Sumário: Sentença Judicial Datada de 1833 – Província De Sergipe………………………………03 Cabra Manoel Duda e a Moita Maldita da História………………………………………… 04 Depoimento de Rosinha .................................................................................... 04 Depoimento de Lindalva .................................................................................... 05 Trinca ................................................................................................................. 06 Depoimento de Zé Boneca ................................................................................ 06 Depoimento de Padre Juscelino ........................................................................ 07 Carta de José Januário........................................................................................ 08 Depoimento de Ferdinando ............................................................................... 08 Depoimento de Rosalinda ................................................................................. 09 O que a curandeira tem a dizer ………………………………………………………………..…… 10 Depoimento de Pafuncia ………………………………………………………………………………10 Depoimento de Jupira ………………………………………………………………………………….11 Depoimento de Mariazinha …………………………………………………………………………. 12 Depoimento de Seu Leopoldo ……………………………………………………………………….13 Horla e eu …………………………………………………………………………………………………..14 Depoimento de Viriato …………..………………………………………………………………….. 14 Depoimento de Euclides …………….………………………………………………………………. 15 Travessa em Três Tempos …………………………………………………………………………....16
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Sentença Judicial Datada de 1833 – Província De Sergipe SÚMULA: Comete pecado mortal o indivíduo que confessa em público suas patifarias e seus boxes e faz gogas de suas víctimas desejando a mulher do próximo, para com ella fazer suas chumbregâncias. O adjunto de promotor público, representa contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant'Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava em uma moita de mato, saiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova. Considero: Que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana; Que o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas; Que Manoel Duda é um sujetio perigoso e que se não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhã está metendo medo até nos homens. Condeno: O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete .A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio carrasco o carcereiro. Cumpra-se e apreguem-se editais nos lugares públicos. Homine debochado debochatus mulherorum inovadabus est sentetia qibus capare est macete macetorim carrascus sine facto nortre negare pote. Cumpra-se a apregue-se editaes nos lugares públicos. Apelo ex-officio desta sentença para juiz de Direito deste Comarca Manoel Fernandes dos Santos. Juiz de Direito da Vila de Porto da Folha Sergipe, 15 de Outubro de 1833. Fonte: Instituto Histórico de Alagoas.*** 2
“...Vá de retro! – nanje os dias e as noites não recordo. Digo os seis, e acho que minto; se der por os cinco ou quatro, não mais? Só foi um tempo. Só que alargou demora de anos – às vezes achei; ou às vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zúo de um minuto mito: briga de beija-flôr. Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor - se transforma ,se compõe, em uma espécie de decorrido formoso. Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo...Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o que é. Isto, já aprendi. A bobeia? Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba – é lavar ouro. Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade? ...” Riobaldo
Cabra Manoel Duda e a Moita Maldita da História Pobre do cabra Manoel Duda. Entrou para História da pior maneira: capado. Isso é que nos chega pelas fontes oficiais. O fato é que Xico Bento, há meses não dava no coro por razões desconhecidas em sua mulher. Durante um
segundo inquérito (este que não fora revelado), após a execução da maldosa sentença ao cabra Manoel Duda, a mulher de Xico Bento voltou atrás arrependida e confessou o mal entendido. Dissera que durante as missas de Pentecostes tratou de atiçar o cabra sem o mínimo de pudor. E que o caso era de excomungá-la, logo tivera praticado a
luxúria sob os olhos do crucificado. Ela como integrante da irmandade do rosário postava-se ao lado de outras companheiras nas cadeiras dispostas no altar. De frente para Manoel, sujeito de boa índole, familiar e afeito à fé, insinuou abrir as pernas e pôr as vistas dele toda sua densa moita. O pobre homem no período da novena, ia para Igreja, mas rezava o terço pro diabo. Esqueceu-se dos pecados com tamanha oferta. Sorveu em seus íntimos desejos a brasa daquela mulher. Danou a procurá-la depois de cada missa.
Depoimento de Rosinha: Tentei abster-me de ferrenha discussão, mas sinto que as veias de meus dedos não irão parar de pulsar enquanto não opinar. Confesso que conheci cabra Manoel Duda, há um punhado de tempo atrás, ainda mantinha intacto o orgão que lhe conferia o certificado de macho. É, tratando-se do povo de Alagoas essas coisas fazem diferença. O que sei é que o cabra fazia juz ao mebro que carregava, não que eu tenha tido intimidade com tal parte de seu corpo, mas, sabe como é, as raparigas comentam.
Também sei que aquelazinha, a mulher do Xico Bento, de santa não tinha nada, talvez os saiotes que ela provavelmente roubava do guarda-roupa empoeirado da tataravó. Veja bem, os sinhô não ache que eu estou defendendo o Duda, mas que ela não prestava, ah, isso não prestava. Eu até acho que o Duda deve mesmo ter dado uns apertões nas carnes daquela sonsa, agora dizer por aí que foi contra o gosto daquela desavergonhada?! Isso é demais para minha pessoa doutô. Depoimento transcrito por MB.
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Até que no nono dia recebera um bilhete confirmando o encontro na fonte. Aquela região da vila estaria deserta para as andanças da procissão. Enquanto que o marido Xico Bento, distraído, contaria nos dedos a rentabilidade da venda no último dia dos festejos. Tudo riscado no premeditado. Ás nove horas de lua cheia daquela noite do dia 11, Manoel e Liodalva se amassavam
num lesco lesco caloroso. Quando Liodalva gritava pelo incomodo das pedras que friccionavam suas costas, apresentaram-se em tom de salvadores, Nocreto Correia e Norberto Barbosa ao voltarem duma briga de galos. O desenrolar da confusão todos já sabem. Manoel Duda indefeso, resignado em sua vergonha, confuso por ser condenado somente por ter sido homem. Depois de capado, não suportou a dor maior de seu fim e matou-se. Liodalva linchada pela cidade ganhou o apelido de Moita Maldita, separou-se do marido frouxo, deixou a Vila só com as sandálias nos pés e fora acolhida num convento. historieta narrada por [estradeiro-mor] de vereda acima.
Depoimento de Lindalva
O povo da cidade sabe que minha irmã é moça direita, um poço de candura. Tinha por desejo, quando moça, o de entrar para o convento; o próprio marido sabia disso quando a tomou em matrimônio. Pode parecer estranho uma moça tão dada aos assuntos da igreja se enrabixar por algum cabra, mas insisto em dizer que tal romance foi, de certo, abençoado pelos céus. Xico Bento é um cabra respeitador, passou um perrengue pra conseguir conquistar minha irmã. Depois do casamento dedicou sua vida para ela , ela também só tinha olhos pra ele. É por isso que eu digo doutô, aquele atrevido do Manoel Duda merecia o capamento, se o Seu Delegado não tivesse feito eu faria com minhas próprias mãos. Depoimento Transcrito por MB
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Trinca E Manoel Duda perdeu as bolas. Isso pra essas estâncias é pecado mortal, é pior que mutilação. Pior que perder braço, perna; comparado à vida mesmo. Dizem que Deus não gosta dessas sangrias; que o sangue de baixo é mais sagrado... vai saber! Mas
pior
que
isso
aqui,
só
ficar
de
chumbregâncias com sujeito perto da fonte. Nessas vilas pequenas, onde o que o pai fala deve ser levado como missa, causos como esse sempre levam esse fim. Vê quem ia entender que Manoel Duda, cabra de culhão respeitado, mulherengo de marca maior,
Depoimento de Zé Boneca É! Agora andam dizendo por aí que Manoel Duda é baitola, não me leve a mal, não tenho nada com a vida do cabra e também não sou dado a preconceitos. A irmã da vizinha de minha cunhada, contou, e minha cunhada me contou que o Duda andava de chamegos com Nocreto Correia, sujeito bem apessoado. Mas todo mundo sabe que o Nocreto era território de Norberto Barbosa, tá certo, nem todo mundo, mas os mais chegados, se é que o sinhô me entende, certamente sabiam.
tava de paixonite pelo Nocreto Correia?! Só o
Norberto Barbosa, que também caía em dengos com o bonitão. Afinal, Nocreto era fazendeiro, viúvo, sem filhos, alto, com cheiro de cabra macho... mas era só o cheiro. Sucedeu que o Manoel Duda, depois do imprevisto com Quitéria e Clarinha foi aparado pelo nobre Nocreto. Duda passou a ser peão da
fazenda e já havia inté se mudado pra lá. Norberto Barbosa, da vendinha da vila vizinha, já tava enciumado e achando que ‘tinha caroço nesse
angu’.
Quando
descobriu
as
chumbregâncias dos dois, foi tirar satisfação com Nocreto – que era dele, antes de aparecer um cabritinho mais moço. 5
Não sei como é que os três foram parar de lesco-lesco pelas pedras da fonte, Norberto Barbosa é um homem possessivo. É certo que Nocreto tem o fogo de uma salamandra, e Manoel Duda também não é de se jogar fora, mas se tratando do ciúmes de Norberto uma safadeza a três me parece uma idéia insustentável. Como eu já falei antes doutô não tenho nada a ver com a vidas dos outros, mas essa história de Manoel Duda ficar de chumbregâncias, não sei não. Depoimento transcrito por MB
Nocreto apresentou os dois. Depois de muito ciúme, passaram a viver juntos; os três. E eles
iam, em muitas vezes, à fonte, onde conversavam e, abraçados, ostentavam aquela natureza bonita Depoimento de Padre Juscelino
que Deus tinha dado pra eles... No dia do ocorrido, tava quente por demais e eles não pensaram duas vezes em ir à fonte, ouvir o barulho da água e se refrescarem juntos. Mas não agüentando os hormônios e a adoração, saíram os
três de ‘lesco-lesco’ pelas pedras. Liodalva, que ia em direção da fonte pra fazer sua oração, ouviu um barulho estranho. Chegou mais perto, atrás da moita, e gritou com o que viu. Os três se assustaram e logo trataram de explicar pra bela Liodalva o que acontecia. Liodalva, carola e intolerante que é, resolveu acusar o primeiro que vira pela frente, e fazê-lo pagar
por
aquele
pecado-de-morte
que
cometiam. E, em nome de Deus, rasgou as roupas e berrou com todas as forças. A multidão que vinha atrás dela correu para ver o que acontecia. Duda tomou a culpa em amor aos dois e disse ser o feitor daquilo. Os dois foram as testemunhas do falso acontecido. A história foi aceita, mas ainda muita coisa rolou; inclusive, as bolas do Duda, coitado. E, por pouco, não foi também a cabeça de Liodalva, que não
Meu filho, eu como homem de Deus prefereria não falar mais nesse assunto, o povo de minha cidade já sofreu demais por conta do acontecido. Eis aqui a prova concreta de que o mal tenta seduzir a todo instante, aquele que não segue firme no caminho do senhor está sujeito a cair em tentação. Já fazia um tempo que eu tentava alertar o pobre Manoel Duda a respeito de seus praticados, mas ele insistia em não me dar ouvidos. É o que falo em todos meus sermões, quando o diabo não vem manda o secretário e dessa vez foi o Nocreto Correia que assumiu tal papel. O Senhor me avisou para orientar Manoel Duda, e com essa intenção que pedi para Lidoalva, moça que eu conheço desde a infância, para que tentasse aconselhar seu irmão, já eu não tinha obtido êxito nisso. Não é segredo que Lidoalva queria ser freira quando mais nova, eu particularmente acho que ela seria exemplar se tivesse seguido essa vida, mas apaixonou-se.
agüentando a pressão da consciência, fugiu; já desquitada de Xico Bento. 6
Historieta Narrada por H.
Depoimento transcrito por MB
Sergipe, 18 de novembro de 1837
Depoimento de Ferdinando
Caros possíveis leitores,
Sei que circulou muita cascata pelo acontecimento da prisão e posterior capação de Manuel Duda. A história que contarei aqui é verdade verdadeira,
fato verissíssimo. Conheci por muito tempo Xico Bento, desde a pequenagem já nos afeiçoamos, o que nos levou a virarmos compadres. Só que essa atrocidade toda mudou tudo, conto isso porque um dia fomos como irmãos, hoje somos quase desconhecidos. Compadeci-me de Manoel Duda, cabra que pagou pela falta de hombridade de seu contratante. Mas contemos a história completa, vamos aos fatos. Xico Bento era comerciante rico, desde pequeno já sonhava em casar com mulher direita e ser homem de posses, deu dois tiros certeiros. Transformou a velha mercearia de seu falecido pai em um comércio abastado, ainda se matrimoniou com Liodalva, moça bela e pura. Enganou-se o que achava que a vida de Xico seria só de encantos. Algum tempo depois do casamento, no qual tornamos cumpadres, a prosperidade do comércio diminuiu (acho que por olho gordo) e, para piorar, Xico passou a desconfiar que Liodalva
Lindoalva sempre foi dada aos prazeres da carne, eu sei disso porque tivemos um namorico juvenil. É verdade que ela gostava das coisas da Igreja, mas gostava ainda mais do lesco-lesco que a gente fazia por detrás das moitas. Quando veio me falar que iria ser freira eu lhe disse que era uma coisa que não ia durar, não durou. Ela trocou a santidade pelo casamento, o que pra mim não foi uma boa escolha, mas cada um sabe do que faz. Se bem que Lindoalva não sabia, eu sempre tive para mim que ela não era mulher de um homem só. Não que ela tenha me metido um par na testa, comigo ela era só amores, mas aquele Xico Bento?! Ele não é homem para segurar Lindoalva. Não quero falar de assunto que não me convém, mas quando Adeovaldo me disse que ela andava lhe conferindo olhares vi logo o par enfeitando a cabeça de Xico Bento. O corno desconfiou e quem acabou pagando o pato foi o pobre do Manoel Duda que não tinha nada com o assunto. Como eu disse doutô, conheço a rapariga de longa data.
tava lhe corneando. Depoimento transcrito por MB.
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Veio tratar comigo dessa história. Disse-lhe para averiguar direito, pois, caso se confirmasse o adultério, era caso para ser tratado a base do tiro. Dias depois, Xico veio me dizer que contratara um cabra para tratar do caso, nome dele, Manoel Duda. Eis que na noite do dia 11 do mês de Nossa Senhora de Sant'Ana, Manoel Duda, exercendo o ofício pelo qual fora contratado, encontrou Liodalva em pleno ato adultero com funcionário do comércio de Xico, o Adeovaldo. Manoel Duda travou batalha com Adeovaldo, no entanto, deixou o salafráio escapar. Quando voltou para ter com Liodalva, apareceu a dupla Norberto e Nocreto (dizem que eram baitolas) que certamente se assustaram com a cena. Logo que Manoel Duda iniciou a tentativa de explicação, Xico Bento surgiu e o acusou de estupro. Norberto e Nocreto o imobilizaram e o levaram a cadeia pública, o resto da história todos já conhecem. Sobre a atitude de meu ex-cumpadre, penso que receou ser conhecido por corno, afinal, Nocreto era fazendeiro conhecido e um cabra muito fofoqueiro. Minha velha amizade com Xico acabou depois disso, além de ter acusado um inocente, ainda era corno. De Adeovaldo, soube que andou disfarçado, era conhecido por Zé Boneca. Tempos depois, Xico descobriu e tentou matá-lo, não conseguiu e ainda voltou aleijado, tomou tiro nas bolas. Concluo este breve relato a dizer que o deixo, antes de partir para Pernambuco, para fazer justiça. Apenas o descobri em detalhes recentemente (como fiz não preciso contar) e o transcrevo aqui com sinceridade.
José Januário
Carta transcrita por Zé do Trilho 8
Depoimento de Rosalinda Não suporto mais falar da desgraça que sucedeu com meu marido doutô, mas como o sinhô disse que isso pode ajudar meu pobre Duda resolvi falar. Não que seja possível recuperar o que lhe tiraram, mas pelo menos sua honra vai ficar lavada. Meu marido é homem trabalhador e honesto, o que fizeram com ele foi mais que injustiça, foi uma judiaria. A culpa não é dele se aquela mulher do Xico Bento é uma sem vergonha, e o próprio é um covarde. Acho mesmo é que foi merecido o chifre que lhe colocou. O que aconteceu é que o corno tava com a testa coçando e contratou meu marido para vigiar a mulher. Quando o Duda encontrou a desavergonhada em pleno ato libidinoso com um tal de Adeovaldo, ele se viu tomado de uma raiva de um tamanho que eu nem sei como explicar e partiu para cima da pecadora. Quando Xico Bento chegou e viu meu Duda em cima da mulher dele tratou de dizer que foi tentativa de estupro pra escapar da fama de corno. Depoimento transcrito por MB.
O que a curandeira tem a dizer. Naquela noite do dia 11 do mês de Nossa Senhora de Sant'ana, lembro-me bem! Estava eu perto da fonte, donde se adrenta na mata. A lua era cheia, e o silêncio do breu fora rasgado por uns barulhos que ouvia-se de longe, será que era da noite? Por vezes me pergunto se os barulhos que ecoavam em meus ouvidos eram augúrios da mãe noturna. Não sei se o Sr. sabe Doutô, quando a noite grita, é por mô de que alguma desgraça vai se assuceder, assim aprendi com minha finada vó que era mulher que sabia das cousas, benzia que era bonito de se ver, não tinha mal que vó não desse jeito. Naquela noite sagrada eu me preparava para o ritual da mãe noturna, mãe noturna é a protetora dos desvalidos, dos desesperados e também traz desgramação pra vida das pessoa que manga dela, o que graças a Deus não é o meu causo. Eu sou muito Católica e devota de Sant'ana, mas apesar da minha fé na Santa Madre Igreja, carrego em minhas víceras o dom da magia que herdei de minha finada vó, e que nunquinha tinha usado por mô de ter medo do “povo do outro lado”, o causo é que há dez anos atrás me vi numa encruzilhada, eu emprenhei e não tinha concebido matrimônio, veja só Doutô a desgramera em que me meti, minha mãe e meu pai me expulsaram de casa, minha vózinha já era finada, mas há tempos tinha me passado seus “segredos”, carrego até hoje dentro de mim seus ensinamentos, e de todos eles, o da mãe noturna é o que mais me anima e me dá forças pra aguentar as artimanhas dessa vida.
Depoimento de Pafuncia A Dona Matilde? Ih Doutô, aquela é mocumbeira. Não sei o que ela andou dizendo pró Sinhô, mas se eu fosse o Doutô eu não dava trela pro que ela fala não. Chegou aqui faz uns anos com uma filha no bucho e sem marido. Dizem que nem o pai do bacuri quis saber dela, eu já tenho minhas dúvidas se ela sabe quem é o pai da cria dela. A pobre da menina inté que é ajeitadinha, dizem que é boa moça, coitadinha não tem culpa da mãe que tem. Assim sobre o caso do Manoel Duda eu não sei nada, não. Me contaram que ele não é mais macho, isso é mesmo uma desgramera na vida de um homem. Mas eu não conheço ele não, nem a outra desavergonhada que tava se enroscando no cabra. Na verdade não quero nem saber dessa história, pra mim quem +e metido com sem vergonhice tem mesmo é que aprender o que é bom pra tosse. Eu vim aqui falar com o Doutô porque fiquei sabendo que aquela macumbeira andou vindo aqui. Eu me arresolvi vir pra mó de alertar o Sinhô pra não acreditar em nada que aquela lá falar. Depoimento transcrito por MB.
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Mãe noturna jamais deixa a mercê uma pobre alma desgraçada! Saí de casa com a roupa do corpo e me eu o pai da minha cria também não quis pus na vida, saber da gente, disse que como eu tinha perdido minha pureza com ele poderia ter sido com qualquer um, e quem garantiria que ele era o primeiro? O fato é que minha barriga crescia e que ninguém me queria por perto, assim deixei Olho d’Água Grande pra traz e nunca mais regressei, vim pra cá prenha e sozinha, e desde então tenho um pacto com mãe noturna. Como eu ia dizendo, me preparava pro ritual da mãe noturna, pois graças a ela minha cria nasceu com saúde e já tá menina-moça, ela é minha alegria,esperta que só ela. Então na boca da noite fui pra mata, lá pras banda da fonte, adentrei fundo naquela escuridão, cheguei ao pé do cajueiro e fui ter com mãe noturna como faço em toda lua cheia, pois é quando ela aparece. Agradeci e me mantive no coração da mata por um bom tempo, fazendo minhas obrigações que não cabe relatar aqui, pois segredo é segredo e com certeza mãe noturna não ia gostar nada, nada, que eu desse com a língua nos dentes sobre nossa ligação, que é muito íntima e profunda, não posso contar os detalhes Doutô, mas por fim, eu ia saindo da mata a lua estava lá há lumiar, era tão linda, radiante, e o sereno que caía de mansinho, banhando o verde da mata, servia pra refrescar a quentura que fazia, seguia com meu passo leve e tranquilo, quando derepente comecei a ouvir uns barulhos que vinham da direção da fonte,
Depoimento de Jupira Pois é Doutô, eu tava lá embrenhada no meio da mata na noite de acontecido. O Sinhô sabe né Doutô minha casa fica na entrada do mato, e eu não sou dos luxos, minha casa funciona na base do lampião mesmo, e tenho um fogãozinho de barro pra mó de esquenta minha comida. E nesse noite eu tinha entrado no mato pra buscar lenha. O Sinhô sabe né Doutô, não me serve a lenha de perto da fonte porque ela é sempre muito úmida. Mas eu tinha que passar por aquelas bandas pra chegar onde tem a lenha boa. Eu não vi nada Doutô, mas ouvi uns barulhos meio estranhos, uns respiro engraçado. O Sinhô entende né?! Eu conheço bem a mata, mas também não ou boba de ficar lá esperando pra descobrir o que podia ser aquele barulho. Me apressei pro rumo da minha lenha e voltei pro seguro da minha casa. No outro dia é que encontrei a Dona Matilde escondida no meio de uns troncos, ela tava bem assustada. Levei ela pra minha casa pra ela se acalmar e aí é que ela me contou o que se assussedeu. Eu não conheço a Dona Matilde, e ela também não é minha amiga, e também nem sei quem é esse tal de Duda. Vivo no meio do mato Doutô e não quero saber dessas prezepada da cidade. Vim aqui porque o Sinhô me pediu para falar da Dona Matilde, e ela me pareceu tá falando a verdade. Depoimento transcrito por MB.
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parecia uma agonia, um respiro pesado, nesse instante senti uma palpitação no peito, uma gastura, olhe só Doutô me arrepio toda só de lembrar, então resolvi segui em frente rumo à fonte, com mais velocidade no andar, meu passo já não era tão leve como fora a princípio, e até o som do pisar nas folhas secas me intrigavam de alguma forma que não sei explicar com as palavras, sei que sentia... fui com o coração na boca, a mão tremia toda e por hora me dava uns arrepios que começava nas cadeiras e subia até o meu cangote, mas fui, continuei, quando avistei a fonte, dei um passo para tráz, parei, respirei fundo e firmei a vista, tão logo apercebi um cabra e uma rapariga, não sei dizer onde começava um e terminava o outro, parecia cobra comendo cobra, nunca meus olhos viram coisa dessa natureza, fiquei parada, igual estáutua na surdina, há observar, não tive dúvida eles eram amantes, e celebravam o amor, ao menos naquele instante eles se amavam, só podiam se amar! Eu Doutô por um momento me deixei levar pela curiosidade e fiquei há assuntar, aquela visão dos dois me deixou saudosa de minha mocidade... tempo que não volta mais... Em meio aos meus devaneios algo estranho aconteceu, de um tudo os dois se apartaram e estavam como vieram ao mundo, mas logo se recompuseram, mas não tardou e voltaram a se arretar, tão logo se enroscaram novamente e arrancaram suas roupas, ele a dela e ela a dele, pareciam outra vez com as cobras. E eu lá quase sem fôlego, paradinha, pensando, há quanto tempo não me enrosco num cabra? mas isso é outra estória! De repente a rapariga começou a gritar, mas não era grito de quem tá desesperada, era grito de outras cousas, sabe como é né Doutô, era a influência da lua cheia e da mãe noturna, que tava por aquelas bandas. A rapariga gritava de praser, de praser Doutô!
Depoimento de Mariazinha Boa tarde Doutô, me falaram que o Sinhô queria falar com eu? E também já sei que veio um bando de gente falar mal da minha mãezinha pró Sinhô. Deixa eu falar Doutô tem muita gente ruim aqui. Falam da minha mãe por conta de eu ter nascido sem pai. E se o Sinhô quer saber, eu sou muito é feliz de não ter conhecido aquele que se diz homem e deixou minha mãezinha sozinha com eu na barriga. E além de tudo tem essa cousa de chamarem minha mãe de macumbeira. Mainha é muito da católica, faz suas rezas todas as noites pra Senhora Sant´Ana. Ela tem a ligação dela com a Mãe Noturna, que só trouxe o bem pra gente. Quem fala da Mãe Noturna é porque não tem conhecimento daquilo que tá falando. Minha mãe só faz o bem pras pessoas, posso inté te apresentar o povo que ela curou por conta dos conhecimentos que ela herdou da vozinha dela. Eu inté falei com ela pra nã se meter nesse confusão da tal de Lindoalva. Mas ela insistiu que a pobrezinha não merecia passar por toda essa desgrameira. Pra tu ver Doutô como minha mãezinha se apreocupa com os outros. Depoimento transcrito por MB.
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Só que o inesperado aconteceu, e da imensidão da noite surgiu um par de vultos, eram dois cabras, que foram ao encontro do casal que se enroscava, mas foram de supetão chegaram gritando, injuriados, um deles que vim a saber ser o tal do Nocreto Correa, pegou o cabra que estava no enrosco, e que vim saber se tratar de Manuel Duda, pelo gogo e o arrastou dali, e o outro cabra, que soube ser o Norberto Barbosa, chegou a esbofetear a cara da rapariga, coitadinha, que soube se tratar de D. Liodalva, ela pos-se a chorar e a gritar muito, seus gritos e choros ecoavam pela mata, não se ouvia nesse momento um piar de passarinho, apenas a lamentação da rapariga, eu bem que queria acudir, mas sei que fui covarde, já tive minha má sorte na vida e tenho minha menina pra criar, só sou eu e ela, fiquei com medo, aqueles cabras pareciam endemoniados, eu sou tão miúda, não ia dá conta deles, me refugiei na mata e chamei pela minha mãe noturna, chorei calada até o amanhecer, e só depois do raiar do dia retornei há minha casa, porém agora eu vim cá Doutô pra falar a verdade, sei que contaram muita mentira, sei que já passou um mês do acontecido, sei que D. Liodalva tá passando por maus bocados e que é uma tristeza só, sei que é tarde, sei que Manoel Duda já não é mais macho, pobre diabo, mas sei também que era amor o que eu presenciei e que quando a noite grita não tem salvação, agora é entregar a sorte pra mãe noturna pois é ela quem cuida da vida de quem a vida não quer cuidar*. *Depoimento de Matilde Maria de Jesus, 35 anos, mãe solteira e curandeira. Registrado pelo escrivão Sebastião Gumercino em 25 de novembro de 1833 na Comarca da Vila de Porto de Sergipe.
Depoimento transcrito por Flor do Cerrado 12
Depoimento de Seu Leopoldo Aquela Matilde é um bicho estranho, vive imbricada dentro do mato pra mó de fazer aquelas coisas dela com a tal da Mão Noturna. Eu não acredito nessas coisas, mas o povo fala. E pra não arriscar não me meto com essas coisas do outro lado. Dizem também que ela cura as doenças do povo que procura por ela, mas isso aí eu também não acredito muito não. Pra mim isso é cousa que o povo fala e só. Tem gente que acredita em cada cousa né Doutô. Na verdade verdadeira Doutô eu acho que aquela Matilde é meio desmiolada, não dá pra acreditar muito no que ela fala não. Coitada, é boa gente. Mas não conhece muito das cousa do mundo não. Provavelmente ela imaginou que viu o pobre do Manuel Duda se enroscando no meio do mato com a Dona Lindoalva. Eu sou muito amigo dos dois e sei que eles nunca fariam uma cousa dessas. Isso tudo foi uma grande confusão que acabou na capação do compadre Duda, fato que não pode ser revertido, mas o que é se pode fazer agora né Doutô. Depoimento transcrito por MB.
Horla e eu Depoimento de Viriato
E o mundo jaz no maligno. E o maligno escureceu a mente do cabra, do cabra Manoel, Manoel Duda. Nocreto Correia e Norberto Barbosa são os que se dizem testemunhas do fato. Esquecem-se eles do ante-fato. A culpa é do outro! O outro é quem engendrou a situação. Ele é quem... Vamos nos ater, primeiramente, aos ante-fatos: Fala-se da conduta promíscua do cabra, mas não se comenta como foi sua vida - vida? semi-vida - e o que o levou a “cometer” o delito. Não julgueis para que não serdes julgado – disse um famoso judeu. Rejeitado por quase toda família, o sujeito também não foi lá muito do bem aceito com as moiçolas de sua cidade. Também pudera: seus traços rebuscados e seus gestos rudes não lhe conferiam o título de gentleman que hoje se exige (culpem as revistas de moda!). Longe de tudo e todos, resignou-se na labuta. E para quem não sabe ou ainda não se deu conta, a labuta é, por vezes, a arte do não pensar. E continuando a não pensar foi levando sua vidinha. Até que surge a desgraça. O engenho em que trabalhava faliu. Assim como o cabra. E como vovó já dizia: “cabeça vazia, meu neto, é oficina do Diabo!”. E o vazio apareceu... Vazio da cabeça, do estômago. Além de desempregado, o autor desse causo quase esquece de falar que o acusado era órfão de pai. Com seu mísero ganha-pão (que, na verdade, era um ganha-nada), sustentava a mãe e os dois irmãos mais novos. Mágoas precisavam ser despejadas. Rancores também. E foi no bar do Equilibrista que se tornou bêbado. E lá, além de ébrio, tornou-se amigo de uma (e somente uma) pessoa: 13
O tal do Horla? Conheço sim. Não sei de onde o cabra vem tampouco se tem família, ou lugar donde morar, eu sei é que vivia lá no Bar do Equilibrista. Bebia feito ninguém, não sei como o rim daquele cabra aguentava tanta cachaça. Cabra dos bom aquele, além da garrafa na mão tava sempre com uma moçoila à acompanhálo. Oh Doutô, o Sinhô não fala isso pra minha mulher mas esse tal de Horla é meu orgulho. Era sempre uma cabritiha mais linda do que a outra que tava do lado dele. Cabra dos bons Doutô, cabra dos bons. Se eu frequentava o Bar do Equilibrista? Não Sinhô Doutô, cruz e credo se minha mulher descobre que eu já entrei naquele recinto. Eu só passava pela frente daquele antro quando tava voltando do trabalho pra casa. Mas o povo fala né Doutô, e é assim que a gente fica sabendo das coisas. Já o tal do Manoel Duda, nunca dei muita trela pra ele não. Sei que ele vivia colado na barra das calças do Horla, parece que era uma espécie de aprendiz. Um mal aprendiz pelo que andam dizendo: quem nem macho o pobre é mais. Depoimento transcrito por MB.
Horla. Nos momentos difícies de sua vida, conversas de botequim rolavam entre essa dupla. Horla, o mesmo Horla que Manoel acreditava ser o sobrinho de Xico Bento, ex-amigo de Nocreto e Norberto. Foi através de Horla que o cabra Manoel conheceu a vida. As francesinhas, as ruivinhas. Todas foram apresentadas - através do inseparável amigo Horla. Maria Madalena, mulher de Xico Bento, fora também apresentada ao Manoel por Horla. Pelo menos ele acreditava nisso. A cobiça. Pecado capital que, aos olhos do cabra Manoel, nunca tinha sido o seu favorito. Mas começou a repensar no caso – e muito bem repensado. Isso porque o sujeito começou a se engraçar com Mª e seu todo: olhos de ressaca, jeito casual. Não era bela, todavia o atraía – e bem quisera possuí-la. Não como posse, nem propriedade. Possuir a sua atenção. Um minuto, apenas isso. Noutro dia desses o Cabra Manoel se aprochegou a Maria. Não tinha nada a perder (mas o que teria ele a ganhar?) e, assim, foi. Ganhou o respeito dela e comentários, entre os dois, surgiram. Certo momento comentou o nome de Horla com a mulher do sujeito Xico Bento. Não, dizia ela, eu não conheço o raparigo; como não, Mª? Ele é quem nos apresentou, disse Manoel. E agora, José? Nessas horas, pensou o “acusado”, nem o José pode me ajudar. Nem José, nem Nocreto, tampouco Norberto. Não, Horla não poderia ser um sonho. Maria talvez fosse. Manoel também. A existência deles talvez não fosse real. Talvez o real esteja em crise. Crise de identidade – e por que não? Invenções podem também não ser fictícias. Depende. A combinar... Historieta narrada por L! 14
Depoimento de Euclides Horla? Isso é história da carochina Doutô. Não acredito que o Sinhô, sendo assim tão inteligente caiu nesse história pra boi dormir. O que aconteceu é que o tal do Manoel Duda, esse que perdeu as bolas, depois do acontecido deu para beber. Também pudera eu também iria passar o dia na companhia da querida amarguinha se eu tivesse na situação desse vivente. Não tem um dia que o Duda não passe no Bar do Equilibrista pra esquecer as mágoas dessa vida. E o Sinhô sabe né Doutô, que o vivente quando bebe demais não sabe mais o que é verdade o que não é. Tem sujeito que depois de um litro de Velho Barreiro acha que é Cristo e que tá na Terra pra purgar os pecados da humanidade, pobre alma, não purga nem os dele. O Manuel Duda inventou o Horla, e eu já sei de um bando de bêbado que já comprou essa história e anda dizendo por aí que o Horla existe mesmo e até que o conhece. Cousa de bêbado né Doutô, o Sinhô sabe. Depoimento transcrito por MB.
Travessa em Três Tempos Aquela “rua de mão única” do andarilho de Benjamin dobrou a esquina e caiu na travessa Onde a possibilidade da experiência se alargou “no zúo de um minuto mito” pelo esbravejar de Riobaldo nos chapadões. Então a visão do andarilho clareou todas as palavras perdidas na rede do pescador. E toda linguagem, deu conta de nomear tudo, como Funes o memorioso não suportou e a narrativa tornou-se o único sentido da existência. Sentido que se confunde no tempo e, por vezes, foge dele. Futuro, presente, pretérito; perfeito, imperfeito, mais-que-perfeito: verdade fora do tempo! Insensatez perene, numa periodicidade recorrente de revistas, vistas e revistas, visitadas e revisitadas. Continuidade em um fluxo, como uma constante que perpassa conhecimento, que divide experiências que simbolicamente narra diferentes caminhos, diferentes travessas, outros planos, prismas, histórias em perspectivas. Outros homens, mulheres, crianças; outras pessoas, animais, trecos; outros malandros escondidos, sujeitados a ter a cabeça nas nuvens e os pés no chão, como outros tantos, como a gente, como o clareamento na visão do andarilho, enrolando-se no fio da memória e na linha do tempo. Três aprendizes, um bocado de palavras sem sentido, agregando outros aprendizes com diversos sentidos e outras palavras. O encontro se dá na travessa, regados à bebida amarela que traz memórias, micros, macros, estas, outras, aquelas, de antes, de agora, de depois; juntam-se, separamse. 15
"Chegou a conseguir palavras belíssimas: palavras de ninguém conhecidas, sons tropicais, tons frágeis, significados equívocos, de assonâncias inesperadas, de ritmos únicos; palavras crípticas e hermenêuticas, palavras abertas como a claridade da manhã, fonotemas noturnos, sintagmas luminosos, verbos do amanhecer, adjetivos marinhos, superlativos desesperados, expressões terríveis e vogais transparentes" Rafael Pérez Estrada, El ladrón de atardeceres
Assim vaga o andarilho à perder-se na travessa, aquela que mesmo fugindo do pensar esquemático da casa do andarilho se mantêm plena de pensar. Eis o mistério da “rua de mão única” desvendado pelo fluxo do narrar, visto da perspectiva dos olhos do flaneur, tão bem descrito por Baudelaire, visto de tantas outras perspectivas. Reside aí o mistério, do olhar, do pensar, do narrar.
Abstrai-se da
necessidade empírica do raciocinar, e se joga na via das palavras. Assim versões, diferenças, contrastes, se unem no propósito de desconstruir as teias da verdade única, da história única; tecidas à custa de séculos de visões unilaterais. Nós aprendizes, rumamos até a travessa e lá despojamos nossos métodos, meticulosamente apreendidos.
Livramo-nos
desse
peso,
sem
esquecer que somente aquilo que é caro pesa, para que possamos clarear o olhar, perceber novos olhares. Desfrutar dessa capacidade de idear do historiador, e se não do historiador, pelo menos do andarilho de Benjamim. O que sois vós além de andarilhos vagando sem
destino, até deparar-se com a travessa? Aquela entranhada na miscelânea de tempos: futuro, presente,
pretérito.
Aquela
desvinculada
da
supremacia da verdade. Aquela repleta de pensar. Faço à vos um pedido, quando o mistério se apresentar: perceba-o.
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