O umbigo de rosario

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umário:

Petição de José Soares da Cunha em 1834 ......................................… 02 co

Feitiço de araque ................................................................................ 04

Depoimento de D. Maria ...................................................................... 04 Depoimento de Cótinha ........................................................................ 05 Depoimento de Chico Bento ................................................................. 06

Da velha infância ................................................................................. 07 Depoimento de Joana ........................................................................... 07 Depoimento de José Soares ........................………...........…...…...……..... 08 Depoimento de Rita do Rosario .........………….............................…........ 09

Vento de chegar e de partir ...…………………......................................... 09 Depoimento de Margarida......................................………...................... 09 Depoimentos de Dona Gertrudes ..………………………......................…...... 10 Depoimento de João Soares .........................………………….......……….... 11

Dança Enluarada ............................................……..…........….............. 12 Depoimento de Alberto ........................................................................ 12 Depoimento de Makri ......................................................................... 13 Depoimento de Jurema ........................................................................ 14

O amor é hiper quântico, sim sinhô! ................................................... 15 Depoimento de Seo Etevaldo ................................................................15 Depoimento de José Ignácio ................................................................ 16

Editorial ............................................................................................... 17 Ficha Técnica ....................................................................................... 19


“Ilmo. Snr. Juiz de Paz Diz José Soares da Cunha, morador no Mirim, fazenda de Santa Anna de Villa Nova, que sendo casado com Anna do Rosario em face de Igreja no anno do Imperio Constitucional de 1833, à vista de Deus e de todo o mundo por sinal que foram testemunhas e padrinhos Antonio da Rocha e Joaquim de Avelar, sucedeu que no dia 2 de Fevereiro do corrente anno constitucional de 1834, pelas 8 ou 9 horas da noite, ou as que na verdade eram, pois alli ninguem tem relogio certo senão Manoel Teixeira da Silva e o compadre Manoel da Silva tem outro que trocou por uma égua que não regula, o supplicante e mais moradores se regulam pelo sol, que quando está claro regula certo, indo a dita mulher muito quieta fiar algodão em casa de sua vizinha Gertrudes , viuva de Manoel Correa, cuja viuva é muito capaz, e não ha que se lhe diga, excepto de ser decente só se for alguma dessas desavergonhadas quatro linguarudas ciganas que tem muito nesta freguezia, do que se fôr preciso o supplicante denunciará para lhes cahir em cima todos os códigos e Policia do Imperio, e não lhes valerá empenhos nem padrinhos, nem rebulices das ordenações, porque graças a Deus já estão abolidas as replicas e treplicas, lhe sahiu repentinamente na estrada, junto ao corrego, o desaforado José Bento, filho de Joaquim Bento, que se o Snr. Juiz de Paz soubesse cumprir com as suas obrigações, fazia prendel-o, autoal-o e posto em angola de repente arrumou uma forte e tremenda umbigada na mulher do supplicante que logo derrubou e ficou sem sentido com as partes pudendas ã mostra e lhe cuspiu em cima… cujas partes só o supplicante compete ver como cousa de sua propriedade e que recebeu até a morte, e como chorasse e gritasse, accudiu a viuva Mariana que lhe deu fricções de arruda e benzeu para com muito custo ficar boa, ao supplicante não requereu logo corpo de delito por ser a pancada no baixo ventre entre o umbigo e aquella parte

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mimosa, da Geração que só o supplicante e a parteira podiam ver, logo que o tal réo fez a maldade, fugiu e ainda dizendo que foi brincadeira.

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E porque a umbigada foi de má tenção e rixa muito velha para experimentar se a mulher do supplicante se deixava ficar como pata para elle galar, porem vae galar para o inferno, pois a mulher do supplicante não é dessas vadias e sim virgem e honrada que só tem matrimoniado com o supplicante apesar de ter sido muitas vezes namorada e seduzida por pessoas de caracter e de farda agaloada, prometendo-lhes patacões e cordões de ouro, porem ella sempre firme e contente sem fazer caso disso, pois bem sabe que o supplicante tem atraz da porta uma grande cotia, com que lhe havia de ir ao lombo, e por isso o supplicante por cabeça de sua mulher quer hoje fazer citar o tal réo José Bento, para vir jurar as testemunhas que o supplicante apresentar do desacato, do desaforo da brutal umbigada que arrumou na mulher do suplicante, que foi por felicidade della não estar pejada, senão eram duas mortes (porque) esta abortava, e logo que o supplicante provar, ser o réo logo julgado pelos Snrs. Deputados jurados que se acham aggredidos na Laguna e pelo Snr. Juiz de Direito afim de ser degradado para Lajes, como galés e seja acompanhado com escolatas de permanentes que pelo caminho lhe vão dando umbigadas com cipó bem curtidos.

O supplicante espera que o Snr. Juiz de Paz desagravará sua honra atrozmente ultrajada por um bigorrilhas sem educação.

(a) José Soares da Cunha Mirim da Laguna, 28 de Março de 1834.”

de Direito Civil, Parte Geral, vol. 3, Editora Bushatski, São Paulo, 1972; apud Leib Soibelman, Enciclopédia do Advogado, Editora Rio, p. 672)

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(Fonte: Alberto Romero, “O Assunto é Jornal”, Editora Ouvidor, Rio de Janeiro; Antonio Chaves, Lições

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Feitiço de araque Sabe que José Bento estava sumido havia tempos de Mirim. Tinha voltado há pouco, menos de três meses. Mas bem, sumido é o que eu digo, porque nunca engoli aquela história de ir estudar na capital. Passamos juntos a infância e as brincadeiras da rua sempre foram as que a gente preferia. Mamãe não gostava que brincássemos juntos, porque eu era menina e ele menino, mas ah! como eu gostava de rolar pneus com um graveto e depois sair correndo pra mergulhar na cachoeira – tudo com ele. Tínhamos poucos amigos por aqui. Éramos os menos abastados dos vizinhos, e, por isso, passávamos mais tempo brincando do que estudando; diferente das outras crianças que nos olhavam pela janela com a cabeça apoiada na mão e um pedaço de papel em cima da mesa. Anna do Rosário era uma dessas. Só penso no que a imaginação dela dizia, quando nos perdia de vista pela praça e pelas ruas, em meio aos passantes. Mas, bem, mesmo brincando com Zé Bento, não confiava nele. Era do tipo que colocava o pé na minha frente, quando o pneu corria rápido, descendo a ladeira e eu corria desembestada atrás. Ter um pé na frente das suas pernas é como uma pedra no caminho do pneu: perdia o rumo e sempre caía feio. Tenho ainda algumas cicatrizes daquele tempo. Com menos estragos, ele também escondia minha roupa nos banhos na cachoeira e ria - ria muito, muito mesmo - quando eu saía, de roupa de baixo, e xingava toda a ascendência e descendência daquele desembestado. Ai, como eu tinha raiva! Pois foi depois dos quinze anos, que ele sumiu, e daí começaram a dizer que ele tinha ido estudar na capital, porque descobriu um padrinho com mais posses que podia dar um futuro melhor pra ele. Mas como disse, não engulo nada disso aí.

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Depoimento de D. Maria Sempre falaram muito mal do Dr. José Bento por essa região de Mirim, mas eu não acho que ele seja assim tão má gente. Os relógios que ele traz pra gente da capital são tão bonitos e ele faz em condições tão boas, que pra mim é como se ele fosse da família. Às vezes, a gente pode até pagar com um boi bem gordo ou um almoção de domingo – desde que dure o mês inteiro. Mas sabe que eu acho justo? Desde que o céu escureceu assim que a gente nem sabia mais a hora do almoço, mas agora que tem esses relógios grandes cheios de ponteiros, tudo ficou mais tranqüilo. Ele também anda de olhares para minha filha e eu bem que faço gosto que os dois se enrabichem. Andei até comprando uns vestidos caros pra impressionar o rapagão e ver se eles saem desse chove e não molha. Acho que tem dado certo! Depoimento transcrito por [H.]


Onde já se viu, Zé Bento se aquietar e estudar. E-S-T-U-D-A-R! Pode até ter ido pra capital, mas não estudar. E essa de padrinho... sei não. Pra mim, ele foi pra se aventurar. E pra se manter por lá, deve ter se enrabichado com muita mulher de posses. Amante mesmo. Ele gostava de correr o risco e nunca se preocupava com represálias. Nem deve ter sido descoberto pelos maridos, e deve até ter feito amizade com eles, aquele cínico: trocando prazeres por dinheiro. Trocando brincadeiras por dinheiro. E nem duvido que tenha roubado por lá também, ele era ligeiro. Dizem que essas mulheres tem muita jóia, muito vestido e vários vasos e quadros que valem uma fortuna. Quando eu soube que ele tinha voltado, eu não acreditei. Mas disseram que ele tinha voltado diferente. Depois de aprontar tanto, parece que achou que precisava de um verdadeiro amor, aquele pra vida inteira, pra chamar de seu, envelhecer do lado, ajudar a arrumar as louças do jantar e ter meia dúzia de pequenos ao redor. Resolveu que só conseguiria tudo isso voltando pra Mirim, porque afinal a capital não é lugar de moças que pudessem ocupar esse cargo. Lembrou de Anna do Rosario, que devia estar uma lindíssima mulher e que, agora, que ele tinha posses – embora todas furtadas de suas aventuras na capital – o pai dela aceitaria o pedido de casamento que sempre quisera fazer, mas que sempre lhe faltara coragem. Veio decidido a ter com ela essa vida que passou a sonhar. Mas, foi chegando a Mirim que tudo desandou, coitado. Claro que comprovou suas suspeitas de que Anna havia se tornado uma mulher de uma formosura que dava inveja a bonecas de porcelana – e a mim também - mas descobriu que ela tinha se casado no ano anterior e pior, com José Soares da Cunha, cujo pai era grande e não respeitado inimigo de seu saudoso e bondoso pai, que Deus o tenha. Zé Bento, desolado, ficou em polvorosa, não acreditando no que via, e pelo que disseram na mercearia, pensou até em se matar.

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Depoimento de Cótinha Minha irmã sempre foi apaixonada por aquele projeto de marginal do Zé Bento, apesar de nunca ter admitido. Na meninice, aqueles dois viviam juntos, rolando pneu por aí. Minha mãe é que ficava doida da vida quando via as roupas sujas da minha irmã. Aquela guria era diferente, não andava de vestido como as outras meninas e também não gostava de fazer coisas de meninas – gostava mesmo era de se sumir com aquele Zé Bento e de tramar maldades para pobrezinha da Anna do Rosário. Minha irmã nunca se conformou que o Zé Bento gostava daquela “bonequinha de porcelana” – era assim que ela a chamava, em tom de deboche. Na adolescência, quando descobriu que os dois estavam tendo um caso, decidiu que iria delatá-los para a mãe da Anna, mas não teve tempo, pois logo em seguida o Zé Bento desapareceu. Mas como queria garantir que a Anna e o Zé nunca reatassem, virou amiga da D. Rita e a convenceu que José Soares seria um bom partido para a filha. Depoimento transcrito por [M.B.]


Mas lembrou que tinha uma feiticeira muito mal afamada na cidade, que as mulheres que iam lavar roupa na cachoeira temiam muito. Do jeito que é, não duvido que nem pensou duas vezes e foi ter com ela, pedindo ajuda pra essa situação, porque ele não sabia como tratála, uma vez que nunca tinha passado por ela. A feiticeira, de supetão, mandou que Zé Bento desse uma umbigada na dita, e que isso faria com que o marido se separasse dela e ela se apaixonasse repentinamente por ele. Só mesmo o Zé pra acreditar numa sandice dessas... O cabra saiu da cabana certo de que tinha feito um ótimo negócio, até porque parece que havia deixado uma boa quantia de dinheiro por aquele trabalho. No dia seguinte, dia 2 de fevereiro, Zé Bento foi ao bar, tomou sua pinga matinal e parece que passou o dia na beirada do córrego, provavelmente pensando em como ia fazer aquilo, pois se o santo é forte, já devia ter começado a achar aquela idéia meio estranha. Mas daí não tinha mais jeito. Ao cair da noite, quando viu Anna passando, saiu na estrada e completou sua predileção. Disseram que uma trovoada forte rosnou no céu perto daquele horário, mas o acontecido não foi como dito pela feiticeira. Em vez de conseguir Anna, o que Zé Bento conseguiu foi muita dor de cabeça com o marido da dita cuja, e pra tentar se safar, disse que havia sido uma brincadeira, como as que ele fazia na pirralhice, esperando perdão. Depois disso, os dias ficaram cada vez mais escurecidos, impedindo que as pessoas se orientassem pelo sol pra saber das horas. O comércio de relógios cresceu bastante, e Zé Bento entrou nessa em sociedade com Manoel Teixeira da Silva, que já conhecia do assunto, e montaram uma relojoaria no centro da cidade, o que lhe rendeu muitos frutos. Historieta narrada por [H.]

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Depoimento de Chico Bento Espero que meu sobrinho e afilhado nunca cheguem a descobrir a verdade, acho que eles nunca me perdoariam. Eu nunca estive realmente doente, isso foi tudo armação daquele safado do José Soares que estava de olho espichado pra Anna do Rosário. José Soares passou um tempo aqui na capital e acabei o conhecendo na roda de jogo. Na época, ele era um pirralho e achei que conseguiria tirar um bom dinheiro dele, mas o tinhoso blefava que era uma coisa. No final da noite, eu tinha perdido até minha casa para ele, além da minha dignidade. Como o garoto não queria que o pai descobrisse que andou se envolvendo com jogo, acabou perdoando a dívida, com a promessa de que se um dia precisasse de um favor, me procuraria. Foi o que ele fez, e eu acabei com a vida de meu afilhado. Por minha causa, ele perdeu a única mulher que amou na vida. Depoimento transcrito por [M.B.]


Da velha infância As moradoras do Mirim se reuniam algumas vezes, na época que antecede o inverno, na casa da viúva do Manoel Correa, para fiar algodão. No Mirim da Laguna não tem tecelagem e mandar trazer o tecido da capital significava dispensar muito dinheiro e tempo no transporte, e antes do meio de agosto, o comércio não tinha tecido de algodão disponível. Cabia às mulheres, então, fiar o algodão plantado no quintal de Dona Gertrudes para aquecer os primeiros tempos de inverno. Isso é sabido por todo o povo do município, agora o que ainda é uma incógnita é por que no início do mês de fevereiro a Anna do Rosário andava no meio da noite pelas bandas da casa da Gertrudes dizendo que ia fiar o dito algodão. O falecido Manoel Correa não apreciava muito a movimentação do centro da cidade. O velho dizia que o comércio era algo prejudicial para o município de Mirim da Laguna, que deveria ser movido pela agricultura. Por isso, construiu sua casinha de madeira à milhas de distância do que ele considerava uma agitação absurda. Dona Gertrudes vivia naquele lugar isolado havia anos, e desde o tempo de casada já tinha se acostumado com a lonjura e as senhoras de respeito do município só iam até lá acompanhadas de seus respectivos maridos. O povo todo acha que a Anna do Rosário é um poço de candura, mas eu sempre me pergunto o que ela tava fazendo sozinha por aquelas bandas. E tem outra coisa: minha prima e ela eram amigas de infância, e minha prima me contou que a Anna do Rosário era enrabichada pelo José Bento desde o tempo que ele passava rolando pneu na frente de sua casa. Ela ficava escorada na janela olhando ele brincar solto na rua e suspirava, pois sua mãe nunca deixaria que ela voasse suas tranças atrás do Zé Bento, que não era considerado uma boa companhia para uma moça do nível dela. Florianópolis - Novembro de 2011

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Depoimento de Joana Eu conheço Anna do Rosário há muito tempo. Éramos amigas de infância, vivíamos na casa uma da outra e também estudávamos juntas. Ouvi muitas vezes os suspiros dela por aquele menino que rolava pneu, como é mesmo o nome dele? Zé, Zé Bento. Mas com os acasos do destino, os dois acabaram se separando. Ela quis saber, no início, porque da fuga de seu amor para a capital e foi ter com a feiticeira da região, pra ela falar algo sobre isso. Eu tentei alertar a Anna, mas ela parecia surda de paixão. A estranheza maior aconteceu quando ela voltou da cachoeira, dizendo que se casaria com José Soares da Cunha. Santo Deus! Onde ela estava com a cabeça? Além dessa sandice, só ir fiar algodão em janeiro, o que ela também fez. Não sei o que a feiticeira deu pra ela, mas que ela ficou doida nesses cinco anos que o Zé esteve na capital, ela ficou. Depoimento transcrito por [H.]


O rapaz também queria ciscar no terreno de Seu Francisco do Rosário e, às vezes, espiava sua filha por entre a cortina da janela. Mas Seu Francisco tinha rixa braba com o Joaquim Bento, e o Zé não ia ter coragem de enfrentar o pai e dizer que estava apaixonado pela filha de seu inimigo. Era uma confusão desgramada, mas a vida prega peças na gente, e parece que na época da adolescência os dois acabaram deixando o amor platônico de lado e começaram a se encontrar escondidos atrás do barracão do Manoel Teixeira da Silva. Ninguém podia saber do romance dos dois e por isso se tratavam feito cão e gato quando estavam na frente das outras pessoas. Anna do Rosário dizia que não queria ver aquele moleque nem pintado de ouro, enquanto Zé Bento chamava a moça de menininha mimada para os amigos. Mas a verdade é que os dois ficavam contando as horas para poder sair para se encontrar, faziam juras de amor eterno e estavam planejando fugir do Mirim para se casar. Estavam esperando o José Bento completar 16 anos e ganhar uma quantia em dinheiro que o Manoel Teixeira da Silva lhe prometera por lhe ajudar num assunto, que até hoje não sei o que é. Estava tudo planejado, até que o Joaquim Bento recebeu um telegrama da capital, que dizia que seu tio Chico Bento estava doente. Joaquim não podia se ausentar do Mirim naquele momento e mandou seu filho, que era afilhado do sujeito, para capital para cuidar do padrinho. Anna do Rosário ficou revoltada por ver sua promessa de amor futuro se desmanchar no ar. Os dois brigaram feio e a moça disse que não queria mais ver José Bento na sua frente. Uma semana depois ele viajou para capital e ficou sem dar notícias por cinco anos. Nesse tempo, Anna do Rosário cresceu e se tornou a rapariga mais bonita do Mirim, e se

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Depoimento de José Soares Lembro-me de ficar olhando a Anna pela janela, quando ainda era menina e usava aquelas trancinhas que a deixavam encantadora - eu sou apaixonado por ela desde sempre. Nossas famílias eram amigas, então eu ia até a casa dela com alguma frequência por conta dos negócios de nossos pais, mas a Anna nem me dava bola. Eu achava que era porque ela se preocupava demais com os estudos – admirava isso nela – mas um dia descobri a verdade. A Livinha, irmã da Cótinha, me contou que a Anna andava se encontrando escondida com o marginal do Zé Bento. Eu não podia deixar isso acontecer, tinha que proteger a Anna. Então mandei uma carta para o Chico Bento, que tinha uma dívida de jogo comigo, e pedi para que ele tirasse aquele energúmeno do Zé Bento da cidade. Parece que ele inventou uma doença, mas o que importa é que a Anna é minha agora. Depoimento transcrito por [M.B.]


casou há mais de um ano com José Soares da Cunha, um engomadinho, dono de terra, amigo do Juiz de Paz e do pai da moça. Tem gente que ainda hoje diz que esse casamento foi arranjado. Mas o fato é que a moça casou com um bom partido, e até onde se sabe, nunca reclamou do marido. Daí que nesse ano, José Bento voltou da capital, e voltou rico. Ninguém sabe direito o que sucedeu com ele enquanto cuidava do padrinho, mas o fato é que ele voltou pro Mirim cheio de pose e elegância. Encontrou com Anna do Rosário na missa de domingo, era finalzinho de janeiro. Disseram-me que quando ela viu seu antigo amor, baixou o rosto e seguiu com seu marido para casa e de lá não saiu até o dia 2 de fevereiro, para fiar algodão na casa da Gertrudes. Veja como é tudo muito estranho nessa história, a mulher fica uma semana trancafiada em casa e de repente resolve que precisa fiar algodão na região mais isolada da cidade, que foi quando se deu o acontecido da umbigada. Sei que minha prima tinha ido entregar um bilhete do José Bento pra Anna dois dias antes, dizendo que queria encontrá-la. O barracão do Manoel Teixeira da Silva não era mais um lugar seguro e ele sugeriu o caminho para casa da Gertrudes. O que minha prima me disse é que os dois discutiram feio. Anna do Rosário, inconformada pelos cinco anos sem nenhum telegrama, e José Bento, enfurecido por ver a mulher que amava casada com um almofadinha. Quando estavam perto de fazer as pazes, ouviram um barulho na estrada e armaram a cena da umbigada para que ninguém desconfiasse da situação. O que eles não sabiam era a confusão que isso tudo iria causar. José Soares usou de sua amizade com o Juiz de Paz para prejudicar José Bento, e Anna do Rosário se viu impedida de dizer a verdade e defender seu verdadeiro amor. Tem ou não tem muita coisa estranha nessa história? Historieta narrada por Maria Bonita

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Depoimento de Rita do Rosário A Anna sempre foi um exemplo de filha. Sempre tivemos um diálogo aberto e por isso ela nunca precisou mentir para mim. Desde menina, é exemplo de responsabilidade: vivia pendurada nos livros e nos estudos e não tive problemas com ela na adolescência como acontece com algumas mães descuidadas. Quando a Livinha, filha da vizinha, me disse que o José Soares era apaixonado por minha filha há anos e não tinha coragem de se declarar, vi que era a oportunidade de casá-la com um bom partido. Meu marido não estava passando por uma boa fase nos negócios, e a família Soares era uma das mais tradicionais do Mirim. A Anna se recusou a princípio, uma menina tão inocente... mas você sabe que uma tem maneiras de persuadir sua filha. No final, a Anna achou que seria uma ótima ideia se casar com José Soares e eu pude finalmente deitar minha cabeça tranquila no travesseiro, sabendo que minha filha estava em boas mãos. Depoimento transcrito por [M.B.]


Vento de chegar e partir O vento veio soprando de mansinho entre as folhas das árvores e foi aos poucos rodopiando forte, ficando como que irritado. De repente, tornou-se um vendaval que rugia e zunia em nossos cabelos. Era geralmente assim que acontecia quando nós chegávamos. E era assim que eu sabia que uma estada seria movimentada. Em minha vida de viajante, eu era forçada a deixar coisas pra trás. Tornara-me minha própria casa, Makri, enclausurada no tempo que escorria facilmente - um tempo que eu contava pelo sol, como os caminhos e destinos que eu via nas estrelas. Eu não usava relógios. Na verdade, naquela nova cidade, poucos se davam a esse luxo, e, para mim, seu uso era um frívolo capricho sem sentido. As mulheres que me acompanhavam ciganas como eu - muito falavam dos relógios dos dois senhores de nome Manoel. Essas moças não possuíam tanto a sabedoria dos astros, e se preocupavam mais com a vida dos outros que com os rumos das próprias vidas. Ainda que fosse pela magia e pelo sustento, eu não conseguia proceder daquela forma. Quanto menos me envolvia em falatórios, menos era envolvida neles. Estava cansada de ser tema central de histórias absurdas, muitas vezes fomentadas por aquelas que eu trazia comigo. Eu era conhecida por minhas poções de amor e pelas bruxarias que aprendera andando caminhos afora. De encruzilhada em encruzilhada, de cidade em cidade, fui aumentando nossa caravana de mulheres leitoras de sorte. Mesmo elaborando os mais eficientes filtros de amor, nunca os tinha usado a meu favor. Na juventude tivera muitos amantes, todos meros jogos em situações de pouca magia. Quando encontrei o homem certo, joguei meu conhecimento nele. Parecia o pai perfeito para uma pequena cigana. Então me pus a tricotar uma teia de encantamentos e pequenos sortilégios, e numa noite de lua muito cheia, amarrei fitas coloridas em meus longos cabelos negros de blnanlna Florianópolis - Novembro de 2011

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Depoimento de Margarida Bem nessa época do acontecido, algumas ciganas que já viviam há um tempo por Mirim, passaram a ter umas atitudes muito estranhas. Sabe que eu nunca confiei nessas mulheres sem raiz firme, sem filho, só com paixões temporárias. São elas que fazem nossos maridos olharem para o lado, ao invés de para a frente e ir buscar o pão nosso do próximo dia, o sustento pra família. Eu ainda acho que meu marido só encasquetou de não ter relógio, por causa delas, porque queria aprender com elas a ouvir o vento, como ele dizia. Benzadeus! Quanta besteira! Tenho uma prima da cidade vizinha que disse que o vizinho dela passou a ficar ouvindo o vento e depois de dois dias sumido, apareceu com uma criança nos braços, dizendo que era um presente para ele. E foi logo depois que essas andarilhas passaram por lá. Sabe, não confio nelas, não! Depoimento transcrito por [H.]


cachos abundantes e fui ao seu encontro. No meu envolvimento, acabei me apegando às carícias do jovem rapaz. Ignorando a força de meu encantamento me vi presa a um sentimento perigoso. Por isso, quando tive certeza de que levava uma criança no ventre, parti. O homem seguiu nosso bando, apaixonado. Eu me negava a amar. Atrapalha a sabedoria ter tanto sentimento. Tentei várias vezes explicar isso a ele, que tentou me fazer ficar presa a um lugar só. A menina amava o pai. Resolvi então que o homem teria minha filha, como um consolo para a falta de mim. Juntei as mulheres mais promissoras da caravana e partimos para andar juntas pelo mundo levando a magia cigana com o vento. Quando nos estabelecemos em Mirim da Laguna, algumas coisas ficaram muito claras para mim: ali não havia relógio, as crianças que não gostavam da escola, rolavam pneu, e a menina Anna do Rosário seria, dentre todas, a mais cobiçada moça do lugar, algum dia. Aquela cidade muito me encantou, e as mulheres, com o passar dos anos, foram se acostumando a viver ali entre as fofocas, se afeiçoando às ruas, amando até mesmo sua má fama. Fui me tornando uma mulher de cabelos longos e grisalhos conforme as estações iam operando na natureza, esta mesma natureza que sulcava minhas faces outrora jovens e belas. A sabedoria dos astros, um dia, jogou-se sobre meus ombros, e passei de “bela mulher misteriosa” a “velha curvada e amedrontadora”. Sempre que era tempo, eu ia colher as ervas que plantava às escondidas nas horas certas do dia e da noite, e minhas companheiras ficavam me esperando. Numa noite abafada de verão, quando eu estava voltando com as plantas já retiradas do solo, guardadas em meu pequeno saquinho de camurça, senti o vento começar a mudar. Apertei o passo a tempo de encontrar minhas companheiras reunidas a observar uma cena muito estranha.

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Depoimento de Dona Gertrudes Depois que meu saudoso marido faleceu, surgiram inúmeros boatos na cidade de que eu era feiticeira, e todo o tipo de coisa que você possa imaginar. Os boatos surgiram por conta de eu continuar querendo morar longe da cidade. Diziam que mulher de respeito não podia ficar sozinha por essas bandas. Eu vivi aqui com meu marido a vida toda. Não vou deixar minhas lembranças para trás por conta do que o povo fala. Agora a moda é implicar com as ciganas que estão morando perto da cachoeira, mas eu sei que elas são gente de bem. Anna me contou que foi encontrar com uma delas quando o Zé Bento voltou. A pobrezinha depois de todos esses anos ainda era apaixonada pelo rapaz. Parece que a cigana propôs lhe ensinar tudo o que sabia, mas a menina ficou com medo por conta da rigorosa educação que a mãe lhe dera. Acho que se ela tivesse aceitado a proposta, as coisas teriam sido diferente depois do acontecido da umbigada. Depoimento transcrito por [M.B.]


As outras ciganas falavam muito da pobre Anna do Rosário: para o resto da cidade, uma santa moça de belos cabelos e olhar macio, para minhas mulheres, porém, era moça sonsa de olhar oblíquo e nada confiável. Anna era mulher livre de espírito. Eu mesma a teria ensinado encantamentos e fetiches se sua educação católica não a tivesse cegado aos mistérios da vida. Quando vi Zé bento vindo zombeteiro, entendi que alguma coisa aconteceria. O que fazia Anna andando tão apressada àquela hora da noite? Eu sabia que ela fiava algodão na casa da Gertrudes (a quem todos chamavam Dona, mas que para mim e minhas rugas não fazia sentido). No estado assustado em que a moça se encontrava, eu poderia jurar que o algodão que ela fiara a fizera entrar em transe. Ela estacou no chão quando viu que o moço se aproximava. Eu corri para as minhas amigas, implorando que fossem embora dali, que deixassem a moça em paz. Anna, desesperada, olhou para os lados - provavelmente com medo de que testemunhas os vissem juntos. Zé Bento, com as mãos na cintura da pobre jovem... percebi que tentava encantá-la. O tolo não tinha conhecimento nem das fases da lua - será que realmente acreditava no que estava fazendo? No fim das contas, percebendo que estava era assustando a moça, que perdia a consciência, o rapaz cuspiu na pobre mulher ali jogada, ainda semi-acordada. Ralhei com minhas mulheres para que fossem pegar suas coisas. Não havia mais nada para se ver ali. Na semana seguinte, já não estávamos mais lá. O vento nos levou, novamente. Historieta narrado por Belo-Mar com agradecimentos a Raio-de-Sol.

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Depoimento de João Soares Sempre que me falam de vento, eu lembro aquelas tardes regadas à dança e cantoria. Durante toda minha infância, disseram que as ciganas não eram pessoas para se estar junto, que elas abandonam quando o vento bate, que não tem coração, só má intenção ao fazerem fofocas incontáveis. Mas sabe que eu nunca achei que fosse mesmo assim? Elas eram tão cuidadosas comigo. Bem diferente do meu irmão. E olha que eu gostava muito dele! Mais do que meu corpo – e o povo inteiro - podia aceitar. Conheci as ciganas, nas vezes que fui me refrescar na cachoeira, por conta de calores insuportáveis que me dava quando o via ajeitar os cavalos. Além das águas geladas da cachoeira, só o vento forte – que aprendi a sentir – e a dança envolvente das saias e dos umbigos me faziam aliviar aquela tensão. Depoimento transcrito por [H.]


Dança enluarada Mirim da Laguna era cidade tranqüila: as horas contadas pelo meio-círculo que o sol fazia, esse monte de brilho que trazia calor e que eu via nascendo na janela do meu quarto e se pondo na janela da sala. Eu me regulava desse jeito, mas sei que seu Manoel Teixeira da Silva tinha um relógio no qual todos confiavam, e que compadre Manoel da Silva escambou o seu por uma égua meio anormal da cuca. A minha casa era miúda, coisa pouca e pequena pintada de amarelo-desbotando, pregos muitos, juntando as madeiras que rangiam em lamúrias e choros quando o calor ou o frio eram demais. Mas isso não me era muito importante. Eu quase não ficava em casa, gostava mesmo de encontrar com mais algumas outras mulheres e irmos pras redondezas ficar sabendo da vida alheia. Anna do Rosário sempre foi moça requisitada e desejada pelos homens da cidade ou pelos que passavam por essa região, andarilhando. O pai cuidara que crescesse formosa e educada, acrescentando à beleza o que de melhor uma mulher poderia ter. E a mãe, não queria saber de Anna passeando pela rua, por isso ela não saía muito de sua casa. Mas aquela menina gostava de janelas... e como gostava! Quase tanto quanto eu gostava das minhas, aquelas ensolaradas. Mas qual seria exatamente o motivo d’ela insistir em ficar à janela? José Bento morava por perto e a gente toda sabia que era menino que não prestava. Ele corria por aí pela rua com alguns amigos - e uma amiga, a única menina que tinha coragem, audácia e joelhos suficientes pra acompanhar o grupo - a rolar pneu, a se jogar do alto da cachoeira pro riacho. Qualquer atividade era valiosa e interessante, contanto que ela não fosse daquelas que o deixassem em casa sentado e estudando, pelo menos durante o dia, porque “estudar só presta antes de dormir, os sonhos fazem a gente se lembrar do que leu”. Eu e as outras mulheres sentíamos que, apesar de Zé Bento viver repetindo isso, seriam a noite e a lua que testemunhariam a maior das artimanhas desse menino tão espevitado.

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Depoimento de Alberto Eu não sou dessa cidade. Cheguei faz pouco tempo, em busca de um lugar diferente e confortante pra criar minha filha – chamam-me cigano, por isso. Achei que um lugar como Mirim seria ideal, e então, abri minha loja de doces numa estrada em que me disseram que não daria movimento, por ser muito afastada do centro. Mas eles estavam redondamente enganados. Depois do dia 2 de fevereiro, aquela rua que dava na casa da viúva do Manoel Correa parecia praça em dia de festa. O povo todo, entre um falatório e outro sobre uma tal umbigada que tinha acontecido, compravam meus doces, empolgados. Vieram me perguntar, mas eu nem sabia o que era aquilo. Não me interessava muito os assuntos da cidade: de dia, eu ficava em função dos doces e à noite, entretido e enfeitiçado com o revoar de saias das ciganas perto da cachoeira. Será que era essa dança, a umbigada? Depoimento transcrito por [H.]


Desde os tempos que eu cheguei na cidade com as outras mulheres, o que pensam de nós não mudou: “ciganas vindas de longe, tal qual os andarilhos, mas que por algum tipo de má sorte da gente resolveram permanecer. E o que é pior: fofoqueiras. Fofoqueiras!”. Esses tolos desconhecem o que de fato é má sorte, mas têm bastante consciência do nosso entusiasmo, atração e gosto pelas vidas que não as nossas. Mas entenda: não é por sermos fofoqueiras, é por procurarmos magia. Mas voltemos ao que eu queria, de fato, contar. Não que seja importante em demasia, ao ponto de ter alterado o desenho das estrelas no céu e a sequência de fases da lua. E talvez não signifique nada nos tempos de agora, ou talvez seja motivo pra invenção de histórias e estórias - o que me deixa à vontade, pois eis aqui minha versão. Fevereiro de 1834 trouxe a nós um verão de sono, de calor, de novidade e de bagunça. Tudo andava a seu ritmo solar quando Zé Bento voltou da capital e desandou o vento. Tinha ido para lá há alguns anos (cinco ou seis, se a memória não me trai) resolver algo relacionado com o padrinho, mas essa questão acabou permeando-se de outros tipos de questões: mulheres, dinheiro, posses, poder. Dizia ele e a família que o padrinho estava doente e que, em verdade, pedia a companhia do pai de Zé, seu Joaquim Bento, mas este estando ocupado e enrolado com seus próprios problemas, mandou o filho. Ele foi e ficou por lá, cercado de tanta novidade e modernidade que entontecia. Enquanto isso, Anna crescia, soltava as tranças do cabelo que alcançavam a cintura, ajeitava o vestido por sobre a silhueta de ondas harmoniosas e saía da janela pra passear pelas ruas de Mirim, cantarolando. Mas isso é o que pensavam os mais velhos que juravam que a conheciam bem. Pra mim e pras ciganas, sentadas sempre em alguma encruzilhada das ruas de terra poeirentas, Anna ia mesmo era saracutear na casa de alguéns. E mais de uma vez escutamos sua cantiga, um tanto entristecida, mas de voz firme, cantando a saudade e a distância do menino que já não passava na frente de sua casa rindo alto e disfarçando o interesse com desgosto e caretas quando olhava pra menina sentada à janela. Florianópolis - Novembro de 2011

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Depoimento de Makri As outras mulheres não sabiam, mas a Gertrudes tinha me ensinado a umbigada. Segundo a solitária senhora era uma dança passada de mãe para filha durante gerações. Era uma maneira que as mulheres tinham de deixar seus maridos mais mansos, por assim dizer, e conseguir o que queriam. A dança não era sensual, mas o efeito que tinha sobre os homens era incrível. Gertrudes me alertou para não ensinar a umbigada para ninguém, a não ser que fosse caso de necessidade, pois poderia ser uma dança perigosa. Quando Zé Bento me procurou, desesperado para reconquistar Anna do Rosário, pensei que a situação de “necessidade” havia chegado. Era uma dança originária de mulheres, mas o homem estava tão abalo que decidi arriscar. Quando a umbigada aconteceu, eu estava por perto com as outras mulheres. Imediatamente o vento mudou trazendo nuvens consigo. Espero que eu não tenha feito uma besteira. Depoimento transcrito por [M.B.]


interesse com desgosto e caretas quando olhava pra menina sentada à janela. Acabou que Anna casou-se com um moço de família e acomodou-se. Aparentemente aquietada, agora saía de casa pra ir até dona Gertrudes, viúva de seu Manoel Correa, pra fiar algodão. O que pra mim e, cá pra nós, era pura enganação geral: dona Gertrudes não era mulher de respeito e desde que enviuvou rodava a saia por aí. E no diz-que-diz de tantos bailes, ela aprendeu a dançar a tal da umbigada. E no diz-que-diz das ruas daqui, ela tomou conhecimento de uma feiticeira que jurou a alguém que a umbigada seduzia e fazia o amor brotar. Esse caso era do nosso - meu e das outras ciganas - interesse. Aconteceu que certa noite de lua enquanto esperávamos uma das nossas – Makri - enxergamos o tal do José Bento correndo absurdamente rápido vindo do centro e escondendo-se nas encostas da rua. E da outra direção da rua vinha Anna, afobadíssima, olhando para os lados e com os cabelos revoltos pelo vento forte. Foi tudo tão rápido, mas a cena às vezes me vem e repete lentamente. Makri chegou falando pra irmos embora, então Zé Bento pulou na estrada e Anna sorriu. Zé Bento fez uma careta e Makri nos puxou pelas saias, pedindo pra irmos embora. Zé Bento, com as mãos fervendo, segurando a cintura de Anna que agora parecia assustada e Makri não parava de nos alertar para o vento que estava mudando. E mudava, rugindo. A umbigada aconteceu e Makri se deu conta e nos soltou: tudo se uniu e um trovão barulhento fez explodir o céu. Zé Bento rindo e rindo passou por nós e correu pra longe. Nós permanecemos paradas, sem saber o que fazer. Anna desmaiada na rua e Makri murmurando baixinho que isso era “muito interessante, muito interessante”. O desenrolo da história findou em um processo do marido de Anna em Zé Bento, mas isso pouco importa. Importa tão pouco quanto o tamanho da minha casa. Até porque nós fomos embora, já que tanto vento trouxe pra cima de Mirim, nuvens que escureceram os dias e esconderam a lua. Historieta narrado por Raio de Sol

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Depoimento de Jurema Quando contam essa história aqui em Mirim, é um bafafá. Que a Gertrudes tinha fama de feiticeira é bem sabido, agora que ela poderia fazer algum mal praquela porcelana que era a Anna já era demais pra acreditar. Além disso, parece aquela história boba da Bela Adormecida: Anna ir fiar algodão e voltar em transe e com o dedo pingando sangue. Sei de quem fale que Zé Bento e José Soares tinham um caso mal resolvido – e falo de caso amoroso mesmo. Parece que quando José Soares casou com Anna, foi por raiva de Zé Bento, que tinha fugido pra capital. Daí veio o caso da umbigada, logo depois de José Soares ir ter com a Gertrudes, pedindo que recebesse Anna, porque ele ia pra capital. Tiveram boatos de que Zé Bento foi encontrado na praça, esperando o ônibus pra capital, no dia seguinte. José Soares só deu parte ao juiz, porque “os negócios” não saíram como o planejado. Coincidência, né?! Depoimento transcrito por [H.]


O amor é hiper quântico, sim sinhô! Era um dia como qualquer outro. Outro dia qualquer. Eis que me chega uma notícia: meu padrinho adoeceu na capital. Quando se vive no interior - onde o tempo não corre, mas caminha ou trota de acordo com o cavalo e sua carruagem, e onde o relógio é o lembrete da nossa condição mortal - qualquer notícia do mundo de lá pode ser assustadora e essa que recebi não seria diferente. Teria que me mudar. De cidade, pelo menos. Meu padrinho Chico Bento, homem de posses e poses, tinha adoecido, e meu pai, Joaquim Bento, não pôde ir, teve que ficar em Mirim. Tomei as rédeas da situação: fui eu tomar conta da empreitada. Naquele instante da minha vida, estava meio enrolado com coisas de mulher – elas que são deusas, medusas, meia dúzias, muitas... Anna do Rosário, uma rapariga daquelas que nunca se esquece, era a moçoila que me escravizava de dia e que de noite me fazia seu predador... A que me amava de noite e de dia fazia sofrer sofridas e silenciosas dores. Tivemos que romper o nosso romance por tempo indeterminado. Foi ainda mais sofrido... Anos mais tarde, quando a Mirim voltei, depois de posses e algumas poses, todos estariam contra mim: ‘’Ele foi para lá’’ - esse era o comentário geral – ‘’pegar a herança do tio, viveu nas casas de luzes vermelhas, púrpuras, amarelas, verdes e agora que voltou acha que é feito de cor d’ ouro”! Como é de costume, esqueceram algumas partes da estória e fizeram proposital inversão: Quem cuidou do padrinho Chico Bento quando doente estava? Quem rompeu um romance e trocou a cidade a troco de algumas moedas de ouro e algum conhecimento (in)útil?

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Depoimento de Seo Etevaldo Quando me falaram da umbigada, estranhei muito. Não acredito nesses falatórios sem provas, não. Por mais que Zé Bento tivesse má fama em Mirim, eu soube que ele tinha se endireitado quando foi pra capital. E essa gente toda falando desse acontecido aí... sei não, porque vamos e venhamos: aqui em Mirim, todos obedecem ao Dr. José Soares da Cunha, filho daquele coronel de calça curta. Daí as ciganas contarem uma história com maluquice pra explicar essas coisas da natureza – como essa escuridão que tomou conta da cidade – é uma coisa até aceitável; agora, o povo todo acreditar em crendice e ajudar o doutorzinho a conseguir incriminar uma gente nossa, como é o Zé Bento, já acho demais. Eles devem é estar enchendo o bolso de dinheiro pra contar essa história descabida. Que gente vendida! Depoimento transcrito por [H.]


Era um dia como qualquer outro. Outro dia qualquer. Abri os olhos e me deparei com uma carta em cima do meu livro de cabeceira. Estava no meu quarto, no interior do mundo a alqueires de distância de alguma letrada civilização. A carta carregava um conteúdo que quem uma vez já recebeu poderá me compreender: meu estimado padrinho adoecera. Não dizia de qual doença sofria, mas por certo era uma daquelas sofridas pelos viventes da capital: egotismo. E “ismo’’ não por ser algum movimento intelectual, mas sim do excessivo individualismo, fruto não tão somente das moedas de ouro adquiridas pelo tempo. Fui lá morar. Naquele instante da minha vida, estava meio enrolado com coisas de mulher – elas que são deusas, medusas, meia dúzias, muitas... Anna do Rosário, uma rapariga daquelas que nunca se esquece, era a moçoila que me escravizava de dia e que de noite me fazia seu predador... A que me amava de noite e de dia fazia sofrer sofridas e silenciosas dores. Tivemos que romper o nosso romance por tempo indeterminado. Foi ainda mais sofrido... Anos mais tarde, quando a Mirim voltei, depois de posses e algumas poses, todos estariam contra mim: sofria, agora eu-sujeito-material, de egotismo. O que algumas moedas de ouro não fazem... E foi então que reencontrei Anna do Rosário, quão bonita a rapariga estava! Que boa surpresa! Em sua mão esquerda, talvez por infortúnio do acaso ou da másorte, um brilhante anel de ouro que socialmente significa: estou casada. Feliz ou não - o que agora não vem o caso - casada. Quando um dia ela foi fiar algodão daqueles futuros fios tecidos na região mais isolada da cidade - por vingança, ato de amor ou desvario qualquer - aconteceu a umbigada. Talvez o acontecido fora ontem, talvez hoje. Vai saber! Historieta narrada por L!

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Depoimento de José Ignácio Eu sempre falei pro Zé: Aquela Anna do Rosário não é flor que se cheire. Ela era espevitada demais, tinha cara de santa, mas fazia coisas do arco da velha. Ao menos era o que a gente escutava, e isso só o que o pai dela não conseguia censurar. Mas o Zé é um tolo! Ficou completamente enrabichado pela moça, depois de um simples sorriso – que, confesso, ela também já tinha dado pra mim. Daí ele ficava pregando peças em todo mundo quando era pequeno, pra chamar a atenção dela, porque ela achava graça. Acabou fazendo inimizade com muita gente da cidade. Tanto que acho que só eu ainda sou amigo do cabra agora, depois de tanto tempo. Por isso nem estranho todo mundo dizer que ele deu uma umbigada na dita. Mas eu ainda acho essa história muito mal contada, porque eu encontrei o Zé, no dia seguinte, dormindo na praça, completamente sem memória e desnorteado. Acho que aprontaram pra ele. Depoimento transcrito por [H.]


Editorial: Me pediram para apresentar pr’ocês o pessoal da Travessa em Três Tempos, dizem que é um pessoal de uma revista histórico-literária que tem como objetivo o entretenimento do público em geral ao brincar com as diferentes versões da história. É verdade! Eles falam por aí, que na história não existe uma verdade, mas várias. E é por isso que eles se propõem a colocar a imaginação – histórica ou não - pra funcionar e criar novas versões dos fatos trazidos prontos pelos documentos históricos. Eu, pessoalmente, acho o pessoal da Travessa gente boníssima e sei que eles se esforçam para contar pra gente as mais criativas histórias. Sei também que eles são gente receptiva e quem quiser participar da revista pode se achegar, nesse ano de 2011 foram doze textos de pessoas que quiseram fazer parte dessa trupe, incluindo texto de gente que mora bem longe daqui. Eles me pediram para agradecer quem mandou os seus textos e disseram que sua participação foi bem importante para a revista ter continuidade. Eu sei também que esse ano foram lançadas cinco edições da revista, cada uma com seu devido tema: teatro, música, fotografia e cinema. Ah! Essa daqui é uma edição especial e fala do umbigo da pobre Anna do Rosario, ou quase isso. Foram 750 exemplares distribuídos gratuitamente – e teve até cerimônia de lançamento, homenagem, exposição de foto e oficina de confecção de blog. Esse pessoal é muito chique! Quem não conseguiu pegar seu exemplar impresso não se aperreie que tem edição da revista disponível para download na internet. Eu acho essa coisa de modernidade o máximo! E vai ter mais no ano que vem! O pessoal da Travessa já está pensando nas ações para 2012, ainda tem muita literatura pela frente. Se ocê gostou do trabalho da Travessa e ficou com vontade de participar também, fique atento que não demora a abrir edital de participação. Mais um recadinho e eu sigo meu rumo! O pessoal da Travessa faz parte do Laboratório de Imagem e Som da UDESC, são um projeto de extensão, e me pediram para agradecer as professoras Márcia Ramos de Oliveira e Mariana Joffily, que são quem ajudam eles por lá. Prontinho! Agora é só ocê aproveitar a revista e ter um boa leitura. Espero que a gente ainda se encontre por aí! Inté!


Ficha Técnica: Atenção! As historietas, depoimentos e nomes contidos nesse exemplar são todos fictícios. Documento Base: Alberto Romero, “O Assunto é Jornal”, Editora Ouvidor, Rio de Janeiro; Antonio Chaves, Lições de Direito Civil, Parte Geral, vol. 3, Editora Bushatski, São Paulo, 1972; apud Leib Soibelman, Enciclopédia do Advogado, Editora Rio, p. 672) Textos de Redatores: Ana Terra de Leon - Hellen Martins Rios - Luccas Neves Stangler Taiane Santi Martins - Tainah Lunge Capa: Foto: Mariana Rotili

Arte e design: Taiane Santi Martins

Revisão:

Edição e Diagramação:

Hellen Martins Rios

Taiane Santi Martins

Equipe Travessa em Três Tempos: Ana Terra de Leon - Hellen Martins Rios Luccas Neves Stangler - Mariana Rotili Taiane Santi Martins - Tainah Lunge Idealização:

Apoio e Orientação:

Taiane Santi Martins

Prof° Márcia Ramos de Oliveira Laboratório de Imagem e Som – LIS Endereço para contato:

revistatravessa@gmail.com -

@revistatravessa

http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com www.wix.com/revistatravessa/travessaemtrestempos


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