Sumário: Silêncios .................................................................................................. 02 Além de mim, até aqui ....................................................................... 04 Depoimento de K. ................................................................................. 04 Depoimentos de M. .............................................................................. 05
É primavera ........................................................................................ 06 Depoimento de B. .................................................................…….…....... 06 Depoimento de L. .........................................………................................ 07
Uma outra mulher ............................................................................. 08 Depoimento de T. ..................................... …………................................ 08 Depoimento de D. .............................…............................................... 09 Depoimento de E. .........................…..................................................... 10
Um Merlot e outras histórias ........................................................ 11 Depoimento de um anônimo ................................................................. 11 Depoimento de uma testemunha ocular .............................................. 12 Depoimento de um qualquer ................................................................. 13
O motorista ..........................................................................................14 Depoimento de J. .................................................................................. 14 Depoimento de S. ................................................................................. 15
O peso do silêncio .............................................................................. 16 Depoimento de R. ................................................................................. 16 Depoimento de G. .................................................................................. 18
Editorial................................................................................................ 18 Como participar .................................................................................. 18 Ficha Técnica .................................................................................... 18
Silêncios... ''Irarrazabal chama-se a rua por onde caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível, pois jamais conseguimos pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que vimos passar um caminhão cheio de cadáveres. Era uma tarde de setembro de 1973, em Santiago do Chile, perto da praça Nunoa, a apenas alguns minutos do toque de recolher.
Caminhávamos rumo à Embaixada da Argentina, deixando para trás uma parte gelada da cordilheira dos Andes e tendo à nossa esquerda o estádio nacional, para onde convergia o grosso tráfego militar na área.
Na esquina com a Rua Holanda, somos abordados por alguém que nos pede fogo. Uma pessoa parada na esquina. Parecia incrível que se pudesse estar parado na esquina, naquele momento. Vera me olhou
“Coitado, vai cair breve nas mãos da polícia.”
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com espanto e compreendi de estalo o que queria dizer:
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Ele se curva para acender o cigarro e vemos seus dedos amarelos. A
chama de fósforo ressalta as olheiras de quem dormiu pouco ou nem dormiu. Certamente era de esquerda, o cara parado na esquina. E, como nós, estava transtornado com o golpe militar, tentando reatar os inúmeros vínculos emocionais e políticos que se rompem num momento desses.
Tive vontade de aconselhá-lo: se cuida, toma um banho, não dá
bandeira, se manda, sai da esquina. Mas compreendi, muito rapidamente, que seria absurdo parar para conversar na esquina de Irarrazabal com Holanda, naquele princípio de primavera. (...) Se ficássemos na rua seríamos certamente presos e teríamos, pelo menos, algumas noites de tortura para explicar o que estávamos fazendo no Chile, durante a virada sangrenta que derrubou a Unidade Popular. Pessoalmente, teria de explicar por que me chamava Diogo e era equatoriano. E não me chamava Diogo nem era equatoriano. Tratava-se de um passaporte falso, de um português que emigrara para Quito, e que me dava margem para falar
espanhol
com
sotaque.
Português
naturalizado
equatoriano,
caminhando ao lado de uma brasileira e de uma alemã, sem tempo, portanto,
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para das conselhos.’’
GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Companhia das Letras, 2009. (PP.10-11) Florianópolis - maio de 2013
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Além de mim, pra além de aqui Eu caminhava pelas ruas e já me sentia essencialmente acostumada com essa falta de visibilidade. Magra, esfomeada, as roupas rasgadas, os cabelos desgrenhados, minha boca seca há muito que não sabia direito o que era saborear um prato cheio de refeição de almoço, bem servido, cheirando a mil temperos. Era começo de verão e eu estava encolhida num canto de um banco, buscando o calor que minha pele não continha. Na minha cabeça eu lembrava as histórias que a vó desdentada costumava contar pra mim e pros primos antes de fechar os olhos e sonhar, debaixo de cobertores de retalhos; me perdia nas distrações e me importava então em somar os dias de jejum forçado... pra daí poder pensar no moço que eu vi baleado jogado na rua, algumas esquinas e meses atrás. Por três momentos fiz esse exercício de passear em ida-e-volta num caminho que me apresentava o frio, a fome e a morte entre as flores sem perfume nenhum. Eu pisquei, voltando à consciência do agora, e fora da minha cabeça tudo permanecia sob as roupas do Caos. Além do moço, me recordo de mais duas pessoas agredidas, tropeçadas uma sobre a outra. E caminhões cheios de cadáveres. Florianópolis - maio de 2013
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Depoimento de K. Ontem achei um pedaço de jornal nas ruas, devia ter sido soprado pelo vento, diretamente da casa de um dos compatriotas que – à toa – tenta descobrir o que houve com esse país. A mídia não fala a respeito dos caminhões repletos de cadáveres que passam pela Irarrazabal todas as noites; o jornal não publica a foto do homem espancado por fumar o seu cigarro no lugar errado e na hora errada; no rádio não se escutam o choro das crianças que perderam os seus pais. Mas eu vejo os corpos, eu ouço os sons da violência e o choro das crianças inocentes deste país. Aqui na rua eu vejo e ouço tudo e é na rua que sinto meu peito doer... de medo, de indignação, de impotência. Depoimento transcrito por [M.B]
O céu chora. O jornal que me enrola não me conta das coisas que eu quero saber e nem de como toda essa bagunça armada e violenta começou. Mas pelas ruas as pessoas me contam - mesmo sem enxergarem que estou por perto e sem saberem que escuto. “O mar revolveu pessoas pra terra e num prédio grande choveram bombas”.
Tem gente que se recolhe no outro canto do banco e chora com o céu, lágrimas cinzas de uma tristeza tão enorme e de muito tempo. Essas lágrimas não terão destaques televisivos.
Historieta narrada por Raio de Sol
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Depoimento de M. Um homem foi agredido ontem à noite. Eu assisti a quase toda a cena, mas a cena não me assistiu. Os militares sequer perceberam que um grupo de pessoas observava as suas ações no meio de papelões e lixo. Tínhamos encontrado um bom abrigo para a noite – por aquela noite – o papelão nos servia de cama e cobertores, enquanto o lixo impedia o vento de nos alcançar. Mas não pode impedir que o som da agressão nos chegasse aos ouvidos, mesmo depois de virarmos os olhos para outro lado, tentando apagar aquela cena de nossas mentes. O pior não é o barulho, o som da violência que penetra os ouvidos e massacra o coração; o pior é o silêncio que se segue. O silêncio de mil gritos presos na garganta. O silêncio é que oprime! Depoimento transcrito por [M.B]
É primavera... Estava na esquina da Irarrazabal com Holanda. Minhas convicções políticas me faziam estar do lado esquerdo da margem da calçada. A morte parecia inevitável. Se há corrupção, é porque há quem se corrompa. Mas como corromper a Morte, como escapála? Conhecia a Morte quando ainda era pequeno. Fez-me uma visita inesperada: foi quando meu avô paterno falecera – à época, eu tinha uns 5 anos. Desde então, Ela me visitava de quando em quando. Naquele momento, no Chile, rezava para que Ela viesse para podermos dialogar. Quem sabe jogar xadrez com tal figura fúnebre, como no filme de Bergman. Ao menos, adiaria a minha ida ao outro lado do rio. A classe operária já havia ido ao paraíso, mas, confesso, não tinha nenhuma pretensão para prestar minhas contas perante a Ele. Coisas de gênero: preferia conversar com Ela a ter que me justificar para Ele. Eu, pensei, bem que aceitaria uma aposta tal qual Fausto o fez. Onde estás, Mefistófeles? Ele, para a minha tristeza, não vem. Certamente devia estar entretido com outros sujeitos mais interessantes, mais alinhados à Pinochet ou coisas do tipo.
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Depoimento de B. Naqueles tempos até fumar um cigarro sozinho na noite era motivo para desconfianças. Não é fácil viver em tempos de ditadura! Eu assistia o homem sozinho na esquina da Irarrazabal com a Holanda, fumava um cigarro apagado e tinha ares de quem pensava coisas reacionárias. Me parecia que a qualquer minuto aquele sujeito tiraria do bolso a sua bandeira vermelha e com ela sairia gritando pela rua, palavras de revolta... Mas isso não aconteceu! Quando vi um grupo se aproximar do sujeito e um homem se estender a mão que segurava alguma coisa que eu não podia identificar, senti meu coração acelerar. Era a prova! Eram comunistas! Mas o objeto suspeito era apenas um isqueiro... no final das contas o cigarro estava apagado pois o dono não tinha fogo. É difícil viver em tempos de ditadura! É difícil viver em tempos de desconfiança! Depoimento transcrito por [M.B]
Não conseguia me conter. Estava abatido, sem muita esperança, sem muito o que fazer. Quando a Morte se aproxima – sentia um odor de putrefação a poucos metros de
mim... – a solidez do chão se derrete. Onde se apoiar? Já havia em mim um ar de derrota. Coisas de bancarrota. Blues? Em momentos de desespero aceita-se, inclusive, música Imperialista. E não é o poder que todos querem? Respiro. Coloco a mão no meu bolso. Busco um cigarro de marca americana para acalmar os ânimos de uma derrota socialista. Anos depois descobriria que não haveria nenhuma contradição nisso: a foto de Che Guevara estampada em camisetas, facilmente encontrada nos países supostamente avessos à Revolução dos barbudos de Sierra Maestra, estava à venda. Falta-me, no entanto, um isqueiro. A poucos metros de mim, um grupo se aproxima. Outros desiludidos? – meditei. Por uma causa maior, minha identidade já havia se perdido e agora que esses pensamentos inundavam o meu ser, já não lhes poderia descrever em qual idioma penso, de onde eu vim, quem eu sou e, caso sobreviva, para onde irei? Arrisquei um castelhano improvisado, peguei a caixa de fósforo do pretenso camarada – proletariado de todo mundo... – e me
tranquilizei um pouco mais com o cigarro. Senti vontade de lhes perguntar o que achavam de tudo isso o que estava acontecendo, mas resisti. A primavera estava chegando...
Historieta narrada por [L!] Florianópolis - maio de 2013
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Depoimento de L. Estávamos andando pela Irarrazabal, eu me perguntava silenciosamente o motivo de tudo aquilo – das mortes, da violência, da opressão, do silêncio. Perguntava a mim mesma, o que seria de mim? Para onde teria ido minha identidade, afinal?! Nos aproximamos da esquina com a rua Holanda, havia um homem na esquina que falou qualquer coisa com Diego num castelhano engasgado. Não consegui entender, se quer prestei atenção ao diálogo já que estava perdida em meio aos meus pensamentos. Continuamos nosso caminho depois de Diego entregar qualquer coisa ao homem. Dentro de mim as dúvidas e questionamentos permaneceram. Quis voltar e perguntar àquele homem o sentido de tudo aquilo. Mas tive medo da resposta... Depoimento transcrito por [M.B]
Uma outra mulher O golpe militar me transformou numa pessoa diferente, não somente por causa do nome que fui obrigada a abandonar. Eu tinha um nome diferente, sim! Mas também me tornara uma mulher diferente, mais dura e fria. Vi tantos horrores naquela época que a única saída para manter minha alma foi trancafiá-la a sete chaves. No início, o número de mortos e a crueldade da polícia me chocavam. A hipocrisia dos discursos me fazia sentir vontade de vomitar. Mas naquela noite de setembro a
minha maior preocupação já não era com o horror a minha volta, nem a injustiça. Acho que até a luta já começava a bater mais fraca no meu coração. Já não me importavam tanto inclinações políticas ou sonhos aparentemente impossíveis. Eu me preocupava em ver o nascer de um novo dia. Era nisso que pensava enquanto caminhava ao lado de Diego pela rua Irarrazabal. Você deve pensar que o golpe me fez perder o juízo, mas dei o meu jeito de esquecer o nome de meu homem, do mesmo jeito que dei um jeito de esquecer o meu. Não me dava ao luxo de chama-lo pelo nome verdadeiro, nem quando estávamos sozinhos na intimidade. Eu temia que se o fizesse, um dia, deixaria seu nome escapar pelos meus lábios. Florianópolis - maio de 2013
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Depoimento de T. A violência lhe transforma, não tem como passar imune por ela! Em tempos de violência à noite você reza para que no dia seguinte seu coração continue limpo, puro. Já não sei mais dizer quantos foram os caminhões amarrotados de gente que vi passar por aqui. Caminhões que cheiravam a sangue e morte. Já perdi as contas dos espancamentos e prisões injustas. A morte, hoje, caminha ao nosso lado esperando o momento de nos pegar pela mão. Quando o medo e a repressão viram lei, a gente torce e luta com todas as forças para continuar sendo quem se é. Depoimento transcrito por [M.B]
E ele seria tirado de mim. Carregado à força e nunca mais sentiria seus braços ao redor de meu corpo. Era uma espécie de preocupação egoísta. Diego era um bom homem, preocupava-se com tudo e com todos. Era por isso que eu sabia o que ele tinha em mente quando cruzamos com um sujeito na esquina da Irarrazal com a rua Holanda. O sujeito estava sujo e mal vestido, tão atordoado quanto
eu estava nas profundezas de meu ser. Tentava acender um cigarro com um fósforo que estava prestes a se apagar. Olhava para baixo, mas quando nos aproximamos ele levantou o olhar – vi naqueles olhos a tristeza de todo um povo e meu coração se apertou, quase tanto quanto a minha garganta. Eu sabia qual seria seu destino, eu quase pude vê-lo passar na frente de meus olhos. Olhei para Diego, em parte querendo dividir aquele sentimento de pesar pelo qual eu estava sendo invadida. Em parte, pedindo mentalmente para que nos afastássemos o mais rápido possível. Ele pareceu compreender meus desejos mentais e seguiu o caminho que tínhamos na frente de nossos pés. Mas antes, entregou ao homem seu próprio isqueiro. Florianópolis - maio de 2013
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Depoimento de D. Para mim o golpe militar até que me foi útil, nunca faturei tanto quanto nos primeiros anos de repressão. Os vermelhos precisavam de novas identidades e era eu quem as providenciava. Sempre fui o melhor em falsificações. Por favor, o senhor não me entenda mal. Não fui eu quem deu o golpe, não fui eu quem instaurou o regime militar... não me culpe por lucrar com a situação. Na verdade eu até simpatizava com os comunistas, graças a mim é que eles conseguiam seus novos passaportes e sua liberdade. Eu estava lhes fazendo o bem. Que mal há em eu ter ganhado muito dinheiro com isso? Foi merecido! Depoimento transcrito por [M.B]
Depois de alguns passos peguei suas mãos e trancei nossos dedos. Foi um carinho rápido, eu não tinha mais coragem de passear pelas ruas de mãos dadas como se a vida ao nosso redor continuasse o que tinha sido outrora. Mas naquele momento, eu precisava sentir o calor de sua pele. Não importava o que aconteceria a seguir. Não importavam mais quais eram as minhas inclinações políticas. Não importava mais no que eu acreditava. A luta de Diego seria sempre a minha luta, porque eu o amava com todo o meu ser. E o tempo... o tempo havia me mudado.
Historieta narrada por Maria Bonita
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Depoimento de E. Eu ainda tenho esperança de ver dias melhores. Semana passada quando eu dormia na rua, próximo a Irarrazabal, eu vi um gesto que tocou meu coração. Um grupo passou por um homem solitário que tentava acender um cigarro, eles trocaram algumas palavras – poucas. Parecia que o sujeito solitário pedia auxílio e um isqueiro foi estendido para lhe auxiliar a completar sua tarefa. O pequeno grupo se afastou, ao lado do homem que emprestou o isqueiro ao desconhecido caminhava uma mulher – bela, mas triste. Os olhos do casal se encontraram e mesmo de longe vi que eles se deram as mãos. Foi um gesto rápido, não era mais seguro essas demonstrações de carinho na rua, mas foi um gesto tão cheio de amor e de cumplicidade. Ainda existe amor nessa terra! Meu coração pode manter esperanças! Depoimento transcrito por [M.B]
Um Merlot e outras histórias Anos depois daquela balbúrdia, esforço-me ao máximo para lembrar-me dos fatos. O que primeiro vem à minha memória, estranhamente ou não, é um conto de Jorge Luis Borges – Funes, el memorioso – onde o narrador evoca a palavra recordar e sente um mal-estar ao pronunciá-la, uma vez que não se sente digno de tal façanha. Por que o olhar para o passado, agora que eu me distancio dele a longos passos, me parece uma atividade para lá de nostálgica? O que de verdade terá nessa rememoração? E o que daquela pessoa de ontem terá ainda hoje em mim? O narrador do conto de Borges hesita ao pronunciar a palavra recordar; aprendi, para além dela, temer apresentar-me com um ‘eu’, palavra demasiadamente corroída... Quanto de mentira haveria nesse único eu? Se fosse possível encontrar com aquela pessoa de ontem, um dos meus eus, quantas coisas diria? Os fatos dessa narrativa são de um tempo tenso, repleto de conflitos políticos. Chile, 1973. Um historiador profano bem que poderia traçar diversos paralelos: nessa mesma época; Fela Kuti retornava à sua pátria, Nigéria, após ir aos Estados Unidos e ter contato com o movimento Black power. Ao profanar um pouco mais, poderia se falar de George Clinton e do Parliament-Funkadelic entre outros tantos fatos. Florianópolis - maio de 2013
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Depoimento de um anônimo O homem, escreve Emil M Cioran, é livre, salvo no que tem de mais profundo. E o que a profundidade nos revela? Quantos de nós chega a de fato se conhecer? Conhecer-se é um ato de coragem e talvez por isso poucos são os que ousam a se questionar. Seria o medo de descobrirmos quem realmente somos que nos força a vestir diariamente novas máscaras? Mas, afinal, quem seria aquela que se juntou à Vera e ao Fernando? E por que olha para o passado com tanta nostalgia? Àquela época, muitas lutas e muita confusão também. Os rostos e nomes pouco interessavam, à medida que a causa pela qual lutavam era maior do que a luta de egos, hoje ainda mais comum nos corredores acadêmicos do que tempos atrás. Acumula-se conhecimento para compensar a pobreza e o vazio interior. Depoimento transcrito por [L!]
Mas isso, agora, não vem ao caso. Refiro-me ao país de Pablo Neruda, 1973, ano em que o poeta chileno faleceu. Não estávamos no Chile para ir a Valparaíso, onde se pode andar de funicular – uma espécie de bonde - e avistar belas paisagens do Pacífico e onde estão, assim se acredita, as chilenas com as mais belas pernas devido às inclinações dos morros. Estávamos na capital, Santiago, rodeados de carabineros, em meio à Rua Irarrazabal. Quem éramos? Mesmo que quiséssemos revelar as nossas identidades quando interrogados, o quanto de falso em nós haveria? Houve um tempo em que se podia dizer que existia uma causa pela qual lutar. Aquele, para mim, era o tempo. Em meio aos alcaloides, realidades inventadas, universos paralelos, contracultura, sonhos psicodélicos, havia algo que acreditávamos ser concreto. E era por isso que me juntava ao Fernando e a Vera.
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Depoimento de uma testemunha ocular Hoje me pergunto se todo aquele turbilhão de acontecimentos que movimentou os anos 70 também não teve relação com aquela lista quase infinita de músicas com uma qualidade incrível. Ser revolucionário estava na moda, disso não temos dúvida. Isso talvez porque mudar o mundo fazia parte do cardápio de cada um. Mesmo que isso não fosse uma verdade e isso tudo seja uma forma simplista de generalizar os fatos, lutou-se. E muito. Essa luta assombraria as gerações futuras, legando-nos a responsabilidade de também fazermos a nossa parte. Mas o que era um sonho tornou-se um pesadelo. Nossos ideais estão à venda por um preço muito baixo - são consumidos a todo instante. Estar ao lado de Fernando e Vera, fazia de Ana (esse era o nome que constava em seu falso passaporte) mais uma companheira. Estar em Santiago, fazer parte daquele momento, é algo que hoje se perde em sua memória. Depoimento transcrito por [L!]
À caminho da embaixada da Argentina, na Irarrazabal, avistamos alguém com cara de súplicas. Como se fosse possível ler os seus pensamentos, sentia-se exausto, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Pediu fogo, mas, tive a impressão de que queria mesmo ajuda, alguém que lhe dissesse: Allende ainda vive e continuará no poder... Mas não era isso que acontecia. Agora que tomo um Merlot de Concha y Toro, essas memórias soam como uma novela que nunca aconteceu a não ser em algum lugar dentro de mim. Onde estaria aquela que eu era ontem? Luxemburgo, verão de 2013.
Historieta narrada por [L!]
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Depoimento de um qualquer A noite estava prestes a chegar. Tumulto por todos os lados. A lua, que pouco a pouco se chegava, esperava ser contemplada. Como nós ousamos a nos colocar em um pedestal se não observamos a beleza da totalidade? Somos fragmentos de um todo. A tragédia e a comédia são duas faces de uma mesma moeda. Aqui, nesse mundo, estamos: o que aqui fazemos? Lutamos – essa será uma espécie rara: os que lutam por algo. Engalfinhamo-nos em teorias, de esquerda ou de direita, para nos perder no meio da multidão. Assim, não ficamos a sós. A solidão é o fardo daqueles que poetizam a vida. E o sonho é a realidade daqueles que creem. Vera, Fernando, Ana. E o que isso representaria senão nomes, signos, representações? Representam um sonho, a chama de uma vela... Depoimento transcrito por [L!]
O motorista É, pelo menos, perturbador pensar em certas palavras quando se vive uma guerra. Quem, por exemplo, ousaria pronunciar a palavra ética ao ver um milico dirigindo um caminhão cheio de civis putrefatos? Pois bem, esse é meu ganha-pão: dirigir um automóvel infestado de ex-seres, biografias que tiveram um fim... Acabei parando nisso por conta do serviço obrigatório. Na vida, acabei descobrindo com o passar dos anos, somos forçados por certas pressões – obrigatórias? – sociais. Minha rotina – essa expressão me causa náusea! – consiste em acordar cedo no quartel, comer o pão que o diabo – e Deus? – amassou, colocar os cadáveres na Scania a qual dirijo e seguir o meu caminho, seja ele qual for. Nada tenho contra os comunistas, sendo que minha única preocupação é ter o que comer, o que vestir e o que beber. A indiferença faz parte do meu café da manhã. Há muita tagarelice política: nada se resolve. Torno-me ainda mais indiferente.
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Depoimento de J. Você me pergunta se eu tenho ideologias como se esperasse que facilmente eu fosse contra ao regime que me sustenta. Veja bem eu sou um militar, posso ser um simples cozinheiro, mas ainda assim um militar. Tu não vai me ver encher a boca para falar as palavras de desordem que me levariam para o mesmo lugar onde são levados os comunistas. Naquele caminhão eu não entro nem para falar com R., que é quem o dirige. Ainda me sinto mais sortudo do que ele, até aprecio a companhia de minhas panelas depois ver a companhia de R.. Você quer saber minha ideologia? Pois vou lhe dizer! Minha ideologia é a minha barriga e a da minha mulher cheias. Depoimento transcrito por [M.B]
Dirigia pela Rua Irarrazabal. Passei por um grupo de quatro pessoas, pareceram-me estrangeiros. Tive calafrios. Apesar de se valorizar – acredito, inclusive, que em demasia – a razão, tenho mais intimidade com a intuição. Ela me dizia: são comunistas! Engoli seco: não sou delator, pensei. Fico perplexo ao verificar que ainda há pessoas que acreditam em outras pessoas. Apenas o respeito às aparências é que nos separam dos cadáveres, escreve Emil M. Cioran. Esse pensamento me assombra e para esquecê-lo ligo meu rádio. Alieno-me com qualquer música desde que se encaixe na minha ordinária vida. Chego ao meu destino – sabia que seria possível, em algum dado momento, comprovar a existência de um destino. Depósitos de biografias, existências e suas estúpidas crises, tudo em um buraco só. Para não perder a viagem, aproveito para - além dos comunistas - depositar todas as minhas frustrações, esperanças e outras tolices humanas, demasiadamente humanas.
Historieta narrada por L!
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Depoimento de S. Sinto calafrios cada vez que vejo R. passando com aquele caminhão. Todos aqui ficam em silêncio, não existe outra maneira de ser... somente o silêncio. Veja bem, eu não entendo direito o que é o comunismo, mas os meus superiores me disseram que é algo que corrompe a sociedade. Algo ruim e que deve ser exterminado. Como eu posso contradizer o general? E, aliás, eu prefiro não me envolver nessas questões políticas. Faço meu trabalho bem feito, é com isso que me preocupo. Eu cuido das questões práticas, assim como R. – coitado, eu sei que se ele pudesse pararia de dirigir aquele caminhão. Mas é assim que as coisas são, o que dois homens podem fazer? Depoimento transcrito por [M.B]
O peso do silêncio Quando eu era pequena minha mãe me contava – não sem um sorriso no rosto – que meu pai tinha feito muito pelo país. Meu pai fora um militar, minha mãe nunca deixou ninguém esquecer esse fato. Aliás, ela sentia-se tão orgulhosa da profissão do marido, como se fosse ela mesma que vestisse um uniforme para sair para trabalhar todas as manhãs. Nas reuniões com as amigas, minha mãe não cansava de dizer – para quem quisesse ouvir - que meu pai ajudara a varrer o perigo vermelho das ruas. Quando eu nasci, no final dos anos de 1980, meu pai já não combatia mais perigo nenhum: nem vermelho, nem verde, nem amarelo e nem azul. Meu pai tinha se desligado do exército, minha mãe tinha ficado furiosa com isso. Mas essas coisas todas eu só sei de ouvir minha mãe me contar – e também por que às vezes meus pais ainda discutiam por causa disso à noite, quando achavam que eu já estava dormindo. Na verdade, nunca entendi o que minha mãe queria dizer com o “perigo vermelho”; sempre achei o vermelho uma cor bonita – se fosse pra combater alguma cor que combatesse o cinza que é todo sem graça. Mas ao que tudo indica, minha mãe não gostava era do vermelho mesmo. Algumas vezes, perguntei para ela porque ela implicava tanto com aquela cor? Minha mãe nunca me respondia coisas como essa, e eu tinha medo de perguntar para o meu pai Florianópolis - maio de 2013
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Depoimento de R. Muitos de nós não tinham ideologias, muitos de nós se quer pensavam que os comunistas eram perigosos e alguns de nós mal sabiam o que estava acontecendo no país apenas seguiam ordens. Eu entendo que isso já seja uma boa razão para se ficar indignado. Você vai me dizer: mas vocês deveriam ter lutado pela liberdade assim como os que morreram fizeram. Eu até concordo com o senhor que isso é muito lindo, lutar por um ideal, pela liberdade, pela justiça, pelo o que quer que seja. Mas os tempos eram outros, naquela época era matar ou morrer. Como você pode me recriminar por ter escolhido não morrer? Depoimento transcrito por [M.B]
pois sempre que alguém tocava nesse assunto, ele fazia uma cara triste. Foi só depois que eu cresci e fui para a turma mais avançada no colégio que entendi o que minha mãe queria dizer. Meu país tinha passado por um regime militar, meu pai era do exército e para conseguir sustentar a família ele dirigia um caminhão cheio de gente morta: comunistas – o perigo vermelho, como minha mãe dizia. Acho que minha mãe nunca soube o que o marido realmente fazia no exército. Eu descobri depois de muito insistir para que meu pai falasse. Quando me contou, ele encheu os olhos de lágrimas e me pediu desculpas pelas coisas que tinha feito. Ele nunca matara um comunista – foi o que disse. Mas o seu silêncio matou muitos. A ditadura acabou poucos anos depois que eu nasci, meu pai já não dirigia mais aquele velho caminhão. Ele saiu do exército porque já não conseguia mais aguentar o peso daqueles corpos, o cheiro de morte, a sensação de que tudo aquilo estava errado. Mas o seu silêncio? Esse ele teria que carregar por toda a sua vida. É isso que vejo nos olhos do meu pai todos os dias: o peso do seu silêncio. A culpa. Como posso julgá-lo? Ele é meu pai.
Historieta narrada por Maria Bonita Florianópolis - maio de 2013
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Depoimento de G. Eu soube de soltado que conhecia comunista e nunca denunciou. Você tem que entender que em situações como essa não existe um mocinho e um bandido. Tinha muita gente que concordava com a matança e a violência, e acreditavam que aquilo estava sendo feito por um bem maior. Desde que eu vivi a ditadura que eu não acredito mais em bem maior. Alguém sempre morre por um “bem maior”. Sempre tem bandido e mocinho para todo o lado, eu quero é que ambos se explodam, isso sim! Depoimento transcrito por [M.B]
Editorial: Olá! Nós somos a Revista Travessa em Três Tempos. Ouve-se pelos corredores que o âmago desta idealização nasceu despretensiosamente, em blog, com o objetivo de três autores-amigos pass[e]arem pelos três tempos históricos, tendo a travessa como cenário, sem ser revisitada. De mais, “não sei, só sei que foi assim...” Hoje, somos um projeto de extensão do Laboratório de Imagem e Som da UDESC. Nos definem como revista histórico-literária e dizem que nosso objetivo é o entretenimento do público em geral ao brincar com as diferentes versões da história. Bem, concordamos com isso! Porque, como bem sabemos, na história não existe uma verdade, mas várias. E é por isso que a gente se propõe a colocar a imaginação – histórica ou não - pra funcionar e criar novas versões dos fatos trazidos prontos pelos documentos históricos. Assim, a revista se forma, com várias possibilidades para a história principal. Dizem que dá um bom resultado. Confira!
Como participar: Que a Travessa em Três Tempos é uma revista que narra a história de todas as formas possíveis você já sabe. O que talvez você não saiba, é que pode participar disso e contar a sua versão – como você gostaria que a História se desenrolasse? Você é quem tece: damos o tema, a fonte, alguns fatos. A você cabe inspirar-se e escrever! No endereço http://revistatravessaemtres tempos.blogspot.com.br/, você pode acompanhar os editais e mandar sua história! Conte, reconte, aumente quantos pontos quiser – desde que sua narrativa não tenha diálogos e tenha a ver com o documento (para mais detalhes, consulte os editais).
Ficha Técnica: Atenção! As historietas e depoimentos contidos nesse exemplar são todos fictícios. A Revista Travessa em Três Tempos não tem como objetivo apoiar nenhum tipo de ideologia ou posicionamento político. Nosso trabalho tem por objetivo proporcionar a reflexão crítica. Documento Base: GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Companhia das Letras, 2009. (PP.10-11) Textos de Redatores: Luccas Neves Stangler– Taiane Santi Martins - Tainah Lunge
Capa:
Revisão: Taiane Santi Martins
Foto: internet
Edição e Diagramação:
Arte e design: Taiane Santi Martins
Taiane Santi Martins Equipe Travessa em Três Tempos: Luccas Neves Stangler Taiane Santi Martins - Tainah Lunge
Idealização: Taiane Santi Martins
Apoio: Laboratório de Estudo de Cidades – LEC Orientação: Profa. Mariana Joffily Endereço para contato: revistatravessa@gmail.com @revistatravessa http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com