Sumário: Cinema de Arte ...........................................................................................................… 02 O cinema Jalisco e seu mistério ...................................................................................... 03 Depoimento Lourenço ........................................................................................................... 03 Depoimento de Carlota ......................................................................................................... 04 Devaneio que ama, queima e é ......…...................................…...............................…...... 05 Depoimento da Eriberto ........................................................................................................ 05 Depoimento de Francisco Ramos ........................................................................................... 06 O reclamão da bilheteria ........................................................….................….…...……..... 07 Depoimento de Berenice .............……..........................................................................…........ 07 Depoimento de Dona Carochinha ......................................................................................... 08 Cinema Telefônico ...................………...............…….…...........……..... 09 Depoimento de Renatinha ..........…….......................................…........ 09 Depoimento de Roberto ..................................................................... 10 Depoimento de Dr. Ivan ..................................................................... 11 Resposta a G ...........….................................... 12 Depoimento de Roberval …...……….....………….... 12 Depoimento de Clodoaldo .……........…..….......... 13 Lumine .......................................................... 14 Depoimento de Beatriz ......................................14 Depoimento de Jurandir .................................. 15 Cinema de abandonar.................................... 16 Depoimento de Agenor ..……….....…................. 16 Editorial ....................................................... 17 Ficha Técnica.................................................. 18
Florianópolis - Outubro de 2011
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Ano II N° 06
Cinema de Arte Senhor Redator: O objetivo desta é solicitar um esclarecimento à empresa exibidora de filmes aqui em Fpolis, através desta coluna, a respeito da propalada sessão de “Cinema de Arte” às 4ªs feiras no cinema Coral e às 5ªs feiras no cinema Jalisco. Acontece que mais uma vez os programadores destas sessões estão fazendo sensacionalismo gratuito e fugindo aos deveres e respeito aos apreciadores do bom cinema, pois: 1º: o cinema Coral – bem como Ritz, São José, Rajá, Roxu, etc – carece de uma projeção satisfatória (com os carvões sempre distantes...) e seu sistema de refrigeração (quando há) é arcaico demais, chegando ao absurdo de o ruído dos ventiladores se igualarem ao volume do som do filme; 2º: se a intenção é exibir “filme de arte”, sendo estes da bitola comum, deveriam orientar aos senhores operadores da retirada da objetiva à frente dos aparelhos, o que permite um alongamento vertical e horizontal à projeção, prejudicando sensivelmente ao quadro original da imagem. Coisa que talvez os senhores exibidores achem supérfluo, mas que é percebido por muitos que sentem o prazer da estética do quadrado de ouro...; 3º : a programação lançada quando surgiu a idéia – feliz idéia! – relacionava como estréia ao filme “Mahler”, seguindo-se “Solaris”, “O Rosto”, “Cabiria”, “Les Guichets du Louvre”. Uma programação que não se pode dizer que seja de “filme de arte”, com exceção de “O Rosto” e “Cabiria”. E, para a sessão de 4ª feira, dia 15 passado, como se não dispusessem de filmes que dignificassem a sessão, apresentavam o filme que havia sido lançado dia 11 no cine São José, “A casa de Bonecas”. Ora, se a intenção é brindar aos apreciadores de Cinema, deveriam tratar de programar antecipadamente estas sessões com cópias de filmes desta natureza que circulam pelas capitais do país, menos em Florianópolis. Grato. G. G.
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O Estado 18 de fevereiro de 1978 página 04
O cinema Jalisco e seu mistério Como em todos os verões, mais uma vez o sol se colocava tardiamente atrás da Pedra Branca. A rotina da cidade Florianopolitana era a de sempre: os senhores praticavam suas jogatinas na Praça XV, que, por sua vez, andavam um tanto tranqüilas e mornas. Já que o cenário futebolístico era amplamente dominado pelo Criciúma, até então tricampeão Catarinense consecutivo, o futebol na ilha andava sem graça, ou seja, avaianos e alvinegros não se provocavam. As construções nas regiões de Chácara aconteciam a todo o vapor, os moradores já se acostumavam com a beira-mar e seu novo formato - acho que aquilo tinha deixado de ser região das chácaras há muito tempo. No continente, os sinos e cânticos militares podiam ser escutados pontualmente, tanto no 63º Batalhão do Exército, como na Escola Aprendizes e Marinheiros, sempre às 06h30 e às 18h00. De noite, a região continental ganhava um ar de suspense. Além de algumas casas de luzes coloridas espalhadas em torno dos batalhões militares, um certo lugar chamava muito a atenção dos jovens da época: o tal Cinema Jalisco, onde eu também sempre tive curiosidades de ir, e por ser de menor não podia freqüentar. Eu, como bom petiço, ficava na rua até no máximo seis horas da tarde; se passasse disso a mãe já reinava, dizia que os homens viriam me pegar, mas eu sabia que os homens não existiam já fazia uns 5 ou 6 anos. Então ela me ameaçava com castigos que estragariam meu dia seguinte. Dentre as várias brincadeiras e afazeres da época de férias, fosse jogar bola, brincar de pique-esconde, soltar pipa ou ficar mexendo com as meninas que passavam ali na praça dos marujos, uma coisa deixava a cambada curiosa: o Jalisco, o tal cinema Jalisco.
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Depoimento de Lourenço Trabalhei no Jalisco por mais ou menos cinco anos. Eu gostava do trabalho e tinha a vantagem de poder assistir filmes de graça. Não eram todos os que eu podia assistir, pois se minha mulher descobrisse era problema na certa. Bem, você deve conhecer a fama do Jalisco – ela é completamente verdadeira – alguns dias da semana o cinema exibia títulos da pornochanchada. Até hoje juro para minha mulher que nunca assisti um desses – ela não vai ler isso, vai? Era engraçado de ver como o público do cinema variava conforme o dia da semana. Nos fins de semana, os casais apaixonados; segundas e quintas, a macharada com testosterona à flor da pele; quartas e sextas, os amantes do cinema. Mas, no geral, nosso público era maior de idade – nenhuma mãe era doida de largar os filhos sozinhos para frequentar o Jalisco. Depoimento transcrito por [M.B.]
Tinha cinemas do centro que a mãe e o pai me deixavam ir, mas ali no Jalisco que era pertinho de casa, eles falavam que era proibido, mas nunca explicavam o porquê. No auge dos meus 14 anos, éramos criados soltos eu e meus amigos, e ser criado solto era prever que um dia nossos pais arrumariam coisa pra cabeça; e esse dia chegou. Uma bela tarde de dezembro, aquela falta do que fazer das férias já começava a bater antecipadamente. Confesso que ficar sem ir ao colégio me deixava um pouco inquieto, visto que as brincadeiras se tornavam entediantes rapidamente. Só não ficavam quando o Pedroca aparecia com sua bola de futebol. Depois de horas a fio sem ter o que fazer, eu e meus amigos decidimos que deveríamos descobrir o que se passava no cine Jalisco, e por que nossos pais ficavam tão bravos quando falávamos neste nome. Todos nós sabíamos que aquilo era um cinema, mas não sabíamos o porquê da proibição e o porquê da irritação, principalmente das nossas mães. A pernada da praça dos marujos, onde morávamos, até o Jalisco, que ficava no lado do 63º, dava mais ou menos uns 30 minutos. Então agimos com cuidado para não nos verem em nossa missão. Após várias rondas em volta do prédio que se encontrava somente com a porta aberta, eu e Silva passamos sorrateiramente pela porta para espiar uns cartazes de filme que tinham na sala do primeiro andar. Alguns desses cartazes tinham nomes bens estranhos, tipo “A banana Mecânica”, “História que nossas babás não contavam” ou o que parecia ser o mais engraçado “O homem de papel”. Até hoje não entendi o porquê de não poder ver esses filmes engraçados, e agora já era! O cinema fechou, espero que outros como Jalisco surjam, aí sim, quero ver se tenho a sorte de acompanhar um bom filme. Historieta narrada por Cevador de Solidões Florianópolis - Outubro de 2011
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Depoimento de Carlota Adoro cinema, a sétima arte corre pelas minhas veias e é somente por isso que eu ainda aguento trabalhar nessa espelunca. Larguei meu currículo no Coral e no Ritz, mas até agora não tive resposta. Foi-se o tempo em que se projetavam bons filmes aqui. Desde que mudaram a gerência do cinema é que este lugar está em plena decadência. Fiquei sabendo que na quinta passada um cara fez o maior escândalo na bilheteria. Eu acho bem feito, de repente a diretoria percebe que estamos perdendo cada vez mais o padrão deste cinema. Se eu fosse importante, telefonaria para o editor chefe do jornal O Estado em pessoa - quem sabe assim dariam atenção para a situação degradante deste lugar. E para piorar a situação, já não basta eu ser obrigada a fazer a limpeza das salas nas segundas e terças, ainda tenho que correr com os pirralhos que tentam invadir o Jalisco. Depoimento transcrito por [M.B.]
Devaneio que ama, queima e é Quando ainda era jovem de idade, no final da década de setenta - e digo jovem de idade, porque de alma sempre fui velho – trabalhei na bilheteria dum cinema. Nos dias chuvosos, em que o cinema desertificava, garantia em minha companhia os intermináveis cigarros, destilados e livros que, escondidos em pequenas carteiras, garrafas e gavetas, foram salvadores do ocioso vazio que tomava minha mente e corpo. Nunca mais conseguirei respirar sem antes lembrar aquele final de tarde. A sessão das cinco acabara de começar e eu pude, finalmente, esconder-me no banheiro a fim de preencher os pulmões com alguma coisa – fumaça, que fosse. Ouvi passos se dirigindo para a bilheteria e, pela janela espiei. Ela vinha de roupa vermelha, com os cabelos claros deixados de lado, e seus olhos de ponteiro procuravam por informação. Rapidamente, apaguei o cigarro e corri para ajudá-la. Ela queria um ingresso para a próxima sessão – não sabia nem que horas eram – e, ao perceber minha hipnose frente a cada milímetro de sua presença, indagou-me, sorrindo, se não tinha doído. “Se doeu o quê?”- balbuciei com esforço. “O cigarro”, e apontou para meu peito, “você apagou o cigarro na blusa e feriu a pele”, ela disse. Realmente, doía. Mas doía mais a distância que media nossos lábios. Doía mais a gravidade que impedia minha mão de acariciar sua nuca e puxá-la para perto. Doía estar tão vazio e, assim, de repente, encontrar a inquietação que percorreria minhas veias dali em diante. Passei a esperá-la todo dia. E ela chegava, com seu cheiro de flores do campo, sem hora marcada, ilustrando sua feição de encantamento e, enquanto esperava pela próxima sessão, contava-me sobre os filmes assistidos. Costurava os detalhes e, dos seus olhos, derramava o brilho que tornavam fascinantes as tramas cinematográficas. Ela amava os filmes. E eu a amava. Numa manhã, acordei antes do sol nascer e comprei um buquê com o que me restou do dinheiro do mês. Florianópolis - Outubro de 2011
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Depoimento de Eriberto No final dos anos 70, Florianópolis sofreu com uma série de problemas em relação aos seus cinemas; a cidade nunca tivera grandes preocupações com a sétima arte. Apesar de que antigamente os cinemas tinham mais estilo, pois tinham instalações próprias e algumas temáticas – como o Jalisco, onde era apresentado a conhecida pornochanchada em dias específicos. Os antigos cinemas acabaram se extinguindo e hoje em dia é preciso de um shopping-center para conferir as novidades da telona. Eu vi de perto a sua decadência. Muitos a atribuíram a má qualidade das instalações. Mas o que aconteceu foi um boicote de uma loira gostosona que seduziu um a um os bilheteiros de todos os cinemas. Ela era dona de uma rede de cinema paulista que estava interessada na concessão para Santa Catarina. Com os bilheteiros se demitindo em massa ou prestando serviços cada vez mais precários, não tardou para que os cinemas falissem. Depoimento transcrito por [M.B.]
do dinheiro do mês. Abri o cinema e fiquei a imaginar as palavras certas a serem ditas. Naquele dia, porém, só o sol veio. Fiquei a esperá-la desde o escuro da madrugada até o badalo da meia-noite. Como se fosse noite passada, eu lembro permitir entregar-me ao sono ali mesmo, com a cabeça apoiada nas flores e o pensamento ancorado nela. Com esforço, ergui as pálpebras e constatei-me na poltrona do cinema. Os letreiros na tela anunciavam o término do filme. Eu, o bilheteiro, não me recordava sobre ter vendido ingressos para tal sessão. Na minha volta, cartazes anunciando lançamentos para o próximo ano: 2011. Levantei-me e passei a andar, transtornado, pelos corredores iluminados e barulhentos, quase não reconhecendo minhas pernas. Esbarrei em uma moça de uniforme e crachá sentada às escadas ao meu lado. A ela, balbuciei desculpas e, aproveitando a situação, consultei-a sobre o paradeiro de uma mulher de cabelos claros e roupa vermelha. “Olhe ao redor, rapaz! São todas assim!” E eram. Com indiferença, ela ainda ponderou “Sua camisa está queimada de cigarro.” Estagnado, continuei. Na saída, um aroma de flores do campo adentrava minhas narinas e ordenava minhas pernas para que parassem. Avistei a bilheteria e, rapidamente, espiei. Um rapaz de aproximados vinte anos fumava ali dentro trancafiado. Por um segundo, pensei em chacoalhá-lo, a fim de entender o que estava acontecendo, mas, ao cogitar essa possibilidade, senti uma de minhas mãos ocupadas por um cheiroso, porém amassado, buquê. O cheiro vinha dali. Observei o ambiente, o furo na camisa, o bilheteiro e as flores. Fosse tudo sonho ou realidade, não importava. Sobre as certezas, que nunca fizeram parte de minha vida (vida?), tinha, agora, uma única: eu a amava, e isso bastou para me fazer partir. Seguir o aroma das flores, talvez? Para onde fui, entretanto, até hoje, não sei responder. Historieta narrada por Ma. Epítoma
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Depoimento de Francisco Ramos Eu era dono da franquia do Cine Rajá e também do Cine Roxu. Fiquei sabendo, sim, da história da loirona do cinema. Tem gente que diz que ela nunca existiu e era papo de bilheteiro. Ninguém sabe, não é?! O que eu sei é que meus funcionários, responsáveis pela bilheteria, sofreram de alucinações (ou não) por sete dias. Primeiro foi o Jóca, do Cine Rajá: contou pra todo mundo que tinha conhecido a mulher mais encantadora do mundo – loira, vestido vermelho, cheiro de flores do campo. Depois foi o Jair, do Roxu, com a mesma história da mulher misteriosa, a mesma descrição, os mesmos sete dias. Achei que era safadeza dos dois marmanjos, porque ninguém via a tal da loira; mas os dois nunca tinham visto a fuça um do outro e a história era exatamente a mesma. Sei que aconteceu a mesma coisa no Coral e no Jalisco, e assim como o Rajá e o Roxu, os dois entraram em decadência depois da visita da loira. Depoimento transcrito por [M.B.]
O reclamão da bilheteria Fazia um mês que eu queria sair com a Berenice, mas ela estava fazendo o maior jogo duro. Para cada convite que eu fazia, ela inventava uma desculpa. Mas eu sou um cara persistente e, finalmente, a convenci de ir ao cinema comigo. Os cinemas de Florianópolis tinham elaborado uma programação em conjunto para exibir filmes premiados em dias selecionados. Eu não entendia nada de cinema, mas a Berenice era fã dessas coisas e estava super empolgada para ver um filme que tinha entrado em cartaz naquela semana. Vi que era a minha oportunidade e a convidei para a sessão cinema de arte do Coral, que acontecia nas quartas-feiras à tarde. Passei para buscá-la em casa e quando chegamos ao cinema, quase me arrependi do programa. O filme que ela tanto queria ver era um tal de “A casa de bonecas”. Imaginei que seria terrível pelo nome. Mas confesso que até hoje não sei do que se tratava o filme, pois passei a sessão toda olhando para os lábios de Berenice e imaginando quando poderia beijá-la. Minha intenção era beijá-la durante o filme, mas ela não desgrudou os olhos da tela por um minuto sequer. Depois de quase duas horas de sessão - contando os trailers, porque a Berenice não podia perder os trailers - pensei que finalmente conseguiria o primeiro beijo. Já estávamos até andando de mãos dadas quando chegamos à bilheteria. Mas tudo foi por água abaixo.
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Depoimento de Berenice Se tivesse sido qualquer outra ocasião, eu teria ficado constrangida. Pensa bem: eu estava saindo com o Betinho depois de um mês o enrolando e meu tio aparece fazendo maior barraco na bilheteria do cinema. Mas, daquela vez, meu tio tinha toda a razão de reclamar. Era nítida a distorção de dois centímetros que a imagem sofria, e sem contar aquele calor das salas do Coral. O São José e o Ritz tinham melhores condições, mas as do Coral na época estavam terríveis. Na semana seguinte, fui ao Cine Coral com intenção de assistir O Rosto – que meu tio disse que era maravilhoso – e acredita que ainda não tinha estreado? Liguei para o tio Gilberto e sugeri que escrevesse uma carta para O Estado em reclamação às condições dos cinemas de Florianópolis. Só espero que o Betinho não tenha ficado chateado com o fim do nosso encontro. Depoimento transcrito por [M.B.]
Tava rolando a maior confusão! O bilheteiro discutia com um senhor que parecia estar realmente irritado. Assim que a Berenice viu o reclamão, soltou minha mão e tratou de se afastar de mim. Fiquei sem saber o que aconteceu, mas Berenice falou no meu ouvido que o homem irritado era seu tio – entendi o afastamento dela. Nos aproximamos para entender o que estava acontecendo. O tio de Berenice berrava com o pobre do bilheteiro que já estava encolhido num canto. Lembro-me de ouvir o homem berrar “esses programadores são uns marxistas” – até hoje tento entender o que ele quis dizer com isso – mas os xingamentos não pararam por aí. Falou várias vezes que era um absurdo o que estava acontecendo em Florianópolis, que a projeção do filme estava horrível, que era um desaforo com os amantes do cinema e blábláblá. Eu não entendi patavina do que ele estava dizendo, mas a Berenice concordou com o tio. Mais um pouco ela estaria lá no meio da confusão também, xingando o pobre do bilheteiro que não tinha nada a ver com o assunto. No final, o tio reclamão saiu batendo a porta dizendo que escreveria para O Estado para reclamar dessa pouca vergonha, e ainda levou Berenice pelo braço. Quem saiu perdendo nessa história toda fui eu: esperei um mês para sair com a garota para ver meu encontro ir pelos ares por conta de um tio que estava procurando chifre na cabeça de cavalo. Historieta narrada por Maria Bonita
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Depoimento de Dona Carochinha Eu assisti A casa de Bonecas no dia da confusão, então eu vi tudo acontecer. Fiquei com pena do coitado do bilheteiro, que estava atrás do balcão com a maior cara de “mãe, não fui eu”. Quando vi aquela pessoa daquele jeito, tratei de chegar mais perto para saber o que estava acontecendo – não que eu seja fofoqueira, mas é que fiquei preocupada com o bilheteiro mesmo. No início, não entendi nada do que o reclamão estava falando, pois ele berrava que o “alongamento vertical da projeção está ruim”- ou algo parecido com isso. Depois, minha amiga me explicou que ele estava falando que a tela estava deformada. Achei que o cara era um doido, como que a tela vai estar deformada se todas elas tem um formato padrão – retangular. O povo arranja cada coisa para reclamar, que eu vou te contar. Depoimento transcrito por [M.B.]
Cinema telefônico Era tarde da noite quando recebi o telefonema. Estranhei muito, porque fazia apenas um mês que eu tinha o aparelho em casa e pouquíssimas pessoas sabiam o número. Mas eu, como editor do jornal O Estado, não podia me fazer de rogado: não atender a um telefonema poderia se tornar um sacrilégio, dependendo da pessoa que estivesse do outro lado da linha. Se fosse um furo de reportagem, estaria garantido para o ano inteiro. Se fosse minha mãe, bem, eu poderia ao menos garantir meu almoço do dia seguinte – pensei. Os tempos eram difíceis, o ano era 1978, a ditadura estava presente pelas ruas da cidade - ainda que muitos pensem que em Florianópolis ela não aconteceu de fato. Depois de me perder e me achar de novo em meus pensamentos, atendi à chamada. Achei que o telefone ainda estivesse com problemas na conexão, porque logo que atendi ouvi uns sons estranhos. Vozes de diversas pessoas falando o número 7. Sete? Que raios isso significava? Sete vidas? Sete dias? Desliguei. No dia seguinte, no mesmo horário, o telefone tocou novamente. Parece que as pessoas não sabem o momento de respeitar o descanso dos outros. Acham que todos tem de estarem prontos para atendê-los a qualquer hora do dia e da noite. Atendi e, novamente, os setes invadiram minha cabeça. Mas a ligação durou menos. Dessa vez, antes que eu pudesse xingar em pensamento e desligar o aparelho, a ação foi feita pelo outro lado da linha. Estranhei muitíssimo, mas deixei de lado, assim que consegui me entreter com as sinopses de cinema do jornal; achava aquilo um barato.
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Depoimento de Renatinha A Berenice tinha ficado fula da vida, porque o encontro dela com o Betinho tinha sido um desastre. Todas nós sabemos que o Betinho não dá a mínima para cinema, mas a Berenice é tão apaixonada pela Sétima Arte que ela acha que todo mundo nota os detalhes microscópios que ela percebe. O fato é que ela ficou envergonhadíssima de ter ido ao cinema com o Betinho para ele ver uma “projeção porca de A casa das Bonecas” – palavras dela. Então armamos um plano para forçar o redator d’O Estado a publicar uma matéria de capa falando da situação dos cinemas da capital. O tio dela já tinha mandado uma carta para o jornal que não tinha dado em nada, então resolvemos pegar mais pesado. Por sete dias, ligamos para o editor chefe em horário suspeito e sussurrávamos o número sete, ou as palavras “sete artes”, “sétima arte” no telefone. Foi ideia da Berenice, acho que ela tirou de algum filme. Óbvio que não deu em nada, mas foi divertido. Depoimento transcrito por [M.B.]
No terceiro dia, no mesmo horário, mais um telefonema, da mesma maneira, com diversas vozes - eram os únicos que eu recebia naquele primeiro mês de posse do aparelho. Novos setes encenavam e se insinuavam nos meus ouvidos, quando, de repente, entendi: era “Sete Artes”, “Sétima Arte”, o que me diziam ao telefone. Diversas vozes - que eu parecia inclusive conhecer - falavam-me “Olhe a Sétima Arte” e riam. Eu perguntava, incessantemente, o que aquilo significava, mas só ouvia risos. Um cheiro de flores murchas tomou conta da minha sala e eu já estava ficando com medo daquilo. No dia seguinte, na edição do jornal, ouvi falar de uma discussão que teve no cinema Coral, no dia anterior, entre um senhor, tio de Berenice - minha vizinha - e o bilheteiro. Foi o maior bafafá no meio cultural e me colocaram para averiguar isso mais afundo. Eu nem precisei ir atrás, porque quem veio foi o próprio senhor. Deixei que meu estagiário editasse a nota e passei o dia inteiro em frente ao Jalisco pensando sobre as ligações. Fui acertado pela bola de alguns pivetes desengonçados que achavam que jogavam futebol, mas o que faziam mesmo era espalhar o pânico pelos transeuntes com as investidas sem sucesso de seus pés naquele objeto redondo, além de outras sem sucesso, ao tentar entrar no Jalisco – coitados. No fim do dia, depois de tanto pensar, sabia apenas que a cidade precisava de uma escolinha de futebol para meninos criados soltos. Estava disposto a sugerir pauta para a redação, mas antes que eu pudesse sentar e escrever a respeito, eis que o telefone tocou de novo. Dessa vez, uma música baixinha soava “Ela faz cinema! Ela faz cinema! Ela é a tal!”, uma voz mais sensual pediu licença e perguntou se eu tinha um ingresso para a próxima sessão de cinema. Eu não estava acreditando naquilo, que espécie de brincadeira era aquela? Florianópolis - Outubro de 2011
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Depoimento de Roberto Eu era um dos poucos que tinha o número pessoal de meu amigo Jorge Monteiro, que na época exercia o cargo de editor chefe d ‘O Estado. Apesar de trabalhar num dos maiores jornais de Santa Catarina, ele tinha certa aversão à tecnologia. Aquele número era restrito aos familiares e amigos mais próximos, o que significava que eu não estava autorizado a divulgá-lo. Obviamente a Berenice sabia que se alguém teria o telefone de Jorge, esse alguém seria eu; e como eu estava enrabichado pela irmã mais velha da moça, resolvi fazer uma moral e dar o telefone. Mas para garantir que não perderia um amigo, tratei de trocar alguns dígitos do número e passar o telefone errado para a menina. Quando Jorge me falou que andava recebendo telefonemas estranhos tarde da noite, achei que as meninas tinham conseguido o número certo e que eu estaria perdido. Mas Berenice me garantiu que o número que tinha usado fora o que eu passei. Depoimento transcrito por [M.B.]
cinema. Eu não estava acreditando naquilo, que espécie de brincadeira era aquela? Antes que eu pudesse reclamar, ela rio um riso doce, e o cheio de flores inundou novamente minha sala. Eu, que fumava um cigarro, deixei-o de lado e comecei a ouvir seus devaneios sobre os filmes que ela já tinha visto e sobre o próprio cinema – e a música ao fundo dava o tom “eu não sei se ela agora está fora de si”. E assim, seguiram os sete dias da semana; ela sempre linda falando dos filmes - ao menos o que eu imaginava dela - quem certamente tinha cabelos claros. Na manhã de trabalho, vi a nota publicada sobre as reclamações do cinema Coral. Que bom que as pessoas reclamam pelos seus direitos de entretenimento na cidade – pensei – e o estagiário fez um ótimo trabalho, segurou as pontas enquanto eu me acabava em pensamentos inconstantes. E eu, que nunca havia me preocupado com Cinema, passava a ver aquilo tudo com admiração. Ora, quem nunca pára pra pensar nela - linda, loira, de roupas vermelhas - não sabe quão bom é perder algumas horas de vida atribulada para entrar em outras histórias e ouvir suas vozes. Sempre ouvi meus pais contarem de pessoas que diziam receber correspondências da Sétima Arte, de se comunicar com ela. Agora eu acredito. Até hoje quando falo disso para amigos, eles riem de mim, dizendo que andei fumando e bebendo demais durante aquela semana, aqueles sete dias. No entanto, só sei que foram os melhores sete dias da minha vida e que sempre que passo pela frente do Jalisco, o cheiro de flores do campo me inunda e eu sorrio doce para aqueles mesmos moleques ladinos que jogam bolas nas pessoas desavisadas. E essa sensação faz um bem que ninguém me faz. Historieta narrada por H.
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Depoimento de Dr. Ivan Sinceramente, eu já estava achando que o meu amigo Jorge estava precisando de um bom acompanhamento clínico. Sendo psiquiatra, era fácil para eu identificar um caso de neurose, mas, sendo amigo, não era tão fácil assim dizer: “Meu amigo, tu tá ficando maluco!” Eu e o Jorge nos conhecíamos de longa data, o cara sempre foi muito sério e competente, até que invocou que estava recebendo ligações do cinema – como se a Sétima Arte tivesse se tornado uma entidade capaz de se manifestar. Por sete dias, proclamou frases enigmáticas – que só ele entendia – e dizia que sentia o cheiro de flores quando o cinema se aproximava dele. Depois desses sete dias, os sintomas de neurose desapareceram. Cheguei à conclusão que deveria ter sido uma virose. Até porque, naquela semana, atendi um paciente que jurava que a Sétima Arte tinha lhe escrito uma carta. Depoimento transcrito por [M.B.]
Resposta a G. Prezado G.G., Apresento-me sem demasiadas formalidades: depois de outras 6, torno-me 7ª. Mais uma entre as sete. De vários lugares consigo ser vista, criticada e amada por diversas partes – sou nova, sou velha, meio surrada, meio idolatrada. Chamam-me de 7ª, sétima arte. Prazer. Um, para os cinéfilos, prazer. Pelas precariedades dos cinemas mencionados por sua pessoa, aquilo a que já foi dito, não posso argumentar; cabe, se cabe algo a alguém, àqueles que os administram. Afinal, as condições dos cinemas de Santa Catarina fogem da minha alçada, como é público e notório. O motivo pelo qual me nomeiam assim pode ser deduzido de diferentes jeitos: cada um com o seu. Cada sistemático com seu sistema, cada lágrima chorada com o seu choro, cada destino com o seu acaso. Minha alçada, como dizia, agora que ela pode ser trazida à baila, é alémcontinente. Minha arte - como é notório e público - é feita por tantos, para tantos públicos, outros quantos notórios... A junção das outras demais artes.
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Depoimento de Roberval Bravo? O Betinho queria arrancar a cabeça do primeiro que aparecesse na frente dele. Imagina! Fazia um mês que o cara estava tentando sair com a Berenice. A Berenice é uma gata, mas um mês xavecando a menina é demais, não acha? Mas o cara gostava mesmo dela. Aí, quando finalmente ele consegue levá-la ao cinema, o tio da mina tá fazendo o maior barraco na porta por causa de porcaria de 02 centímetros de deslocamento da tela – que por sinal só o maluco percebia. Eu não sei o que teria feito, mas o Betinho é um cara tranqüilo, apesar de não ter deixado barato pro tal do homem – o tio da Berenice. O Betinho escreveu uma carta pro tio reclamão dizendo que ele era a Sétima Arte em pessoa – tu já viu cinema mandando carta? Pois é, mas diz que o cara ficou uns sete dias doidão achando que tinha o dom de falar com o cinema. Depoimento transcrito por [M.B.]
No intento de ser muito entendida, formaram-se especialistas em Marilyn’s Monroe, Sophia’s Louren, Anita’s Ekberg – a arte do contemplar. Também d’outros tantos mestres Fellini’s, Kurosawa’s, Costa’s-Gavras, Kieślowski’s - intelectuais, pseudos ou não, surgiram. Para intentar ainda mais e saber por que sou arte, eu que sou e faço as diversas verdades, é necessário aceitar o relativo – sou um dos sóis relativamente relevante. O que, poderia você agora se perguntar, é a arte? Ou o que, se pensar nos dias de hoje, não é arte? Pensar Mahler ou Les Guichets du Louvre como não sendo ‘’filmes de arte’’ não seria pensar na sua arte? Ou, já me corrigindo, pensar no conceito – de signo e significado – daquilo a que você considera arte? Assim como a História é feita através de outras histórias, composta de outras versões, não seria o seu olhar artístico diferente de outro e feito por sua versão?
- Talvez eu tenha pensado tudo isso em voz alta e alguém – talvez nem público, talvez nem notório – transcreveu o meu pensamento. Att., Sétima arte . Carta transcrita por L!
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Depoimento de Clodoaldo A profissão de carteiro tem que ser valorizada neste país. Além de ter que aguentar cachorro correndo atrás da gente – porque cachorro tem uma cisma com carteiro que vou te contar - ainda tem aquele mal humorado que só recebe conta pra pagar e desconta no coitado que entrega o boleto. E eu lá tenho culpa que o cara deve até os fundilhos? Ora! Mas o pior são aqueles que querem virar amigo do carteiro, tu já viu? Faz mais de mês que o cara tá esperando a carta da namorada que fugiu com o brigadiano, e sonha que o carteiro sabe dizer o paradeiro da mulher - esses são os piores. Uma vez conheci um sujeito que disse que tinha recebido uma carta do cinema – pensei comigo, e eu com isso? Mas tudo bem. Daí ele queria saber o endereço do remetente da carta. Eu disse pra ele: o tal do cinema não é amigo teu?! Como que eu vou saber?! Tem cada um que me aparece que vou te contar... Depoimento transcrito por [M.B.]
Lumine Sentava-me no banco que fica em frente à bilheteria próxima das portas das salas que abrigam as grandes telas, e esperava os atrasados, para guiá-los aos seus lugares. Os atrasados que esqueciam que no fim da tarde das primaveras um frio sutil enregela os corpos, e que chove muitos dias no verão dessa ilha - e o relógio tique-taca mais dez ou quinze ou até mesmo mais vinte minutos para os mais azarados que procuravam sem encontrar aquele casaco que combinaria com as meias, o guarda-chuva tão bonito com desenhos geométricos, o mais um pouco de perfume pra ser notado quando passasse pelos andarilhos de cabeça baixa da rua. Eles sempre estavam muito arrumados, e eu entendia: no cinema eles poderiam encontrar seu certo amor, personificado pela atriz inalcançável da tela enorme e brilhante ou pelas damas que eles traziam consigo de outros lugares, com bafo de café e pérolas no pescoço. O cinema onde eu trabalhava ia mancando por um caminho meio torto (e mais tarde, inclusive, eu veria suas luzes sendo desativadas e suas portas sendo fechadas - em 1980 pra ser mais exata. Depois do Coral, eu comecei a trabalhar costurando pras madames daqui os tantos modelos de vestidos que vi na tela enquanto iluminava as pequenas trilhas pros atrasados). Os ventiladores andavam roncando demais e as salas esquentavam-se rapidamente, e – já aviso, digo isso porque li em algum jornal, não porque assim penso – a tela ficava fora da forma indicada pelos cantos e isso modificava a imagem do filme, além da sessão de arte começar a um Florianópolis - Outubro de 2011
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Depoimento de Beatriz Todo mundo ficou sabendo do escândalo que o G.G. fez na porta do Coral e também da carta que ele mandou para O Estado reclamando da situação dos cinemas florianopolitanos. É verdade que a condição dos cinemas não estava lá grande coisa. Minha melhor amiga era lanterninha do Cine Coral, então eu conseguia várias entradas grátis, além de conhecer o interior do cinema – lá onde o espectador não tinha permissão de entrar. A verdade é que o sistema de ventilação do Coral era precário, ouvíamos barulhos terríveis vindos das saídas de ar e ficávamos imaginando monstros que teriam se instalado lá dentro. Isso tudo era muito divertido, pois adorávamos aquele lugar apesar de todos os problemas. O dono do Coral ainda tentou frear seu fechamento, trocando toda a ventilação, mas já era tarde demais. A prefeitura já tinha liberado a concessão das telonas catarinenses para uma empresa paulista. Depoimento transcrito por [M.B.]
ser criticada. Esses últimos dois pontos não eram muito comentados, na verdade, pelo menos não ali na minha frente. O que eu mais escutava era “Que horror de calor nesta sala” e derivados. Essas opiniões que o jornal publicou eram de um senhor que tinha reclamado através de uma carta, não só das condições do Coral, mas do Cine Jalisco também. Eu desconhecia o calor das salas, nem notava a falta de padrão da tela, sequer assistia a algum filme por inteiro. Eu gostava de ficar sentada no meu banco, espiando a rua lá fora, lendo livros que me ajudavam a conversar com quem se interessava pela lanterninha do Cine Coral, e prestava muito a atenção pros vestidos das moças quando eu guiava algum atrasado. Eu sempre ali sentada, sem graça, cabelos um tanto arrumados, maquiagem barata, mas caprichada, e a voz entoando canções e canções da Janis Joplin e da Rita Lee. O que aconteceu, afinal, foi que os problemas encontrados pelo senhor autor da carta foram resolvidos. Pelos anos de 1990, o Jalisco fechou as suas portas. Dez anos antes, eu deixei meus cabelos despenteados pra última sessão do Cine Coral. Ninguém chegou atrasado, tudo estava muito bonito e iluminado, as salas não esquentaram, a tela estava perfeita, todos sorriam. Mas era triste, era triste, era tão triste... E então a bilheteria foi desocupada, as portas fecharam-se, e eu, pela última vez, apaguei a luz lânguida e vacilante da minha lanterna. Historieta narrada por Raio de Sol
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Depoimento de Jurandir Eu fazia a assistência do sistema de ventilação do Cine Coral. O maquinário era realmente muito antigo e precisava ser trocado com urgência. Informei o gerente do cinema já na primeira vez que mexi naquela velharia. O gerente, Seu Rogério, era um senhor muito solícito e me deu carta branca para fazer todas as melhorias necessárias para que o Coral voltasse a proporcionar ótimas instalações aos seus clientes - eles eram realmente preocupados com essa coisa da sétima arte por lá. O problema é que as peças que eu precisava trocar tinham que ser encomendadas de São Paulo - e as peças não chegavam nunca, ou chegavam com defeito. Com a demora do conserto o cinema foi perdendo popularidade e acabou fechando as portas – o que eu achei uma pena. Anos depois, descobri que aquilo tinha sido golpe de uma empresa paulista para se estabelecer no mercado catarinense. Depoimento transcrito por [M.B.]
Cinema de abandonar Eu ria por dentro do barulho daqueles ventiladores - coisas desse tipo que me faziam rir naquela época. Ficava imaginando que tipo de boca ou olhos teria o sistema de ventilação do Cine Coral – pois certamente se tratava de um monstro. As pás preguiçosas movimentavam parcamente o ar abafado da sala quente e poeirenta, e era esse charme que me trazia – corpo e alma – àquele lugar que parecia triste, como uma moça que nunca se casou. Prestava atenção aos filmes e ficava em estado de transe com todos, sem exceção. Mesmo os mais chatos me cativavam. Ia até lá a pé, cantando bandas de rock e artistas da música brasileira. Era difícil conseguir discos por aqui; eram caros. Mas eu me beneficiava deles e de livros. E quando chegava ao cinema, sempre tinha algo a aprender e a dizer nas filas. Sempre tinha alguma menina largada sem sutiã, com os mamilos a se insinuarem sob a blusa fina; beldades de cabelos com permanentes e idéias loucas na cabeça, geralmente acompanhadas de caras de cabelo mais comprido do que suas mães gostariam de ver. Eu me perguntava que tipo de vida levavam, que tipo de vício tinham, que tipo de filme preferiam e por que freqüentavam aquele cinema. O cinema não era o único, mas era o que eu preferia, porque ele era tão puído e desolado, e parecia precisar de atenção, especialmente depois da crítica que li no jornal. Depois daquilo, eu me forcei a ir a todas as sessões. Ninguém apegado ao “prazer da estética do quadrado de ouro” poderia entender meu amor por aquele lugar, por aquelas pessoas. Eu amava a lanterninha. Nós sempre conversávamos antes e depois do filme, quando ela não estava ocupada demais. Era sempre uma alegria vê-la cantarolar músicas que eu amava, e, na verdade, eu secretamente desejava vê-la quando ia para lá. Ela era tão apaixonada pelo cinema quanto eu. E ficou tão perdida quanto eu quando ele fechou. Saímos desorientados do cinema, e assistimos seu suspiro final em luzes apagadas. Nos demos as mãos e suspiramos pela última vez junto com ele. Sem palavra alguma, fomos andando pela rua na direção oposta dos últimos espectadores de nossa tão amada sala de cheiro de mofo e confeito - sala de tela gigante que contava histórias de longe daqui. Os dois estavam desnorteados, ainda que seguissem pelos mesmos caminhos todas as quartas-feiras, por amor à arte, por amor ao cinema, por amor aquele cinema. Era um Coral que se calava.
Historieta transcrita por de Belo-Mar.
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Depoimento de Agenor Posso me lembrar do Cine Coral por conta de um cheiro verdadeiramente característico. As poltronas da derradeira fileira das salas 02 e 03 possuíam um leve aroma de mofo. Não era todo mundo que conseguia perceber aquele cheiro, pois era algo realmente sutil. Sabe, o Coral era muito bem cuidado – pelo menos antes de tudo começar, as alucinações dos bilheteiros com a loira cinéfila, os problemas com a ventilação, enfim. O gerente do Coral era um cara muito competente e é por isso que eu acredito nos boatos que o que fechou os cinemas florianopolitanos foi um boicote de uma empresa de fora. Mas o que eu mais gostava no Coral era a lanterninha. Ela era a mais bela lanterninha de todos os cinemas. Os marmanjos viviam babando por ela. Mas ela tinha um namoradinho – pelo menos tinha um cara que vivia andando atrás dela. Ah se ela soubesse dos suspiros que já dei por ela. Depoimento transcrito por [M.B.]
Editorial: Olá! Nós somos a Revista Travessa em Três Tempos. Ouve-se pelos corredores que o âmago desta idealização nasceu despretensiosamente, em blog, com o objetivo de três autores-amigos pass[e]arem pelos três tempos históricos, tendo a travessa como cenário, sem ser revisitada. De mais, “não sei, só sei que foi assim...” Hoje, somos um projeto de extensão do Laboratório de Imagem e Som da UDESC. Somos definidos como revista histórico-literária com o objetivo de entretenimento do público em geral, ao brincarmos com as diferentes versões da história. Bem, concordamos com isso! Porque, como bem sabemos, na história não existe uma verdade, mas várias. E é por isso que a gente se propõe a colocar a imaginação – histórica ou não - pra funcionar e criar
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novas
versões
dos
fatos
trazidos
prontos
pelos
documentos históricos. Assim, a revista se forma, com várias possibilidades para a história principal. Dizem que dá um bom resultado. Confira!
Ficha Técnica:
Atenção! As historietas, depoimentos e nomes contidos nesse exemplar são todos fictícios.
Documento Base: Recorte do Jornal O Estado - 18 de fevereiro de 1978, página 04 Textos de Redatores: Ana Terra de Leon Hellen Martins Rios Luccas Neves Stangler Taiane Santi Martins Tainah Lunge Autores Participantes: Iulla Portillo Thiago de Oliveira de Aguiar
Capa: Arte e design: Taiane Santi Martins
Ficha Técnica:
Edição e Diagramação: Taiane Santi Martins Revisão: Hellen Martins Rios Idealização: Taiane Santi Martins Equipe Travessa em Três Tempos: Ana Terra de Leon - Hellen Martins Rios Luccas Neves Stangler - Mariana Rotili Taiane Santi Martins - Tainah Lunge Apoio e Orientação: Prof° Márcia Ramos de Oliveira Laboratório de Imagem e Som – LIS
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