso parou de ser surpresa porque as pessoas também pensavam hehe esse aí vive a vida do jeitinho que tem que ser porque que coisa difícil viver — era como andar na corda bamba.

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BRUNA DE SOUZA FIORENTIN &

JULIANA

MILMAN CERVO


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A FUGA

EM UM ATO

DE QUATRO CENAS

BRUNA DE SOUZA FIORENTIN JULIANA MILMAN CERVO

Personagens: Domador Equilibrista Palhaço Arauto Mímico Contorcionista Mágico Elefante ATO I — CENA I [Domingo. Por detrás das cortinas vermelhas do Circo Vagante, montado em Belovo (Bulgária), quarenta e cinco minutos antes do início do espetáculo das vinte e uma horas. A equilibrista, com um grande casaco encobrindo o maiô de lantejoulas vermelhas, sentada no banco redondo estofado. O palhaço, à sua direita, de pé, escorado na estrutura metálica que ajuda a manter o circo armado, roendo as unhas esmaltadas em preto. À esquerda da equilibrista, o mímico, coluna ereta e mãos no bolso, pressionando o lábio. Ao lado dele, o domador, pernas cruzadas, sentado em um banco quadrado de madeira de três lugares. Nesse mesmo banco estão o mágico a bater repetidamente a varinha na aba da cartola; e a contorcionista, acocada com as pernas para cima, acendendo um cigarro. Todos já afigurinados, cabelos montados com laquê, divagam sobre seus ofícios — enquanto as aparelhagens de luz e som são testadas.] DOMADOR — Hoje pude vislumbrar meu corpo sem braço. Foi por um fio de cabelo de anjo que o Elefante não me quebrou a clavícula com uma trombada! QuisePorto Alegre - junho de 2017

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ra eu exercer função mais branda neste circo. Quando acordo, antes do sol aparecer e dos animais abrirem os olhos, já me ponho a tramar estratégias novas para domá-los; cada dia é uma surpresa! Pior ainda quando trocam os bichos, por velhice ou enfermidade; tenho de enfrentar um desconhecido e cruel animal, faminto por liberdade. Tomando meu primeiro café, sento em frente à jaula e contemplo a fera a sonhar. Será que feras sonham? Pergunto-me com quê. Em minhas quimeras, anseio pelo dia em que conseguirei amansar meu monstro pesado, esse ser irracional que me assusta, enche minhas noites de temor e de pesadelos. Constrangido lhes confesso: já manifesto sintomas paranoicos; ouço um rugido, sinto logo um hálito em minha nuca e, quando verifico a veracidade da ilusão, percebo os ventiladores girando na prateleira do supermercado. Triste dom este meu, de domar uma fera por dia. Na próxima encarnação circense, quero nascer Arauto. EQUILIBRISTA [tira do bolso do casaco um vidro de perfume com uísque, abre-o e dá um pequeno gole] — Entendo a dificuldade do adestramento; porém, aposto o lucro desta noite que nenhum de vocês gostaria de estar no meu lugar. Por ironia do ofício, não consigo deixar o vício, a ansiedade me invade toda! Tem dias em que mal consigo equilibrar a colher do prato à boca, trêmula como um pêndulo desnorteado, cabeça pesada qual chumbo. Sinto medo de me espatifar no picadeiro quando fico sobre duas cadeiras apoiadas em garrafas ou quando caminho por sobre um arame mais frágil que o meu olhar. Nem sempre posso encarar o chão, mirar o público com suas esperanças... E raramente me basto com apenas um ponto de apoio como a maioria de vocês. Necessito de duas extremidades bem firmes para me cercear a corda, partida e chegada inarredáveis a me oprimirem outros caminhos! Fico tentada a seguir corrida para fora do circo, para um lugar onde eu possa andar com os pés inteiros no chão, onde eu possa ser louca de cabelos soltos, passo torto e rumo incerto. Porto Alegre - junho de 2017

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PALHAÇO [fazendo um carinho no ombro da equilibrista] — Sequer passou pelo meu chapéu a ideia de que seus ofícios fossem tão complicados... Sempre pensei ser minha a pior incumbência do circo. Sim, pois já pensaram em contar a mesma piada, todos os dias, manhã-tarde-noite e, de quebra, ninguém achar graça? Não é coisa à toa. Se não ouço risadas, recorro aos tombos; o público gosta de me ver sofrer. Quanto mais me machuco, mais palmas e gargalhadas. Ou seja, meu ganha-pão depende da minha queda ao chão, da minha submissão ao gozo da plateia. Também já pensei em trocar de laboro com o Arauto. FIM DA CENA 1 ATO I — CENA II [Simultaneamente à conversa de bastidores, o Arauto, sentado na cadeira mais próxima ao palco, observa o acender e apagar dos canhões de luzes; o movimento luminoso permite ao Arauto vislumbrar os artistas através de suas sombras desenhadas nas cortinas. O silêncio na arena possibilita que a parola de desabafos seja ouvida] ARAUTO [atento, cotovelo no joelho e mão no queixo. Em pensamento] — Não deveria, eu, estar bisbilhotando essa lamúria de dores que não se bastam dentro de si! Não estou... Estou com o texto aqui [pega as folhas que estavam na cadeira ao lado], ensaiando minhas falas. Está bem. Estou mentindo pra quem? Quero ardentemente ouvi-los. É tão raro ouvir profundezas. E tão confortante saber que meus abismos não são os únicos que ardem. Já decorei meu texto. Agora, desejo que o tempo demore a passar [olha para o relógio alto pendurado na lona à esquerda: faltam 28 minutos para o início do espetáculo]. FIM DA CENA II ATO I — CENA III [Voltamos para os bastidores] DOMADOR [dirige um olhar desconfiado ao Mímico] — E você? Duvido que se atormente pelo seu afaPorto Alegre - junho de 2017

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zer... Não corre perigos, não sente dor, ninguém cria grandes expectativas pelo seu número; a única coisa que deve fazer é simular caixas invisíveis ou escolher um vivente para imitar! MÍMICO [sem fazer gestos, mãos ainda no bolso] — Muito enganado você está, se pensa que meu dever é dócil. Contarei a vocês no que consiste fazer mímica e, tenho como certo, nem um há de querer trocar de lida comigo. A começar pela vestimenta. Minha fantasia é como a de um palhaço, porém sem cor. Ou seja, um palhaço sem graça, um tanto tristonho. Além de sem cor, sem voz. Não poder falar é das coisas mais difíceis. O público fica muito atento aos seus mínimos movimentos, para entender a cena que você está tentando contar; então, não está permitido aliviar uma coceira no nariz, ajeitar o suspensório, espirrar, soluçar, tossir, pois todo e qualquer gesto precisa fazer parte da história muda. Se os sinais não forem planejados, podem confundir a compreensão do espectador. E sabe o que é mais estranho? Às vezes, tenho vontade de calar de vez. Sim, porque, quando falo em voz, sinto que ninguém realmente me compreende ou faz esforço para tanto; parece que emito sons apenas para preencher um silêncio que as pessoas não suportam. Quando sou mudo, transmito em expressão somente o necessário, sem tagarelar nulidades, e todos me escutam. CONTORCIONISTA [apaga a bituca do cigarro com a sola do pé] — E eu, que também não falo, mas que preciso gritar com o corpo? Quem dera a minha dor se restringisse ao silêncio... ela é maior, já virou melancolia. Eu me desdobro feito tsuru, um pássaro de origami. Eis minha sina de liberdade: ser pássaro, mas ser papel. E depois de minguar meu corpo, de contorcê-lo todo até sua máxima coesão, sigo na paralisia extasiada, incapaz de voar. “Dobra, mulher. Dobra, dura!”, é o que escuto enquanto tento ser flexível em pernas, braços e tronco, mas a mente não segue essa maleabilidade. Posso rasgar-me ao primeiro vento! Porto Alegre - junho de 2017

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MÁGICO [revirando os olhos e iniciando um bocejo]. Esse ganido de vocês de nada me surpreende. Acaso é novo para qualquer um aqui presente que a arte começa, o público gargalha e todo espetáculo assim se monta, ancorado em nossos esconderijos e fingimentos? Quem há de ter estômago para ouvir essa choradeira, para ver a lágrima a borrar nossa maquiagem, para suportar o odor do corpo nervoso? O meu ofício consiste justamente em fazer parecer ser o que não se é. Por que vocês todos no circo permanecem, se já estão fatigados? As ilusões forjam o homem mais bem preparado, e por isso meto para dentro da cartola meu desencanto, e com cartas, varinhas e truques sufoco meu uivo. Sabem o motivo? Pois esse uivo não é instintivo, não é animal, esse uivo é nosso, insuportavelmente nosso. O domador pergunta se as feras têm quimeras, pois eu lhe digo, não! Nada mais humano do que se aborrecer com a mesmice da labuta, do que sentir dor e escamoteá-la, do que ficar insatisfeito dia após dia. O espetáculo vai começar, e não há tempo para delongas, ainda bem. Óleo sobre tela. Ilusão (2013). Cássia Acosta.

[Todos se olham entre si. Silenciam. O domador comprime a testa, como a duvidar da fala do mágico. O mímico ergue a sobrancelha, surpreso, com um movimento concordante de cabeça que parece encorajá-lo a seguir em seu trabalho. O cheiro de pipoca atravessa as cortiPorto Alegre - junho de 2017

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nas. A equilibrista começa a alongar o corpo, balançando o pescoço de um lado a outro. O palhaço veste o nariz vermelho, com semblante sério. O domador estala os punhos e malha seu chicote no chão. A contorcionista retoca a purpurina azul depositada ao redor dos olhos em frente a um espelho. O espelho reflete o espaço dos bastidores, com os personagens circenses.] FIM DA CENA III ATO I — CENA IV [O arauto pigarreia para aquecer a voz. Ele emite um suspiro longo. Seu olhar é fixo em direção ao palco. Em sua distração, não escuta os movimentos suaves que vêm de antes dos bastidores, rente à estaca da lateral esquerda inferior do circo. Assim como o arauto, nenhum dos demais artistas ouve o barulho da corda que se desprende, ao fundo. Um elefante caminha lentamente, para longe dali. Os olhos neutros, a pele acinzentada repleta de ranhuras, de marcas, contemplada de perto. O elefante, no completo silêncio, move-se na noite, sem olhar para trás.] FIM DA CENA IV — FIM DO ATO I — FIM Óleo sobre tela. Da série “De volta para casa”(2015). Cássia Acosta.

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26 Óleo sobre tela. Cássia Acosta.

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ESSA SUA

FLEXIBILIDADE

TODA Um agradecimento especial a Michelle de Lara, querida contorcionista que doou seu tempo para uma consultoria. Seu trabalho pode ser visto em instagram.com/michelledlara/

CAROLINE JOANELLO

Eu fico só imaginando o que essa sua flexibilidade toda pode fazer por mim. Pronto. A frase-chave. Determinante. A partir daquela frase, Pina pode decifrar uma série de situações que pareciam tortas, pareciam fora do eixo, mas não havia nada palpável, ou melhor, nada causal: foi isso porque aquilo. Eram situações sutis. O estranhamento do silêncio quando ela passava por um grupo de rapazes na rua; o desconforto ao ouvir elogios de alguns membros da equipe, especialmente os locais, que vestido lindo, onde você vai assim, como você está crescendo; o bloqueio em executar os movimentos novos que a mãe preparou para aquela temporada. Faz uns dois anos, desde que Pina começou a desenvolver curvas mais acentuadas, peitos, bunda, que a mãe vem ensaiando com ela algumas coreografias diferentes. Essa é a sua primeira performance solo fora do número dos palhaços. Até então, usava o contorcionismo para números de comédia, malabares e pequenos sketches entre uma atração e outra. A mãe insistiu numa sequência sensual. Não há nada mais bonito do que uma mulher no auge do seu potencial, diz, sempre que Pina reclama por algo mais grotesco. Por que não pode ser um demônio ou um bicho peçonhento? Eu fico só imaginando o que essa sua flexibilidade toda pode fazer por mim. Pina é capaz de visualizar todo o cenário como se estivesse fora do próprio corpo, a lanchonete não muito lotada, o chão de azulejos embarrados, o balcão de alumínio tomado de riscos que embaçavam seu reflexo, a atendente

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atrás do balcão reclamando do cheiro de gordura promovido pela coifa. E o cabelo da gente, como é que fica?, a atendente disse e deu uma piscadela na sua direção, tem de haver uma conexão entre elas, duas mulheres, as únicas duas do lugar, as únicas pessoas que precisam se preocupar com o perfume dos cabelos. Se fossem amigas, talvez Pina tivesse de atender a sessões de manicure, idas combinadas ao salão, como a mãe tentara fazer com ela diversas vezes, Vamos ao salão ficar lindas. Pedira um café enquanto esperava os baurus encomendados pela equipe ficarem prontos. Trazia o cabelo solto, um abrigo largo, o casaco fechado protegendo do frio e da chuva. Trazia a certeza de que pouquíssimas pessoas seriam capazes de reconhecê-la sem a maquiagem e o picadeiro ao seu redor. Mas ele a reconheceu. Fingiu que não. Chegou dizendo eu te conheço? Eu acho que te conheço de algum lugar. Pina tencionou os cantos da boca num código particular que dizia não estou a fim de conversa. Bebericou o café mais um pouco; ele se virou de costas para o balcão, apoiou nele os dois cotovelos e encostou de leve os dedos no cotovelo de Pina. Eram, os dois, só cotovelos, e estavam conectados pela pele. Ela apertou os braços o mínimo suficiente para desencostar da pele dele sem parecer de propósito, repelir sem ofender. Os sentimentos dos outros são importantes para Pina. Ele deslizou na direção dela, roçou os dedos com mais pressão e disse a frase no seu ouvido. Sussurrou a frase. Eu fico só imaginando o que essa sua flexibilidade toda pode fazer por mim. Pina sem ação por alguns segundos. Os dedos dele subiam e desciam no pequeno quadrante de braço acima do cotovelo. Talvez ela devesse responder alguma coisa, a respiração dele esquentava o seu lóbulo. De repente, o lóbulo se expandiu e fez muito calor no corpo todo. Pina girou o banco para o lado vazio do balcão e saiu da lanchonete. Eu vou estar na primeira fila esta noite!, ele gritou da porta do bar para a rua. Porto Alegre - junho de 2017

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*** E daí, Pina? Deixa que eles te olhem, tu é uma mulher bonita, tem que te acostumar com os olhares dos outros. Vai ficar com medo de homem, não vai nunca arrumar namorado. Tu quer ter um namorado, Pina? A voz da mãe pode ser ouvida por todo o acampamento e Pina sabe que esse assunto dá ideias para as pessoas ao redor. Então Pina quer um namorado. Então ela é grande, ela é safada, ela é flexível. *** Bem no centro do picadeiro, bem iluminada por um canhão de luz, Pina sente a calcinha incomodar bem ali no meio. Não deveria estar usando calcinha, o látex marca tudo, mas não tem nada que possa fazer que não seja enfiar o polegar e o indicador por cima do tecido e puxá-la para fora. E isso não pode acontecer ali, na frente de todo mundo. Por isso, além do calor, agora precisa aguentar essa sensação sem tirar o sorriso do rosto. A música começa. Birds flyin’ high, you know how I feel. Alguém da plateia grita um “U”. Pina desenrola de uma extensão completa, saindo de uma caixa sextavada de acrílico transparente. Breeze driftin’ on by, you know how I feel. Ao seu redor, globos de espelhos de todos os tamanhos. Faz uma reversão para fora da caixa. And I’m feelin’ good. O sax começa. A calcinha segue incomodando. O que ela quer agora é pinçá-la do meio da bunda, mas precisa continuar. Estica os braços para cima, desenrolando bem os músculos, enquanto dá uma, duas piruetas no mesmo lugar. Então sai a passos largos, por uma estradinha estreita escondida entre os globos, dominando bem o espaço do palco. It’s a new dawn, it’s a new day, it’s a new life for me. O holofote a segue. Na penumbra a caixa é removida e substituída por manjotas. Enquanto o holofote permanecer ligado, ela não conseguirá discernir as pessoas da plateia, nem mesmo na primeira fila. Finaliza uma sequência de movimentos com uma parada de mão Porto Alegre - junho de 2017

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em cima do aparelho. Seu controle é total, ela ouve vários “O” na multidão escondida fora da luz. Nem sempre ela faz os movimentos mais difíceis, embora o contorcionismo como um todo seja difícil. No entanto, dentro do ritmo da melodia tudo parece impressionante. Mas ela não quer impressionar, ela prefere ser invisível. Eu só fico imaginando o que essa sua flexibilidade toda pode fazer por mim. A luz do canhão refletida nos pequenos pedaços de espelho espalhados pelo cenário provoca inúmeros pontos luminosos que se movimentam junto com ela. A coreografia está tão absorvida que, quando dá por si, se vê a dois metros do chão, na lira. Um pequeno titubeio a faz escorregar de leve, nada que o público seja capaz de notar. Mas a mãe nota. Ela sabe que sua mãe já notou que ela não está totalmente concentrada e já viu a marca da calcinha por baixo do látex prateado. Ela gostaria que a mãe percebesse os olhares que Pina recebe em cada cidade e mesmo nos bastidores. Que lesse os comentários que deixam nos seus vídeos com a entonação que Pina confere a eles. Que tivesse visto o rapaz da jaqueta jeans se aproximando e dizendo que eu conheço você, de onde eu conheço você. Ele sabia quem ela era. Ele prometeu estar na primeira fila enquanto ela corria para fora da lanchonete. Ele só fica imaginando o que essa sua flexibilidade toda pode fazer por ele. Uma respiração profunda a traz de volta para o que está fazendo. Isso dá um pequeno descompasso entre a coreografia e a música, mas ela conserta rapidamente. Dobra a coluna no ar, se enrosca na lira e dá um leve impulso para que ela comece a girar, primeiro lentamente, aumentando a velocidade um pouco mais e um pouco mais, até que cada pequeno movimento que ela faça pareça impossível. Ele deve achar que ela não sente dor nenhuma, que é tudo muito natural. Que ela não passa várias horas por dia treinando, trabalhando, que ela apenas se diverte abrindo as pernas para tudo o que é homem por aí. Porto Alegre - junho de 2017

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A apresentação se encaminha para o fim. Pina apoia a lira na coluna e faz uma extensão até agarrar os pés com as mãos. It’s a new dawn, it’s a new day, it’s a new life for [me. Na música, Nina improvisa com a voz e a lira começa a descer. Então, a luz explode e os globos de espelho sobem lentamente em direção ao teto enquanto homens vestidos de preto correm para segurar Pina e levá-la para fora do palco, ela se deita nas mãos deles e observa a abóbada da lona recebendo os globos já sem vida. Eles a depositam no chão em frente à mãe atrás das coxias, alguns dão parabéns, os aplausos duram até o início da próxima música e da próxima atração. Os olhos dela magnetizam por alguns segundos em silêncio com os da mãe. Pina, o que acabou de acontecer com você? Comigo? O que aconteceu? Não houve nada. A mãe dá as costas para ela em direção ao camarim. A participação de Pina está encerrada, agora ela apenas precisa esperar pela parte dos agradecimentos e ajudar os outros a se prepararem. Atrás dos olhos da mãe, pinça a calcinha para fora e calça a sapatilha.

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O SOLO

DE SEU

SINHÔ

FREDERICO DOLLO LINARDI

Bem antes de assentarem o primeiro tijolo desse ca-

sebre, a lona já se recolheu há alguns meses. No bairro distante do centro, onde tanta gente vinda de outras partes do país ainda tenta encontrar um novo rumo, a vida de Seu Sinhô parou. Não que ele tenha morrido de morte que acaba com a vida. A sua ainda está aqui, vivinha da silva, mas vida que dói. Dói tanto que dá até vontade de sair pela porta de madeira dessa casa e apresentar para aquela redondeza estranha o seu velho número conhecido. Todos conheciam: Respeitável público, apresentamos para vocês a Madalena, a melhor e menor acrobata do mundo! A menor acrobata do mundo! Junto de Seu Sinhô, entrava o Xeroso, repetindo sempre e apenas as últimas palavras que Seu Sinhô dizia e carregando na mão e nos ombros tudo para montar uma mesa com um bolo confeitado, já que naquela noite também se comemorava o aniversário da Madá. E depois da apresentação, todos iam cantar parabéns, pois além de acrobata, a fantástica Madalena também sabia assoprar velinhas. E se ali na plateia tivesse alguma velha com calor, bem calorenta, Xeroso se oferecia para levar a Madalena até lá para fazer um ventinho. Cala a boca, Xeroso! Fica aí na mesa e não atrapalha nosso número. E assim obedecia Xeroso que, vale dizer, poderia ter o nome de Catinguento de tão fedido, maltrapilho e beberrão. Não tinha mesmo a mínima noção. Mas naquele dia se esforçava: arrumava a toalha, o bolo, a velinha, a garrafa e os três copos na mesa para o brinde logo em seguida. Porto Alegre - junho de 2017

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Lá estava ela, saindo de uma caixinha de fósforo que Seu Sinhô tirava do bolso, lá estava ela: Madalena, a pulga — Ohhhh….! E para demonstrar seus incríveis saltos, Seu Sinhô usava uma trena, com sua fita metálica esticada como apoio, como corda-bamba, para cada pulo da sensacional Madalena. Quando ela saltava para os céus, a fita se matinha esticada e, a cada volta, com o peso da aterrissagem, a fita se dobrava comprovando a presença daquele talento inenarrável e, claro, da manipulação habilidosa de Seu Sinhô. Aos olhos da plateia, Madalena brilhava, mesmo com sua invisível pequenice. E ficava mais surpreendente: fazendo um looping no ar, a pulga pulava da fita metálica e ia direto para o saquinho de papel, e pulava de volta à fita métrica, andava por ela e então recebia um carinho para se preparar para o grande número. Mas, oh não, algo saía errado! Madalena, ao invés de seu salto certeiro, caía na garrafa da mesa — a garrafa do Xeroso, o palhaço catinguento de tão fedido, maltrapilho e beberrão. Madalena — coitada, logo ela, tão ensaiada, tão treinada, tão amada, tão bem-tratada, tão habilitada e talentada — Madalena, pobre coitada! Ficava tão mamada que parecia não saber mais nada de nada. Nadava na pinga do Xeroso e saía toda embriagada. Ao invés de saltar para o alto, saía em pulo manco, em pulo pingado, bem safado. A apresentação olímpica ficava comprometida. Seu Sinhô, o adestrador de pulgas, fuleiro da vida! Imagine que Madalena, ao invés de voltar para o saco de papel, pulava para dentro das calças de seu querido dono. Coça dali, coça de lá, esfrega a bunda no picadeiro (a frente não dava para esfregar…). O melhor era pegar água para aliviar. Mas de quem? A primeira coisa ao alcance era aquela mesma, a marvada, aquela água do capeta que o miserável do Xeroso tinha feito o favor de trazer bem na frente de todo mundo. A pinga aliviava a coceira, mas para a pulga, aquilo não era brincadeira. Tadinha da Madalena, morria sem perceber, bem diante da plateia sedenta pelas incríveis acrobacias aéreas. Não restava nada a fazer a não ser um enterro decente para a coitadinha que ia para o céu. Mas na hora de achar o corpo do bichinho, Xeroso — aquele palhaço catinguento, Porto Alegre - junho de 2017

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fedido, maltrapilho e beberrão — dava um berro e uma má notícia: a pulga, na verdade, estava muito viva e tinha pulado agora para dentro do copo na mesa e que aquela pulguinha morta dentro da cueca era, na verdade, outra coisa tão pequeninha quanto ela... Agora eu te pego, Xeroso, seu cara de pau! E antes que o parceiro bêbado pudesse perceber, vinha-lhe um tapa na capa bem certeiro e um chute bem dado no seu traseiro. Só que mesmo na manguaça, ninguém deixa barato. Era aí que vinha o troco desse parceiro tão desastrado, mas com a mira afiada: aquele bolo lindo e confeitado, bem no meio da cara. E nessa confusão, os palhaços saíam numa eterna perseguição. Isso não deu no telejornal. Seu Sinhô ganhou esse nome no Nordeste, onde o circo fez fama, dinheiro e lhe trouxe um amor. A fama e dinheiro Seu Sinhô conseguiu guardar, economizar e até comprar um terreninho para um dia construir uma casa em solo firme. Não queria para si, mas para os filhos que um dia viriam. O futuro lhe apontava que a educação seria importante. Com sangue de circense, seus filhos já nasceriam. O orgulho de ter serragem no sangue era só para quem nascia no picadeiro, de onde até se pode sair, mas não é qualquer um que consegue se aprochegar assim, somente no desejo de ser parte. Sabia desde pequeno que gente de circo não é de circo por causa de papel carimbado e assinatura de homem importante. Gente de circo vem de antes de qualquer certidão. Vem da nascença, de gente que sabe erguer o mastro, atar as cordas e abrir a lona. E quem sabe desfazer isso tudo para em outro lugar recomeçar. O palhaço viu que as coisas não poderiam ser assim por muito tempo. Ou que talvez um dia o recomeço seria sob um telhado mais duro que a lona e rodeado por janelas cujas paisagens jamais mudariam. Se nesse dia já tivesse filhos, precisaria mostrar-lhes algo além da genealogia circense, que até naqueles tempos unia família e profissão. A escola deles seria de lápis e papel e, o futuro, uma Porto Alegre - junho de 2017

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carteira com assinatura e cargo profissional. É que a lona já começava a se mostrar insuficiente, quase invisível em meio às luzes da cidade. Sua Madalena também devia ter pressentido: entre seus voos pelo ar vinham novas ondas, as ondas da televisão. O circo já não era mais o único a chegar pelos interiores. Os aplausos começaram a rarear em poucos anos e o povo preferiu aplaudir artistas em branco e preto por detrás da tela de vidro. Novidade é novidade e, quem não quer ficar para trás, que acompanhe. Foi logo depois de uma torta na cara e uma eterna perseguição de volta para a coxia que Seu Sinhô teve a notícia que jamais quis. Todos já esperavam. Foram dezoito os presentes naquela noite, um pouquinho mais do que na noite anterior. Não tinha sequer uma senhora na plateia para fazerem a piada da velinha do bolo e, mais uma vez, precisaram usar Dona Jacy, a mulher do domador, para simular a interação. Dentre os dezoito que mal preencheram a arquibancada, nem poderiam computar na receita da noite o casal com os três filhos, em contrapartida pela não cobrança do aluguel do terreno durante toda a temporada. Era o mínimo que poderiam oferecer pela generosidade. Treze pagantes no total. Destes, quatro crianças a preço reduzido. Talvez por esse fim anunciado, o dono do circo dispensou grandes justificativas na hora. Apenas dividiu o cachê daquela noite com o elenco. Poucos cruzados e miseráveis centavos. O empresário em decadência ainda ritualizou a despedida com um conforto para a trupe: daquelas últimas noites, não tiraria nada para ele. Todo o caixa da bilheteria, pipoca e algodão-doce de todo o final de semana seria apenas deles, dos artistas, em gesto de gratidão. Dessa vez, o fim da turnê não era mais aguardar pela próxima. Toda aquela década de 70 já vinha lhes dizendo. A cada circo desmontado para sempre, uma leva de circenses aguardava alguma mudança enquanto não encontravam outro trailer para acomodar suas malas. Num país tão vasto, com tantas cidadezinhas onde pouco se chegava, Porto Alegre - junho de 2017

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durante outras décadas haviam sido eles — mágicos, trapezistas, malabaristas, contorcionistas, domadores e palhaços — os responsáveis por levar acontecimentos que só eram possíveis de ser vistos assim, com gente de verdade e colorida. Era a vida em encantamento, acontecendo diante dos olhos de senhoras, senhores e crianças de dois a oitenta anos. Em cidadezinhas e sertões parados, o circo circulava como sua própria natureza pedia. Agora esses artistas haviam encontrado substitutos distantes no entretenimento. Seus últimos capítulos tiveram pouca audiência. E apesar do sucesso e boa poupança de outras épocas, Seu Sinhô viu seu amor partir antes mesmo de qualquer casório ou do último baixar da lona. Ela era uma alma ainda mais livre e, e mesmo que tenha visto no circo uma oportunidade de conhecer novas terras, foi numa das capitais que encontrou seu ponto de chegada, sem mais partida. Conheceu um empresário muito rico, que de tão rico era milionário. Tinha casa grande, uma verdadeira mansão. Viagens, agora, só de passeio e, quiçá, ela conheceria até mesmo o exterior. Seu Sinhô sofreu, mas aceitou e entendeu sem dificuldade. Nessa vida tão errante, poucos vindos de fora do circo conseguiam aguentar, pois o essencial está no risco, no risco desta arte que não existe em segurança. Por mais que seu trabalho mantivesse seus grandes sapatos perto do picadeiro, sua existência era constantemente colocada à prova. Sem precisar de cabos de aços amarrados na cintura ou redes de proteção aliviando suas quedas, sua morte estaria estampada na falta de brilho no olhar da plateia e no silêncio do riso. E foi assim, não sob a lona, mas dentro de seu vagão, que ela o fez entender sobre o fim. Seu Sinhô — mestre em saber que o simples passar pela vida de alguém, mesmo em poucos minutos, poderia mudar uma existência inteirinha para sempre — entendeu. Era palhaço, um transformador de momentos, que, da mesma maneira que chega, sabe quando sair. Ela também parecia ter aprendido. Transformou sua vida por um instante, mas depois decidiu que era hora de partir. Seu Sinhô seguiu viagem com o circo quando os Porto Alegre - junho de 2017

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mastros se desceram mais uma vez e a lona colorida foi dobrada e guardada até o próximo ponto. Teria sua gente, seu parceiro de cena e sorte para encontrar mais alguém, quem sabe, numa próxima cidade. Foi depois de algumas temporadas que o circo parou. Foi aquela parada que os espetáculos não querem que chegue, aquela que é mais dura do que quando o corpo cai no chão, do que quando o coelho não sai da cartola, do que quando o globo da morte dá choque, do que quando o tigre foge da jaula. Aquele parar sem riso, sem graça, sem aplausos ou pedido de mais um. Foi assim naquela última noite de espetáculo em que Seu Sinhô se deitou para dormir sem conseguir, pensando como seria quando o sol se levantasse. E o dia seguinte veio, claro. Aquele terreno que anos atrás havia comprado perto dos ventos do Sul continuava lá. Dos sonhos que plantara em seu coração, apenas mato e entulho no lote sozinho rodeado por pequenas casas que nasceram com o correr do tempo. Seus amigos circenses também tentavam aprender na vida fora do circo a ser alguém que não sabiam muito bem como era. Fora do picadeiro as coisas pareciam bem mais hostis. Distante daquele espaço de sonhos infinitos, a realidade sufocava. A contorcionista, que confeccionava figurinos, mudou-se para a casa de uma amiga e tornou-se costureira. Com a economia que tinha, fez curso de cartomante. O mágico teve um tanto mais de sorte, com festas infantis que lhe traziam um bom retorno, mesmo sem satisfação alguma. O domador, que já estava mais velho, mudou-se com sua esposa, Dona Jacy, a malabarista (e que, na falta de público, era também a velhinha na cena dos palhaços), para uma pequena cidade do interior e, com suas pequenas aposentadorias, conseguiriam viver ao sabor de uma vida simples, porém tranquila. Xeroso propôs para Seu Sinhô procurarem trabalho em festas de aniversário de crianças. Mas aquilo parecia muito deprimente para o velho palhaço e, com todo respeito de amigo, acabou recusando a ideia. Então Xeroso, que tantas vezes fizera cenas como aquele tipo catinguento de tão fedido, maltrapilho e beberrão, sePorto Alegre - junho de 2017

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manas depois encontrou um destino inesperado. De volta a São Paulo, onde morava sua família, foi contratado por um grande circo que ainda resistia. Ao andar pelos arredores do Largo do Paysandu conheceu seu novo patrão e, vejam só, seu futuro sogro também. Xeroso começou a apresentar novos números, mas continuou a ser aquele mesmo palhaço. Fora do picadeiro, no entanto, sua vida ficou bem mais perfumada e confortável. Já Seu Sinhô vendeu seu terreno para inteirar na economia e conseguir pagar um aluguel enquanto não conseguisse um novo trabalho. Nos primeiros dias em que deixou de ser errante, perdeu sua direção. Pudera: fora da lona, do trailer e em plena cidade, o palhaço não era seu e muito menos senhor. Seu nome no documento, para ele, uma mentira. O número do registro geral, genérico e aleatório. Uma incompreensível sequência sem sentido. Sequência de memória mais complicada do que útil. Os números que Seu Sinhô preparava para seu público eram mais simples, no entanto, mais grandiosos. Tão grandiosos que cabiam até num picadeiro. Tão enormes quanto os saltos estratosféricos de uma pulga. Afinal, quantas medidas do seu próprio corpo uma pulga bem treinada como Madalena era capaz de saltar? Essa não era uma resposta fácil de saber, mas ele sabia: quinhentas e quarenta e sete vezes. Ele costumava calcular para seus exatos registros que impressionavam as crianças. No casebre pobre e vazio, o baú contém muitas histórias. É tudo de que ele precisa, assim como aconteceu durante a vida toda. Roupas, gravatas, suspensórios, ceroulas, meias longas, maquiagens, um pequeno bumbo, uma flauta, um pano, um espelho, lenços de pano, um chapéu, a trena com a fita métrica metalizada, um sanduíche de mentira, um saco de soltar pum, um balde de fundo falso capaz de transformar água em papeizinhos coloridos, e um chorador que solta o choro exacerbado do palhaço em esguichadas loucas para molhar a plateia. Agora Seu Sinhô, em seu solo, sente a dor do viver sem ser o mesmo. E de tanto doer de vida enjaulada, o vePorto Alegre - junho de 2017

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lho palhaço é capaz até de abrir a porta de madeira, olhar aquela rua movimentada, mas ainda assim entediante: Respeitável público, prepare-se para o maior espetáculo da Terra! Com vocês a Madalena, a melhor e menor acrobata do mundo! A menor acrobata do mundo! E assim, antes de abrir a porta de madeira de sua casa, antes mesmo de botar os pés na calçada e o nariz ao vento, Seu Sinhô sente que alguém se aproxima. Talvez sejam os vizinhos à espera daquele novo morador estranho. Aquele que lhes desperta sensação tão intrigante, pois ouviram dizer que se trata de alguém de circo. Gente esquisita, sem casa, sem rumo certo. Ciganos, ladrões de crianças; palhaço, ladrão de mulher, dizem tudo isso e mais um pouco, sem que Seu Sinhô nada escute. Ih, melhor ficar longe daquele cara estranho. Do outro lado da porta de madeira, eis seu público desta noite. O único que ele terá por ora. Sem combinar, sem pagar ou pedir licença, de pelo amarelo e molhado, focinho gelado e rabo abanando, um cão se mostra o ser mais disponível para o velho palhaço que, então, se senta na soleira ao lado do animal. Seu Sinhô olha para a rua vazia; o cachorro, para a sala, piscando os olhos com a tranquilidade de quem tem pouco a perder. Seu Sinhô sabe como é. Não carece falar nada, mas fala. Sabe, você precisa conhecer a Madalena.

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O ÚLTIMO

CIRCO DE PULGAS

GUSTAVO MELO CZEKSTER

Levou algum tempo para entender o que acontecia, mas, quando conseguiu, tudo se tornou claro. Havia algo desconfortável nos olhos dos habitantes de Poço Claro, algo de neblina, que insistia em se esconder dos forasteiros como se fosse o curso caudaloso de um rio, deslizando para longe de um olhar mais incisivo ou de uma pergunta mais indiscreta que tentasse decifrá-lo. No início, achou que era a timidez característica de interioranos tendo que conviver com gente da capital, mas logo chegou à palavra que definia o comportamento dos moradores da região: resvaldiço. Eles eram escorregadios e distantes; sempre presentes, mas com um pé prestes a se afastar a qualquer sinal de perigo ou de uma curiosidade um pouco mais indiscreta. Soares chegara na manhã de terça feira e se hospedou no único hotel da cidade. Ligou para a empresa, e o chefe disse para ele ficar alguns dias em Poço Claro enquanto definiam qual era o seu próximo destino; não valia a pena voltar à capital se talvez precisasse prosseguir com as vendas na mesma área. Era normal que isso acontecesse, mas Soares nunca precisou permanecer em uma cidade tão pequena. Não tinha cinema, teatro, e nem mesmo um puteiro digno. Era uma população de trabalhadores rurais, ocupada com a colheita de maçãs. Trabalhavam de forma incessante, dormiam cedo e acordavam mais cedo ainda, e até mesmo os jovens pareciam mortiços à luz de aquarela que se despejava do céu ainda inocente. Com poucas exceções, as mulheres não tinham maiores atrativos, e as que estavam casadas sequer permaneciam na rua. Poço Claro era uma daquelas cidades que levaram a arte de não acontecer nada ao seu extremo; um local esquecido e Porto Alegre - junho de 2017

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esquecível, em que as fachadas das casas se sucediam em monótona linha, em que ninguém fechava as portas e em que o latido de um cachorro era tão inesperado quanto o estilhaçar de um vidro. Era tarde de quarta feira. Soares sentia-se enlouquecer de tédio, imerso naquela sensação de imobilidade do tempo enquanto o sol deixava marcas de suor na sua camisa amassada pelas viagens, quando viu o cartaz cansado e de cores desbotadas em uma parede próxima ao hotel: “hoje à noite, não percam: grande espetáculo do último circo de pulgas do mundo!”. Deteve-se por algum tempo na frente dele. Não espantava que o único evento capaz de romper o marasmo de Poço Claro fosse algo tão desinteressante quanto um circo de pulgas. Lembrava-se que o seu avô comentara com ele que, na sua infância, o grande acontecimento da cidade era ir ao circo, mas nunca ninguém mencionara um circo de pulgas. Eles amestravam insetos? Como faziam isso? Não tinha nada mais interessante como programa, então resolveu conhecer o “último circo de pulgas do mundo”. Naquela noite, durante o jantar, enquanto lia uma revista de duas décadas atrás descrevendo um relacionamento recém iniciado entre dois artistas que, inclusive, já estavam mortos, Soares escutou um tapa e um gemido, e o som foi tão inesperado ao quebrar a pachorra típica do restaurante do hotel que ele sentiu um arrepio se espalhar pelo braço, quase como se estivesse prestes a descobrir o maior dos segredos sobre a cidade, o que deixava eles tão amorfos, tão sem energia. Virou a cabeça, e a dona do hotel coçava o braço, desajeitada. Ao perceber que tinha chamado a atenção do único hóspede, ela soltou um sorriso discreto e perguntou se ele ia ao espetáculo de mais tarde. Soares concordou, um sorriso polido de quem não deseja prolongar a conversa, e disse que não perderia por nada no mundo. Se a mulher entendeu a ironia não demonstrou, e os dois seguiram o seu destino de estranhos perfeitos interligados por um hotel perdido no meio do nada com coisa nenhuma. Porto Alegre - junho de 2017

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O vendedor foi ao quarto e colocou a “roupa de gala”, que era o conjunto de calça e camisa usado durante as ocasiões mais solenes nas suas viagens. Gostaria de ter mandado a roupa para lavar, mas o hotel não tinha serviço de lavanderia. Ela cheirava a suor velho e a outros bancos de ônibus, mas era o que tinha para o momento, precisaria aguentar. Ainda mais por que o calor insuportável espalhava-se como uma onda opressiva sobre a cidade, deixando o ar seco e pairando furiosamente entre as pessoas, ansioso para que, ao menor sinal de provocação, pudesse se despejar sobre elas e convencê-las a cometer crimes inomináveis. Desde que chegara à cidade, Soares sentia uma pressão invisível a lhe atormentar, e lembrou-se de seu Arlindo, colega de profissão, que morrera em uma anônima cidadezinha do interior depois de uma crise alérgica: o chefe fora ao enterro e contara que seu Arlindo teve tempo de escrever duas palavras: ÁGUA e DESCULPA. Desculpar-se pelo quê?, Soares perguntou, e o chefe disse que sempre temos alguma culpa no cartório e, na dúvida, era melhor se desculpar antes de acertar as contas com o Altíssimo. Ele não tinha pecado algum pelo qual precisasse pedir desculpas. Seu Arlindo era um fraco: homem de verdade não precisa ficar olhando para trás e pedindo perdão pelo passado. Mesmo os poucos crimes que cometera — uma fraude aqui e ali, um espancamento ocasional das suas ex-mulheres, a filha para quem não pagara pensão e agora ouvira dizer que morava na zona — não eram culpa sua, e sim dos outros. Foram eles que o provocaram. Soares se considerava um bom homem, mas bondade — assim como paciência — tem limite, e um homem às vezes precisa ser duro para sobreviver nesse mundo selvagem. Portanto, quando foi ao circo naquela noite, a intenção de Soares era se divertir, assistir a uma atração inusitada e, quem sabe, se tivesse sorte, espichar os olhos para algum par de seios ou de coxas que pudesse lhe acalentar enquanto não saía da cidade. Ainda estava caminhando pela estrada deserta quando a abóbada iluminada no meio do campo escuro lhe chamou a atenção. Esperava Porto Alegre - junho de 2017

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um circo modesto, com cadeiras de plástico ao ar livre, mas espantou-se ao perceber uma estrutura semelhante a um disco voador, com luzes azuis, amarelas e vermelhas que se derramavam em meio a um descampado. Ao redor, silhuetas de vacas e de cavalos pastavam, deslocadas pela magnificência do circo. A outra surpresa teve ao chegar na fila para comprar o ingresso e ver que boa parte da cidade esperava a sua vez. Olhares curiosos lhe foram dirigidos, assim como os inevitáveis sussurros e risadinhas. Ele era o elemento que destoava do ambiente. Era quase a maior atração do circo, por pouco não suplantando as pulgas. Preso no interior da sua roupa amarfanhada e dormida, sentindo o suor escorrendo em rios arrepiantes ao longo das suas costas, Soares não interagia com as outras pessoas, que lhe tratavam como a um conhecido distante. O vendedor também se irritava um pouco com o desagradável hábito dos moradores da cidade de ficarem o tempo inteiro se estapeando e se batendo, tentando acertar mosquitos invisíveis. Curiosamente, os insetos não lhe afetavam — estaria ele cheirando assim tão mal? —, mas os outros habitantes de Poço Claro estavam o tempo inteiro fazendo movimentos bruscos, afastando os onipresentes zumbidos que infestavam o ar. Um que outro gemido às vezes escapava da massa de pessoas, quando o tapa ou golpe era mais forte do que o imaginado, mas o coral formado por dezenas de tapas, tapinhas e tapões desferidos contra os próprios corpos era algo enervante. Comprou o ingresso e sentou-se na arquibancada, tentando se misturar aos habitantes de Poço Claro, ainda que eles deixassem bem claro que Soares não pertencia ao local. Tentou puxar conversa com uma senhora ao seu lado, mas ela respondeu com monossílabos e, a seguir, tapou o próprio rosto com um escandaloso leque impregnado de cores. Na sua direita, um menino o contemplava fixamente como se estivesse olhando um alienígena, e aquele olhar pasmo, meio entorpecido, lhe despertou inquietude. Perguntou o nome e a idade do menino, mas ele não respondeu, continuando a encará-lo. Por um breve segundo, Porto Alegre - junho de 2017

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graças às luzes frenéticas que infestavam o circo, julgou ver mosquitos caminhando sobre a pele da criança, mas ela não esboçou nenhum gesto para afastá-los, e logo a ilusão se desfez. Era exatamente nove horas da noite quando o espetáculo começou. O silêncio no circo era absoluto. Soares olhou ao redor e percebeu muitos rostos com que estava acostumado nos últimos dias; podia arriscar que a cidade inteira estava ali, cada um vestindo as suas melhores roupas, os rostos atentos voltados para o picadeiro. O clima era muito solene, e não se espantaria caso tocassem o hino nacional. Um homem saiu do fundo do palco e carregou uma caixa até o centro, colocando-a debaixo de uma luz que saía do teto. Todos os holofotes concentravam-se no mesmo ponto quando a caixa se abriu sozinha, as abas caindo para o lado. Soares apurou o olhar na direção do pequeno picadeiro que estava contido pela caixa — e não viu nada. Por maior esforço que fizesse, não conseguiu divisar nenhuma pulga, e interrogou-se se não faria parte de um bem elaborado plano, e daqui a pouco a cidade inteira iria revelar a verdade e rir da sua cara. Pareceu-lhe muito esforço para pouco resultado prático. Por alguns segundos ficou olhando para o pequeno picadeiro, esperando algo que acabasse com a inércia, um grito, um movimento, uma gargalhada, um rompante do mundo real naquela situação estática. Ao seu redor, o som discreto de tapas e bofetadas às vezes soava em meio às sombras que formavam o público, mas estava se habituando a eles. Quando viu a pequena carroça mexendo no palco do circo de pulgas, quase não conteve um grito. Elas estavam ali, diante dos seus olhos, e Soares não vira. Não havia nada que autorizasse a pensar que estavam sendo manipulados ou enganados. Ao contrário: apurando bem o olhar, só agora o vendedor conseguia ver uma frenética atividade sobre o palco miniaturizado, com vários pontos que pulavam e se deslocavam de forma incessante, enquanto a carrocinha girava. Enquanto o último circo de pulgas do mundo se apresentava, Soares percebeu que não podia divisar com Porto Alegre - junho de 2017

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clareza os insetos, somente os atos que eles realizavam. Não sabia se eram dez, vinte ou milhares, mas que elas formavam um único organismo, que andava em carrocinhas, que se dependurava em trampolins, que pulava em tanques diminutos de água levantando pequenos “splash”, que caminhava na corda bamba segurando uma sombrinha. A miniatura de circo mexia-se de forma demoníaca, manobrada por seres quase invisíveis, enquanto o vendedor só podia adivinhar o esforço de muitas pulgas para construir aquele espetáculo que jamais seria assistido na sua plenitude. Pensou que, para Deus, os humanos deviam ser como aquelas pulgas: o dia inteiro andando de avião, fazendo guerra ou se amando, mas, de longe, era só um amontoado de pontos disformes em movimentos quase cíclicos, confundindo-se, esbarrando-se, agitando-se. Talvez Deus só nos visse como um grande circo que não sabia a hora do espetáculo acabar. Um grupo de pulgas sem um condutor, insetos à deriva no Universo. Da mesma forma inesperada com que tinha começado, o circo de pulgas parou todas as suas movimentações. Soares esperou alguns segundos, em dúvida se o espetáculo continuaria, quando percebeu que ninguém mais estava se estapeando em meio à plateia. Os mosquitos, com suas picadas e fisgadas, tinham desaparecido. As pessoas pareciam aliviadas, como escravos que, enfim, tivessem ganho uma folga nos seus afazeres. Ao seu lado, os olhos do menino resvalavam por todos os cantos sem se deter nos seus, e Soares identificou outro sentimento — culpa. A mesma que estava nos olhos da velha mantidos atrás do leque, a mesma que se esquivava por trás de todos os habitantes de Poço Claro. Ergueu-se na arquibancada a tempo de ver o chão do picadeiro mexendo-se com milhares e milhares de pontos escuros repletos de inquietação e fome. A primeira picada das muitas que se sucederiam foi no seu pescoço, e o tapa que desferiu, misto de espanto e inutilidade, lhe machucou mais do que a picada em si. O circo inteiro fervilhava, uma onda de pulgas furiosas que enchia a noite e o mundo com seu cicio rastejante, e Soares cambaleou até Porto Alegre - junho de 2017

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o centro do palco, soltando risadas que se assemelhavam a guinchos, enquanto tudo o que conseguia pensar era desculpa, desculpa, desculpa.

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O SENHOR

MACACO

ALEXANDRA LOPES DA CUNHA

“Um circo! Na cidade!”. As mãozorras desajeitadas arrancaram o cartaz recém-colado no poste da rua, a poucos metros da escola. Iúlia quis repreender o irmão, mas ele ignorou-a, dobrou o cartaz em dois e colocou-o dentro do casaco. “Engolidores de fogo, atiradores de facas. Quem sabe leões e elefantes, Iúlia?” A menina sobressaltou-se. Que malvado seu irmão se tornara ao crescer, pensou a menina. Ele sabia o quanto ela sofria ao ver os animais enjaulados, ou a fazer coisas estranhas sob o estalar dos chicotes. Tudo ficou ainda pior quando lhe disseram, ou melhor, seu irmão fez questão de esclarecer, como treinavam os elefantes a dançar: colocando uma chapa estupidamente quente sobre as suas patas, enquanto tocavam uma música alegre. O pobre animal não tinha remédio que ir alternando as patas no chão. Não dançava, tentava escapar da tortura de ter os pés queimados. Depois de várias repetições: música e chapa quente, retirava-se a chapa, tocando apenas a música. Iúlia chorou, compadecida, foi contar para a mãe, que apenas ralhou com Casimir, enquanto este se defendia dizendo que tinha apenas contado à irmã a verdade. “Reflexo condicionado, irmãzinha” E Casimir chorava de rir diante das lágrimas compungidas da menina. “Circo, Aleksei, circo!”, gritou e correu para alcançar o amigo, deixando a irmã para trás. Iúlia tentou chamá-lo de volta, era a sua obrigação acompanhá-la, mas ele disparou na frente, deixando-a sozinha. Ela tentou tranquilizar-se. Afinal, já tinha dez anos e o portão da escola estava logo ali. Era só contar os passos e, pronto, em um instante, lá estaria. Engoliu o choro (o Porto Alegre - junho de 2017

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irmão sempre a chamava de chorona), abraçou com força seus livros, fixou o olhar nas fivelas de seus sapatos e recomeçou a andar, contando mentalmente. Odiou o irmão. Odiava-o há algum tempo, desde que ele crescera. Foi como em um passe de mágica. Antes, caminhavam em direção à escola juntos, como dois irmãos. Antes, Casimir gostava dela, brincava com ela e a protegia. Mas então, o irmão cresceu. Foi de um dia para o outro: em um dia, tinha treze. No seguinte, quatorze anos e virara um gigante, todo braços e pernas, uma coisa espantosa. Compridas, desajeitadas, comicamente peludas, para a surpresa da irmã caçula. Não compreendia. Para ela, Casimir fora dormir com as pernas tão lisas quanto às dela e despertara coberto de pelos, pois os tinha também pela cara. Algo estranho, feio até, pensava, já que todos os homens que conhecia, seu pai, seus tios, raspavam aqueles pelos duros e escuros da cara. Tinha fascinação pela cerimônia do barbear: bacia de água quente, o sabão e o pincel, a navalha brilhante e muito afiada. Temia que o pai cortasse a garganta e morresse. Como sabia ele até quando pressionar o fio da lâmina contra a pele? Um mistério. Desejou que Casimir cortasse o próprio pescoço e sentiu vontade de chorar. Sou má, sou muito má, dizia para si, enquanto contava os passos. O vento assoviava, era como uivos de lobos e tinha tanto medo dos lobos! “Não há lobos na cidade, sua boba”. O irmão ria de seus medos, este irmão peludo, dentes salientes e risada lupina. Falta pouco, pensava. Lá estava o portão, a torre da escola com seu relógio parado. Já chegavam outras crianças. Casimir já entrou... Casimir me deixou, pensou, mais uma vez, refreando o choro. O circo. Pensou no circo e no quanto iria detestar o espetáculo. Tudo lhe dava medo: e se o trapezista não conseguisse segurar os braços da trapezista vestida de bailarina? E se o atirador de facas errasse a maçã sobre a cabeça loira da sua linda assistente? E se os palhaços viessem em sua direção com seus balões cheios de água e cornetas estrondosas? Odiava-os, eram tão feios, tão maldosos! Porto Alegre - junho de 2017

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E se houvesse a tenda de curiosidades? Sempre coisas estranhas: as mulheres barbadas, mais peludas que Casimir e seu pai, os gêmeos siameses, os pigmeus africanos, o Homem-elefante? Por que as pessoas se interessavam, ou melhor, se divertiam com as misérias alheias? Acaso seriam felizes aqueles seres, por vezes enjaulados, e sempre alvo da curiosidade alheia, das risadas alheias? Iúlia sofria por antecipação ao imaginar os números do circo, a música pretensamente alegre, mas ruidosa, acima de tudo, feita para atordoar. “Tomara que eu fique doente e mamãe e papai me deixem ficar em casa”, Iúlia ouviu-se dizendo, assim que atravessou o portão da escola. Pediu ao seu anjo da guarda este milagre, pois nunca ficava doente. Sabia que os pais gostariam de ir. A chegada do circo seria o maior acontecimento durante muitos meses, se não do ano inteiro na cidade. Pediu e encarou o relógio da torre, congelado nas mesmas horas de sempre, e suspirou, aliviada. Foi apenas ao chegar ali, quando caminhava em direção à sua sala de aula que deixou de apertar os livros contra o seu corpo e esqueceu-se do circo e do irmão. Uma trégua de poucas horas. Não ficou doente. De nada adiantou pisar o chão frio sem meias ou dormir com as janelas abertas, vencendo o medo que tinha de assim deixá-las. Acordou no domingo radioso de primavera, sã e corada. Não havia remédio. O circo a esperava. Domingo e todos estavam empolgados, vestidos em suas melhores roupas. O pai tomara o banho e fizera a barba, Iúlia presenciou o cerimonial da bacia com água quente, o sabão feito em espuma, a navalha deslizando sobre a pele. Seu coração ora parecia desistir de bater, ora martelava no peito, enquanto a lavavam, vestiam, penteavam: as duas tranças loiras a ladear sua cabeça, o vestido vermelho e as fitas de veludo negro, as meias de renda branca e os sapatos de verniz. Sentia-se como se fosse a um velório. Casimir, eufórico, saíra antes com um grupo de amigos. Iam ver a tenda das curiosidades, tentar a sorte no tiro ao alvo. Iúlia teve de aguardar e sair com a família. Porto Alegre - junho de 2017

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Foram na charrete, os dois cavalos à frente, Iúlia e seus pais, mais a tia solteirona que morava com eles, uma mulher pesada que mal podia conter a empolgação e dava gritinhos estridentes, perturbava os cavalos, já não bastava os dois animais terem de se esforçar para carregar a eles todos, ainda serem perturbados por aqueles guinchos? Debaixo da lona colorida, cadeiras, o burburinho excitado tomando os espaços. Toda a cidade aguardava em expectativa. A banda começou a tocar, Iúlia estremeceu e encolheu-se, enquanto sua tia a abraçava e sacudia, incapaz de se conter: “Ah, Iulinha, haverá mágico? Será bonito? Os trapezistas sempre são!” E ria esganiçada. Sacudia-se toda e sacudia junto a menina, tão assustada que estava a ponto de chorar. Rufaram os tambores, entrou no picadeiro o apresentador em sua casaca vermelha, a cartola negra e reluzente como as botas: “Respeitável público, senhores e senhoras, meninos e meninas, Bem vindos ao circo!” Aplausos e gritos por todos os lados. A música tornou-se mais e mais agitada, pois a trupe de palhaços, toda feita de cores berrantes, buzinas e cornetas, rostos fantasmais de narizes vermelhos e bocas enormes, invadiu o espaço, para a alegria geral e o terror particular de Iúlia. Sapatos enormes, perucas, brincadeiras de mau gosto: rasteiras, tortas de merengue sendo atiradas nas caras uns dos outros. “Um voluntário da plateia, quem se habilita?” O chefe da trupe, rosto maligno, um sorriso enorme, cheio de dentes feios. Ele olha para Iúlia, ela tem certeza. Outras crianças se ofereceram, mas ele as ignorou, vindo em sua direção, estendendo a mão enluvada para ela. Iúlia gritou de pavor, se soltou do abraço da tia e escapou por debaixo das cadeiras, pouco se importando se o seu vestido se sujaria. Só queria sair dali e sai, sem olhar para trás. Só parou quando se viu fora da lona e recebeu a lufada de ar frio no rosto afogueado. Olhou para si, viu as meias rendadas cobertas de terra. O vestido rasgou-se na barra e ela tem um arranhão Porto Alegre - junho de 2017

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na testa. Sentiu vergonha, medo em imaginar o que diria a mãe quando a encontrasse novamente. Desejou esconder-se. Não cogitou a tenda das curiosidades, seria outro sofrimento. Decidiu-se por perambular entre as jaulas dos animais. Não havia elefantes. Dois tigres tristes, sem prato de trigo, remelentos e muito magros, um urso pequeno, o menor urso que já viu, talvez picado pelos carrapatos, com uma ridícula gravata ao redor do pescoço e um barrete preso à cabeça. Olhava-a sem interesse, como se ela lá não estivesse, como se ele mesmo não estivesse. E um imenso macaco vermelho, também melancólico, de colete e punhos de camisa. Este animal sim a viu e pareceu se alegrar em vê-la, mas só um pouquinho. “Por que tanta tristeza, meu amigo?”, Iúlia perguntou, chegando-se à jaula. Uma pergunta retórica, ela compreendia: estar preso entre barras, sozinho, era motivo o suficiente para tristeza. Não teve medo algum, os olhos do grande macaco eram doces, muito doces. O bicho suspirou, um longo suspiro e escondeu o rosto com as mãos. “Você sofre? Tem fome?”. Iúlia procurava alguma comida para dar a ele. Lamentou não ter consigo uma maçã, daquelas cobertas de calda de açúcar que lhe ofereceram os vendedores pouco antes. Achou um tonel com água. Mergulhou nele uma caneca de lata e estendeu-a ao macaco. Ele olhou para a menina com ternura, tomou das mãos dela o copo e bebeu delicadamente, com mais educação que muitos homens, com mais modos que Casimir. “Você gostaria de ir para a sua casa? Eu gostaria de ir embora para a minha...”. O grande macaco olhava-a com atenção e, ao ouvir a palavra casa, estremeceu. Suspirou uma vez mais e a menina poderia jurar que seus olhos umedeceram. Se esta fosse uma história fantástica, o orangotango contaria à menina as razões de sua tristeza profunda: haver sido arrancado das quentes e úmidas matas de SuPorto Alegre - junho de 2017

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matra, onde vivia com a sua mãe... Ou será que já estava sozinho quando foi capturado? Ou nascera em cativeiro e tinha umas saudades ancestrais do que não conhecera? Falta Instintiva do calor e dos cipós nos quais nunca tocara? O orangotango esclareceria qual destas opções fora a que o levara até aquela jaula, em constantes viagens por países frios. Iúlia intuiu os sentimentos do primata, teve-lhe muita pena, estendeu-lhe a mão e ele a apertou cm delicadeza e como que sorriu para ela. “Gostaria de sair? De voltar para casa, Senhor Macaco?” Os olhos dele se iluminaram e ele moveu a cabeça, numa inequívoca afirmação, pelo menos o foi para a menina. Iúlia não teve dúvidas: abriu a jaula do orangotango. Abriu a jaula de todos os animais, deixando-as escancaradas, para que fugissem, dizendo: “Estão livres, fujam!”. Para a sua decepção, os pobres animais não se moveram. À exceção do orangotango, que lhe deu a mão, os demais não tinham mais forças para escapar. “Vamos logo!”, disse a menina. Foram-se os dois, em direção à floresta, ambos intuindo a necessidade de serem rápidos naquela fuga, esquivando-se dos caminhos fáceis e desimpedidos, optando pelo não caminho: o mato alto. “Senhor Macaco, não sei o seu nome, vou chamá-lo assim, há a alguns metros uma floresta bem bonita!”. Iúlia tinha medo da floresta porque achava lá viviam lobos, ursos selvagens e outras criaturas assustadoras como bruxas e ogros, mas entendia que o orangotango desejava esconder-se e viver entre as árvores, que os animais apenas eram felizes quando afastados dos homens. Sentia-se protegida com o seu companheiro, o doce e grande macaco vermelho. Quando estavam no meio do caminho entre a floresta e o circo, escutaram um alarido. Compreenderam ser o alarme: a fuga havia sido descoberta. O orangotango tomou a menina nos braços, colocou-a às costas e apressou o passo, quase num galope. Iúlia Porto Alegre - junho de 2017

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não acreditava o quão rápido ele podia ser, muito mais veloz que os dois cavalos de seu pai. Se pudesse gritar, gritaria, mas de felicidade, de ver-se como que voando baixo pelos campos, segura e protegida. Ouviram os latidos dos cães, o galopar dos cavalos assim que se aproximaram das primeiras árvores da floresta. O primata foi mergulhando entre a vegetação, enquanto Iúlia se encolhia, sentindo medo e frio. O orangotango encontrou uma faia e começou a escalá-la, tendo Iúlia bem presa a si. Mas a menina teve medo, subiam muito rápido e muito alto: “Senhor Macaco, tenho medo!” Ele parou em um galho intermédio, arfando. Devia estar cansado. Já os cães entravam na floresta e se aproximavam. A menina olhou nos olhos tristes e doces do orangotango. Ele a olhou de volta. Ambos compreenderam juntos, no mesmo instante, haver sido um erro a fuga. Os homens nunca deixavam de perseguir e aprisionar. Detestavam a liberdade alheia, queriam-na cerceada. Tudo isto pensou melhor o orangotango, pois a menina tinha apenas dez anos, sabia ainda muito pouco sobre homens, estava assustada com os cães, com a altura, e receosa quanto ao destino do seu novo amigo. Abraçaram-se os dois, ali, naquele galho de faia, consolando-se mutuamente, conformados em não ter saída. O orangotango se pudesse dizer algo, diria estar grato à menina pela oportunidade de estar fora daquela gaiola abjeta em que vivera toda uma longa vida, mal alimentado, nunca respeitado, sempre explorado, e obrigado a fazer coisas idiotas, pois, se não as fizesse, tiravam-lhe a pouca comida, batiam nele. Esta era a primeira árvore em que pudera subir, por isso fora tão desajeitado. Talvez, se tivesse vivido sempre entre as árvores, teria sido mais fácil, mas este não foi o seu caso. O orangotango também diria que, desde o princípio daquela fuga, sabia que não poderia ir longe, que não o deixariam escapar porque ele era selvagem. A boçalidade em mantê-lo preso para o divertimento dos outros homens Porto Alegre - junho de 2017

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não era sinal de selvageria e sorriria irônico, mas a menina não compreendia ainda a ironia. O orangotango já sabia o que aconteceria: Seriam obrigados a descer. Os cães ladrariam em volta, a menina choraria de medo. Os homens gritariam ao redor da árvore, insanos. Muitos teriam pedaços de pau, ou armas de fogo nas mãos, loucos para matá-lo, felizes por esta diversão tão primitiva: a de matar. O que ele não poderia saber era que, ao trazer a menina para baixo, com cuidado, sabedor da sua morte iminente, o irmão desta, um rapaz muito feio, quase tão peludo quanto ele, mas com um sorriso de dentes enormes, um jovem homem muito mau, sairia do meio da turba e, com um único e certeiro golpe, acertaria o orangotango na têmpora direita e o mataria, o que acabaria por ser um fim piedoso, pois, se não fosse por ele, seria trucidado a pauladas. Iúlia gritaria de pavor em presenciar a morte do seu amigo, o Senhor Macaco, aquele ser tão doce, de ser retirada de seus braços para se ver novamente nas garras de seu irmão. O Senhor Macaco sabe que assim será, mas está momentaneamente feliz no alto daquela faia. Aproveita então, com a sua sabedoria ancestral, o farfalhar das folhas ao vento, em companhia de sua pequena amiga.

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JOÃO PEREGRINO

IRKA BARRIOS

A pasta de couro preto serviu como obstáculo para o elevador não fechar as portas bem no nariz de João. Terceiro atraso da semana: motivo suficiente para uma reunião cheia de ameaças, situação que ele pretendia evitar a qualquer custo. Determinado, insistiu, forçou as portas para que pudesse passar, entrou e escorou-se na parede de fundo. Ajeitou o colarinho da camisa e elevou o olhar para os números vermelhinhos que se sucediam no painel. Então ela veio. — Você não pode ficar aqui! A menina rabugenta entregou o recado, virou-se de forma abrupta e saiu. O giro teatral, com a guinada forte da cabeça, provocou um leve açoite de cabelos no rosto dele. Marcante, o cheiro de camomila pertencia àquela longínqua primavera em que João sentiu que sua vida começava a mudar. De repente, tudo o que mais o assustava parecia se tornar pequeno, e cada vez menor, numa época em que todos os sonhos projetados por um pai autoritário e uma mãe zelosa começavam a ruir. O menino de doze anos dedicava boa parte de seu dia a ensaiar danças imitando os artistas da televisão, e o estranho interesse se tornou ainda mais evidente com a chegada do circo. A notícia, como de costume em pequenas localidades, espalhou-se com rapidez, e o menino viu-se, de imediato, enfeitiçado pela curiosidade. Saía da escola e corria para a frente do acampamento, onde observava atento aos ensaios do homem que engolia fogo, da mulher equilibrista e o descanso do leão magro na jaula infestada de moscas. Costumava ficar até a hora em que o espetáculo estava Porto Alegre - junho de 2017

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prestes a iniciar. Gostava de espiar a agitação dos artistas conversando, vestindo roupas coloridas e se maquiando. Passou duas semanas alimentando essa rotina. Uma tarde, foi descoberto: — Você não pode ficar aqui. A apresentação começa às oito. E tem que pagar ingresso, não pode ficar espiando! A partir daquele tarde, o cheiro de camomila passou a representar um sentimento que João não conhecia muito bem. A amizade que nasceu entre os dois foi o passaporte de acesso irrestrito ao acampamento. Os artistas ofereciam-se para ensinar alguns truques para o menino curioso, e ocasionalmente permitiam que ele se aventurasse na corda bamba, no trapézio ou malabares. No final do verão, as barracas e a grande lona foram desarmadas, tudo acomodado em um caminhão e um ônibus com reboque, e o espetáculo itinerante partiu para outros locais, onde participaria de temporadas em feiras municipais. João e Maria choraram na hora do adeus, desconhecendo o futuro. Mas o futuro às vezes é favorável aos que amam, e na primavera seguinte a companhia retornou com grande estardalhaço. Bicicletas de rodas altas enfeitadas com papel crepom, o homem com as pernas de pau que quase tocavam as nuvens, o calhambeque fumacento dos palhaços, o engolidor de fogo com sua calça de lycra vermelha, botas de couro pretas e cinto dourado, e as duas balizas com collants cor-de-rosa e saias de tule branco que guiavam uma banda com um bumbo, dois taróis e uma corneta desfilaram pela única avenida calçada da cidade. O público saudava o cortejo e juntava-se à companhia em marcha até o terreno cedido pela prefeitura. Conhecido no meio circense, João dispensava qualquer outra atividade para treinar. Fazia de tudo um pouco, mas com o tempo (e pelo fato de conseguir ensaiar sozinho em seu quarto) tornou-se malabarista. Ao notar sua habilidade o palhaço Ancião gritou: — E com vocês, nos malabares, João Peregrino! Maria também cresceu e transformou-se em moça bonita, mas sendo aluna indisciplinada e bastante distraíPorto Alegre - junho de 2017

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da, era péssima trapezista. Iniciaram um namoro e João, por excesso de zelo, a convenceu que abandonasse de vez o trapézio. Melhor que trabalhasse como assistente do mágico. No ano seguinte, devido a uma temporada pouco lucrativa e a falta de patrocínio do prefeito, o dono do circo decidiu que não viria mais. A notícia caiu como uma bomba e obrigou João Peregrino a antecipar uma decisão que já estava tomada há tempos: partiria com eles. Ao dar a notícia em casa, sua mãe protestou: — Tudo isso para ir atrás de uma vadiazinha? O pai aplicou-lhe uma surra, ameaçou-o, deixou de castigo, tirou as poucas notas que o filho guardava na carteira. Nada adiantou. João planejou sua fuga, combinou o horário da partida com o dono do circo e, quando seus pais deram falta, a caravana já ia longe. João Peregrino viveu dias e noites de liberdade viajando com a trupe. Agora ele tinha que trabalhar, apresentava-se no picadeiro junto com os outros malabaristas, e era muito bom no ofício. Considerava seu emprego uma excelente diversão e, apesar das dificuldades financeiras e de higiene, sentia-se muito feliz ao lado de Maria. Conheceu a verdadeira condição em que aquelas pessoas sobreviviam e finalmente compreendeu que a vida de um artista mambembe não era tão glamourosa quanto ele imaginava nas suas fantasias da infância. Muitas vezes não havia lugar para todos nas barracas, e alguns tinham que dormir amontoados ou ao relento. As roupas eram costuradas e lavadas por eles próprios e, em tempos de poucos espectadores, o dinheiro para a comida também era raro. Quando a carestia era muito grande, não havia sequer maquiagem e os palhaços tinham que se apresentar de cara lavada. Algumas vezes, vencido pela fome, pensava em largar o grupo e retornar ao seu lar. Mas era só olhar para Maria, sentir seu toque, o cheiro, que se esquecia do mundo confortável que deixara para trás. Um dia, após sua apresentação, Maria o chamou. João Peregrino entusiasmou-se achando que seria notícia Porto Alegre - junho de 2017

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de gravidez. Viviam juntos há quase dois de anos e um herdeiro seria grande felicidade. Quando conseguiram ficar a sós, ela parecia distante e irritada: — Vou-me embora com o mágico! Falou tudo assim, de maneira tão displicente que fez o amor parecer o mais banal dos sentimentos. Naquela noite, o palhaço Ancião chorou. Triste pela tristeza do amigo que batizou. No outro dia também partiu. Não para algum lugar onde houvesse descanso, mas para o outro mundo, de onde não se retorna. Amanheceu morto. E todo o pesar suportado por aqueles ombros já encurvados transferiu-se para João Peregrino. Percebeu então que a partida seria tão dolorosa quanto decidir ficar. Foi até a estação, pegou o trem e se dirigiu ao centro da cidade. No segundo ponto entrou um homem fazendo alarido. Discursava em prol de sua companhia, que não estava muito bem das finanças e necessitava de qualquer ajuda para se manter. João Peregrino separou uns trocados e alcançou a ele. Apresentaram-se e iniciaram uma conversa. O homem contou que seu grupo era de artistas de rua das mais variadas modalidades: violeiros, repentistas, atiradores de facas, engolidores de fogo, menestréis e ventrílocos. Ele ganhava a vida como estátua. Atuava durante a semana na Praça da Matriz e nos domingos pela manhã no Parque da Redenção. Algumas vezes voltava pra casa com o cesto vazio, mas em geral as pessoas costumavam ser generosas. Com a féria do dia conseguia pagar o aluguel de um quartinho na pensão que morava, e ainda sobrava algum para o lanche. Também aceitava de bom grado as doações das campanhas nos trens e ônibus, um benefício a mais. Após alguns minutos falando de si e ouvindo um rápido histórico da situação de João, resolveu que o acompanharia até o bar. Precisava, mesmo, tomar um trago e pensar na vida. — E você bebe com o dinheiro das doações? — Naturalmente as doações servem também para o bem estar deste artista que vos fala. Ninguém deseja um Porto Alegre - junho de 2017

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estátua de mau humor por não possuir algum para um aperitivo. Desceram na estação central. Adentraram no bar mais próximo e passaram horas bebendo à vida que passa e à que fica. Tornaram-se amigos. João Peregrino voltou ao acampamento, pegou suas tralhas e mudou-se para a mesma pensão de Ed. Agora faria parte de sua companhia como malabarista. Começou a se apresentar perto de Ed na Praça da Matriz, usando uma caixinha para recolher doações dos transeuntes. Viveu algum tempo com dificuldade financeira, depois tornou-se mais conhecido no meio artístico e passou a receber muitos convites. Apresentava-se em festas infantis, eventos culturais, chás beneficentes, casamentos com decorações temáticas. Até para distrair crianças no velório de um importante político fora contratado. Concentrou-se em trabalhar sem sorrir muito, em respeito ao morto, e ao despedir-se da viúva recebeu um gordo cachê, pago em cheque administrativo, que foi uma dor de cabeça para descontar na semana seguinte. Conheceu e passou a namorar outra menina, que, além de acompanhar suas performances, trabalhava numa gráfica. Regina penteou João, o vestiu com melhores roupas, confeccionou por conta própria um cartão de visitas mais atrativo aos seus possíveis clientes e criou uma página na internet para anunciar seu talento. Mudaram-se para uma residência fixa e passaram a viajar uma vez por ano até a pequena cidade natal de João Peregrino. Seus pais nunca aceitaram o destino do único filho, e quando as finanças ficaram difíceis, chamaram Regina para uma conversa. Pediram ajuda para convencer João de que futuro melhor seria na Escola de Engenharia. A estratégia surtiu efeito, João prestou vestibular no ano seguinte, mas não conseguiu classificação. Inscreveu-se, então, num curso técnico, e passou a trabalhar numa empresa de segurança do trabalho. Com um salário fixo e as contas em dia, passou a sentir-se seguro. Mas era uma espécie diferente de segurança, como se a felicidade sempre ficasse suspensa. Acordava satisfeito quase todos os dias. Quase Porto Alegre - junho de 2017

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todos. Menos em dias como aquele em que sentia o cheiro de camomila no ar. Em dias assim, João Peregrino largava a pasta de couro sobre a mesa e tomava o café da térmica num gole só. Porque ele sabia que em dias como aquele o café teria um gosto bem mais amargo.

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VOU FUGIR

COM O

CIRCO Para meus irmãos

TAIANE MARIA BONITA

** 06 ** Apressada, enche a mochila amarela com os seus bens mais preciosos: o pijama de bolinhas para as noites frias, a fantasia de fadinha — pelo menos o vestido verde e a sapatilha com pompons na ponta, as asas ela terá que vestir para não amassar —, uma muda de roupa e o Pimpão. Caminha até a cozinha, em cima da cadeira alcança o restante dos itens para sua sobrevivência: dois pacotes de bolachas, um de chocolate e um de morango, é bom ter uma variedade. Encontra um pacote de salgadinho escondido no fundo do armário, o irmão estava guardando para o final de semana, coloca junto com o restante do kit, àquela hora já tinha ultrapassado a barreira do delito. Não haveria frutas em sua mochila e nenhum brócolis seria levado para o exílio. Aquilo era um ato de resistência. Aprendeu a virar cambalhota com a irmã mais velha, depois de tanto se pendurar no beiral das portas a mãe resolve a inscrevê-la numa aula de ginástica. Rítmica, ainda é muito nova para ginástica olímpica, é o que a mãe diz. Adora as quartas-feiras que passa no ginásio, o professor acha que ela é um talento. O queixo no peito, a cabeça no chão, as costas deslizando sobre o assoalho como se não houvessem ossos naquele corpinho. Uma circunferência perfeita até concluir o rolinho. A estrelinha foi ensinamento do professor e ela vem aperfeiçoando a técnica nas derradeiras semanas. Passa a praticar em cima da cama dos pais. Estrelinha, cambalhota, aviãozinho e num passo em falso acaba com o nariz na lajota. Não está sangrando, não é grave, talvez nem esteja doendo tanto assim, mas ela chora como

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se a perna direita tivesse sido amputada a machadadas. A mãe ouve os berros da cozinha e entra no quarto esperando ver o sangue esparramado pelo chão, um osso exposto, quem sabe. Nada, apenas choro. Onde dói? Consegue mexer? E o ranho começando a escorrer pelas narinas. Nenhuma avaria. Respira, minha filha. Quando a mãe se acalma e a menina já consegue respirar, o estopim da guerra. Uma proibição: sem cambalhotas e estrelinhas em cima da cama. E só porque a mãe está brava, acaba-se também o tempo de subir pelas portas. São muitas regras instauradas em um só dia, e vejam só, o tombo nem tinha sido tão grande assim. Não há motivos para tamanha reprimenda. Mas a mãe ainda espera um osso saltar de seu lugar a qualquer momento e não há espaço para negociações. Enfurecida, ela corre para o quarto. Procura a mochila amarela que ganhou de presente no início do ano letivo, é uma boa mochila, cabem muitas coisas nela. Caminha até a cozinha, volta para o quarto. A mãe a deixa sozinha para que se acalme e vai lavar roupas na área de serviço. Ela coloca a mochila amarela nas costas. As alças ficam mal encaixadas devido às asas de fadinha. Ela não se importa. Ela está decidida. Vou fugir com o circo, e vai. ** 08 ** O gato amarelo da tia tem o apelido de jaguatirica. Não é o nome dele. O nome mesmo é Saturnino, mas o tio chama de jaguatirica. Isso é bicho independente, ser de poucos amigos e muitos interesses. É o que o tio fala, mas ele não gosta de gato e isso invalida qualquer argumento. Ela acha que ser independente é uma vantagem e está entediada com a visita. Os adultos tomam chá na sala de estar, ela já comeu todas as fatias de bolo de sua conta — com cobertura de doce de leite, e ainda a cobertura de um dos pedaços da conta do irmão —, seus níveis de glicose elevadíssimos. No quintal, risca o chão com um graveto, dessa linha para cá você imagina um picadeiro. O irmão já não Porto Alegre - junho de 2017

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tem a mesma paciência para brincadeiras de imaginação, mas concorda. Sugere que o poste de luz seja o holofote, e o banco embaixo da goiabeira pode ser a arquibancada. O que acha? Ótimo. Podemos ter um pipoqueiro? Claro. A roseira é o carrinho de pipoca. O irmão quer ser o palhaço, corre de volta para a sala de estar e descola um nariz de plástico com a tia. Ela não quer ser palhaço, mas também quer um nariz vermelho, no fim das contas, se contenta com a permissão de usar o batom da mãe. Respeitável público para cá, respeitável público para lá, ela abre o espetáculo. O açúcar está fazendo efeito, a oratória dura minutos intermináveis. Uma pirueta, uma rodadinha e as devidas apresentações do grande, do magnífico, do espetacular Pimbolim. Magnífico e espetacular são palavras do irmão, ele teria usado mais adjetivos, mas ela já está impaciente. O irmão não leva muito jeito para palhaço: O que é um pontinho amarelo no meio do mar? Mas ela acha que as apresentações foram devidas, ela acha a piada ótima, o respeitável público embaixo do pé de goiabeira, no entanto, já conhece todo o repertório de pontinhos coloridos. Segue o espetáculo. Todo circo precisa de uma atração principal, o grande número da noite — da tarde — um desafio a altura de todo aquele açúcar transitando pela corrente sanguínea. Saturnino, o leão. A ideia foi do palhaço, mas a execução será dela. Corre atrás do felino que não tem interesse em fazer amizades. O bicho se esconde entre os arbustos da tia, ela se enfia entre as folhagens. O gato sibila, ela, a domadora de feras, ignora o aviso, enfia os bracinhos entre dois galhos, alcança o rabo amarelo, puxa. Na sala, os adultos ouvem o rugido do leão, o palhaço se atira no chão por conta das gargalhadas. A domadora está por sua conta e risco. ** 10 ** É questão de sorte ainda não ter quebrado um osso, não se pode dizer a mesma coisa sobre os esfolados nos joelhos e cotovelos. As pernas são um campo minado de Porto Alegre - junho de 2017

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roxos, arranhões e casquinhas ressequidas. Cicatrizes de guerra. Sobe o pé de eucalipto. Um, dois, três galhos. Não é suficiente. Os galhos se afinam, ela persiste, alcança os mais altos. Consegue ver o mundo dali de cima, ela gosta de pensar que o mundo lhe pertence. A corda continua presa na canela, procura o lugar adequado para treinar o nó que aprendeu. Passa a corda por cima, passa a corda por baixo e a primeira tentativa de um nó direito falha. Tenta de novo e o nó se torna fácil de desatar, acertou. Agora tem um dispositivo de segurança que ficará ali para futuras escaladas. Amarra a ponta solta em volta da cintura, dessa vez acerta o nó de primeira. Pula de um galho para o outro até se sentir confiante o suficiente para ensaiar algumas posições de ginástica. Firma o pé esquerdo na madeira, curva o tronco para frente num ângulo de noventa graus, estende os braços para os lados e ergue a perna direita. Inspira e expira num movimento perfeito. Procura novos desafios, se pendura no galho logo abaixo de onde a corda está amarrada, de espessura suficiente para segurá-lo com as mãos, altura suficiente para sentir um frio na barriga. Coloca o primeiro pé no galho, coloca o outro logo em seguida, está de cabeça para baixo. O sol se põe no horizonte. A corda presa em volta da cintura. Sente-se ensaiando para um número de trapézio fixo, já ouve os aplausos da plateia. A visão do mundo de ponta cabeça lhe agrada. A superfície do eucalipto é mais lisa do que esperava, a perna escorrega rápido demais. Esqueceu-se de medir a extensão da corda de segurança. ** 12 ** É a primeira vez que vai a um circo de verdade, antes só mambembes e palhaços no parque. Está animada, não só com o espetáculo, com a companhia da irmã mais velha. Caminham pela rua de mãos dadas, a alegria de uma cama elástica que a faz saltitar. Hoje o dia é só delas. Agora Porto Alegre - junho de 2017

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que não moram mais na mesma casa, a irmã faz as suas vontades, uma espécie de cúmplice para pequenos crimes. A irmã está cursando a faculdade de artes em outra cidade, dessa vez chegou em casa com um piercing no nariz. Ela gosta do piercing, os pais não. Antes do toldo vermelho e amarelo, um cachorro quente, ela pede um duplo, com ketchup e maionese. Ela sabe que não consegue comer um inteiro, ela sabe que não deve pedir molhos de acompanhamento, a irmã também, mas não se importa. Dia de irmãs é dia de contravenção. Com esforço vence o cachorro quente, ficam as duas impressionadas. Finalizam o crime com coca-cola. Entram e encontram os lugares marcados. Nesse circo não há domadores e ela não se interessa muito pelos palhaços. Homens dançam com fogo ao som de tambores, é bonito, mas não parece perigoso. A irmã aplaude empolgada. Ela sente uma dor estranha na barriga, culpa o cachorro quente. Não fala nada. Espera o número de contorcionismo. Mais um palhaço entra em cena, segura uma vela, passa ela por baixo da perna como num malabarismo, faz graça com a apresentação anterior. O espetáculo segue, a dor aumenta. Os trapezistas impressionam em piruetas. Ela já não consegue manter a atenção sob a luz dos holofotes. Chega o número esperado. A contorcionista no picadeiro, o sorriso no rosto da irmã, a contorção no ventre, o sorriso amarelo no seu rosto. As mãos segurando a barriga, a contorcionista com o pé atrás do pescoço, a irmã perguntando se está tudo bem, o som estourando nas caixas, a sensação de estar se mijando, a contorcionista em espacate enquanto planta bananeira, a dor aliviando aos pouquinhos, a calcinha manchada pela primeira vez, a contorcionista agradece os aplausos. A irmã tem um absorvente na bolsa. Já borrei uma calça branca numa aula de educação física, a professora achou que eu estava com hemorragia. Era mentira, a parte da hemorragia, não da aula de educação física. Não importa. Riem, cúmplices. Não é culpa do cachorro quente. Porto Alegre - junho de 2017

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** 22 ** Paciente escolhe o que vai levar consigo: meia dúzia de mudas de roupas, um chinelo confortável, um pequeno kit de higiene. Não quer carregar mais do que o necessário. Revisa os ítens sem pressa. A mãe liga na última tentativa de fazê-la mudar de ideia. Quem sabe uma viagem para casa? Não mudou, ela segue com o plano. Nenhum sonho será deixado para trás. Aquilo é um ato de liberdade. É o último dia letivo do semestre. Da faculdade que escolheu dois anos antes. Hoje duvida da escolha, dizem que é fase, dizem que passa. Três meses de férias no seu horizonte de expectativas. Depois de deixar o campus, encontra os amigos no parque para as despedidas. Ela vai se despedir, os outros não, ninguém ali sabe dos seus planos. Ela coloca o primeiro pé no elástico estendido, confere as amarras na base antes de colocar o segundo. O slackline não está preso muito alto, mas não quer quebrar outro braço por causa de um tombo estúpido. Não é sua primeira vez em cima do elástico. Ela gosta da sensação de procurar pelo seu centro. Arrisca o primeiro passo, arrisca o segundo, salta, cai. Não chora mais por pequenos tombos. Escuta um cara rindo de seu deslize, não conhece o sujeito, é um amigo de um amigo. Tenta de novo e consegue realizar a manobra, uma simples, para iniciantes. É a única mulher no elástico. Ela segue os movimentos, persiste nas manobras. Ser mulher é andar na corda bamba, mas ela encontra seu equilíbrio. Ela aprendeu como se faz e ela faz o que quer, ela sempre fez o que quis. Ela é decidida, ela ainda acha que ser independente é uma vantagem, ela tem coragem para enfrentar feras mesmo que saia com alguns arranhões, ela sabe se levantar de um tombo, ela sangra todos os meses e o mundo lhe pertence. Em casa, ela coloca tudo que precisa na mochila amarela, que trouxe de sua última viagem ao Peru. É uma boa mochila, não é muito grande, mas ela não precisa de muita coisa. Ela tem para onde voltar se quiser. Coloca a Porto Alegre - junho de 2017

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mochila nas costas, as alças estão confortáveis. Ela vê um novo caminho pela frente. Vou fugir com o circo, e vai.

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LA MAGIA

ÚTIL

MARÍA ELENA MORÁN

Odio los circos. Odio la idea de los circos. Odio la risa boba de los circos. Odio la gente que rie la risa boba de los circos. Soy un balde de odio feroz. Un poco por los animales maltratados. Otro poco por los payasos que no dan risa. Pero principalmente por esos estafadores que se hacen llamar magos cuando su magia no es magia, sino truco vulgar. No se equivoquen, tuve una infancia feliz y una adolescencia tragicómica con final aceptable, aunque abierto. No tengo la imaginación atrofiada, sólo no soy una comeflor infantiloide. No sufrí un evento traumático, por lo menos no en carne propia. Pero claro que hubo un acontecimiento que transformó mi infantil y genuino desinterés en esta rabia rampante que ahora profeso. Mi odio es un odio con fecha, con nombre y apellido, con coordenadas geográficas. El circo de los Hermanos Bombita llegó a mi barrio y se instaló en el mismo terreno donde se instalaba, por lo menos una vez al año, el parque de diversiones que dejaba a mi madre enferma de los nervios, por sus aparatos oxidados y su montaña rusa tambaleante. Los Bombita llegaron un miércoles y ya el viernes dieron la primera función. Mis amigos del barrio fueron toditos. Durante días no hablaron de nada que no fuera aquel circo majunche al que pasaron a ir todas las tardes, curiosos por conocer la vida gitana de aquella gente. Qué pereza me daban. Yo, para saciar mi mayor curiosidad, no necesitaba ni siquiera salir de casa. Un muro que no pasaba de la cintura de un adulto me separaba de un mundo que me despertaba muchas más fantasías. Nuestros vecinos, los Quintero. Mamá, papá, hija. Mamá: Sra. Lola. Dueña de un poder de persuasión Porto Alegre - junho de 2017

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capaz de hacer dudar al credo mejor plantado y de una sensualidad que sobrevivía a cualquier tarea doméstica, a cualquier ropa, a cualquier aumento de peso. De día, amiga de largas conversas con mi madre. De noche, la cerca se crecía de moralismos y hasta el amor de los perritos, la de ella y el nuestro, era prohibido. Que esa gente se volvía loca con el alcohol. Que pasaba de todo en esa casa. Que hasta orgías. ¿Mami, qué es una orgía? ¡¿Ay, muchacha, cuándo entraste?! ¡Qué manía la tuya de llegar sin hacer ruido! Papá: Sr. Alejandro. Pseudo galán a la Richard Gere. Llegaba en las noches, cuando la cerca que nos separaba parecía crecer y las luces se apagaban. “Un pobre hombre que se mataba trabajando” y que, según mis tías y vecinas, lo último que merecía era la esposa putona que tenía, siempre con ese escote de tetas en venta. Hija: un poco mayor que yo y exótica como su nombre, Pamela. No había cumplido dieciseis y ya era, para mí y mis amigos bicicleteros, la rebelde de la cuadra. Saludaba a todos con un aire de estrella simpática, pero no hablaba con nadie. Ya sabía lo que quería en la vida y lo que quería era mandar a todos a la mierda. Luz de sus padres un día, peste en el siguiente. Mi ídola, ella que era mas bien fea pero en aquel momento nos parecía bella y sexy y ojalá siga siéndolo, que escuchaba Madonna y tenía una perra llamada Madonna y que era bruta en la escuela pero genia en la vida y que decían que era puta y me dolía que le dijeran puta, pero a ella no le dolía porque ser puta, en boca de mis tías, era lo mismo que decir que era libre y se lo daba a quien ella quería cuando ella quería, y si eso es ser puta, entonces está bien ser puta y está bien serlo desde chiquita. Un circo particular, disponible para mí todas las noches, con publicidad gratis de mis tías y vecinas y que, si la publicidad era cierta, en cualquier momento me sorprendería con un número especial. (Una orgía, ojalá: lo que mi mami no lo explicó, el diccionario me lo cantó clarito). Jueves, viernes, sábado, domingo durante el día, uno que otro lunes: comenzaba la música, comenzaban a llegar los Porto Alegre - junho de 2017

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carros, la Sra. Lola que invitaba y mami que ay, gracias, será otro día, porque hoy tengo que, nosotros apurando la cena para guardarnos rapidito y quedar a salvo de las “cosas extrañas” que ocurrían en la casa de los Quintero. Y yo, que sólo esperaba que mi casa se apagara, para escabullirme hasta el patio y sentarme en mi butaca, público de un espectáculo promisor que hasta ahora no había ofrecido más que uno que otro beso infiel y sonidos que, especulando desde mis trece años mal cumplidos y mi repertorio de novelas, denunciaban sexo. Pero en días de los Hermanos Bombita, mi circo particular también se encircaba. Y un día la Sra. Lola, con pena de mí, le preguntó a mami por qué no me habían llevado al circo todavía. Mi mamá, sintiéndose mal por no haberlo hecho antes, me preguntó si quería ir y yo me encogí de hombros. Sin ganas, entonces no vamos. Y me dió igual. Las ganas que yo venía acumulando desde que los Bombita llegaron eran de decirle al señor del transporte escolar que me esperara un momentico cuando pasábamos por el terreno del circo, mientras yo liberaba a todos los animalitos y los niños y no tan niños, hijos del circo, que ya tenían edad para estar avanzados en el colegio y que, en cambio, estaban ahí, día y noche, cuando no hacían un número, tenían una lista de tareas de mantenimiento que cumplir, según decían mis amigos. Padre payaso borracho y explotador. Madre trapecista deprimida que en cualquier momento se iba a suicidar en escena, lanzándose fuera de la red de seguridad desde el trapecio más alto. Mis ganas eran de prenderle fuego a la carpa de esa gente y decirles que lo que hacían no era gracioso. Mis ganas eran de dejar al descubierto para mis tías, que disfrutaban alegres del espectáculo, que esa gente no era mejor que los Quintero, que ellas encontraban tan monstruosos en sus shows secretos, tan secretos que sólo existían para ellas como conjeturas. Pero la Sra. Lola no desistía con facilidad. Llegado el día de la última función del circo y todavía sin poder explicarse por qué yo no había ido, decidió invitarme. Antes de aceptar, pregunté si iría Pamela. ¡Claro! Entonces vamos a Porto Alegre - junho de 2017

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pedirle permiso a mami. Entonces vamos. Y como la sesión era temprano, mami y papi, amigos diurnos de los Quintero, me dejaron ir. Pamela parecía tan fastidiada como yo con la fila enorme, pero ella mientras ella se refugiaba en Madonna, que cantaba desde el discman, yo me conformaba con la orquesta de llantos de bebé, carcajadas, regaños, gritos adolescentes de timbres indecisos y chismes en actualización. Pero ahí estaba yo, con mi ídola y su madre. Uña y mugre, a la vista de todos: punto para la chiquita. El olor de borracho sudado y de aceite quemado de los churros me ayudó a imitar la cara de ascofastidio de Pamela. Agarramos buenos puestos, dijo la Sra. Lola que porque ellos eran amigos de los artistas. El show abrió con los payasos y, mientras la platea de desternillaba de reir con sus chistes palurdos, repetidos por todos los malos comediantes del barrio, del país y del mundo, Pamela, con una intimidad sin precedentes, se dedicó a narrarme, personaje a personaje, quién era quién en ese espectáculo lamentable. Los payasos son hermanos, el viejo Bombita, padre de ellos, fue el que empezó el circo y era payaso también, hasta que lo encontraron con un tiro entre ceja y ceja en un puesto de gasolina en la carretera Falcón-Zulia y dicen todos que se lo mereció, hasta los hijos. El más borracho y más gordo, el de la risa gigante, es el marido de la trapecista, mírale el rostro, fíjate cómo no mira el trapecio, cómo no sonríe y cuando sonríe, lo hace como sin ganas imaginas que hoy sí se mate la pobre. Ellos son los padres de este chiquito que hace el número con los poodles, que de tanto andar con los poodles ya se le pegó la manía del brinquito y de la alegría sin memoria, pobres poodles tan felices y tan ingnorantes de su miseria, yo quiero ser un poodle. — ¿Y él? — pregunté. Pamela había enmudecido con su entrada. Un mago adolescente serísimo, como por concentración o por rabia. Lindo de doler en los ojos. Desamparado en medio de esa gente. El rostro triste de los extraviados. El mago triste jugaba a despedazar a su madre, trapecista del número anterior y asistente de éste, donde su papel era hacerse Porto Alegre - junho de 2017

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la descuartizada sin sangre, acostada dentro de una caja. De vez en cuando, él echaba una miradita al público, claramente buscando a alguien. Hasta que la encontró. Era ella, Pamela. Mi ejemplo a seguir no me defraudaba. Ellos se gustaban y yo los veía y me deleitaba como quien ve una novela en vivo y directo. Hasta que el mago terminó su número y, con él, el único espectáculo posible. — Él es lo único que sirve en este circo — me dijo. Pamela, tristona, volvió a sus audífonos. Yo, sin saber qué decir, intenté concentrarme en los payasos que, una vez más, estaban en el escenario. Dato patético: eran los favoritos del público. De repente sentí que algo me rozaba la oreja. Pamela, cómplice, me prestaba uno de los lados de sus audífonos. “La isla bonita” retumbó en mi cabeza y sentí que a partir de ese momento, algo de su rebeldia/putería había entrado en mí junto con Madonna y agradecí a los Hermanos Bombita por haber auspiciado ese instante. Cuando llegamos, ya mi madre se estaba poniendo nerviosa. Estaba cayendo la noche y, con ella, la orgificación de la familia Quintero. De hecho, el Sr. papá de Pamela, whisky en mano, estaba sacando las cornetas. Nos saludó con la lengua ya enrollada. Las chicas del can comenzaron a cantar y la pachanga prometía. ¿Seguras que no quieren venir? Gracias, pero no, mañana hay que madrugar. ¡Pero si hoy es viernes! Buenas noches, buenas noches, buenas noches y a guardarnos. Yo lo que más quería era aprovechar el puente que se había creado entre Pamela y yo y consolidarlo con conversas de amigas, con una pijamada, algo, algo! Pero: A guardarnos, dije. Y yo, a masticarme la frustración debajo de la cobija. Al lado la música y las risas y el baile vibrando. Y de repente, aquella risa. Qué sueño ridículo. Aquella risa gigante del payaso borracho. Sueño, nada. Me asomé por la ventana: eran ellos. La familia Bombita a todo color. Confirmé que mis padres dormían y me vestí otra vez. Salí corriendo calladita y me entretuve mirando la fiesta desde el murito. Si me veían, seguro me llamarían, a esa hora ya a nadie le iban a importar las excusas de mi madre. Pero mis ganas de deshicieron rápido cuando no encontré a Pamela Porto Alegre - junho de 2017

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entre los participantes. No debió sorprenderme, ella, igual que yo, no quería nada con esa gente. Si quería, era con un especímen muy específico dentro de aquel grupo vulga. Fui hasta la ventana del cuarto de ella. Nadie. Entonces todo hizo sentido. Fui hasta el patio segura de que allí estarían. Y no me equivoqué. Ella debe haber percibido que alguien la miraba porque suspendió un segundo el beso que le daba al mago, ya no tan triste, para mirarme. Me picó el ojo. Y yo, torpemente, intenté picarlo de vuelta. La música camuflaba algo que parecía ser un grito y cuando logramos entender, ya él estaba allí. Pamela vio a su padre y salió corriendo, asustada como nunca pensé que se asustarían las heroínas. El mago, que no había percibido mi presencia, se quedó ahí, mascullando maldiciones en lo oscuro, mientras Pamela era alcanzada por su padre, más pseudo-galán que nunca, más pseudo-padre que nunca, que la enlazaba impertinente y manito suelta, ya borracho de arrastrarse. Desde la cerca, los seguí hasta la puerta. La Sra. Lola, al ver entrar al marido y a la hija toqueteada, tuvo un segundo de entorpecimiento, de esquivar la mirada de la hija, y huyó a la cocina a preparar una nueva bebida. Y ahí sí, su sensualidad se me volvió piedra. El mago triste regresó del patio y me vio, yo que ya no estaba ni escondida ni en penumbras, sino con una decepción de luces prendidas encima de mí. — ¿Y tú, qué? ¿No deberías estar durmiendo? — Habló más alto de lo que debía. Le hice una señal pedigueña para que guardara silencio. — Yo vivo aquí al lado. — ¿Estás escapada? — Mas o menos. — ¿Estás espapada y lo mejor que se te ocurre es venir aquí? Tú estás muy chiquita para estar tan loca. — Tengo casi trece. Y no podía dormir. — Y ahora vas a poder menos. Sacó un cigarro y se puso a fumar lo que yo, años después, sabría que era marihuana. Porto Alegre - junho de 2017

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— ¿Por qué tú estás siempre tan triste? — ¿Por qué habría de estar alegre? ¿Tú estás alegre? El mago adolescente triste me ofreció de su cigarrillo extraño y, no sé por qué, le dije que no. Tal vez fue la infancia queriendo resistir en mí, después de aquella imagen que me lanzaba de cabeza en un mundo adulto y sucio e inexplicable. — Yo no soy el mago que quiero ser. — ¿Y cómo es el mago que quieres ser? — Uno que sepa desaparecer de verdad a tanta gente de mierda. Él apagó el cigarrillo y lo guardó en un estuchito. — ¿Pero cómo ibas a saber quién merece desaparecer? — De aquí, sólo se salvaría ella. — Pero eso no es magia, eso es asesinato, secuestro, qué se yo. — Magia que no salva, es magia falsa, inútil. De mañana, la cerca que separaba mi casa de la de los Quintero, me pareció más alta que nunca. Desperté con la noticia y con mi madre haciéndose la señal de la cruz por haberme dejado salir con esas perdidas. Mis tías y vecinas, que confirmaron la calidad de monstruos de los Quintero pero que nunca supieron quién era quién en esa casa, tuvieron más razones todavía para decir que Pamela era puta, después de que, aquella madrugada, cuando ya yo dormía, ella y el mago antes triste se fugaran juntos. Juntos, con la alegría de haber encontrado un amparo, lejos de los trapecios y las madres descuartizadas, lejos de las omisiones dolorosas y de un padre que no supo ser padre, lejos del circo de afuera y del de adentro.

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SARA

ALBUQUERQUE


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NEM TODO

MUNDO PODE PAGAR PARA IR

AO CIRCO DO BETO CARREIRO

SARA ALBUQUERQUE

Os quatro se entreolham com pensamento de huuum. Amanda rói a unha, gosta de ouvir o oco dos incisivos se encostando quando consegue arrancar um pedaço que não cospe de logo, fica deslizando-o pela gengiva. — E se a gente mesmo montasse um? — Binho para de se balançar, as pontas dos pés no chão, os braços abertos segurando a rede como se equilibrando suas próprias asas, asas de tecido vermelho com franjas. Beatriz e Camila esticam as sobrancelhas contra a gravidade, as testas ainda sem sinal de rugas. — Você acha que a mamãe vai deixar? — Amanda massageia com a língua a pele fina avermelhada do dedo, sensível pela falta da unha. — A gente pede por favor e diz que não vai fazer barulho, não muito, né, talvez só um pouco — o menino se joga sentado na rede, os ganchos produzindo agudos pelo atrito com a ferrugem do armador. Eu topo, uns pulinhos, as mãos em punho, eu topo, uma gargalhada com o sorriso esticado, eu topo, correndo para pegar o caderno e a caneta rosa. Maquinam ideias para os números e para sequência de apresentações e para os lanches e para o modelo do ingresso de entrada. Camila sugere que o nome seja “A partilha”, mas ela nem sabe o que é isso, é só por causa de um livro que sempre vê na estante do escritório do pai, gosta das quatro mulheres em preto e branco na capa, e tudo bem que eles são um grupo de três mulheres e um homem, Amanda, Camila, Beatriz e Binho, todos dizem sim. A dona da casa autoriza, mas apenas na garagem, viu, e eles veem: a garagem é estreita na largura e enorme no comprimento, cabem três carros em fila. Erguem um

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varal de um canto a outro entre as paredes mais próximas, muita fita adesiva para não soltar e, nele, penduram um lençol azul-bebê com partes manchadas de água sanitária, a mãe disse que esse podia usar. Eles acham uma lindeza, um céu borrado de nuvens para ser a cortina do palco. Pegam umas cadeiras na sala, só têm três, desistem e acham que é melhor a plateia se sentar no chão, não tem problema que está limpo, é. Fazem o nome numa cartolina, A patilha, esquecem o erre, droga, colocam um erre apertado entre o á e o tê, fica parecendo a perna de um ene, A pantilha, puxam um é minúsculo na cabeça do ene, A paentilha, tá estranho, riscam o nome e colocam uma seta indicativa com os dizeres “errado, não leia”. Embaixo, escrevem com giz de cera verde, A partilha. Ao lado, o desenho de uma lona de circo improvisado por Beatriz, o teto e a parede feitos com panos coloridos, vermelho, azul, vermelho, azul, vermelho, azul, e no alto, uma bandeira sacudida pelo vento. Vizinho por vizinho, saem para fazer a propaganda, oi, circo, hoje, duas horas, só quinze centavos para entrar, depois do almoço, é, bora, bora, e o semblante do destinatário sendo de quem duvida e vai lá conferir. E o espetáculo começa. Duas e quatorze, Amanda arrasta o lençol-cortina até um dos cantos da parede. Binho entra falando respeitável público e obrigado pela presença de todos, viu na internet. O papel do apresentador na mão direita, onde tem escrito “papel do apresentador” com piloto preto, a cara pintada com pó branco e uns desenhos de estrelas com tinta brilhosa. — Senhoras e senhores, peço encalecidamente umas palmas para nossas malabaristas — a plateia aplaude sem saber o encalecidamente, batendo com força como se cantasse parabéns. Beatriz e Camila, vestidas com camisas xadrez, entram no palco. Ficam de frente uma para a outra, a uma distância de um metro, coradas na bochecha, a música sem começar logo. Alguém no público começa a querer zoar, aquele êêêê provocante, abafado pela mão na boca, quase inaudível. Pode apertar o play, uma delas cochicha, Porto Alegre - junho de 2017

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o som começa, o volume estrondoso, é Enya, uma cantora do estrangeiro que o pai escuta, a mãe escuta, então todos escutam também, que não dá para tapar os ouvidos e é até bom, mesmo sem saber o inglês, eles conseguem cantar e perceber os refrãos. Cenouê, cenouê, cenouê, a mulher sai da radiola. As duas tinham ensaiado. Revezam entre o malabarismo com as laranjas e os limões e uma dança com os braços se movimentando no ar em espiral e círculos, cenouê, cenouê, cenouê. As frutas caem algumas vezes, mas as meninas logo apanham e começam de novo. A plateia conversa eitas e espantos engraçados. Terminam o número agradecendo com o corpo se inclinando para frente até o quadril, depois ficam eretas, os cabelos grudados pelo suor nas têmporas e testa. O apresentador entra novamente, dessa vez com o nariz pintado de vermelho e uma peruca de cabelo crespo azul. Finge uma queda no chão, a plateia ri. Levanta-se e caminha até um espectador, pede que ele fique em pé. — Antes de começar, tem uma história séria que preciso de ajuda para resolver: tinham três cachorros: papita, pepita e repita. Morreram papita e pepita, qual sobrou? O menino olha para o nada à sua frente e volta com a voz na fala de que quem restou foi repita. O apresentador balança a cabeça em negação, cruza os braços e reinicia: — Olhe, vamos lá, preste atenção, tinham três cachorros: papita, pepita e repita. Morreram papita e pepita, qual sobrou? Coça os cabelos o menino, um pouco de caspa cai na sua camisa de super-homem, diz de novo, sem compreender: foi repita, quem sobrou foi repita, ao que o apresentador se ajoelha, faz o sinal da cruz: — Então, tinham três cachorros: papita, pepita e repita. Morreram papita e pepita, qual sobrou? Alguém sopra da plateia que o nome repita do cachorro faz com que o apresentador repita a pergunta, aaaaaaaaaaah, alguns deles riem, o menino volta envergonhado por não ter percebido a brincadeira, recebe umas tapas nas costas e uns empurrões no alto da cabeça. Porto Alegre - junho de 2017

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O apresentador continua, algumas piadas sobre biscoitos falantes, e depois entra a Amanda, o collant de ginástica rítmica, um bambolê e duas fitas cor de arco-íris, a sapatilha cobrindo apenas os dedos e a sola do pé. Um colchonete é colocado no chão. Ao fundo, a música da pocahontas, e a menina mostrando a elasticidade do corpo, girando o bambolê no pescoço, nos antebraços, na cintura e nas pernas, parecendo uma dança, a plateia envergando a coluna, os olhos se piscando para enxergar o todo, e Amanda inova criatividade com as fitas, agitando-as em formato de ondas, enquanto abre escala, gira em mortal, faz ponte e sapateia, as palmas acontecendo de graça. Mas a música vupt e as luzes se apagam. Garagem no subsolo e escuro e calor. Faltou energia, ah, não, Amanda some na ponta dos pés por trás do lençol-cortina. Um pequeno alvoroço na plateia, um burburinho atrás da coxia. Beatriz traz a lanterna de pilha. — Quero meu dinheiro de volta — uma sombra se levanta. Camila se inquieta, tinha que ser o Tiago, tinha que ser. O apresentador se adianta: — Calma, galera, não vamos exagerar, a gente não tem culpa. Quatro dos vizinhos ainda sentados. Só o Tiago em pé, as mãos enfiadas nos bolsos. Amanda reaparece trazendo picolés pra todo mundo. — Já disse que quero meu dinheiro de volta — o menino, impassível. — Relaxa, pô, a gente comprou tudo de picolé, agora chupa um aí e refresca a cabeça — Amanda lhe oferece um de morango e ele recusa, empurrando a mão dela com tanta ferocidade que o picolé escorrega e cai no chão. — Eu não quero brigar. Só devolvam meus quinze centavos e eu vou embora. Camila toma fôlego e vai até ele: as pontas dos dedos indicadores encostadas uma na outra, na horizontal: corte aqui, estou de mal de você. Porto Alegre - junho de 2017

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Iiiiiihhh, forma-se uma nova plateia. Exceto por Camila e Tiago, os demais estão lado a lado, o picolé na boca, os braços quase se encostando, a euforia de saber aonde aquilo vai dar. Beatriz ilumina o palco com a lanterna. Tiago repara na boca rosada de Camila, o lábio inferior tremendo, ela nunca estando assim tão perto. — Não pre — engole a saliva. — Não precisa disso — dá um passo para trás. — Claro que precisa, corte aqui — a menina se reaproxima, dessa vez ainda mais perto, o hálito quente exalando. Ele lembra: o dia em que ela chegou para morar no 106, o cabelo cacheado no meio das costas, tímida, os olhos gigantes feito animes, a mãe dela indo jantar na sua casa, os dois brincando no videogame, os dois apostando pirulitos para quem perdesse na adedonha, os dois dividindo a colher do brigadeiro, o telefone sem fio, o Rodolfo chegando, ela se preocupando em passar batom, ela sempre sem tempo, ela contando sobre o Rodolfo, o Rodolfo, o Rodolfo, mais velho, mais alto, sem espinhas. Ela lembra: o medo de não fazer amigos no novo bairro, o convite para o jantar, as mães conversando, ele parecendo um japonês, os olhos puxados, a camisa do Bart Simpson, os dois combinando de pular de bung jumping quando completassem dezoito anos, os dois dividindo o dinheiro do quebra-queixo, os dois indo passear com o cachorro na pracinha, o telefone sem fio, ele se preocupando com o campeonato de natação, ele sempre sem tempo, sendo bruto, dando foras, pregando peças, não emprestando mais as fitas de videogame. — Corta logo, vai — Camila sobe a ponte horizontal de dedos até a altura do nariz dele. Tiago puxa as mãos dela para baixo e diz sim, sim com os lábios encostados nos lábios dela, sim com as bocas se selando por uns cinco segundos até que a menina se afasta, as bochechas explodindo vermelho. E tudo o que é plateia bate palma, as gargalhadas e os ruídos crescendo. A música de pocahontas recomeça de onde havia parado, as luzes piscam devagar antes de se acenderem de vez. Porto Alegre - junho de 2017

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No palco, os dois se entreolham, a vergonha dando coragem nas pernas. Correm. Camila, escada acima para o quarto, atravessando o céu de nuvens do lençol-cortina. Tiago fugindo portão afora, deitando sem ar no gramado de casa, um céu cheio de nuvens bagunçadas sobre a sua cabeça.

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LEONARDO WITTMANN


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SALLY

SETON

LEONARDO WITTMANN

Foi um pouco depois das dez da manhã, que Sally Seton, sozinha em seu apartamento de três cômodos em Manhattan, se deu conta de que esquecera as nozes. Dos convidados que receberia, todos gostavam dos seus brownies caseiros, especialmente Tom Bannerman, por quem um dia se interessara; mas tal aproximação, que Sally, durante um jantar na casa dos Virgil, chegou a considerar como concreta e mesmo óbvia, transformou-se em mera especulação. Ela se lançou à rua com parte daquela lembrança em mente. O mesmo Tom Bannerman que, veja só, tinha conhecido Clarissa durante uma breve estadia em Bourton, quando realizava seu doutorado fora dos Estados Unidos. Sally, apesar da escolha tardia de viajar pelo mundo, sentia, ainda, uma desolada emanação que se agarrava às suas memórias da Inglaterra. O dia a dia pacato e de fácil trânsito, que Bourton apresentava na época (e até hoje?), lhe trazia uma tranquilidade rara, que Sally não identificara em nenhum outro lugar. Pois não foi a vida regrada e protegida de Clarissa que fez com que Sally se aproximasse dela? Sally — que quando menina andava de bicicleta no parapeito do terraço, que fumava charutos e que lia Platão antes de dormir —, guardava com carinho as caminhadas e os jantares na casa dos pais de Clarissa. E hoje ainda era óbvio, como o foi na época, que enamorar-se de Clarissa tinha sido algo tão natural quanto um relâmpago que ilumina uma tempestade de maneira breve, mas plena. Sally se misturou à multidão ao redor da feira e, devido ao seu péssimo senso de direção, passou dez minuPorto Alegre - junho de 2017

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tos dando voltas nas diferentes bancas antes de encontrar aquela das nozes, dos amendoins e das avelãs. Comprou, com alguma pressa, o punhado de nozes; e um extra, de avelãs. (Não tinha Tom Bannerman, durante uma festa monótona perto do Central Park, comparado o seu perfume ao cheiro de avelãs?) Mas e quanto à própria Clarissa? Teria ela, agora, o mesmo sentimento, a mesma impressão daquele dia em que Sally parou, colheu uma flor e a beijou nos lábios? Teria ela considerado aquilo como um flerte, apenas? E não era curioso (melancólico?) como Clarissa, sempre que Sally passava por dálias num jardim ou numa floricultura, se materializava na sua frente? Apressou-se para terminar a mistura do brownie e colocou-a no forno. De resto, tudo estava pronto. Era provável que os Virgil, como de costume, fossem os primeiros a chegar. Charles e Mae gostavam de falar sobre o trabalho no hospital, ou mesmo de jogar conversa fora, antes dos outros convidados baterem à porta. E o jarro na sala dos pais de Clarissa, sempre cheio de água e de alteias? Clarissa adorava (pelo menos esta era a sua impressão) quando Sally corria pelo jardim e agarrava meia dúzia de dálias para juntá-las às alteias. Não, Clarissa nunca consideraria aquele episódio como uma brincadeira infantil, sem responsabilidade alguma. Estava claro que aquilo fora um amor possível para duas mulheres recém-saídas da adolescência. A campainha. (Os Virgil.) Ou quando Sally lhe estendeu a única dália do jarro, entregando a última prova daquela intimidade que seria perdida para sempre. Abriu a porta. Lá estavam Charles e Mae. Pois já era junho — um de seus meses favoritos; tinha sido também em junho, há não mais de vinte anos, que deixara aquela casa nos arredores de Manchester. Seu bom amigo Peter dizendo: “Logo você, Sally Seton, a pessoa Porto Alegre - junho de 2017

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mais selvagem e ousada do mundo, vivendo num casarão como este, ignorando todas as aventuras que jurou que viveria”. E Peter tinha razão, é claro. Talvez o tivesse feito por medo, ou, quem sabe, por receio. Não — ela sabia o verdadeiro porquê: não era nada mais, nada menos, do que preguiça. Assim, lembrou-se daquele momento ínfimo em que, caminhando no jardim de sua casa inglesa, decidiu se mudar para Nova York. O marido, sempre com uma atitude perfeita de gentleman burocrático, fez pouca oposição ao rompimento (anos mais tarde, se mudaria para o Marrocos, num salto liberatório que surpreendeu a própria Sally). E pensou na companhia de Clarissa naquela tarde no circo, quando anunciou que deixaria a Inglaterra por um tempo longo e indeterminado. Sally não queria ser sufocada pela aristocracia inglesa, nem ser convertida num ser mundano e dócil; algo que, aos seus olhos, já acontecera com Clarissa. Passou a travessa de legumes para Ben Wanderbilt, o último convidado a chegar. Eram cinco, ao todo. Até o momento, trocara apenas palavras breves e costumeiras com Tom Bannerman; queria se convencer de que o motivo daquilo era o esforço que lhe custara preparar o almoço, mas sabia: este era um dia que pertencia à Clarissa, e a tudo que as rodeou durante tantos anos. Da conversa, lembrava-se apenas de trechos pontuais, porém importantes. Do circo, vinha, em primeiro lugar, a imagem de um palhaço que, arrumando-se do lado de fora da lona, lhes comentou algo em húngaro. Sally riu; Clarissa, talvez constrangida com o homem atrasado e nervoso, não esboçou reação alguma. (Mas, estaria aquele constrangimento ligado ao palhaço, ou ao assunto que as duas discutiam? — afinal, o quão doloroso era para Clarissa perder Sally, assim de repente?). As duas demoraram a entrar, talvez porque Sally sentisse necessidade de explicar, passo a passo, todos os pequenos momentos que a levaram a tomar aquela deciPorto Alegre - junho de 2017

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são; ou, talvez, porque lhe parecesse que Clarissa desejava falar algo, algo que poderia ser tantas coisas, ou se resumir a uma só: a improbabilidade, agora concreta, das duas realizarem algo juntas. Mas, se tal pensamento veio à Sally, por que não o disse à Clarissa? Talvez porque tudo passasse por isso, naquela época: o direito, ou não, de dizer algo que interferisse numa vida que não era a sua. E era esta outra característica que as unia: a de conhecer alguém quase por instinto, onde mesmo um gesto incompleto, de poucos segundos, já era antecipado por uma noção plena do que estava acontecendo. Também lhe veio à mente (não era extraordinário como tais memórias eram acompanhadas de detalhes tão minúsculos?) o objeto que mais lhe chamou a atenção em todo o cenário, em todo o palco montado dentro da lona amarela: o chapéu pontiagudo vermelho do palhaço. O chapéu que, desde então, ela assimilava com Clarissa sentada ao seu lado, de perfil: séria demais, ou apenas focada no espetáculo à sua frente? E por que, ao mesmo tempo, as duas pareciam, para Sally, as únicas pessoas descontentes naquela plateia? Sally sabia que era injusto lembrar-se daquela tarde como uma tarde infeliz. E, tinha certeza, Clarissa também não se lembraria daquelas horas com desilusão ou remorso — afinal, o que elas poderiam fazer, naquele contexto inesperado? Teria Clarissa tomado, pela primeira vez na vida, uma atitude decidida e enérgica? É claro que não, pois assim era Clarissa. Tal coerência e, até, monotonia, era o que lhe dava o seu ar de raridade, de presença discreta, mas sempre percebida. O próprio Peter comentara com Sally, certa vez: dentro do grupo deles, era sempre Clarissa quem chamava a atenção. Não que fosse deslumbrante ou mesmo bonita; não passava por uma mulher original, nem culta; ela estava ali, apenas; e isso era tudo, isso era o suficiente. Serviu os brownies vinte minutos depois do almoço, no momento em que Charles e Ben comentavam sobre a corrida de cavalos nas quintas. Mae e Tom Bannerman Porto Alegre - junho de 2017

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falavam sobre algum outro assunto, talvez relacionado ao doutorado dele (algo que ele sempre gostava de mencionar, tanto em reuniões pessoais quanto sociais). E foi assim que lhe veio o pensamento mais forte relacionado à Clarissa naquele dia. Sim, pois todos ali eram seus amigos, todos ali lhe despertavam algo, fosse relacionado à aparência, ao conhecimento ou mesmo ao afeto. Algo, em cada um deles, lhe chamava a atenção de imediato. Algo que, ao olhar e conviver com Clarissa, nunca funcionou da mesma maneira, pois era aquela simplicidade inofensiva, porém enriquecedora, que Sally nunca mais havia encontrado depois que deixou a Inglaterra.

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A LIRA

CIRO NOGUEIRA DE OLIVEIRA

Viciado em cigarros mesmo eu fiquei quando descobri que eram um remédio eficaz contra a prisão de ventre. Havia mudado de casa há cerca de um mês e meu intestino seguia tímido no contato com a privada nova — de um banheiro frio, com teto mofado e sem bidê. Fumar, bem ou mal, relaxava as coisas, além de ser um passatempo possível para um sujeito com tendências melancólicas. Minha história recente era um clássico gerador deste estado: divórcio inesperado, decisão unilateral (que não minha) e o fardo de permanecer no apartamento em que vivemos juntos por cinco anos. Suponho que até poderia ter dado conta da situação — sempre me achei casca grossa em termos afetivos — não fosse a crueldade do fato de trabalharmos em um mesmo prédio. Risco de encontros diários. Tortura adicional para minha situação. Após algumas semanas intercalando insônia e sessões extraordinárias de análise, ficou configurado meu plano de fuga: reuni minhas credenciais de funcionário exemplar do tribunal — sem impedimentos administrativos — e convenci o RH, cujo pessoal me era simpático, a não obstar meu pedido de licença. A justificativa: uma pós-graduação em direito processual, sediada em Porto Alegre (a quase 2000 km de casa), muito bem avaliada pela CAPES e sem a menor relação com a função que eu exercia. Voilà vida nova. Depois de dez anos habituado a uma rotina de horários a cumprir, férias anuais e happy hours periódicos, foi um pouco custoso aprender a viver na flexibilidade de Porto Alegre - junho de 2017

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agenda oferecida pelo dia a dia de estudante. Precisava ir pouco ao campus e, não conhecendo ninguém, mesmo que devorasse a bibliografia sobraria tempo para o ócio, algo perigoso em minha condição. Ciente da necessidade de reagir, não demorei a bancar o flâneur. Ou o excêntrico solitário, o que pode dar no mesmo. Escolhia rotas diárias para caminhar à toa, esperançoso de topar um acaso memorável. É claro que nada acontecia. Nada digno de nota, melhor dizendo. Há sempre um comércio curioso para reparar, um pôr do sol nostálgico, cheiros nostálgicos, pessoas nostálgicas. Ia me pautando pelo tema da nostalgia, para não cair no da solidão. Talvez por isso minhas caminhadas sempre terminassem acompanhadas por um pinot noir gelado ou um cabernet honesto, conforme o frio, além de lasanhas, entrecôtes, risotos, pizzas, filés, petit-gateaus e tudo quanto minha pouca criatividade, aliada a minhas economias de técnico judiciário, pudessem angariar para terminar mais um dia com ilusões de dignidade. Eu estava muito entediado, afinal. Eis que recebi um e-mail da Teresa, intitulado E aí compa. No ato fui remetido a um período da vida tão nonsense quanto indispensável: a época do Partido. Teresa foi uma amiga do CEFET que se tornou íntima no tempo em que compúnhamos uma mesma chapa do grêmio estudantil e também mais tarde, quando passamos a frequentar as reuniões do Partido no sindicato dos professores. Minha vida política se resumiu a isso: frequentar as reuniões do Partido, acompanhado por Teresa. Por imponderáveis dois anos. Os companheiros mais radicais (ou agressivos) ironizavam minha presença. Ou, na melhor das hipóteses, me tratavam como uma espécie de mascote. O caso é que nunca me filiei ou assumi função alguma, mas provavelmente soube despertar pouca desconfiança, o que não é pouca coisa. Já Teresa virou militante de carreira. Chefiou comissões temáticas, rodou o país como delegada regional, além Porto Alegre - junho de 2017

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de ter se candidatado a vereadora duas vezes. Ela tinha seu respeito no ambiente e, no fundo, mesmo sabendo que eu nunca me adaptaria àquela organização marxista-trotskista de doutrina vítrea — esse era o jeito carinhoso de os dissidentes xingarem o Partido — ela foi a responsável por que me tolerassem nas reuniões. Creio que minha presença confortava-a de alguma forma. Talvez por nossa proximidade literária. Entre pessoas que lêem muita ficção existe uma cumplicidade no que diz respeito ao entendimento do mundo (sim, antes de burocrata, fui um leitor voraz, e juntos havíamos discutido Anna Karenina, Mrs. Dalloway e O Jogo da Amarelinha antes dos 25, além de compactuarmos nosso profundo respeito pelo Guia dos Mochileiros das Galáxias e por todo o Harry Potter, embora eu discordasse de sua opinião que a história melhorava a cada volume). Fosse pelo que fosse, quando o bicho pegava nas reuniões, era a mim que ela procurava para discutir o que poderia acontecer. Ou mesmo, bem direta, perguntar o que estava acontecendo. O contato por si me alegrou, tanto que me preparei para a leitura (era um e-mail longo). Chá de camomila, roupão, aquecedor, pernas cruzadas. De saída, matei algumas curiosidades sobre minha amiga: 1) Teresa seguia no Partido; 2) seguia solteira, sem residência fixa e ainda sem ter concluído a primeira graduação; 3) sua nova função devia ser em algo como a Intelligentsia de guerrilla, pois exibia informações não apenas de que eu estava no Sul, divorciado e morando sozinho por conta de estudos, mas também do bairro em que eu vivia e do fato de eu não ter amigos, coisas que não me lembro de ter contado ao Facebook; e 4) pelo tom da abertura, ela me pediria um favor. Seguiu-se uma história sinistra. Uma militante paulistana que viva em Porto Alegre trabalhando pelo Partido dizia ter sido espancada pelo companheiro, também militante, que teria fugido em seguida. O caso aconteceu algumas semanas antes do e-mail de Teresa e, como era de praxe no Partido, não envolveu polícia, para que fosPorto Alegre - junho de 2017

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se resolvido internamente. Até que se procedesse a uma sindicância, o relato de Janaína, a agredida, era a verdade disponível. Paulo, o acusado, seguia incomunicável, e ninguém dava notícias de seu paradeiro. Teresa conhecia Janaína superficialmente. Se encontraram em um congresso de estudantes e em alguns eventos do Partido. Chegaram a trocar e-mails e mensagens, ela contou, mas sempre para resolver questões práticas. Já com Paulo ela disse ter tido um conhecimento mais íntimo, o que entendi ser um affair, e isso já levava algum tempo. Teresa desabafou que estranhava o relato de Janaína, pois não conseguia imaginar Paulo batendo em alguém, mas sabia também que isso era comum, ou seja, algo que não se imagina, até que aconteça. Contudo, ela ampliava o desabafo confessando uma intuição — e aqui suponho que seja o tipo de coisa que Teresa só tenha coragem de falar comigo. Uma intuição de que havia algo mal contado. Mesmo sem uma hipótese sobre o que poderia estar por trás de uma possível mentira, ela desconfiava da moça, e queria minha ajuda para entender melhor tudo aquilo. Seu pedido parecia até ingênuo: que eu desse uns rolês com Janaína e fosse contando minhas impressões. É claro que estranhei tudo à primeira vista. Mesmo afastado há algum tempo do meio, eu sabia o quanto pegaria mal para uma militante questionar assim, por mera intuição, uma companheira com um relato tão grave, o que me levou a crer que Teresa tivesse razões mais concretas e não declaradas para me pedir o que estava pedindo. Isso na melhor das hipóteses, pois a outra possibilidade era que ela estivesse aproveitando minha condição de pessoa solitária e desocupada para recrutar um mero olheiro a seu serviço no Rio Grande do Sul, o que não seria tão absurdo, eu bem sei que as pessoas crescem no Partido com mania de espionagem. Ela finalizava dizendo que, caso eu topasse, me colocaria em contato com Janaína, me apresentando como ex-membro do Partido interessado em retomar conexões ( ! ) e pedindo a ela que me ciceroneasse em alguns programas, já que eu era de fora. A desculpa subentendida Porto Alegre - junho de 2017

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é que minha companhia, para ela, poderia também ser uma distração importante. Pensando bem, na hora, a segunda hipótese — a do olheiro particular — me pareceu mais provável, e cheguei a ficar puto com Teresa. Logo eu, com quem ela discutia Tolstói (e mal ela sabia de minha leitura recente de Don Quijote no original), logo eu, desempenhando um papel secundário num jogo de leva-e-traz, sem saber o que se passa lá em cima. E logo Teresa, que publicamente surfava no discurso da sororidade. O que são as coisas. O chá de camomila não deve ter cortado o efeito de meu vinho vespertino, pois respondi na mesma hora dizendo que sim, que topava, e passei meu número porto alegrense. No começo da tarde seguinte o telefone tocou. Era Jana, como ela mesma se identificou. Abreviou a recomendação de Teresa. Tinha um sotaque com algo de gaúcho incorporado. Perguntou se eu tinha compromisso naquela noite, eu não tinha, ela disse tenho uma aula de circo que termina às oito, me encontra lá na saída que a gente vai comer alguma coisa. Uma objetividade tremenda. Às cinco para as oito eu estava em frente à Escola de Circo. Letreiro estilizado à moda antiga, em tudo contrastante com a fachada moderna de concreto e vidro do lugar, mais apropriado para hospedar quem sabe um crossfit ou academia de musculação. Pela porta transparente vi que a aula não parecia próxima ao fim. Várias meninas observavam uma colega que fazia evoluções corporais dentro de um círculo vazado a dois metros de altura. A professora chegou na porta e me chamou para entrar. Sem outra reação possível, aceitei, mas fiquei sem jeito por ser a única pessoa agasalhada entre tantos shorts curtos e tops, e por ser o único homem. Do banco onde assentei dava para ver o cômodo contíguo, onde havia uma aula de poledance. Imaginei que minha presença ali pudesse constranger alguma aluna e firmei o olhar à frente, fiquei respirando aquele ar de treino feminino e percebi que seria impossíPorto Alegre - junho de 2017

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vel manter de todo a discrição, pois o lugar era muito iluminado e com espelhos nas paredes. Mais por brincadeira que necessidade, Jana me havia dito ao telefone que vestiria uma malha de circo bonina estampada com triângulos em cima e rajada de azul nas pernas, então ficou claro quem era a menina dependurada. Quando a reconheci ela justamente finalizava um movimento de inversão, costas arqueadas, braços para trás segurando na parte mais baixa do círculo, pernas encaixadas no alto, todo o conjunto girando em torno do eixo preso ao teto. Numa dessas voltas, Jana me deu um sorriso de boas vindas, que consegui retribuir. Enchanté, pensei. Terminada a aula, vestiu de imediato um sobretudo três quartos por cima da malha de treino e, quando saímos para a rua, a pele de seu rosto, muito lisa e branca, adquiriu uma vermelhidão quase infantil. Isso roubou minha atenção por todo o trajeto, enquanto ela sugeria uma pizzaria vizinha e puxava um assunto sobre Teresa, tão gentil, dizia. Eu apenas conseguia concordar, me sentia um pouco tímido, e logo sentamos no lugar que ela escolheu. Fiquei tranquilo quando pediu uma Green Cow IPA para acompanhar sua fatia de pizza, já não seria uma radical de esquerda que renega os refinamentos, pelo menos não os de paladar. Para evitar uma possível precipitação com o tema delicado, puxei o assunto do circo. Tentei polemizar. Havia tido a chance de conviver com alguns artistas de rua, geralmente malabaristas, mas também um equilibrista, um mágico de bar e acrobatas de semáforo. Sabia que em geral olhavam torto para a explosão de “aulas de circo” nos ambientes totalmente clean de bairros gentrificados. Lugares pretensamente disseminadores da cultura circense, diziam, mas que nada tinham que ver com uma filosofia mambembe de raiz, em que pessoas viviam de fato para aquilo. E se o circo, enquanto prática cultural popular e espontânea, possuía sentença de morte, não seriam esses espaços elitizados que ajudariam a salvá-lo. Reproduzi o argumento para ouvir sua opinião, mas também pelo prazer de articular uma fala aparentemente mais arrojada, eu que desde a caminhada estava muito calado — provavelPorto Alegre - junho de 2017

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mente porque Jana me intimidava um pouco. Sem me dar tempo de terminar o gole caprichado que comecei na cerveja, ela respondeu que sim, de acordo, endossava minha análise, mas só frequentava a escola porque buscava uma atividade física fluida e porque achava lindas as posturas corporais, principalmente da lira e tecido, e que, atualmente, quem estava por conta de problematizar e salvar as práticas populares e espontâneas era outra frente, que ela mesmo compunha a de igualdade de gênero, e que possuía, portanto, outras preocupações. Por sua expressão dava para ver que tinha se divertido mais com sua resposta do que eu com minha pergunta. Esse foi mais ou menos o tom da conversa dali em diante. Eu às vezes fazendo provocações baseadas nas contradições de um estilo de vida burguês para uma militante de esquerda e ela com sua presença de espírito tirando de letra as minhas afrontas. Argumentava em prol do pragmatismo. Argumentava ser saudável separar a militância da vida pessoal. Agora que conto, soa como um simplismo barato, mas articulado por ela parecia convincente. A verdade é que me seduzi por sua perspicácia e, quando soube que assessorava uma candidata às eleições em Porto Alegre, tudo fez mais sentido. Talvez por cacoete profissional ela andava afiada nos discursos e me passar credibilidade em uma mesa de bar devia ser nível elementar para Jana, que além do mais era objetiva na condução dos assuntos e nunca dava espaço para maus-entendidos bobos — ao ponto de eu ter tido a impressão de que, se por ventura perguntasse tá afim de ir lá pra casa transar comigo, ela responderia simplesmente sim, mas que se dissesse não, não tô afim, isso não geraria desconforto algum. Ela pode ter notado meu pensamento caminhando para esse lado, pois de um assunto sobre os pormenores burocráticos do trabalho, modulou para e tu não sabe o pior. Tem reunião amanhã cedo. Já vou dormir. E não demorou cinco minutos para deixar metade da conta em dinheiro, dizer depois te ligo e entrar no taxi. Naquela noite eu havia saído de casa preparado para lidar com uma vítima de violência doméstica, mas Porto Alegre - junho de 2017

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confesso que esqueci este dado desde nossa primeira caminhada e talvez por boa parte dos dias que se seguiram. Jana ajudava. Ela não parecia fragilizada, ou pelo menos o que se espera de alguém assim. Tanto é que tive dificuldade em escrever minhas primeiras impressões pra Teresa. Dizer que Jana estava bem indicava, por um lado, poder fazer algum sentido a tal intuição de minha amiga; mas, por outro, esvaziava o assunto, pois eu estava longe de poder afirmar que minha recém-conhecida agia como uma mentirosa. Pois nesse caso o esperado seria que ela ao menos pretendesse passar por pessoa abalada, visto minha conexão indireta com o Partido, e isso definitivamente não aconteceu. Pela primeira vez senti um toque de mistério na situação, e estava nisso quando Jana escreveu perguntando se eu topava jantar na noite seguinte, na sua casa. Escrevi para Teresa relatando mais ou menos o que vivemos no primeiro encontro mas sem dar opiniões e, sem me perguntar por que, não disse que havia recebido o convite do jantar, nem que havia respondido por supuesto. Vou te fazer uma surpresa foi a mensagem que recebi no dia seguinte, pouco depois de combinarmos o horário. Não fiquei perplexo com a abordagem, era coerente com a Jana de até então. Mas ainda assim foi divertido imaginar o que poderia ser a coisa. Sem perceber, deixei de lado o fato de que, afinal de contas, conheceria o cenário da agressão. Ela abriu a porta do apartamento no Bom Fim risonha e com uma roupa bem caseira, toda em malha de algodão fina e descolada do corpo, predominância de amarelos desbotados. Só aí percebi que havia esquecido sua recomendação: ir com roupas leves. Com as melhores das boas maneiras, me apresentou cada cômodo de seu quarto-e-sala, exagerando na solenidade do ato, o que serviu para descontrair. A decoração era sóbria, quadros de temas indígenas ou aborígenes, havia muitos livros em prateleiras e plantas variadas. Porra, que lindo, eu disse. Tu não reparou, né?, me perguntou enquanto eu tirava a jaqueta e de imediato notei o elemento estranho, nada discreto e Porto Alegre - junho de 2017

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colorido que pendia do teto: uma faixa alaranjada de tecido, presa a uma trave que varava as duas paredes da sala, cujo pé direito era um pouco mais alto que o de costume. Claro que percebi, menti, com uma risada me entregando. A surpresa seria uma lição básica de tecido. Ela pôs um som eletrônico meio zen (efeitos de bambus e cascatas), estendeu um tapete de yoga no chão — que entendi ser nossa proteção em caso de queda — e, sem tomar impulso, com uma habilidade tipo gato de rua escalando árvore, chegou ao ponto mais alto. Enquanto cruzava as pernas assentado no sofá, percebi que o tecido eram na verdade duas peças, pois seu próximo movimento foi afastá-las, entrelaçar cada uma em um tornozelo, mais um cruzamento na altura do quadril e deixou o corpo cair numa inversão repentina, pernas abertas sustentadas pelos panos, tronco para baixo, a blusa larga deixando aparecer a barriga, braços dependurados e as mãos me convidando com um gesto de agora é sua vez. Depois de trinta ou cinquenta minutos de repetições, eu conseguia finalmente executar as travas dos tornozelos para poder soltar os braços. Isso me rendeu dores constantes na planta de cada mão, porque o jeito de concentrar a força para subir não parece com nada que pratiquemos no dia a dia. Ela ria de tudo. Durante algum tempo tive certeza de estar fazendo papel de bobo. Cheguei a conferir ao redor se não estava sendo filmado para uma exibição secreta, onde alguém diria putz, que otário. Até que desencanei, e, no fim, cheguei a ensaiar posições que tinham lá sua plasticidade. Cansaço total. Tremedeira. Taças de vinho. Transamos. Desde minha chegada era nítida a tensão sexual. Pensando depois, o jeito seguro dela de aceitar meu beijo, me levar para a cama e, quando lhe parecia bem, gozar sozinha, confirmava minha impressão de que as coisas seriam claras entre nós, que eu não deveria me preocupar em entender o que estava rolando, que seu excesso de risos e olhares desconcertantes era seu jeito de ser e que para o mesmo roteiro se repetir bastaria colocar em meu Porto Alegre - junho de 2017

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lugar outro cara atraente, educado, saudável e heterossexual, ou seja: eu podia tirar o cavalo da chuva pois não havia nada especial acontecendo. Uma debandada seria até recomendável, inclusive, não quisesse eu botar o coração à prova naquele momento já delicado. É possível que algo em meu jeito sério de vestir seu roupão e ir fumar na janela lhe tenha sugerido uma amostra de minhas inseguranças. Logo no dia seguinte me intimou com tenho uma apresentação segunda-feira na Escola de Circo, por que tu não vai lá ver? E eu, que precisaria muito menos para querer matar as aulas do dia, dei a única resposta possível: sim, como não. Teresa, Pra ser honesto tô mais confuso que esclarecido. Ela parece alto astral demais pra alguém que tenha sofrido há pouco tempo, e espontânea demais pra alguém que sustente uma mentira desse tamanho. Me conta: de onde veio essa sua tal intuição? Beijos, M. Na segunda-feira a Escola estava toda enfeitada. Tiveram a decência de iluminar em penumbra o caminho para o salão principal, que tinha cadeiras dispostas em meia-lua diante do tablado onde os alunos se apresentariam. Algumas pessoas pegavam canapés em uma mesinha de canto. Entrei quando um cara fazia exercícios de solo girando bambolês e interagindo com seu companheiro dependurado no trapézio, música de Britney Spears. Não havia mais que quarenta pessoas. Entre os homens de minha faixa etária, eu era o único a não vestir lycras coladas, o que me fazia sentir um extracomunitário. Apesar da informalidade do evento, havia uma escala de horários sendo cumprida. A performance seguinte foi no tecido, com uma inusitada trilha de Van Halen e um belo jogo de luz e sombra. A protagonista musculosa passava a impressão de tudo aquilo ser muito fácil, fluindo em uma sequência hipnótica ao ponto de só ter sido possível desviar a atenção quando acenderam as luzes para Porto Alegre - junho de 2017

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os aplausos, quando então vi que Jana já estava no salão, terminando seu aquecimento. (Ela estava uma graça, com uma malha grafite de corpo inteiro e costas de fora, maquiagem leve e o cabelão reduzido a um coque impecável.) Recolheram o tecido para o alto e a professora anunciou minha amiga na lira (a lira é o círculo, afinal). Supus que Jana fosse uma aluna intermediária. Performou uma sequência longa, complexa e muito bem decorada. A cada pose os colegas aplaudiam, o que comecei a fazer também. Sua levada era mais lenta e permitia pausas para raciocínio e retomada do fôlego. Estava inclusive descompassada da música, uma versão remix de Assim Falou Zarathustra — muito divertida, por sinal. O ponto alto parece ter sido quando ficou dependurada por apenas uma das pernas, agarrada no círculo por uma flexão do joelho. Alguém comentou satisfeito sobre sua evolução. A ligeira aura de amadorismo da apresentação realçava um contraste curioso em Jana. Diferente dos outros performers, que mantinham uma seriedade compenetrada, ela marcava suas manobras com sorrisos — quase risos — e isso reforçava minha visão de que, para ela, que eu imaginava ser uma pessoa séria, aquilo tinha algo de traquinagem. Não cruzou meu olhar nem uma vez do alto da lira. Já eu devo ter dado alguma bandeira, pois me peguei de boca aberta durante uma de suas cambalhotas. Terminado seu número veio o intervalo, então alguns presentes se aproximaram do tablado para cumprimentá-la. Ela parecia muito querida. Esperei minha vez e tive impressão de uma recepção fria, de oi e aperto de mão. No entanto, terminando de mexer com a última pessoa que a rodeava, me puxou de volta, me deu um abraço longo e agradeceu por ter ido vê-la. Por alguma razão, o que quer que eu tenha dito em resposta saiu engasgado. Sinalizei então que ia lá fora com a desculpa de fumar um cigarro. Eu estava apreensivo. Ou acabaria ficando. Ou sei lá o quê. A cada vez que lembrava por que nos encontramos, desejava que a história do e-mail fosse mera ficção de Teresa. Desejava convidar Jana para almoçar e ver um filme Porto Alegre - junho de 2017

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e não ter que lidar com aquela questão. Mas era impossível. Ou eu sumia, ou teria que saber. Me posicionar. Duvidar de Jana, se fosse o caso. De Teresa eu queria duvidar, mas o que isso significava. Torcia eu para que Jana nunca tivesse sido agredida? (É sempre desejável torcer para que pessoas não tenham sido agredidas), tendo portanto mentido para o Partido, e que agora a única preocupação fosse entender como e por quê? Ou preferiria que ela tivesse contado a verdade, sido vítima de uma violência e passado por um processo de recuperação tão rápido quanto inverossímil? Fazia frio, eu estava sozinho na calçada em minha quinta ou sexta baforada, pensando que talvez fosse melhor me afastar daquele imbróglio, quando ouvi sua voz vinda de trás: — Viciado desde quando? O bom-humor habitual, agora de casaco tipo militar russo por cima da malha grafite. Disse ainda que as apresentações recomeçariam, mas que ela mesmo não fazia questão de ficar. E eu, sempre traído por improvisos: — Anima então sair pra almoçar? E de repente ver um filme depois? *** Fazer sexo com alguém após um treino ou jogo ou performance pesada aumenta a intimidade porque sentimos pelo cheiro a que ponto aquela pessoa pode chegar. Estou há duas horas assentado em frente ao computador me perguntando se esse tipo de frase pode ajudar Teresa a entender o porquê de meu silêncio. Já se vão três semanas que parei de respondê-la. Quero dar um ponto final. É difícil me posicionar, é difícil saber que tipo de repercussão meu report poderia ter para Jana, ainda mais passando pelo filtro de Teresa. E que repercussão poderia ter para mim. E para o Partido. E para o movimento. E pra gente. Preparei dois rascunhos. Um deles é o de fuga. Conto para Teresa que o contato com Jana está sendo ótimo para minha cabeça, que é gostoso conhecer uma pessoa nova e que ela não parece uma mentirosa. Esse rascunho Porto Alegre - junho de 2017

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está recheado com detalhes sobre nossos almoços, jantares, transas que melhoram a cada dia e das aulas de tecido que venho recebendo. Deliberadamente playing the fool. Suponho que Teresa não se digne a respondê-lo, o que por um lado me daria mais liberdade por aqui. O outro rascunho leva as impressões frescas de nossa conversa em sua casa após a apresentação na Escola, naquela segunda-feira, e foi escrito quando eu mal sabia o que pensar a respeito. Já no caminho ela me perguntou o porquê de minha introspecção e nisso ficou anunciado que teríamos de passar por uma conversa séria, ou então que me fechasse de vez as portas. Tu acha que sou mentirosa? Não poderia ter ido mais direto ao ponto. Olhei pra baixo reticente, enquanto ela mexia no notebook do outro lado da mesa, os hambúrgueres de almoço a gente já tinha comido. Desculpa, mas pouco antes de te conhecer a Teresa me falou da história. Eu por mim nem queria ficar pensando nisso, mas é estranho que você há tão pouco tempo… E devo ter olhado de novo pra baixo, pois ela precisou completar … tenha apanhado do Paulo. Estava atravessado o limiar. Eu disse sim. Então Jana me contou o caso, sem que meu questionamento lhe parecesse uma ofensa. Contou que brigavam com frequência, que a crise estava posta, e que um dia a coisa culminou em ofensas gritadas, empurrões, chutes, estrangulamento e um soco na cara. Ela me deu riqueza de detalhes, falou da adrenalina que a permitiu conseguir fugir de casa na mesma noite, das dores depois do primeiro banho na casa da amiga e de como foi voltar pro apartamento vazio depois. Falava com propriedade e pesar, mas também com distância, o que deve ter colocado alguma nota de incredulidade em meu semblante, pois ela atacou depois de um tempo, com alguma secura: mas você tem razão, eu sou uma mentirosa. Demorei a processar essa fala, ainda mais tendo ela virado o computador pra mim exibindo uma sequência de slides de seu próprio corpo. Eram fotos de hematomas nas pernas, nos braços, pescoço muito machucado e uma série final onde aparecia o entorno de seu olho direito quase Porto Alegre - junho de 2017

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preto de tão roxo. Ela havia se fechado no banheiro enquanto eu via e revia os slides, até que notei nos metadados que as fotos haviam sido tiradas há um ano e meio atrás. Ela voltou do banheiro. Eu não entendia se havia descoberto o segredo ou se me foi dado de bandeja. Por que você contou só agora? E pra que mentir que aconteceu agora? Ela olhou para o meio do tapete no chão com uma cara que só podia querer dizer hoje não. Nos dias seguintes nosso contato mudou. Ela estava mais silenciosa, menos entusiasmada com as coisas. Nosso carinho também poderia ser assim descrito. Ficamos mais próximos em um outro nível, e afinal estava instaurada a atmosfera de convalescência que cheguei a temer quando prevista, antes de nos conhecermos, mas que agora não incomodava. Nas poucas vezes que houve clima para o retorno do assunto, entendi que Jana encobriu a história na época para não queimar o cara. Eles retomaram a relação depois de um tempo. Ficaram juntos até pouco mais de um mês atrás, quando estourou o escândalo. Parece que ele fez algo grave de novo, e não faço ideia do que possa ter sido, Jana evita essa parte, e não me sinto no direito de insistir com a pergunta. Ela só diz a mentira das datas é muito menor. Quem sou eu para discordar. Agora tenho um enlace com Jana e a intuição de que o que disser para Teresa não vai morrer com Teresa. Se mando o primeiro rascunho me isento, a princípio, mas ele pode se converter em uma avalanche de fofocas que vai diminuir Jana e quem sabe a mim mesmo, passando por Teresa. Se mando o segundo, complico as coisas sem permissão da maior interessada, e como olhar para ela depois. A cada noite acendo um cigarro pensando em um jogo: se me telefona Tereza enquanto fumo, conto tudo pra ela, uma amizade antiga é uma amizade antiga; se me liga Jana durante o cigarro, explico toda a situação e pergunto o que fazer, já somos cúmplices, e abençoada seja Teresa que nos pôs em contato; se não liga ninguém, adio mais um Porto Alegre - junho de 2017

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dia a decisão. A terceira opção vem se repetindo noite após noite, mas sempre torço pra Jana me ligar.

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LOVE

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ALEXANDRE RODRIGUES

O jornal não fica no centro da cidade, como diz o

anúncio. Tenho de embarcar em um segundo ônibus, que sacode por mais vinte minutos até o ponto. Caminho depois por uma rua de paralelepípedos. A frente das casas é coberta por terra amarela. Um ou outro gramado, uma rara calçada. Metade dos quintais está cercada com arame farpado. Um cachorro recomenda, com brados e latidos, ficar longe dele. De repente, como se não tivesse nada a ver com aquilo, o prédio, verde e pequeno. Está atrasado — o editor me recebe na sala com um aperto de mão firme. Você é do tipo que não consegue chegar na hora? Não. Tem vontade de vencer no jornalismo? Tenho. Ok. Passa a explicar depois o trabalho: Você tem que ir toda manhã de delegacia em delegacia para recolher as ocorrências. Aqui a internet ainda não importa, não tem outro lugar onde ler essas notícias, só nós damos. As pessoas querem ler sobre o lugar onde vivem. Ouvi isso em um congresso, dito por especialistas, e quase rolei de rir. Grande merda, era a única coisa que eu já sabia. Mas, enfim, anota tudo que for importante, volta para cá e escreve, entendeu? Sabe quais são os municípios da Baixada? Não espera resposta. Vai até uma mesa e, abrindo uma gaveta, apanha um grande mapa, que espalha sobre o tampo. As cidades da região geográfica conhecida como Baixada Fluminense estão destacadas em amarelo. O editor lê em voz alta: Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João de

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Meriti, vai decorando, Duque de Caxias, Mesquita, Nilópolis, essa é pequena, mas todo mundo conhece por causa da Beija-Flor, Japeri e Queimados. Pontos vermelhos seguem a linha do trem, revelando mais nomes de lugares de que nunca ouvi falar: Edson Passos, Comendador Soares, Austin, Engenheiro Pedreira. Cada cidade no mapa, tão grande quanto um país. Cada ponto aqui é uma delegacia, entendeu? São esses. Consegue ver? Consigo. Tem celular? Tenho. Quer levar o mapa? Não. Ok, passa agora no RH e faz o crachá. Qualquer coisa me avisa. Primeiro dia? — a voz do fotógrafo no carro é pastosa como a voz de quem acabou de beber. Mal passam das oito da manhã. Hu-hum. É de foder isso aqui, já te aviso. O carro é um Fiat Uno, que o fotógrafo disse ter mais de vinte e cinco anos de uso, identificado com o logotipo do jornal. Na primeira delegacia, assim que atravesso a porta e vou ao balcão, me apresento ao plantonista, que não se contém: Estão contratando crianças. Me entrega uma pasta vermelha de plástico. Boletins de Ocorrência, está escrito na etiqueta. Começo a folhear. Um encontro de cadáver, um suicídio e, na maioria, brigas de vizinho e vítimas de assalto sem feridos. Um sitiante acusa outro de matar o seu cavalo envenenado, mas o vizinho foi ouvido e disse que o cavalo morreu de doença. Ao chegar ao fim da papelada, o policial, distraído com o celular numa mesa distante, já não me dá mais atenção. Somos só nós dois no plantão: É isso? — pergunto em voz alta para ser ouvido. Tem um cento e vinte e um, mas pouca coisa. Sabe o que é Cento e Vinte e Um? Porto Alegre - junho de 2017

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Não. Porra, não te ensinam nada? É um homicídio. Anoto o endereço. A mente já fervilha com os detalhes de meu primeiro texto importante. Se partirmos logo, disse o policial, levaremos uma meia hora até o local. Um leve pânico de não saber o que perguntar. Partir de uma vez vai me acalmar, concluo. Mas do lado de fora, encontro o carro vazio. Estão lá naquele boteco — o flanelinha acaba de sair de trás de uma carcaça abandonada. O estacionamento da delegacia é um cemitério de automóveis. Carros sem dono apodrecem ao ar livre, uma distração para quem gosta de ver a lenta ação da natureza sobre plástico e metal. Não é meu caso. Agradeço a informação antes de atravessar a rua. Os dois já estão no segundo copo. Explico: É um cento e vinte e um. Mas o fotógrafo não se comove: O morto pode esperar. Pede uma coisa aí, ele ordena e, diante de meu pedido, uma coca zero e um ovo cozido colorido, zomba: Coca zero, garoto de apartamento? Soltou pipa no ventilador — o motorista debocha. Serem mandados tomar no cu não vai apagar o sorriso em nenhum dos dois. O carro mais tarde abandona a Via Dutra, se metendo por uma estrada esburacada. Alguns quilômetros depois, o asfalto termina e na estrada de chão os buracos são mais parecidos com crateras da lua. Seguimos pouco mais de dois quilômetros antes do GPS dar o aviso. É aqui — o motorista se vira para me dizer, porém tudo que vemos é uma estrada vazia. Só fora do carro, avisto os dois PMs escondidos no meio do mato. Reagem desconfiados enquanto me aproximo. A atitude só se desfaz quando mostro o crachá do jornal. Mas nada do morto ainda. Tem que ir até ali — aponta um dos policiais do lado da valeta. Em geral, nunca tive, tenho, medo dos mortos. Ou melhor, tive. Acreditava em fantasmas e vivia apavorado Porto Alegre - junho de 2017

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por eles até os dez anos. Um dia meus pais e meus tios foram todos a um casamento em outra cidade. Dois primos adolescentes ficaram encarregados de cuidar de mim. Naquela noite, uma sexta-feira, ao me deitar fui acordado sendo sacudido na cama. Meus primos perguntavam apavorados: “O que foi isso?”. Uma mulher com véu de noiva atravessou a porta, carregando uma vela. Na outra mão, um guarda-chuva. Ao parar na porta, comecei a gritar e então as luzes se acenderam. Um rosto coberto por uma barba cor de ferrugem surgiu sorridente por trás do guarda-chuva. Era um amigo dos meus primos, chamado Luiz. Desse dia em diante, não tive mais medo. Encontro o homem caído ao lado de uma valeta. Não tem nada de assustador. Parece mais alguém pego de surpresa. Antes que consiga me acostumar com a visão, atrás do fotógrafo, uma mulher também avança pelo meio do mato. Traz o menino puxado pela mão. É pequeno e com uns cinco anos. Ela deve estar acostumada a ver gente morta por ali, mas não o menino. Observo-o com a esperança de estar certo e vê-lo com os olhos esbugalhados, como eu mesmo ficaria na idade dele diante de um cadáver, mas ele apenas observa a cena impassível. O vento no mato cria ondas como se todos estivéssemos mergulhados no mar. Como foi? — o editor vem na minha direção assim que entro na sala. Digo o que tenho, ele fica desapontado. Só? É muito pouco, nem cinco linhas. Deixa eu pensar: diz aí: foi um grupo de mascarados. Tinha uma casa no lugar? Não. No bairro todo? Sempre tem uma casa em algum lugar. Pois então: foi nela. Vamos dar um caldo. Foi no meio da madrugada que os mascarados chegaram. Segundo testemunhas... tem testemunhas? Não. Porto Alegre - junho de 2017

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Diz assim: “Segundo testemunhas, disseram Somos soldados a serviço do Brasil”. Não deram chance. Anota isso também. Digito o texto e envio para publicação. Ele fica de revisar. Durmo cedo naquela noite; só vou ler na manhã seguinte, durante o café. Não se trata mais de um morto desconhecido, mas de um perigoso criminoso, pego desprevenido em sua fortaleza. “O tiroteio durou toda a madrugada e foi ouvido de longe”. Ao mesmo tempo em que comemoravam, aliviados, o fim do reinado do crime, os moradores reclamam da violência em geral e da falta de postos de saúde, asfalto e saneamento na região. Leio a notícia duas vezes para acreditar. Primeiro, fico furioso. A vontade de não aparecer de novo. O trem, no entanto, avança um pouco mais. Em Madureira, embarcam os camelôs e um homem usando uma coroa e uma armadura de papel. O homem na vida paga seus pecados porque fuma, bebe, joga e diz palavrão — começa a pregar para uma plateia desinteressada. Me distraio por um momento. Quando volto ao assunto, resta a sensação de que o que aconteceu de fato não importa. O trem continua a avançar: Oswaldo Cruz, Marechal Hermes, Deodoro, Ricardo de Albuquerque. Uma hora depois do embarque, ouvindo o chiado dos freios, eu atravesso a porta resignado. 2. No lugar do rosto, ficou um buraco. Um olho arrancado está colado na parte áspera de uma parede. A geleca cinza e sem vida que agora me observa. Tiro de doze — a voz do fotógrafo atrás de mim, firme como se não tivesse ingerido outras duas cachaças. Deve ter sido bem de perto, pelo estrago. Eu me afasto para acompanhar o trabalho do perito, curvado sobre o corpo. Examina a cena com a frieza de quem já viu coisa pior. Para a multidão do lado de fora, no entanto, pouca coisa será mais emocionante. Por isso, Porto Alegre - junho de 2017

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observa atenta a movimentação dentro da varanda como capítulos de algum filme ou novela. O dono da casa aparenta não acreditar no que vê. Descubro que ele é bancário. Não conhecia ele, só ouvi os gritos na varanda. Estava dormindo — ele aponta para dentro da casa. O Fiesta na garagem, assim como a casa, indica uma vida sem grandes posses. O muro tem menos de um metro. Ele conhecia o morto? Não, não, nunca vi. E daí que ele não conhecia? — o editor exala um monte de fumaça do cigarro enquanto pergunta. Tem a aparência de quem vive as coisas vinte e quatro horas por dia. Se fosse viciado, acabaria protagonizando um drama destes em que, após consumir todo tipo de droga, acaba internado ou viraria criminoso. Como seu vício são as notícias, só consegue pensar em termos de manchetes, personagens e fotos. O tipo de pessoa de quem às vezes se diz que vive a vida intensamente. Muitas rugas precoces. Não está ruim, mas precisa um pouco mais de molho. Quem era a vítima? Um ladrãozinho do bairro — eu respondi. Ele continuou: Diz que foi a Gangue da Caveira. Conhece a Gangue da Caveira? Não. Acabei de inventar. Ele fugiu pela rua, se escondeu na varanda. A Gangue da Caveira foi atrás e fez o serviço. E se a gente falasse da verdadeira notícia? E qual seria? Por que esse cara acabou morto. A verdadeira história: como ele virou bandido. Deixa de ser idiota. Vai ficar de chorumela? Ninguém se interessa por isso. Faz do meu jeito que eu sei o que estou fazendo. Anota aí. 3. No terceiro dia, outro crime, um corpo pendurado numa trave de futebol e usado como tiro ao alvo. O PM luta Porto Alegre - junho de 2017

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para explicar à família que não pode deixar ninguém remover o corpo. Nas poucas casas, os moradores observam à distância a discussão. Mas ele vai continuar por quanto tempo? — a jovem alterada é a irmã da vítima. Com o primeiro PM acuado, o colega intervém. É assim mesmo. Tem quer esperar o perito. As duas mulheres se afastam. A mãe não para de chorar. Eu olho para elas e me dou conta: na última semana as mortes parecem preocupadas em acontecer somente quando estou presente para vê-las. Como se fossem entes conscientes, dispostos a obter algo de mim. Mas o quê? Sem resposta, volto em silêncio no carro. Mas o editor gostou da história: É disso que eu falava, garoto. 4. Com o passar dos meses, começo entender, o que interessa a ele são os casos cheios de detalhes, singelos, violentos ou escabrosos, tanto faz, que possam ser explorados para o deleite dos leitores. Estes são como criaturas na eterna e ingênua infância, alimentados com mel e violência em cores e em tempo real. Uma prostituta não pode ser apenas estrangulada, é preciso uma Bíblia em cima da cama. É magra e pequena, com os olhos esbugalhados de maneira tão assustadora que vão me perturbar por meses. O odor no quarto é intoxicante quando o fotógrafo começa a registrar o cenário. Mas, para o editor, nada disso é noticia como a parte da Bíblia. Genial, garoto. Inventou aquilo tudo? Só dei um molho. Muito bom. Escuta. É sobre mentir? Nós não mentimos. Damos uma embelezada. É isso que as pessoas querem. Anota: 5. Além de mim, no noticiário policial, apenas o Repórter nº 2, que, apesar do trabalho escolhido, detesta qualPorto Alegre - junho de 2017

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quer tipo de emoção. Dá sempre um jeito de passar os dias ouvindo o noticiário do rádio para extrair histórias, que escreve usando apenas o dedo indicador da mão direita, abraçando meio de lado o notebook e precisando curvar a cabeça para enxergar a tela. É lógico que com esse método executa as tarefas com a velocidade de um bicho-preguiça. O editor o acusa de querer provocar sua loucura. O lugar do jornalista é na rua, colhendo notícias. Por que acha que lhe pago? Aqui eu faço noticias, o repórter nº 2 — responde. Muito mais do que na rua. Já o repórter nº 3, o encarregado da área de política, costuma circular de terno e fumando cachimbo. Apesar da empáfia, quase nunca fala mal de ninguém e por sempre elogiar todos desconfiavam. Além de tudo, sofre de uma gagueira rara que o impede de pronunciar a letra P, portanto, incapaz de dizer tanto o nome da fruta chamada Pera quanto seu próprio nome. Além do editor e do diagramador, um velho alemão que passa o tempo todo falando sozinho, completa a equipe uma garota muito bonita que cuidava das notícias de variedades. Logo que a vi, tive uma queda por ela. O namorado, no entanto, é ciumento e costuma aparecer todas as tardes para buscá-la. O jornal, além de tudo, não vende nada. Precisamos de uma manchete — o editor me assegura quase sempre no fim do expediente. Uma só e vai ser uma porrada para cima. Já ouviu falar de Watergate? Derrubaram um presidente, o Nixon. O que ninguém fala é que, até então, aquele era um jornaleco. Foi o que fizeram: uma porrada para cima. Não há um pingo de exagero ou mentira em cada palavra. Me limito a observá-lo sem ter o que dizer, mas no dia seguinte encontro a tal história. 6. A tenda colorida aumenta de tamanho à medida que o carro se aproxima. A chuva forte não para de cair. O céu parece querer lavar o mundo nesta manhã. Porto Alegre - junho de 2017

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Só quando estacionamos consigo ver o letreiro em forma de portal: Gran Circo Holliday. Umas vinte pessoas estão paradas na entrada. Abrigadas sob um toldo, abrem caminho até o lado de dentro. Estão lá atrás — aponta um homem a quem pedi informação. Atravessamos o picadeiro vazio. O fotógrafo e o motorista vão na frente. Do outro lado, chegamos a um descampado. No meio de um círculo de trailers e motor homes arruinados, um banheiro químico exala um odor impressionante de mijo. Uma passarela de madeira leva através da lama. Com isso, avistamos o grupo na parte de trás. Um trailer afastado dos demais, estacionado perto de uma árvore. O odor agora é de decomposição. Intoxica o ar assim que nos aproximamos. Embaixo de algumas árvores, dois bombeiros cavam o chão. Ambos usam máscaras e estão encharcados. A chuva torna o trabalho mais lento, enchendo o buraco de lama. Os policiais observam entediados, abrigados embaixo de uma lona. A única com a expressão diferente é uma mulher parada na porta do trailer. Não é bonita e nem feia. Quando nota que a observo, devolve um olhar de desprezo. Foi a mandante — sussurra um policial conhecido. Estava mancomunada com aquele ali — ele aponta então para o homem parado do lado de fora. Sentado numa pedra, mantém um olhar apático na direção dos bombeiros. As mãos pendem diante do corpo presas por algemas. Quem está sendo desenterrado é o marido — ele se diverte com os detalhes. O cara era o mágico. Ela, a assistente. Se envolveu com o domador. Queriam ficar juntos, mas ele era o dono do trailer onde os dois viviam. As pessoas não se separam mais. Agora matam para se separar — o policial dá uma de filósofo. E depois — ele diz — o palhaço leva a fama. Não conhece a quadrinha do palhaço? E o palhaço, quem é? / É ladrão de mulher. Quem desconfiou de tudo, ele explica em seguida, foi o dono do circo. Aponta para um homem de expressão Porto Alegre - junho de 2017

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dura e cabelos prateados. Cercado pelos funcionários, homens e mulheres, assiste à escavação. O nome dele era Ferreira — o dono do circo diz assim que me aproximo. Do mágico? É. Quero deixar claro uma coisa: na vida no circo esse tipo de crime não é comum. Somos uma família. Claro, o clichê de todos os grandes agrupamentos. Obrigados a viver juntos, recobrem o ódio mútuo com uma pátina de fraternidade. Pode ser que funcione na maioria das vezes, mas não foi o caso ali. Um burburinho, contudo, me salva de qualquer opinião a respeito. Com o auxílio de uma roldana, o corpo é jogado para fora da cova. Os funcionários do circo e os policiais abandonam seus abrigos e correm para ver, mas então recuam nauseados. O cheiro provoca uma onda de vômito entre os presentes, inclusive o dono do circo. Eu me afasto e volto ao toldo. De maneira quase automática, olho de novo para a mulher, que continua parada no mesmo lugar. Mais uma vez, ela também me observa, mas agora de um jeito amistoso. É mais a expressão de quem esconde um segredo: você não sabe de nada, garoto.

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RICHINITTI

GABRIELA


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GENTE DIGNA

GABRIELA RICHINITTI

1. Entrevista: Regina McCullers, fotógrafa brasileira vivendo nos Estados Unidos Em setembro de 2017, Regina McCullers completará seu vigésimo ano vivendo em Nova York. Pouco conhecido no Brasil, seu trabalho é recebido com furor e estranhamento nas galerias norte-americanas. Vencedora de prêmios internacionais importantes, entre eles um Pulitzer, Regina define suas fotografias como testemunhos do anômalo, do disforme, do escandalosamente horrendo. Dedicando-se atualmente à montagem de exposições provocativas e desconcertantes, Regina já atuou como fotojornalista, cobrindo matérias de peso para jornais como o The New York Times. Em seu apartamento, localizado numa zona tranquila do Queens, ela me atende em meio à madrugada nova-iorquina; oferece-me um espresso, servido em uma bela xícara de porcelana chinesa. Avisa que não interferirá na matéria que estou prestes a escrever sobre ela, nem se preocupará em revisar o texto da entrevista. Impõe uma única condição: que eu não tire nenhuma fotografia. A vida de Regina McCullers nunca seguiu caminhos convencionais. Filha de um casal de fotógrafos, teve suas primeiras lições atrás das lentes retratando a árdua rotina dos pescadores e de suas famílias no pequeno município litorâneo de Salema, em São Paulo. Suas melhores memórias de infância vêm desse lugar calmo e livre, onde levava uma vida modesta; não podia imaginar que, tempos depois, casaria com um empresário norte-americano trinta anos mais velho e imergiria no epicentro do american way. Poucas emoções transparecem nos gestos contidos com que acende cigarros e beberica o café. Às vezes, faz Porto Alegre - junho de 2017

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longas pausas, durante as quais me fita com olhos inquisidores enquanto traga um Lucky Strike Blue, dando-me tempo para tomar notas. A entrevista dura pouco mais de quarenta minutos, durante os quais Regina responde sem esquivas a cada uma das perguntas. Eis o que ela conta com exclusividade à Revista Punctum: Revista Punctum: Regina, você mora há muitos anos em Nova York. Como tem sido a experiência de fotografar aqui? Regina McCullers: Em Nova York, encontrei uma pluralidade de corpos e rostos muito rica. Meu trabalho sempre tratou do estranho, do disforme, do imperfeito. Às vezes, é uma simples questão de saber enxergar a deformidade nas coisas comuns. Tenho faro para isso e, se você olhar com sensibilidade, as ruas são verdadeiras minas de personagens. Faço um garimpo dos tipos, olhares, trejeitos, capturo ângulos improváveis, me aventuro em luzes oblíquas. Sou uma flâneur por natureza. Mas sou também uma fotógrafa detalhista... un photographe de rue, como Vivian Maier foi por essa mesma New York City, há uns cinquenta anos atrás. Revista Punctum: Você ficou viúva muito cedo. Como é sua vida social na cidade que nunca dorme? Regina McCullers: Gosto de ficar só. A solidão é o mais próximo da liberdade que posso chegar. Revista Punctum: Seu trabalho explora o estranho. São pessoas incomuns, algumas parecem ter sido flagradas num momento íntimo, quando as convenções sociais se retraem. Por que esse interesse por figuras excêntricas? Regina McCullers: É algo que remonta à minha infância em Salema. Passou por lá um Circo... o Circo Horripilante, acho que era esse o nome. Parecia muito com aquele filme Freaks, do Tod Browning, mas fui descobrir isso muito tempo depois. O Circo Horripilante causava furor. Eles devem ter ficado umas duas semanas em Salema, mas eu me lembro daquelas figuras esquisitíssimas andando pelas ruas, todo mundo comentando. Havia anões, pessoas com membros desproporcionais, me lembro de um homem que Porto Alegre - junho de 2017

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tinha pelos por todo o rosto, era assustador. E uma menina muito branca, branquíssima, da cor do papel, com cabelos crespos também brancos. Tinha uns olhos vermelhos que davam medo. Eu vi essa menina na padaria, fiquei impressionada. Ela andava com um guarda-chuva sobre a cabeça, mesmo que fizesse sol. Hoje penso que era um caso de albinismo, mas na época não sabíamos de nada disso. A invasão dos estranhos... é a memória mais viva que tenho de Salema. Fomos ver o espetáculo. Meu pai me levou, sentamos bem no alto. Eu quis ir nas apresentações dos dias seguintes também, mas ele não deixou, então fiquei junto ao muro, escutando. Revista Punctum: Como faz para encontrar pessoas tão diferentes? Entra em contato antes ou busca surpreendê-las? Regina McCullers: Não é possível fotografar sem audácia. Não existe espaço para insegurança, medo, hesitação... você precisa mostrar certeza. Aqui nos Estados Unidos, na esfera pública, você pode capturar a imagem das pessoas. É um direito artístico seu. No Brasil, funciona diferente. Eu sempre prefiro deixar o fotografado à vontade, é claro, mas tudo depende. Carrego sempre a câmera comigo. E ando, ando muito, por lugares desconhecidos, escuros, sórdidos, faço perguntas. Você conhece alguém estranho, feio, fora do normal? Can you introduce me to this person, please? É bom sempre ter uns trocados no bolso. Revista Punctum: Já houve alguma reação mais hostil à sua fotografia? Regina McCullers: Já. Um halterofilista ameaçou quebrar minha câmera e meus ossos. Xingamentos são comuns. Nada com consequências desastrosas. Eu não tenho medo. Revista Punctum: Uma última pergunta, para encerrar. Já que essa será uma oportunidade de apresentar seu trabalho para o público brasileiro, você poderia nos dizer se pretende um dia voltar para o Brasil e, talvez, desenvolver algum projeto por lá? Regina McCullers: Não cogito. Minha memória do Porto Alegre - junho de 2017

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Brasil está fotografada. Quero que permaneça assim: uma verdade de infância. 2. Testemunho para um livro de não-ficção: Rita, ex-bailarina, hoje prostituta Antes é que tinha alguma dignidade: a gente era artista, viajava o Brasil montando acampamento de mês em mês, muito cansaço e ansiedade antes de cada espetáculo. Eu fiz balé e cursei teatro na escola, fugi de casa ainda jovenzinha, dezesseis anos, vê se pode: apaixonada pelo Domador. O Circo Horripilante passou pela minha cidade... foi quando isso? Nem sei o ano. O Domador estalou o chicote no ar, me colou o olho lá do picadeiro, minhas amigas me cutucaram, disseram que ele não tirava a vista de mim. Derrubei pipoca no vestido, meu coração gelou no peito. Será? Será que com tanta menina... ele tinha reparado em mim? Sem graça, magrela, cabelo espigado? Nunca ninguém reparava. O Domador, como posso dizer... não que fosse bonito, mas me olhou, eu me senti mulher. Escreve aí, mas dum jeito romântico: ele me olhou e eu senti que existia, mesmo no meio de toda a multidão. Ou não tinha tanta gente assim e a minha memória quer que tenha. No palco, tanta gente estranha... o Domador não, ele era normal. Na minha casa, as coisas iam cada vez pior, a mãe bebia, o pai passava meses fora, ninguém nunca se preocupou comigo, acho que não se importaram. Pela tristeza do tigre, eu devia ter percebido que também ia sofrer nas mãos do Domador. Na verdade, era uma tigresa machucada e cega, com gengivas infeccionadas no lugar de onde arrancaram as presas. O Domador gostava de me pegar à força, se é que você me entende. Não coloca o nome dele, não, é só o que eu peço. Pode escrever tudo, menos o nome dele. Quando engravidei, ele mandou tirar, quase morri sangrando, delirei de febre por uma semana. Eu apanhava, a tigresa apanhava; também tratavam mal os anões e a Branca — a garota albina, um doce, e Porto Alegre - junho de 2017

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tão amedrontada! Cuidei dela como filha. O padre, pastor, missioneiro... não sei bem... do lugar onde ela nasceu fez todos pensarem que ela fosse um demônio. Imagina só! Por causa dos olhos vermelhos, entende? E da pele branca, branca dum jeito que eu nunca tinha visto igual. A própria mãe dela entregou pro Circo Horripilante, acho que pra salvar a filha, não sei. Tanto cansaço, trabalho, comida ruim... mas quando os aplausos vinham, a gente se achava gente. Importante. Eu me dava bem com os anões e com o homem-gorila. O mais esquisito dos anões era o Bruno, a testa dele ia pra frente, o queixo afundava, pobre do menino, também o mais novinho de todos. Acho que gostava de mim, pelo jeito que olhava... nunca mais soube de nenhum deles, mas imagino como andam agora. Se eu, que ainda tenho alguma instrução e sou normal, tô aqui na zona... O boliche com os anões foi ideia do Domador. Ele se achava dono da gente, porque era dono de todo o equipamento. A gente estendia a lona, ensaboava o chão, num dado momento o palhaço chamava pessoas da plateia pra jogar o “Boliche de Nanicos”. Assim se dizia: Boliche de Nanicos. Todo mundo ria a fartar, lançavam os anões de peito em direção aos pinos, competiam. Ninguém via mal. Depois mudou tudo. Crueldade? Não sei. Pensando agora, distante, pode até ser. Mas eles não se importavam. Nunca ouvi reclamarem. Nunca. Acho que se divertiam. 3. Discurso de posse: Excelentíssimo Senhor Dalton Neves Jr., por ocasião de sua investidura no cargo de Ministro do Superior Tribunal de Justiça Prezados colegas, familiares e demais convidados aqui presentes nesta cerimônia de posse. Desde a mais tenra idade, em meu lar, sempre me foram ensinados os valores supremos da justiça, da honra e da dignidade, bem como da perseverança em face das adversidades que a vida colocou em meu caminho. Ainda jovem, embora assim não me considerasse, tornei-me juiz Porto Alegre - junho de 2017

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de direito por meritória prova e, numa carreira da qual me orgulho, ascendi ao honroso posto de desembargador. Nesse percurso, lembro-me de um caso paradigmático, uma das mais belas oportunidades de promover o bom e o justo que encontrei em minha vida. À guisa de ilustração do que significa a carreira da magistratura, escolhi recordar essa emocionante história. À época, houve grande repercussão, inclusive concedi entrevistas para a maior emissora do país e ministrei algumas aulas memoráveis a respeito da matéria. O caso envolvia uma prática grotesca, na qual um circo utilizava deficientes físicos como motivo de chacota, violando manifestamente o princípio da dignidade da pessoa humana. Salus populi suprema lex esto!, pensei, indignado. Decidi intervir, nada obstante a popularidade do hediondo “espetáculo”. Hoje posso dizer, orgulhoso, que minha decisão livrou indivíduos portadores de nanismo de servirem como “boliche humano”. Ao impedir essa terrível humilhação, devolvi-lhes a dignidade que, enquanto detentores do status de sapiens sapiens, não pode, em hipótese alguma, ser afastada, pois beneficium juris nemini est denegandi. Nossos Tribunais Superiores consolidam a inafastabilidade de tal direito fundamental, entendimento ao qual eu sempre me alinhei. Iura novit curia: é destino do magistrado guiar os homens através dos caminhos da moral e da dignidade. De que terríveis sofrimentos eu, investido de meus poderes jurisdicionais, não terei poupado aquelas pobres pessoas humanas verticalmente prejudicadas? Posso imaginar o quanto me agradeceriam hoje por ter-lhes salvado a honra! (E segue). 4. A dignidade é frágil Bruno, o anão, sobe o morro, estanca o passinho curto, respira. Os pulmões, pequenos como o resto, procuram oxigênio. Os moleques jogam pedras, ele se obriga a continuar subindo. Hoje mendigou na Avenida Central, Porto Alegre - junho de 2017

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mas o povo tem pressa e pouco dinheiro, passa por cima. Alguns pedestres tropeçam nele, ficam furiosos: — Ô, anão vagabundo, sai do caminho! Arranjou algumas moedas e entrou no mercado para comprar bolacha. Tentava alcançar a de chocolate nas prateleiras mais altas. Pontinha dos pés, feito a Rita, bailarina do circo. Uma mulher resolveu ajudar, passou a mão na cabeça de Bruno. Quando ele virou para agradecer, ela viu que não se tratava de uma criança, mas de um velho pequenino e disforme. Não conteve um ganido de susto, o rosto de repente crispado. Saiu constrangida. A Rita. Queria vê-la uma vez mais que fosse. Soube que caiu na vida. Faz tanto tempo... Depois que o circo fechou, cada um seguiu por um caminho diferente. O Domador pegou a grana, desapareceu. A pior coisa nem foi ter nascido anão. Acostumou-se a ser anão, como as pessoas se acostumam à falta do que nunca tiveram. A pior coisa que já lhe aconteceu foi a dignidade. Antes de ser digno, as pessoas o enxergavam, aplaudiam, pediam para tirar fotografia a seu lado. E tinha a Rita. Só olhar para a Rita já lhe bastava, fazia feliz. Em véspera de espetáculo, ele subia alto na arquibancada e a via ensaiando, concentrada. Um, dois, plié... um, dois, plié... Até que os membros de uma organização humanitária levaram a juízo o boliche com anões e todo o resto. A televisão bateu à porta do Circo Horripilante, disse que ia passar no noticiário, como uma propaganda gratuita. Filmaram os anões sendo arremessados, os quartinhos pobres, precários, cobertas rasgadas, pão embolorado para comer. E também a tigresa banguela, triste, com banzo da selva que jamais conhecera. Bicho não se acostuma à falta do que nunca teve. Tivessem visto o quarto da Branca, da Rita Bailarina, da cozinheira, veriam que estatura não garantia cama limpa. Só o quarto do Domador é que prestava. A matéria passou no programa do meio-dia, com reprise à noite. Todos tiveram pena dos anões, da albina, da Porto Alegre - junho de 2017

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tigresa, das pessoas feias, e se indignaram com os maus-tratos. Um movimento de boicote ao Circo Horripilante se espalhou. Protesto na rua antes de cada espetáculo, gente com cartazes, gritando para os espectadores irem embora. E assim a plateia minguou. Mudavam de cidade, de lugar, o circo nômade à procura de um pouso mais receptivo. Mas logo a notícia chegava, contaminando também a nova região. E vinham os defensores da causa animal, que se misturavam aos defensores da causa anã — improvisada, aliás, essa causa anã. Depois veio a sentença, corroborada em segunda instância por uma decisão que hoje estampa tratados de direitos humanos. Os anões tinham direito à dignidade humana, não podiam ser motivo de chacota nem objeto para entretenimento humilhante. E uma longa citação em francês, que ninguém soube traduzir. Bruno continua subindo, espremendo dos pulmões um resto de oxigênio. Vive dentro dum contêiner lá no pico do Morro da Besta, meio escondido; por aquelas bandas, a diversão agora é tocar fogo em morador de rua, mês passado foram dois casos ali perto. É preciso ter cuidado. A dignidade é frágil. 5. Motel Erotes Às seis horas da manhã, Rita atravessa a porta do Motel Erotes; os cabelos fedem a cigarro. Procura limpar a maquiagem dormida com o calo dos dedos, o que acaba irritando os olhos. A cabeça dói quando a primeira luz atravessa as retinas. A cidade liquefaz-se em aurora, fumaça e lágrimas. Do Morro da Besta, onde se exibem as putas velhas e se refugiam os bêbados, descem Rita e Bruno. Na margem imunda da cidadezinha, não chega a ser acaso que, nesse mesmo dia, às seis horas, coexistam ambos: descendo o Morro da Besta. Os passos miúdos dele seguem as punções trôpegas dos saltos das sandálias de Rita. Bruno pode enxergar as Porto Alegre - junho de 2017

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espáduas pontudas, o vestido cor-de-rosa, as nódoas roxas nas panturrilhas. Mas não irá reconhecê-la: sequer erguerá o rosto enquanto desce. Tampouco ela, que nem olhará para trás. Rita só pensa num banho frio, para lavar a sujeira das entranhas e o muco da noite. Bruno vai esmolar um sanduíche e uma garrafa de pinga. Descem ambos, cedo assim, o Morro da Besta: a dignidade é difícil. 6. Vernissage na Halfway Gallery Entra na Halfway Gallery o Excelentíssimo Sr. Dalton Neves Jr., trazendo pela mão sua digníssima esposa, a artista plástica Isolda Purcell. Dois elegantes apreciadores da arte. Isolda leu sobre a fotógrafa brasileira radicada em Nova York na Revista Punctum, uma das incontáveis revistas de arte que recebe a domicílio — lê na biblioteca, bebendo uma sucessão de espressos curtíssimos. Regina recebe os cumprimentos do Ministro e sua esposa. Conversam um pouco sobre o Brazil, sobre a falta de espaço da arte no Brazil. Repassam um apanhado dos problemas do Brazil. Isolda comenta, com muita elegância, a elegância da instalação. E a violência do Brazil. O casal adquire uma peça por novecentos dólares. O Ministro acha a fotografia um bocado assustadora, mas Isolda o chama de grosso, revirando os olhos. — Isso é arte! Será que você não conhece Diane Arbus, querido? Isso parece tanto Diane Arbus. Vou pendurar na nossa biblioteca. Um anão de bigode e palheiro na boca, segurando uma máscara veneziana. Veste uma camiseta do Mickey Mouse: sem calças, canelas peludas. Alguns pinheiros esfumaçados compõem a paisagem às suas costas. Ao menos as cores são boas, pensa o Ministro. Precisará convencer Isolda a não pendurar aquela bizarrice diante de sua poltrona de leitura. Porto Alegre - junho de 2017

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UM-DOIS-TRÊS

DAVI BOAVENTURA

Memória de circo nº 01 (mab) Não é difícil impressionar uma criança, mas meu pai queria impressionar e então ele comprou os ingressos do camarote, ou o que eles chamavam de camarote, porque na verdade não era bem um camarote, era apenas um cercadinho de madeira onde se reservavam quatro cadeiras de plástico, todas pintadas de azul, um pouco embaixo do picadeiro, rodeando o circo, e essa proximidade, na hora, me pareceu ótima, achei incrível, na hora considerei excelente, das outras vezes tínhamos nos sentado longe demais, e agora estávamos pertinho, fiquei de fato impressionado, isso até a apresentação começar, quando a apresentação começou me veio um pânico absolutamente brutal de que ou o palhaço ou o mágico ou os malabaristas ou sei lá quem iria me puxar para o centro do círculo de terra e, não satisfeito em me expor, iria me jogar ali no meio do globo da morte, onde eu, sem dúvida nenhuma, seria atropelado e decapitado, ninguém iria me salvar, nem meu pai, nem meu irmão, nem minha irmã — nós quatro lá ao lado do picadeiro, somente eu em pânico —, com esse pensamento catastrófico piorando ao ver os animais entrar, os animais entraram, alguém já deve ter dito nesta revista como naquela época ainda era muito comum ter animais em circo — o ingresso inclusive foi pago em cruzeiros reais —, e eu me desesperei de medo do elefante, o elefante podia derrubar a grade e ninguém poderia salvar ninguém naquele lugar, me veio um medo profundo e esse medo só se resolveu quando os trapezistas apareceram, adorei os trapezistas, os movimentos tão leves, vendo os trapezistas eu decidi ser artista, mesmo sem saber o que era ser artista, depois não me assustei mais, voltei para casa meio flutuando, e, se não me engano, na volta dessa Porto Alegre - junho de 2017

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ida específica ao circo é que eu e minha irmã começamos uma brincadeira de nos fantasiarmos como se fôssemos algum personagem famoso, uma brincadeira meio Fantasia de Carnaval do Faustão, a gente abria todos os armários da casa e tentava encontrar alguma roupa ou objeto capaz de evocar uma celebridade ou alguma atividade artística, às vezes éramos cineastas, às vezes cantores de rock, às vezes éramos jogadores de basquete, ou políticos, e ser cineasta era meu preferido, já que eu sonhava em ser diretor de cinema, mas ser cantor de rock tinha muito mais glamour — e sendo cantores de rock, aliás, fotografamos uma de nossas fotos mais representativas, é uma foto que postamos pelo menos uma vez por ano no Facebook, ou em meu aniversário ou no dela, somos dois taurinos, e já foi inclusive meu papel de parede no computador, por ao mesmo tempo me fazer rir e me criar uma sensação de nostalgia feliz, é uma foto simples, bem simples, é uma foto típica daquelas máquinas caseiras de filmes 36 poses: estou na frente me fingindo de cantor, você vê a decoração antiga de minha casa, você vê a TV no modelo de 1986, você vê aquelas antenas antigas em que se colocava Bombril na ponta, mas, principalmente, você vê minha irmã, minha irmã está ali atrás, segurando um instrumento musical cujo nome desconheço, absolutamente encapetada, en-ca-pe-ta-da, por assim dizer, você vê minha irmã, e todo o resto da foto deixa de importar — escrever esta memória é meu jeito de admitir que tenho saudades.

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Memória de circo nº 02 (Lucas) Existe um circo em Salvador que é um circo e uma escola de circo e meio que já virou uma referência na cidade, que é o Circo Picolino, eu nunca entrei no circo Picolino e me sinto meio idiota por esta falha, ainda mais agora que eu moro em Porto Alegre, onde não me lembro de ter ouvido falar de um circo tradicional, a não ser um circo aparentemente famoso instalado perto do shopping Praia de Belas cujo ingresso me era proibitivo — eu deveria ter ido —, não no do Praia de Belas, e sim no Picolino, eu deveria ter ido ao Picolino, eu passava em frente todos os dias, voltando de carro da faculdade, olhando sempre para ver se o pessoal estava tendo aula ou não, e imaginando como eles conseguiam pagar as contas, e às vezes via umas sombras debaixo da lona, mas nunca parei para ver direito, na época eu estudava em Ondina e morava em Lauro de Freitas, então era um percurso de mais ou menos quarenta quilômetros, de segunda a sexta-feira, que eu dirigia no meu corsinha 96, geralmente levando o máximo de caroneiros para poder dividir a gasolina, o carro voltava cheio, era normal ter três, quatro, cinco passageiros, a gente vinha conversando e desabafando, uma amiga alegava até ter um soro da verdade no banco do carro porque ninguém conseguia esconder as histórias ali, e ela mesma revelou várias, foram várias festas loucas que ela participou, a maioria quase inverossímil, como por exemplo a noite em que ela, durante uma festa de aniversário, depois de voltar do banheiro, encontrou um carro caído pela metade dentro de uma piscina, com dez ou quinze homens na água tentando levantar o veículo para fora, ou o outro dia em que uma menina passou oito horas deitada em um jardim batendo os braços e chorando sobre como queria ser um anjo, mas, sim, foram várias festas, inumeráveis, e eu adorava ouvir os relatos, cada pessoa me contava uma loucura, mas, por acaso, quando lembro das caronas, tenho lembrado muito de um sujeito específico, esse cara só pegou carona comigo uma vez, no máximo duas, e não me era muito próximo, eu o conhecia e o achava divertido e ele sempre vinha com umas associações curiosas, um coPorto Alegre - junho de 2017

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mentário inesperado, só não éramos próximos por andarmos em turmas diferentes, mas eu perdi o contato e soube que ele morreu um mês depois de eu me mudar para Porto Alegre, ele morreu dormindo, não sei dizer se por infarto ou por derrame, e, além da tristeza pela ausência, e pelo luto dos amigos, pensar na maneira como ele morreu me criou uma insônia profunda, eu tinha acabado de receber o resultado de uma ressonância e descoberto ter uma espécie de tumor no meu cérebro, que poderia ser ou não caso de cirurgia, embora fosse benigno, e me desesperei achando que, se eu dormisse, com certeza também não iria acordar, um ataque de pânico atrás do outro, isso foi em 2013, a descoberta do problema, tomei remédio por dois anos, me curei, agora em 2017 o nódulo retornou.

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Memória de circo nº 03 (Ói Nóis Aqui Traveiz: Caliban) Em Porto Alegre, no entanto, é comum ver circo na rua, ou atividades de circo na rua, o domingo na Redenção, ali pela José Bonifácio, principalmente, você vê equilibrista, palhaço, malabares, você vê mágico, você vê encenação, você vê bastante teatro — a lona do circo é uma proteção, mas também pode ser uma censura —, você vê

O Encontro

A Reverência

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138 O Brinde

A Festa

, e ninguém vai embora, todo mundo assiste até o final, que é quando o público inteiro começa a gritar #ForaTemer até o público se dispersar.

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FRAGMENTOS

SOBRE UM DIA

ANDRÉ LUIZ COSTA

1 A insônia me deixa em estado de anulação. Na quinta noite em que não dormi direito, acordei, talvez após trinta minutos de um cochilo raso, não conseguindo lembrar o dia ou a data ou o que tinha feito logo antes de deitar. Acho que foi o mais próximo que cheguei de não existir, porque, se a memória falha em um lapso de tempo, somada à angústia que a insônia produz, ao cansaço dos dias anteriores que foram emendados, então só existe o corpo e o espaço em que o corpo está. Permaneci deitado, forçando o cérebro a buscar referências concretas e recentes. Comecei pelo simples, meu nome, meu endereço, o que eu costumo fazer como rotina, e esse método aos poucos fez com que eu lembrasse do dia anterior, do horário em que tinha deitado e de quanto tempo poderia ter passado. A sensação de recuperar essas informações é acolhedora, senti um abraço em mim mesmo e pode ser que tenha murmurado vai ficar tudo bem no meio do quarto escuro. Não foi a primeira vez que esse tipo de lapso me ocorreu, mas, até agora, foi a que mais durou. 2 Abro a torneira e esfrego o rosto com água. Depois, vejo na tela do celular que são oito horas. Marquei de almoçar com Davi e Celso hoje, antes de ir para a PUCRS, e me forço a passar um café e sentar na frente do notebook para escrever ao menos um parágrafo do romance da dissertação nessa manhã. Há momentos em que paro de sentir o cansaço da insônia, e é o que acontece quando começo a digitar a primeira frase no arquivo. Talvez me concentre tanto nisso e esqueça meu próprio estado, ou Porto Alegre - junho de 2017

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talvez meu inconsciente anule o que estou sentindo para priorizar o que me determinei a produzir. De qualquer forma, consigo pouco mais de um parágrafo mediano em duas horas e meia. Faço algumas anotações sobre como devo prosseguir a narrativa no dia seguinte, anoto também duas ideias que tive para as outras partes do romance, salvo o arquivo no notebook, passo o arquivo para um pendrive e me envio o arquivo por e-mail. 3 Desço do T5 na Santo Antônio. Davi já está me esperando, sentado na escadaria de um edifício. Nos abraçamos. Talvez ele perceba a exaustão no meu rosto e a primeira pergunta que faz é sobre a insônia. Enquanto caminhamos na direção da Osvaldo Aranha, conto para ele os minutos que passei sem lembrar o dia e a data. Ele ri, me conta uma situação parecida que viveu dois anos atrás em Salvador, durante o verão, e logo essa história vira também a de um amigo que precisou pegar um calendário e perguntar para outra pessoa se de fato aquele dia marcado na página era o dia que estavam vivendo. Eu teria feito a mesma coisa, se não estivesse sozinho. 4 Celso já está no Equilibrium quando chegamos. O restaurante, vazio mesmo tendo passado um pouco do meio-dia, é iluminado pela luz que entra através das amplas vidraças. Antes de nos servirmos, Celso conta sobre o escondidinho de mandioca com abacaxi que fez na noite anterior e sobre como deu errado mas, mesmo assim, ficou bom. Eu e Davi rimos, meio céticos sobre a possibilidade dessa combinação gastronômica, e ele então detalha o processo de cozimento, a elaboração do prato, e, na minha lembrança, aparecem, em sequência cronológica, todas as vezes que vi Celso cozinhar, todas as vezes em que fiquei maniacamente comentando algum assunto que estivéssemos debatendo enquanto ele preparava a janta ou o almoço. No instante em que a conversa tem uma pausa, Celso pergunta se estou melhor. Porto Alegre - junho de 2017

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5 Faz uma semana que João Gilberto Noll morreu. Uma semana que passo pela esquina da Lima e Silva com a República e lembro dele, porque foi nessa esquina que vi o Noll pela última vez. Eu ainda não escrevi sobre o impacto que a morte dele me causou, nunca consegui escrever sobre a relação que tenho com a obra dele e como ela me afeta de formas tão variadas e potentes. Quando Celso me faz essa pergunta, sei que está falando do Noll, mas, por alguns segundos, finjo não entender, não sei a razão de fazer isso, talvez queira apenas ganhar tempo para elaborar uma resposta simples, que não envolva toda a carga afetiva que senti por uma pessoa que tive a sorte de ver em três ou quatro ocasiões na vida. A obra dessa pessoa, o que ficou enfileirado na estante do meu apartamento e que consiste não em quem ele era, mas no eco essencial do que ele era. Lembro, com certa constância, de uma cena fugaz em que o narrador de Solidão Continental observa a paisagem de Chicago. Ele está em um quarto de hotel, é um momento de tensão narrativa, e, mesmo assim, existe a contemplação, que está inserida na cena, não é uma pausa, não é mera descrição. A contemplação é da natureza do personagem. Às vezes tenho certeza de que só vou conseguir escrever sobre a obra do Noll quando entender o que essa cena me transmite. Às vezes tenho certeza de que nunca vou entender. 6 Davi coloca o celular de volta no bolso e diz que Taiane mandou mensagem sobre o tema do próximo número da Travessa em Três Tempos. Circo. Fico processando a informação como se já tentasse formular a narrativa possível. Estamos na frente do prédio oito, na PUCRS, com alguns alunos da Arquitetura e da Comunicação transitando sob um calor que se estende em seus últimos dias. Bebo um gole de café e pergunto a razão desse tema, o que fazer sobre esse tema. Davi também não sabe, mas não compreende a minha perplexidade e diz que é um tema simples e amplo, tranquilo para trabalhar. Bebo outro Porto Alegre - junho de 2017

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gole de café e, totalmente enevoada pelo tempo, surge a minha única lembrança de um circo. Acho que não tinha completado dez anos de idade ainda. Não lembro da minha impressão real, só consigo receber flashes muito esparsos dessa noite, o rosto do meu irmão, mais velho do que eu, e aquela roda metálica gigante em que motoqueiros ficam rodando e rodando. Detesto circo, essa é a verdade. Não sei a razão, nunca consegui descobrir, mas não lembro de um dia na vida em que tenha pensado de forma positiva sobre o circo. Talvez por causa dessa minha única experiência, que algum fato ali tenha traumatizado meu inconsciente ou que eu precisasse dar outras chances, ter ido mais vezes, me esforçado em gostar de algo que noventa por cento da população adora. Mas só consigo pensar em circo, considerando também tudo o que envolve um circo, com um desinteresse incompreensível. 7 Há três anos, participei de um concurso literário infanto-juvenil. O tema era circo. Na época, algumas pessoas próximas me convenceram de que, se eu queria escrever, precisava participar de todos os concursos literários possíveis. Só me inscrevi nesse, que era o cronologicamente mais próximo, indisposto, claro, com o tema, mas também achando estranho escrever um texto infanto-juvenil. Nunca tinha feito isso. Acho seguro afirmar que o meu conto ficou ridículo. Ainda tenho ele salvo no notebook, poderia agora mesmo abrir o arquivo e reler. Mas não. No conto, pelo o que lembro, uma criança está com o pai no circo. As luzes, de repente, apagam. Quando a iluminação volta, a cabeça da criança foi substituída por uma cabeça de cavalo. Tenho a impressão de que algum personagem também faz um discurso meio sinistro sobre esse fato. Justamente, não recebi nem menção honrosa. 8 Passo o resto do dia pensando na minha relação inexistente com o circo, em como prefiro escrever sobre um tema que domine ou goste ou ao menos esteja mais Porto Alegre - junho de 2017

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familiarizado do que esse. Haverá um momento, nos próximos dias, em que perguntarei para Taiane sobre o motivo do circo. Ela me olhará sem entender, como faz às vezes, com os olhos um pouco arregalados e a boca entreaberta, expressão que geralmente dura um segundo e meio, até dizer ah, velho, sei lá, eu gosto. Mas, por enquanto, tento pensar em uma narrativa que dure pouco tempo, apenas uma cena diluída em detalhes que possam gerar tensão e expectativa, silêncio e lentidão, porque acho que se preciso escrever sobre o circo deveria processar isso como a minha experiência, e a minha experiência com certeza não tem nada a ver com a alegria ou a diversão que o circo promove, mas, sim, com o impressionante, como camadas de procedimento interpretativo e aquilo que fica depois de estarmos em uma atmosfera não familiar. Só que essa narrativa não vai existir. Não nesse texto. Me falta a referência concreta, e só poderia escrever sobre circo a partir do estereótipo reproduzido em filmes ou na literatura que posso ter lido eventualmente. 9 A insônia costuma pesar no fim do dia, quando estou no ônibus voltando para o apartamento. Entro no meu quarto, aliviado pelo silêncio, por estar sozinho, e deito na cama, sentindo a coluna se distender sobre o colchão. Me mantenho assim enquanto passo os olhos pelas mensagens não lidas em cinco conversas de Whatsapp, mas acabo desconectando a internet no celular e devo dormir mais ou menos vinte minutos. Sonho e não lembro o que sonhei. Durante o período de insônia, a expectativa de dormir horas seguidas é sempre frustrada. Então, além da exaustão, acordo decepcionado com o meu corpo, sem compreender o motivo de não dormir mais do que curtos períodos de tempo. 10 Cozinho um bife de alcatra, ao ponto, e janto assistindo a um episódio aleatório de MasterChef. Qualquer estímulo visual ou auditivo que não me faça pensar é uma Porto Alegre - junho de 2017

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massagem no cérebro. Depois, enquanto lavo a louça, tento formular frases que iniciariam o conto sobre circo. Falho, e falharei nos próximos dias, tenho certeza, esperando uma reversão da temática no meu cotidiano. Antes de tentar dormir, leio por quase duas horas. Então, apago a luz e deito, e a insônia segue agindo.

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TRAVESSA EM TRĂŠS TEMPOS Ano VI - NĂşmero 17 Periodicidade semestral ISSN 2318-3632 revistatravessa@gmail.com https://revistatravessa.wordpress.com/ Facebook: /travessa.emtrestempos


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