Bemois de silva notas para a eternidade

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Sumário: Recorte dos jornais O dia (1907) e O Estado (1977) ......................… 02 Justiça ............................................................................................. 04 Depoimento de Inácia ..................................................................... 04 Depoimento de Florentino ............................................................... 05 Da sinfonia essencial interior ........................................................... 06 Depoimento da Flauta ..................................................................... 06 Sobre uma epístola derradeira e seu peculiar efeito ........................ 07 Depoimento do Doutor Fausto ..............………...........…….…...……..... 07 Depoimento de Raimunda …..........………….............................…........ 08 O sopro da Flauta …..….…………………………....................................... 09 Depoimento de Maria Auxiliadora .....................................………..... 09 A ladra de sons ....................… ………………………….....................…...... 10 Depoimento de João da Meia Noite ….......………………….....………….... 10 Depoimento de Dona Quitéria ......................…… ……........…….......... 11 Depoimento de Miguel .................................................................... 12 Minha versão .................................................................................. 13 Depoimento de Mercedes ............................................................... 13 Depoimento de Afrânio ................................................................... 14 Uma [breve] referência biográfica! ……...……………………….................. 15 Indicações da Travessa .................................................................... 15 Para participar da Travessa .............................................................. 17 Ficha Técnica ................................................................................... 19


Recorte dos jornais O dia (1907) e O Estado (1977) A nossa sociedade, tão pobre de distrações artísticas, vai ter dentro de poucos dias o prazer de ouvir um flautista de raro merecimento. Referimo-nos a Patápio Silva, chegado anteontem do Norte. Apesar de moço ainda, Patápio Silva não é, no nosso acanhado meio musical, um nome desconhecido; os ecos de seus brilhantes sucessos na Capital Federal e em São Paulo já tinham percutido entre nós, trazendo-nos vitoriosamente a forma de sua grande e invejável aptidão musical. (...) Dizem os críticos que a sua flauta, mágica ao sopro duma inspiração superior, obediente, escrava duma alma sonhadora e afetiva, sabe interpretar, com poderosa maestria, os mais difíceis e delicados pensamentos musicais. Jornal O Dia, 14 de abril de 1907. “Patápio Silva – Tendo falecido hoje às 2 horas da madrugada o festejado flautista brasileiro Patápio Silva, convidamos a todos para conduzi-lo ao Cemitério Público, devendo o enterro sair do Hotel do Comércio às 4 ½ da tarde.” Boletim extraordinário publicado pelo Jornal O dia em 24 de abril de 1907 “Pungentíssima foi a triste nova que, ontem pela manhã, correu por toda a cidade emocionando deveras o coração da nossa culta sociedade: a morte prematura do jovem e já notabilíssimo musicista cujo nome laureado andava a passarinhar festivo de boca em boca, num forte hiato de justa e merecida admiração.” Jornal O dia em 25 abril 1907 Esmaga-me o coração ver, compreender, sentir que dentro deste horrível caixão desaparece para sempre na pavorosa escuridão deste poço, o extraordinário talento de um artista cuja divina inspiração musical já nos acostumamos a considerar uma glória patrícia. (...) Do que foi Patápio resta-nos apenas, como um sarcasmo do destino, a fina rigidez de um cadáver. Mas a terra catarinense, que não pôde ouvir os seus gorgeios divinos, saberá guardar e conservar com muito amor e carinho, os seus despojos queridos, com a saudade eterna do seu nome

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Jornal O dia. 25 abril 1907

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Sr. Redator: Com muito interesse, li o artigo do Sr. Abelardo Sousa, na edição deste matutino de domingo, 17/7, sobre o grande Patápio Silva, aqui falecido em 1907. Assisti, garoto ainda, os funerais do inditoso músico, acompanhando o féretro até o antigo cemitério público. (...) O Sr. A. Sousa por educação, por princípios éticos, aliás muito apreciáveis, não fez menção à companheira do desditoso Patápio. Belíssima mulher de origem paraguaia, parece. Também não venho, especialmente meter minha colher, mas como dizem os franceses: ‘cherchez la femme’. O Estado, 3 de agosto de 1977

O Sr. Camejo, em sua carta, usando da expressão ‘cherchez la femme’, parece haver timidamente tentado aflorar o assunto (morte de Patápio), que não ousou, entretanto, aprofundar, talvez, entre outros motivos, por não lhe deixarem os seus treze ou quatorze anos de idade, que tinha à época, discerni-lo com segurança. Falava-se na ocasião que alto funcionário do Estado, chefe de família com prole numerosa, havia presenteado a bela companheira do grande flautista com uma jóia valiosíssima (creio que anel) e que essa peça rara havia sido subtraída, pelo próprio funcionário, de alguém que era nada mais, nada menos, que sua legítima esposa, senhora de peregrinas virtudes. (...) O escabroso episódio, ‘potin’ do ano, assunto de todas as rodas da nossa então pacata cidade, teve, alguns meses mais tarde, as honras da letra de forma na ‘Gazeta Catarinense’, diário que fazia cerrada oposição ao governo local. Se o prezado professor se der ao trabalho de compulsar as coleções daquele órgão de imprensa, anos de 1907, 1908 ou 1909, existentes na nossa Biblioteca Pública, certamente ali encontrará, com abundância de pormenores, a descrição do fato a que me refiro e a citação, com todas as letras, dos nomes nele envolvidos. O jornal em questão foi, em conseqüência, ocupado e empastelado pelo Governo do Estado, o que revela a exaltação do momento, mas havendo o seu diretor obtido habeas corpus do Supremo Tribunal Federal, era de ver-se, dias depois, os pequenos jornaleiros, cada um acompanhado de uma praça embalada do exército, apregoando a venda avulsa pelas ruas e praças da Capital!

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O Estado, 21 de agosto de 1977.

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Justiça Quando eu era menino, meus maiores sonhos eram com a música. Eu tive uma professora de piano, sedutora mulher de negros cabelos, que muito contribuiu a meus desejos infantis e posteriormente de rapazote atrevido. Seu nome era Selany. Minha família apreciava a arte e tudo o que a ela fosse relacionado entrava em nossa casa. Mamãe tivera sete filhos, sendo eu o mais moço de todos. Mas eu não a conheci. Dizem que era mulher elegante e de poucas palavras. Quando eu tinha apenas alguns meses de vida, ela foi visitar uma tia minha, deixando-me em casa aos cuidados de uma criada. Já em casa de titia, ela pediu uma xícara de café. Contam-me que, quando titia voltou para a sala de estar onde tinha deixado mamãe sozinha, encontrou a mulher com a cabeça caída por sobre o ombro. Encerravase assim sua vida. Cresci, pois, criado por empregadas e tutores. Minhas irmãs estudavam em colégios internos, e eu as via muito pouco. Meus irmãos não me davam nem “bom dia”. Na minha meninice solitária, eram os sons os meus maiores companheiros. Mas eu só tocava o piano, e a custo de muita dedicação de Selany, a doce jovem de negros cabelos. Ao longo de minha vida, eu fui aprendendo a apreciar outros instrumentos, mas eu não tinha ouvido musical. Se tocava alguma coisa, era por ter estudado as partituras e a teoria musical por horas a fio. Já minha tutora, ah, ela era um anjo! Tocava o violino com a mesma maestria que tinha ao lidar com o piano. Mas nada me encantava mais que vê-la tocar a flauta. Quando ela tocava a flauta, somente para mim, como parecia uma ninfa! Seus lábios róseos encostados no pequeno tubo prateado eram para mim, o adolescente apaixonado, uma visão capaz de provocar gigantesco prazer! Ela se balançava, pagã, com os sons, coisa que só se permitia fazer estando a sós comigo, de modo que em minhas fantasias ela era apaixonada por mim... Florianópolis - Junho de 2011

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Depoimento de Inácia Eu não sei não, acho a morte desse Patápio Silva uma coisa muito estranha. Eu sei que estava tendo um surto de gripe na cidade, a saúde do povo não andava lá essas coisas. Mas veja bem, o sujeito era da elite, não ia pegar gripe que é coisa do povo. Além disso, tem outra cousa a rapariga que acompanhava o músico era esculpida pelos deuses. Ouvi boatos que teve sujeito do alto escalão do governo prometendo largar mulher para ficar com ela, enquanto o pobre coitado do Patápio tava enfurnado naquele quarto de hotel. Não sei se o senhor entende o que estou querendo dizer, mas tinha muita gente nessa cidade que ia ficar feliz com a morte do flautista. Meu sobrinho, que é a pessoa mais santa que conheço nesse mundo, depois do acontecido da morte do músico ficou dizendo pela casa que a justiça tinha sido feita. Eu acho tudo muito esquisito. Depoimento transcrito por [M.B.]


Doce ilusão. Um dia, Selany se foi. Viajara para alguma outra cidade, para não mais voltar. Casar-se-ia com o noivo que eu ignorava há anos. Nunca mais ouvi sua flauta. A partir de então, eu nunca mais toquei nada. Até que um dia meu pai chegou a casa com um bilhete. Era uma entrada para o concerto do jovem Patápio Silva, estimado flautista. A menção à flauta trouxe-me a lembrança de Selany e dos anos em que a música foi renegada de minha vida. A amargura que eu ignorara por anos aflorou em meu coração, fazendo-me taciturno por dias. Aguardava ansiosamente pelo concerto e, no entanto, eu o odiava. Só de pensar nas notas, nas músicas... Ele subjugava ambas as coisas! Queria aquele talento para mim. Queria poder possuir a música como ele a possuía. Talvez não fosse esse o ponto, talvez fosse uma questão de sentir a música, de seduzi-la, mas eu não tinha o dom. Patápio Silva tinha. Ele podia sentir o ar se esvaindo do pulmão, soprado de sua boca, o mesmo ar que, passado o tubo cálido da flauta, se transmutava em notas golpeantes. Não bastasse o talento, tinha junto de si bela mulher. Bela como o fora Selany. Certamente todos ali o amavam. Rapazes e moças. Nas ruas, nos dias antecedentes àquela bela apresentação, as crianças imitavam o ídolo com flautas de mentira – com ou sem o auxílio de varetas para lhe servirem de apoio imaginativo. Mas a apresentação não vinha. Foi adiada. E na realidade nunca chegou a acontecer. Patápio, dizia-se, fora acometido de uma gripe da qual ele não melhorava nunca. Eu desejava que ele permanecesse doente. Sentia uma satisfação macabra ao imaginá-lo a tossir violentamente, sem fôlego, sem ar – o mesmo ar que ele transformava em canção. Alguns dias depois, ele finalmente sucumbiu à doença, falecendo e deixando-nos sem a glória de sua apresentação. Senti-me culpado pela minha inveja, mas o que eu poderia fazer? Não fora culpa minha, afinal. Na verdade, eu sentia que a justiça fora feita. Historieta narrada por Belo-Mar.

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Depoimento de Florentino Eu sei que o senhor ta vindo aqui falar comigo por que o povo anda falando que o moço, aquele músico, morreu envenenado. Eu quero dizer que eu não sei de nada sobre isso. Trabalho aqui na minha vendinha para sustentar meus filhos, e um dos artigos que mais sai é veneno de rato. O senhor sabe como é o saneamento básico dessa cidade. Eu vendo outros venenos também, mas o que mais sai é o de rato. Quanto ao boato de eu ter vendido veneno para tal amante do flautista, não tenho nem como saber. Não conheci a mulher, sei o que dizem por ai, que ela era um poço de formozura. O que eu sei dessa história eu ouvi da boca do sobrinho da Dona Inácia, que vivia por essas bandas reclamando do tal flautista que tava vindo roubar os louros dos músicos locais. O menino tava revoltado, acho que até ficou feliz com o acontecido. Depoimento transcrito por [M.B.]


Da sinfonia essencial interior Pra fora da janela da sala coberta com as muito antigas e descosturadas cortinas vermelhosangue, o vento gélido e veloz uiva e parece que canta. Tira da ordem – ou será que coloca? – as folhas das árvores da rua deserta, e nessa bagunça – ou arrumação – elas cantam com ele. As pontas dos dedos nicóticos e envelhecidos que seguram o fumo e a bebida tal qual preciosidade, dos dedos macios que acariciam as epidermes de outrem, dos dedos ressecados e sujos que buscam comida e conforto e moedas pelos becos escuros daqui... todas elas esfriam. Em meio a essa canção outonal me vem o som de uma flauta. Vem de longe, de uma terra onde quase sempre faz calor e onde o vento é cálido. Uma flauta igualmente e quem sabe talvez tão mágica quanto à de Mozart, que quando escutada era capaz de trocar a cor da alma dos seres que respiram. Mas há de se notar que a flauta não vem sozinha, porque vem como o vento que uiva e canta com as folhas: escuta-se o piano, escuta-se o violino. E tudo parece e fica e é tão e tão harmonioso, afinado e doce, que os ventos todos viram um só, ameno, que só sabe fazer mexer os cabelos dos apaixonados que sorriem e sonham enquanto a música toca e espalha o cheiro das flores cinzas que achavam que estavam mortas. As pontas dos dedos deslizam delicadas sobre cordas e teclas, guiadas por Euterpe, e assim a canção faz o sol ir dormir, tornando o céu um quadro azul-amarelo-laranja-vermelho. Já cantava uma gente vestida de palhaço que “a incrível mágica acontece quando os instrumentos musicais descobrem afinidades humanas entre si no mesmo instante em que os seres humanos descobrem afinações musicais dentro deles mesmos”. Cá fora eu danço e guerreio meus dedos com os dedos de um moço que me ama e me odeia; encho suas orelhas com palavras suaves, enquanto mentalmente desejo sua morte; planejo filhos gêmeos, seus nomes e suas profissões iguais aos dos gêmeos do livro do bruxo brasileiro, mas acima disso planejo minha fuga. Uma fuga que vai ser guiada pelo vento, que vai me levar até a flauta, até o piano, até o violino, e aí então eu sei que minha alma transbordará em coloridos.

Historieta narrada por Raio de Sol Florianópolis - Junho de 2011

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Depoimento da flauta Começo esta narrativa dizendo que não sou qualquer flauta, se um instrumento musical assim como eu - pudesse receber o grau de objeto sacro, assim o fariam comigo. Sou o mais importante instrumento de sopro que esse país já viu. Não fosse eu, muito da história musical brasileira estaria perdida. Fui, em minha época, agraciada com os mais variados predicados; diziam-me pertencente a uma inspiração superior, chamaram-me mágica, atribuíam a minha alma os sonhos daqueles que apreciavam meu som. Através de mim, Patápio Silva ficou conhecido como o mais promissor flautista brasileiro. Há muito me despedi de meu dono, cujo amor por mim fez com que me levasse para o túmulo. Mas a história percorre caminhos tortuosos e para meu espanto fui surripiada de meu lugar de repouso. Deixei meu amado dono, entretanto, pude voltar ao ofício para o qual fui criada: a música. Depoimento transcrito por [M.B.]


Sobre uma epístola derradeira e seu peculiar efeito Tinha dezessete anos, isso já eram meados da década de sessenta, quando nos mudamos para Florianópolis. À força, minha mãe me arrancou o sonho de ser músico, pois para ela destino digno era ser advogado. Dizia que se me afastasse do Rio de Janeiro, eu desistiria. Era o Rio que me inspirava devaneios sonoros, boemias excessivas e onde eu sonhava que se consagraria o meu futuro sucesso. Mudamo-nos para uma mansão barata que diziam ser apenas um antigo hotel e fui matriculado – e contrariado – no curso de Direito. Revoltado pela vida que estava vivendo – acordar, respirar, aprender leis, lembrar de respirar, dormir - me entreguei ainda mais aos vícios. Bebia e fumava exagerado. Um dia, já passado quase ano de vida catarina, ao chegar furioso da aula, esvaziei uma garrafa de destilado. A passos largos e como por instinto, entrei em um dos abandonados cômodos. Bêbado, chutei e soqueei os velhos móveis a fim de descontar a fúria que me possuía. Quando enfim calmo, avistei um papel dobrado e preso no fundo de uma gaveta. Ao final da terceira linha de leitura a sobriedade estava em mim. “Creio de forma fiel que rara será a leitura deste documento. O que dedicar seu precioso tempo – se não for, faça-o ser - decifrando meus rabiscos, saberá que me deixei partir. Deixeime partir, pois insuportável era a situação de solitário estar. Quisera eu ser tudo que pareço. Cá estou, numa cama de hotel, sozinho, sem queridos – e existem? – para admirar o que sou (e não o que faço nem a forma como fiz, pois desses estou farto), jogando pela janela os remédios curandeiros de minha doença. Estou exausto de precisar sorrir enquanto penso que chorar seria bom. Uma forma de tirar parte dessa angústia incrustada, quem sabe? Tenho de admitir, porém, que já não choro. Fadei-me tanto à tristeza que, se há forma de diminuí-la, não ocorre. Na vida tive muitos aplausos e raras pessoas. Ajudaram-me alguns, sou grato, em minha carreira, em minha música. Em minha vida, entretanto, nunca. Mulheres, amei muitas e fui de Florianópolis - Junho de 2011

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Depoimento de Doutor Fausto Lembro-me bem, aquele fora o caso mais peculiar de minha carreira como médico. Florianópolis já vinha, há alguns meses, sofrendo de um surto de gripe. Um terço da população caiu enferma, os hospitais não tinham mais leitos disponíveis, a cidade estava um caos. As manchetes dos jornais revezavam entre os problemas de saneamento, a preocupação com a saúde da população e a visita à ilha do ilustre músico brasileiro, Patápio Silva. Eu mesmo já tinha adquirido os ingressos para o concerto, seria um evento a ser lembrado por gerações. Muito me espantei quando fui chamado ao Hotel do Comércio para tratar do flautista que estava de cama. Parecia mais um simples caso de gripe como os outros tantos dos hospitais da capital, receitei a medicação rotineira já pensando no que concerto seria adiado. Mas ele nunca aconteceu, o caso só piorava era como se o enfermo se desfizesse de minhas receitas assim que eu deixava o hotel. Depoimento transcrito por [M.B.]


uma que não sou mais. Deixei-me partir por saber que a minha falta não sentirão. Da minha música, quiçá. De Patápio Silva, não. E essa certeza possuo por saber que ninguém sente saudade de quem não conhece.” Florianópolis, 21 de abril de 1907. Patápio Silva” Nem ao menos sabia quem era Patápio. Um cantor fracassado, porventura? Para descobrir a biografia do flautista, tive facilidade. Claro, o Patápio, como você não sabe, essa gente do Rio de Janeiro não sabe nada, diziam os professores florianopolitanos. Ao passo que crescia o repudio de cursar Direito, mais me fascinava a história do músico. Flautista, começou de baixo, resistência do pai sobre ser músico, talentoso, contraiu uma doença inofensiva e se deixou morrer de solidão – e dessa derradeira parte só sabíamos nós. Quando um dia, ao acordar, senti que era chegada a hora. O calendário marcava dia 21 de abril de 1977 e minha mente só marcava a liberdade. Eu tinha um destino, só precisava buscá-lo. Minha felicidade estava lá, bastava alcançar. Com meu violão na mochila e a carta na mão, na porta ainda passei pelo porta-retrato que ilustrava a foto de minha mãe. De fato, eu poderia ter avisado que partiria. Mas já que não desejava o filho artista, eu não seria artificial. O Direito que ela tanto almejava para mim, agora era meu: o de alçar voo.” Trecho extraído da auto-biografia de Francisco de Cezaro, músico consagrado mundialmente e Cezar de seu próprio império, publicada em 2009.

Historieta narrada por Mª Epítoma

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Depoimento de Raimunda Nunca tinha visto um caso tão triste, fiquei sabendo que esse Patápio era famoso porque foi um reboliço danado no hotel, uns três dias antes do homem chegar as camareiras todas já estavam em euforia. Pela balburdia que fizeram eu esperava um homem esnobe e com síndrome de ídolo. Mas Patápio foi o rapaz mais simples que já vi passar pelo Hotel do Comércio. Eu fui a encarregada direta do quarto dele, fiquei feliz porque disseram que ele tocava flauta feito um anjo e eu ia ter a oportunidade de conhecê-lo. Ele era sempre muito simpático, mas o achei meio abatido. Depois ele ficou doente e eu achei que era por isso. Ele morreu aqui no hotel, eu tive que limpar o quarto, foi bem triste. Quando reunia as coisas dele encontrei uma carta que explicava porque ele parecia tão triste. Achei melhor não revelar suas memórias e escondi a carta, espero que nunca a encontrem. Depoimento transcrito por [M.B.]


O sopro da Flauta Nessa ilha se conta muita história de pescador, é difícil o sujeito saber o que é verdade o que não é; mas o que eu vou contar eu vi, ninguém me falou. Eu trabalhava na frente da venda de Seu Florentino, sujeito simples e trabalhador – aqui no bairro o povo tava tendo muito problema com rato, e o Seu Florentino se especializou na venda de venenos. Mas o reboliço maior era o novo acontecimento da cidade, que ia receber um dos maiores flautistas do Brasil. Era uma falação só do concerto do renomado artista, mas falatório ainda maior era em torno da mulher do moço. Diz que era bonita que só vendo, eu sou chegada nesses assuntos de moda e um dia fui até a porta do Hotel do Comércio para ver se conseguia enxergar a tão falada rapariga, vai que eu tinha sorte e ela estava usando um vestido maravilhoso do qual eu poderia tirar o modelo. Encontrei com ela e era realmente bonita, mas o vestido que usava não era lá essas coisas. Foi por isso, que quando eu vi aquela mulher bonita saindo da vendinha de Seu Florentino eu sabia que era a falada mulher do Patápio Silva. Achei um pouco estranho, o que ela tava fazendo por essas bandas? Fui falar com Seu Florindo e ele me disse que a rapariga tinha comprado um veneno de rato, e mais uns venenos esquisitos. Achei ainda mais estranho, o Hotel do Comércio é um dos hotéis mais chiques da cidade. Para que ela precisar de veneno de rato, e mesmo se tivesse rato lá, seria mais lógico deixar o hotel e não comprar veneno. Uns dias depois o flautista morreu, os médicos não sabiam direito do que ele tinha morrido. Fui ao enterro do moço porque fiquei curiosa para entender o acontecido. Dei um jeito de me colocar próxima da rapariga para tentar escutar alguma coisa. Quando alguém se aproximou e perguntou como tinha acontecido, ela entre as falsas lágrimas disse “foi quando ele soprou a flauta”. Pronto, eu sabia que ela tinha colocado veneno na flauta dele. Historieta narrada por Maria Bonita Florianópolis - Junho de 2011

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Depoimento de Maria Auxiliadora Essa menina é uma maluca, colocou na cabeça que foi o Patápio foi envenenado pela esposa, e tudo isso porque ouviu uma conversa minha com a viúva no funeral do falecido. Esse é o típico exemplo de quem pega o bonde andando e quer sentar na janela. Naquela ocasião a conversa que eu estava tendo com a viúva não tinha nada com a morte do Patápio. O senhor não sabe, minha querida amiga que acaba de perder o amado companheiro, também era música. A pobrezinha não agüentava mais responder as perguntas indiscretas que o povo fazia, e ainda tinha as insinuações de que ela estava tendo um caso com um funcionário do governo. Estávamos falando das apresentações de Patápio e de como ela o ajudava na hora das composições. Falávamos de música, e essa doida agora vem dizer que ouviu confissão de crime dela no enterro. Faça-me o favor. Depoimento transcrito por [M.B.]


A ladra de sons Pobre mamãe. Ela chorou um bocado, assim como minhas irmãs, mas logo perceberam que não teriam como me impedir. Sempre fui assim, avoada. Os vizinhos já falavam “- Essa não volta mais.” Estavam certos. Só voltei para a casa materna em algumas ocasiões especiais como, por exemplo, o nascimento de Miguel, querido sobrinho. Lá em Minas existe uma tradição, quase algo folclórico, que diz que se o filho não sai de casa até os 20 anos de idade ele nunca mais deixará a casa dos pais, e, caso saia antes dos 20 ele nunca mais volta. Ou é 8 ou 80, como costumam dizer os jovens de hoje. Sempre tive uma enorme sede de aventuras correndo, pulsando, por minhas veias, e isso era algo que o interior de Minas não podia me proporcionar. Para mim estava claro que eu precisaria experimentar a capital. Foi assim que cheguei ao Rio de Janeiro em 4 de maio de 1903. Fiz um pouco de tudo para sobreviver aos primeiros anos na cidade maravilhosa: engraxate, vendedora, cabeleireira, garçonete, guia turística e prostituta. Por mais que não me orgulhe dessa última é a realidade, e era necessário. Quando não estava trabalhando meus derradeiros momentos de prazer se davam sob os arcos da Lapa e seus incontáveis botecos. Mostrei-me uma grande adepta da vida boêmia carioca. A música mexia com meu íntimo, além é claro, as cervejas. Queria ser cantora, mas logo descobri que não tinha boa voz para isso. Certa noite, em um boteco qualquer, conheci um homem, do qual não me recordo o nome, mas que estava prestes a mudar minha vida. Ele me pagou umas bebidas, indagou o meu passado, mexeu em meu cabelo. Era muito mais velho do que eu e muito mais feio também. Falou que tinha acabado de vir de uma apresentação de um fabuloso flautista chamado “Patápio Silva”. Eu ri, afinal, que nome mais esquisito era aquele?! Ele me falou que o tal flautista tocava de uma forma mágica, quase que hipnotizante, algo muito próximo a Taliesin. Ele logo percebeu que eu era apenas uma menina e não fazia idéia do que ele estava ,., Florianópolis - Junho de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 04

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Depoimento de João da Meia Noite O povo me chama assim por que trabalho no turno noturno do cemitério. E antes que me pergunte eu não tenho medo de espírito não. Tenho medo é de gente viva que já vi cada coisa estranha acontecer nesse cemitério, e eu não to falando de assombração. Acontece de tudo por essas bandas, tem casal procurando por lugar exótico para ter um encontro romântico, tem aquele povo que se veste de preto e acha que é bonito passear de noite no cemitério. Mas o acontecido mais bizarro que já vi por essas bandas foi o de uma moça – muito bonita e bem vestida por sinal. A rapariga vivia pelo cemitério, rondando o túmulo de um músico famoso enterrado ai, acho que era fã do sujeito. Uma noite eu a encontrei enfiada dentro da lápide, não sei o que ela fazendo lá dentro e também não quis saber, tem cada sujeito estranho nessa vida. E eu é que não ia ficar sentindo fedor de defunto pra tirar maluco de dentro de túmulo. Depoimento transcrito por [M.B.]


falando, então resolveu, por livre e espontânea vontade, me contar a lenda gaulesa de Taliesin, o grande Bardo. Devo corrigir o que falei agora pouco. Não foi o homem que não me lembro o nome que mudou minha vida, foi a história que este me contou. O seduzi um pouco mais, ganhei mais algumas cervejas e fui embora. Nunca mais nos vimos, foi melhor assim. A partir desse dia resolvi que se não podia cantar, então iria tocar flauta, e mais, iria ser aluna desse tal flautista com o nome estranho. Descobri que Patápio morava no Flamengo e que realmente possuía alguns alunos. Fui falar com ele. Nunca vi maior cara de desprezo do que a que ele fez quando eu expliquei minha história. Bateu a porta em minha cara. Fiquei com ódio. Nunca mais nos falamos por mais que eu tenha me tornado sua fã número 1. Eu ia a todas as suas apresentações e comecei a estudar flauta por conta própria (minha primeira “querida” – é como eu chamo o instrumento – comprei por uma pechincha dos pivetes de Santa Teresa), mas isso não durou muito tempo. Em 24 de Abril de 1907 Patápio morreu. Ele tinha 27, eu 16 (quase 17), mas tinha chegado ao Rio com 13, a mesma idade do mítico Taliesin. Era um sinal do destino. Estava na hora de alguém substituir um dos únicos homens que realmente me desprezou. Fui ao seu enterro no mesmo dia e escutei bonitos e comovidos discursos de despedida: coisa fina, saiu até no jornal do dia seguinte. Jurei que um dia ainda seria uma flautista melhor do que ele. Meu aniversário é dia 29 de Abril e naquele ano resolvi me dar um presente especial. No meu aniversário invadi o cemitério onde o lendário músico está sepultado e com um plano e perícia digna dos melhores ladrões do mundo, usurpei sua sepultura e de lá tirei sua flauta (que tinha sido enterrada junto com ele). Tenho-a até hoje, é minha “queridíssima”, só a utilizo em momentos muito raros, dignos de seu ex dono. Passei 70 anos de minha vida achando que iria ser descoberta e presa por meu crime. Isso nunca aconteceu. Comecei a me dedicar como nunca ao estudo do sagrado instrumento. Em meados dos anos 20, minha aptidão como flautista já era tão reconhecida pelas ruas cariocas que fui chama Florianópolis - Junho de 2011

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Depoimento de Dona Quitéria Não gosto de me alembrar de quando trabalhei na casa da D. Larissa, ela era uma formosura só, o problema era a flauta dela. A Dona é dada às coisas da música, pois é, ela vivia com aquela flauta para cima e pra baixo, era raro quando soltava. Nesses momentos que começava meu tormento, era só a mulher colocar o pé na rua sem a flauta que eu começava a ouvir o som daquele instrumento tenebroso. Era um moço bonito que fazia aquele som, eu achava que era parente da patroa aproveitando para tocar enquanto ela tava fora já que a bicha era ciumenta com aquilo que só vendo. Eu não sou de me meter em briga de família e deixava o homem tocar em paz, mas a patroa desconfiava que alguém mexia na flauta. Um dia tive de perguntar qual era o nome dele, quando disse pra patroa que era o Patápio que mexia nas coisas dela, me chamou de louca falando que ele morrera há mais de 60 anos. Depoimento transcrito por [M.B.]


chamada para fazer parte do recém formado curso de música da “Universidade do Brasil” (hoje UFRJ) como professora de Harmonia. Dali em diante não parei mais. Hoje, com meus 87 anos, sou professora aposentada da Universidade de Berlim e na semana que vem estarei em Londres onde irei auxiliar na regência da orquestra da cidade que irá executar uma péssima obra de Tchaikovsky, o Lago dos Cisnes. O velho russo bêbado já escreveu melhores composições, mas as pessoas adoram essa só para poderem ver as bailarinas esbeltas dançando em seus tutus com suas coxas grossas. Essa peça não merece a presença da “queridíssima”. Fiquei sabendo por meio de fontes confiáveis que no Brasil, em Santa Catarina, está havendo um rebuliço sobre a vida amorosa do mestre Patápio. Que patético! Garanto que isso irá ser esquecido assim que essa minha biografia for publicada, afinal, estou tratando de fatos muito mais importantes sobre a vida, ou melhor, a morte de Patápio. Vocês devem estar se perguntando: agora que revelei meu segredo, irei devolver a flauta para a família do músico? É evidente que não! Quem quiser ficar com a “queridíssima” terá que violar minha sepultura assim como eu fiz com Patápio muitos anos atrás. Veja bem, eu não sou uma má pessoa, mas tenho a convicção de que os músicos geniais, além de muita dedicação e talento, são feitos de caráter! Beethoven não continuou a tocar e compor, mesmo surdo, porque tinha talento, mas sim, porque tinha caráter! E é preciso ter muito caráter para violar um tumulo. Aceitem isso como um pequeno teste, meus futuros aprendizes. Nunca serei tão boa quando você, mestre Patápio. O saúdo e o desprezo. Descanse em paz e saiba que a “queridíssima” está em boas mãos. Larissa Ribeiro de Górgias, Berlim, 30 de Outubro de 1977 Historieta narrada por Posseiro das Palavras

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Depoimento de Miguel Minha tia sempre foi meio esquisita, vovó conta que ela saiu de casa muito cedo, o que não era bem visto na época. Ela passou um tempo no Rio de Janeiro e sabe-se lá o que aconteceu por aquelas bandas. Existem boatos na família, mas eu também não quero saber, por que afinal de contas não tenho nada com isso. A titia queria ser famosa desde nova, conta que tentou ser aluna do maior flautista de todas as eras – palavras dela – mas o cara não quis saber de dar aula para ela. Eu pessoalmente acho que foi aí que ela despirocou de vez, ficou obcecada pelo sujeito – ela não estava acostumada a ouvir um não. Seguiu o pobre por todo a país, aonde ele ia ela ia atrás, o seguiu até no enterro. Hoje em dia ela diz que a flauta que ela toca era dele, que roubou corajosamente de seu túmulo. Duvido muito dessa história, por outro lado, quem duvida das maluquices da minha tia, corre o risco de ser mais doido que ela. Depoimento transcrito por [M.B.]


Minha versão Guadalupe é o meu nome. Sou eu a “mulher de origem paraguaia”, a “mulher do desditoso Patápio”, como me chamou o jornal na época. Alguns anos se passaram desde a morte do meu marido e agora sinto que já posso falar sobre o que aconteceu. Naquele momento a dor era tanta que não pude dizer nada. Deus ter levado meu amor assim, tão de repente, me pareceu até castigo. Por um tempo achei que merecia isso. Algo deveria ter feito pra que uma desgraça deste tamanho acontecesse. Pensei muito. Tentava buscar a razão da minha penitência. Depois, achei que Deus era mesmo um injusto, porque simplesmente não consegui achar a origem do meu castigo. Ele talvez estivesse só se divertindo com a vidinha da gente aqui na terra. Agora, cansei de tentar encontrar motivos. Vou apenas vivendo a vida, um dia de cada vez, na esperança que a dor míngüe. Resolvi contar a nossa história porque quando tudo aconteceu não fui capaz de dizer nada. Deixei que as pessoas falassem. De mim. Dele. De nós dois. Falaram o que quiseram. E na maioria das vezes, não eram verdades. Quiseram até me culpar pela morte. Fui acusada de adúltera, traidora, interesseira, e tantas coisas mais. Disso tudo, nada me doeu. Porque ele me conheceu e sabia quem eu era. O que realmente me magoou foi a insinuação de que eu não era sua esposa. Esposa legítima, perante Deus e a justiça. Quando diziam “mulher do flautista”, não diziam a esposa, a Sra. Patápio Silva, era simplesmente “a mulher” ou a “companheira”.

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Depoimento de Mercedes Sou enfermeira desta casa de repouso desde que completei meus estudos. A enfermagem é um trabalho difícil, a gente acaba convivendo com muita tristeza. Para você ver, a maioria dos que estão internados aqui não tem mais nem família. Essa moça paraguaia mesmo já faz anos que está internada, nunca ninguém veio visitá-la. O que eu sei, é que ela era estudante de música no Paraguai, um prodígio, veio para o Brasil para fazer uma especialização na música de Patápio Silva. Parece que ela tinha um namorado que a receberia no Rio de Janeiro, mas o rapaz arrumou outra e deixou a pobrezinha sozinha e sem lugar para ficar. Ela perdeu a cabeça com isso, e veio para Florianópolis dizendo que era mulher do tal de Patápio. A gente bem sabe que o sujeito tava acompanhado de uma paraguaia quando esteve por essas bandas, vai ver é por isso que ela acha que é a dona. Mas isso também já faz muito tempo. Depoimento transcrito por [M.B.]


Inventaram coisas sobre o nosso passado, sobre como nos conhecemos e sobre os lugares de onde ele teria me tirado. Inventaram ainda as histórias que teriam me levado a matá-lo. Tudo pela promessa de uma jóia, que um tal senhor importante teria me dado. Pois a verdade é que nunca recebi jóia alguma. Nem mesmo conheci o senhor. A verdade é muito mais simples do que as pessoas queriam acreditar. E, com certeza, muito mais simples do que aquilo que o jornal queria publicar. Então, agora eu conto a minha versão. A única verdadeira sobre quem eu sou e como começou a nossa vida juntos. Alguns podem ficar decepcionados, não tem a aventura que imaginavam, nem os detalhes picantes. Sem bordéis, bebida, jogo, fuga. É só uma história de amor comum, de um casal comum. Aí vai. Sou mesmo Paraguaia e também esposa do flautista falecido. Nos conhecemos em Assunção há alguns anos. Assisti a um concerto do Patápio e me apaixonei pela música. Fomos apresentados por um amigo depois da apresentação e me apaixonei por ele ali mesmo. A conversa toda não durou mais que dez minutos. Elogiei sua música. Ele elogiou meus olhos. Ele me ofereceu uma bebida. Eu agradeci. Uns segundos em silêncio. Perguntei se ele ficaria muito tempo na cidade. Ele disse que dependia de mim. E me perguntou se eu o acompanharia. Intrigada, quis saber para onde. Ele me disse: pela vida. Historieta narrada por Stra. Mirtilo

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Depoimento de Afrânio Primeiramente, quero que entendam que a culpa de Guadalupe estar dessa maneira não é minha. Veja bem, eu nunca lhe prometi amor eterno e a idéia de se mudar para o Rio de Janeiro foi dela. Nosso relacionamento já não estava lá àquelas coisas e ela decidiu vir para o Brasil de mala e cuia. Eu dei o maior apoio, pois ela queria se especializar na música do Patápio Silva, quem ela sempre admirara excessivamente. Mas entendam, não fazia parte do pacote morarmos juntos, ela tinha conseguido uma bolsa do Instituto Nacional de Música, o que incluía moradia estudantil. Ela realmente era uma exímia flautista, achei que deveria investir fundo em sua carreira. Mas ela chegou no Brasil falando em filhos e casamento, eu quase surtei. As coisas entre nós foram ficando cada vez piores, até que o rompimento foi inevitável. Depois disto ela entrou numas neuroses de que só Patápio Silva o amava verdadeiramente. Depoimento transcrito por [M.B.]


Uma [breve] referência Biográfica! Patápio Silva nasceu em 22 de outubro de 1880 na região noroeste do estado do Rio de Janeiro. Filho do imigrante português Bruno José da Silva, e de Amélia Amália de Medina e Silva – que tinha apenas 13 anos. Amélia seria filha de escravos alforriados, consta que os fazendeiros da região anteciparam à Abolição para evitar a fuga dos escravos e assegurar a permanência da mão-de-obra. Dizem os testemunhos familiares que Patápio demonstrou aptidão para música desde pequeno, tendo fabricado sua primeira flauta aos cinco anos – uma flauta de bambu. Aos seis, mudou-se com o pai e os dois irmãos mais novos para Cataguases, em Minas Gerais. O motivo da mudança foi a separação dos pais. Aos dezesseis saiu de casa, motivado pela resistência do pai ao vê-lo enveredar pela carreira musical. Comprou uma flauta de chaves, deixou a cidade e passou a tocar em diversas bandas do interior de Minas e do Rio de Janeiro. Em 1900, aos vinte anos, muda-se oficialmente para o Rio de Janeiro com o objetivo principal de ingressar no curso de flauta do INM – Instituto Nacional de Música. Nos primeiros tempos na cidade maravilhosa trabalhou como tipógrafo na Imprensa Nacional e na Casa da Moema, e também voltou a exercer a função do pai, barbeiro, depois passou a trabalhar com trupes de teatro. Em fevereiro de 1901 apresentou-se ao INM para audição. Carregava uma flauta de madeira de fabricação antiga e grosseira. Seu estado causou riso ao professor que iria assistir sua audição. Entretanto, após executar algumas músicas de seu repertório e outras indicadas pelo professor o sentimento deste não era mais de riso e sim de admiração. Os exames de admissão de Patápio transcorreram de tal forma que este não obteve apenas a vaga no curso como ingressou direto para o segundo semestre. Enquanto avançava nos estudos, preparava-se para o seu primeiro recital, que se deu em 15 de fevereiro de 1902. Foi uma apresentação de alunos e ex-alunos do curso de flauta, no próprio salão do INM. Neste reci Florianópolis - Junho de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 04

Indicações da Travessa:

Além das Cortinas [http://alemdascortinass.blogspot.com/] A sala dos Medos [http://asaladosmedos.blogspot.com] Do lado de Dentro [http://hellenrios.blogspot.com/]

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Dos arcos ao exílio – escritos em prosa e verso [http://letrasnoexilio.blogspot.com/]


recital Patápio teve de superar outros desafios além do nervosismo de uma primeira apresentação. O público musical da época não via com bons olhos a presença de um músico mestiço no recital; pois sua pele demonstrava sua origem pobre. Apesar das dificuldades e do preconceito, Patápio contava com o apoio da imprensa que não poupava adjetivos e elogios para qualificar seu desempenho nos espetáculos e mesmo para descrevê-lo como pessoa. Os avanços tecnológicos fizeram com que o flautista fosse um dos pioneiros da indústria fonográfica brasileira. As gravações ficaram com problemas técnicos devido às limitações da época, porém, tiveram excelente repercussão entre seus contemporâneos. Graças ao disco o nome de Patápio ficou conhecido de norte a sul do país. Concluiu seu curso de flauta em 1903 e em 1904 ganhou a premiação máxima no “concurso a prêmio”, que se tratava de uma apresentação aberta aos alunos e ex-alunos do INM a uma banca de professores do instituto. O prêmio seria uma flauta de prata doada ao INM por uma dama da alta sociedade carioca. Com diploma de músico na mão e o nome cada vez mais conhecido, Patápio decidiu voltar aos tempos em que viajava de cidade em cidade, mas desta vez como concertista solo. O sucesso era cada vez maior e em 1905 o flautista teve seu primeiro concerto na cidade de São Paulo; apresentar-se na capital paulista era o caminho natural para qualquer músico que alcançasse o sucesso. Patápio estava sempre preocupado em tornar seu trabalho mais conhecido, e uma de suas primeiras providências em São Paulo foi tirar uma bela foto para ser distribuída aos jornais das cidades por onde passaria. Enquanto se consolidava como concertista, começava a planejar uma viagem à Europa para aperfeiçoar seus estudos. Sua dificuldade maior foi juntar o dinheiro para a viagem. Com esse objetivo lançou-se às excursões pelo interior de São Paulo e de Minas Gerais. E em 1907, dirigiu-se para o sul do país. Sua primeira apresentação seria em Curitiba, e depois seguiria para Florianópolis. Florianópolis - Junho de 2011

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Indicações da Travessa:

'Let them eat cake', she says [ http://likemarieantoinette.blogspot.com/ ] Luccas Neves Strangler [http://luccasneves.blogspot.com/ ] não sei, só sei que foi assim... [http://travessaemtrestempos.blogspot.com/]

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Trilhos Perenes [http://trilhosevaporados.blogspot.com/]


Chegou à ilha no dia 12 de abril, com apresentação marcada para o dia 18 no Clube 12 de Agosto. Hospedou-se no Hotel do Comércio localizado na Rua Altino Correia (atual Conselheiro Mafra). Chegado o dia da apresentação, dia 18 de abril, o público foi surpreendido com a notícia de que o espetáculo seria adiado em detrimento do artista ter sido acometido por um repentino mal-estar que o deixara de cama. Naquele tempo o litoral catarinense estava sendo fortemente atingido pela gripe, análise dos jornais da época mostra a forte preocupação com a saúde pública. O concerto foi remarcado para o dia 20, e depois para o dia 21, até ser postergado sem previsão de data. O quadro de Patápio se agrava e o médico responsável não conseguia chegar a um diagnóstico, buscou auxílio de colegas e o flautista chegou a ser observado por uma junta de cinco médicos. Os esforços, entretanto, não deram resultado e às duas da manhã de 24 de abril de 1907, Patápio Silva morreu no quarto do hotel, aos 26 anos. Ainda tinha-se dúvida acerca de sua causa mortis a qual foi registrada como “gripe adinâmica”, um diagnóstico genérico. As homenagens ao artista e cerimônia fúnebre foram feitas ainda em Florianópolis contando com o apoio da cidade. Por se tratar de uma morte inesperada, causada por uma doença fulminante e misteriosa deu-se origem a especulações de que Patápio Silva tinha sido envenenado no bocal da própria flauta, por alto funcionário do Estado o qual teria se apaixonado pela moça que acompanhava o flautista. Outras versões também surgiram, nenhuma foi comprovada. Texto escrito por Taiane Santi Martins ___________________________________________________________________________________ Referências sobre o autor retiradas de: OLIVEIRA, Mauricio de Lima. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Programa de Pós-Graduação em História. . Patápio Silva, o sopro da arte : trajetória de um flautista mulato no início do século XX. Florianópolis, SC, 2007. viii, 155 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-graduação em Historia

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Para participar da Travessa:

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Atenção o edital de chamada de textos para a 5ª edição da Travessa em Três Tempos será aberto no dia 30 de junho e terá como tema “fotografia”. Os interessados deverão fazer o download do edital de chamada no site: www.wix.com/revistatravessa/travessaemtrestempos, os textos deverão ser enviados para o endereço revistatravessa@gmail.com dentro das normas e do prazo indicados no edital.


Ficha Técnica: Atenção! As historietas, depoimentos e nomes contidos nesse exemplar são todos fictícios.

Documento Base: Recortes dos jornais O dia (1907) e O Estado (1977), retirados da dissertação de mestrado: Patápio Silva, o sopro da arte: Trajetória de um flautista mulato no início do século XX de Maurício de Lima Oliveira.

Textos de Redatores: Taiane Santi Martins

Autores Convidados: Ana Terra de Leon Iulla Portillo Nathália Henrich Tainah Maria de Souza Lunge Mateus Cavalcanti Melo

Capa:

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Foto: Mariana Rotili Arte e design: Taiane Santi Martins


Edição e Diagramação: Taiane Santi Martins Revisão: Fabiane Gabriela Lubian Marques Hellen Martins Rios Taiane Santi Martins Idealização: Taiane Santi Martins Equipe Travessa em Três Tempos: Fabiane Gabriela Lubian Marques Hellen Martins Rios Luccas Neves Stangler Mariana Rotili Taiane Santi Martins

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Apoio e Orientação: Prof° Márcia Ramos de Oliveira Laboratório de Imagem e Som – LIS

Endereço para contato: revistatravessa@gmail.com http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com www.wix.com/revistatravessa/travessaemtrestempos


Idealização: Taiane Santi Martins

Apoio:


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