História da Educação - RHE - n. 18

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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 18 Setembro - 2005

Publicação financiada pelo Programa de Auxílio-Editoração do CNPq História da Educação

Pelotas

n. 18

p. 1-208

SEMESTRAL Setembro 2005


HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ASPHE Presidente: Maria Helena Câmara Bastos Vice-Presidente: Maria Stephanou Secretário: Claudemir de Quadros Conselho Editorial Nacional Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) Dr. Lúcio Kreutz (UNISINOS) Dr. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS) Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Conselho Editorial Internacional Dr. Alain Choppin (INRP, França) Dr. Antonio Castillo Gómez (Univer. de Alcalá – Espanha) Dr. Luís Miguel Carvalho (Univer. Técnica de Lisboa) Dr. Rogério Fernandes (Univer. de Lisboa)

Comissão Executiva Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Profa. Dra. Eliane Teresinha Peres Consultores Ad-hoc Dra. Beatriz Fischer Daudt (Unisinos) Dr. José Fernando Kielling (UFPel) Dr. Gomercindo Ghiggi (UFPel) Dando. Claudemir Quadros (Unifra) Dra. Giana do Amaral (UFPel) Editoração eletrônica e arte final da capa Flávia Guidotti flaviaguidotti@hotmail.com Imagem da capa Quentin Metsys, O banqueiro e a sua mulher (Museu do Louvre). In: MOURA, Vasco Graça. Damião de Gois e o Livro de Horas Dito de D. Manuel. Arte Ibérica. 1999. p. 14. História da Educação Número avulso: R$ 15,00 Single Number: U$ 10,00 (postage included). História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 18 (Setembro 2005) - Pelotas: ASPHE - Semestral. ISSN 1414-3518 v. 1 n. 1 Abril, 1997 1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel CDD: 370-5


Sumário

Apresentação ................................................................................................ 5 Um exemplo de pesquisa sobre a história de uma disciplina escolar: A História ensinada no século XVII Annie Bruter; Tradução Maria Helena Câmara Bastos ................................ 7 Actividade e Redenção – A Criança Nova em Maria Montessori Alberto Filipe Araújo; Alessandra Avanzini; Joaquim Machado de Araújo ......................................................................................................... 23 Damião Francisco Alves de Moura - o Rio Grande do Sul e a Guarda Aires Antunes Diniz ................................................................................... 47 Notas sobre o Congresso Internacional do Ensino, Bruxelas, 1880 Moysés Kuhlmann Jr. ................................................................................. 59 O currículo escolar nas leis 5692/71 e 9394/96: questões teóricas e de história Fernanda Pinheiro Mazzante ...................................................................... 71 Instrução Pública e Configuração do Mundo Urbano Flávia Obino Corrêa Werle......................................................................... 83 Universidade e comunidade na perspectiva dos movimentos estudantis dos anos 1960 Luís Antonio Groppo.................................................................................. 97 Contribuições à história das relações estado/educação escolar: o período de 1937 à 1946 Lindamir Cardoso Vieira Oliveira ............................................................ 121 A História da Educação no Timor-Leste e os seus distintos Processos de Alfabetização Nilce da Silva............................................................................................ 145 Conflito e ambigüidade entre Jesuítas e Protestantes no Brasil-Colônia através da depredação dos prédios escolares da Companhia de Jesus Rachel Silveira Wrege .............................................................................. 159 O Método Bacadafá: leitura, escrita e língua nacional em escolas públicas primárias da Corte imperial (1870-1880) Alessandra Frota Martinez de Schueler .................................................... 173


Resenhas ................................................................................................... 191 Uma rica história do livro didático e do ensino de História no Brasil Maria Helena Câmara Bastos ................................................................... 193 História e Historiografia da Educação no Brasil Eduardo Arriada ....................................................................................... 195 Documento ............................................................................................... 197 Lei n. 1, de 1837, e o Decreto nº 15, de 1839, sobre Instrução Primária no Rio de Janeiro ...................................................................................... 199 Orientações aos colaboradores.................................................................. 207

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Apresentação

A revista História da Educação, em seu nono ano de existência, mantendo sua periodicidade e cumprindo o objetivo de socializar estudos no campo da pesquisa historiográfica educacional, publica seu 18º número. Neste número, estão publicados onze artigos, sendo que três deles são de pesquisadores internacionais: um sobre o surgimento da história como disciplina escolar no século XVII, da professora francesa do INRP, Annie Bruter; o outro, sobre a liberdade e a atividade da criança no pensamento montessoriano, escrito em conjunto por três pesquisadores, dois deles da Universidade do Minho, Alberto Filipe Araújo e Joaquim Machado de Araújo, e a outra da Universidade de Milão, Alessandra Avanzini; por fim, o terceiro artigo é do professor português Aires Antunes Diniz e trata das ações pedagógicas de Damião Francisco Alves de Moura e suas relações com o Rio Grande do Sul. Os outros oito artigos são de pesquisadores brasileiros e abordam as mais diversas temáticas sob a perspectiva histórica: alfabetização, políticas públicas e curriculares, infância, Universidade, Jesuítas e Protestantes, entre outros. Intencionalmente a revista História da Educação privilegia a diversidade temática, metodológica e teórica, acreditando que a pluralidade de abordagens e temas fortalecerá o debate acadêmico em torno da pesquisa em história da educação, que nas últimas décadas tem experimentando um crescimento vertiginoso. Por fim, como sempre, com o intuito de divulgar obras de destaque na área, a seção Resenhas publica dois trabalhos que apresentam comentários de produções recentes da história da educação. Na seção Documentos, cujo objetivo é disponibilizar fontes para um maior número possível de pesquisadores, estão publicadas a Lei n. 1, de 1837, e o Decreto nº 15, de 1839, que tratam da Instrução Primária no Rio de Janeiro. Um agradecimento especial aos colaboradores deste número e nossa expectativa de uma leitura proveitosa por parte de todos aqueles que se ocupam com o ensino e a pesquisa educacional, em especial da história da educação. A Comissão Editorial.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 5, set. 2005


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Um exemplo de pesquisa sobre a história de uma disciplina escolar: A História ensinada no século XVII1 Annie Bruter Tradução Maria Helena Câmara Bastos

Resumo Partindo de uma breve análise das condições, nas quais se estabeleceram as visões (divergentes) do surgimento da disciplina escolar « história », em curso hoje na historiografia francesa, este artigo propõe-se recolocar a questão na longa duração, remontando os colégios de humanidades do Antigo Regime, mostrando que a própria noção de «disciplina escolar» não é pertinente para descrever seu ensino, analisando certas transformações (sócio-políticas, técnicas, culturais...) que conduziram a constituição da história como matéria autônoma de ensino para as elites no fim do século XVII. Palavras-chave: História; Ensino; Século XVII.

Resumée Partant d’une brève analyse des conditions dans lesquelles se sont mises en place les visions (divergentes) de l’apparition de la discipline scolaire «histoire» qui ont cours aujourd’hui dans l’historiographie française, cet article se propose de replacer la question dans la longue durée en remontant aux collèges d’humanités de l’Ancien Régime et en montrant que la notion même de «discipline scolaire» n’est pas pertinente pour décrire leur enseignement, puis en survolant certaines des transformations (socio-politiques, techniques, culturelles…) qui ont abouti à la constitution de l’histoire en matière autonome d’enseignement pour les élites à la fin du XVIIe siècle. Mots-clés: Histoire; enseignement; XVIIe siècle

1 Título em francês: "Un exemple de recherche sur l’histoire d’une discipline scolaire: l’histoire enseignee au XVIIe siècle". Especialmente escrito para ser publicado no Brasil.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 7-21, set. 2005


A idéia de que os conhecimentos de qualquer ordem que nós dispomos são o resultado de uma construção humana - não o fruto de uma revelação ou de uma reminiscência - é atualmente amplamente admitida, pelo menos entre os pesquisadores que produzem esses conhecimentos; a idéia de que as disciplinas escolares pelas quais esses conhecimentos chegam às jovens gerações são também o produto de um trabalho coletivo, de um conjunto de atores do sistema educativo, que tem dificuldade em conquistar o direito de cidadão na França. Freqüentemente, vistos como cópias das ciências eruditas mais ou menos simplificadas para serem usados pelos alunos, as disciplinas escolares não foram por muito tempo apreendidas pelos historiadores do ensino senão de maneira teleológica, em função das teorias científicas e das concepções pedagógicas que eram as da sua época. É principalmente o caso dos historiadores que tiveram uma grande influência na França no início da IIIª República - época de importantes reformas no ensino em todos os níveis (primário, secundário e superior), como de Gabriel Compayré2 e de Émile Durkheim3: tratava-se bem mais de dar uma genealogia à nova pedagogia que desejavam implantar do que restituir seu sentido original às práticas de ensino do passado, das quais desejavam precisamente se descartar. Ora, a seus trabalhos a história do ensino por muito tempo permaneceu tributária na França no século XX. O ensino da história encontrava-se em uma posição absolutamente especial como objeto historiográfico: por ser considerado instrumento essencial de formação patriótica e cívica na pedagogia dessa época, só podia voltar-se ao seu passado celebrando sua própria instauração, rejeitando nas trevas do atraso mental as instituições de ensino que não lhe atribuíram o lugar de destaque que devia, segundo ele, ser o seu. No âmbito da rivalidade entre ensino laico e ensino confessional - que marcou profundamente, como já sabemos, a vida política e científica do início da IIIª República -, a questão histórica a ser resolvida era, portanto, saber se o ensino da história tinha nascido nos colégios do Antigo Regime essencialmente controlados pela Igreja4 - ou nos estabelecimentos Gabriel Compayré, Histoire critique des doctrines de l’éducation en France depuis le XVIe siècle, Paris, Hachette, 1879, 2 vol. in-8°.

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Émile Durkheim, L’Évolution pédagogique en France (avec une introduction de M. Halbwachs), Paris, Presses universitaires de France, 1938, 2e éd. 1969, 403 p. (curso sobre história do ensino na França proferido por Durkheim na Sorbonne em 1904-1905 e reprisado nos anos seguintes até a guerra).

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É a tese defendida pelos historiadores das grandes ordens dedicadas ao ensino Oratorianos ou Companhia de Jesus: Paul Lallemand, Histoire de l’éducation dans l’ancien Oratoire de France, 1888, réimp. Genève, Slatkine – Megariotis Reprints, 1976, 474 p.; François de Dainville, La Naissance de l’humanisme moderne, 1940, réimp. Genève, Slatkine Reprints,

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originários da Revolução Francesa (escolas centrais, liceus). Semelhante questão, sobre a qual muito se escreveu, não podia chegar a nenhuma conclusão. Os materiais disponíveis são de fato interpretados de diversas maneiras: se definirmos o ensino de história que se tem provando que a história está presente, e mesmo superabundante, nos colégios do Antigo Regime, se definirmos essa disciplina como conjunto de conteúdos, eles demonstram ao contrário, que ela não existia se tivermos uma concepção administrativa da disciplina escolar como entidade regida por disposições regulamentares (um programa, exames, horários, etc.). Um outro fator de incerteza para a interpretação da documentação: durante muito tempo, houve a falta de atenção às especificidades dos colégios do Antigo Regime, como se esses fossem, conforme a uma norma geral, semelhante àquela que, pouco a pouco, se impôs nos estabelecimentos públicos do século XIX. Enquanto em alguns colégios, justapunham-se uma estrutura propriamente escolar; isto é, um conjunto de classes que correspondiam às normas de um plano de estudos, e um pensionato que funciona de maneira bem mais flexível, vindo de encontro aos desejos das famílias; completando-se, assim, a formação dada nas classes através de ensinos especiais5. Ora, no quadro desses ensinos, de certa forma particulares, se desenvolveu uma pedagogia da história prenúncios da de hoje. Na história do ensino na França, portanto, a renovação da problemática que aconteceu no fim do século XX – outra época de perturbações profundas do sistema educativo francês – transformou os termos da questão de duas maneiras diferentes. De uma lado, foi colocado o problema do papel social desempenhado pelos estabelecimentos escolares (seguindo o exemplo da sociologia crítica da educação, que se desenvolve nos anos 1960), diversos estudos revelaram a coexistência, por muito tempo ocultada, de diferentes tipos de educação em certos estabelecimentos do Antigo Regime, em particular nos que reuniam um colégio de prestígio e um pensionato aristocrático6 - como La Flèche e Louis-le-Grand no que diz respeito aos estabelecimentos jesuíticos, Juilly e Vendôme para os que eram mantidos pelos oratorianos. Por outro lado, alguns trabalhos levantaram o 1969, XX-390 p.; du même, «L’enseignement de l’histoire et de la géographie et le "Ratio studiorum"» (1954), art. repris dans François de Dainville (Marie-Madeleine Compère éd.), L’Éducation des jésuites, Paris, Les Éditions de Minuit, rééd. 1991, pp. 427 – 454 Mark Motley, Becoming a French Aristocrat. The Education of the Court Nobility, 1580 – 1715, Princeton, Princeton University Press, 1990, X – 241 p.

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Duas sínteses sobre esse tema: Marie-Madeleine Compère, Du Collège au lycée (1500 – 1850). Généalogie de l’enseignement secondaire français, Paris, Gallimard/Julliard, 1985, coll. «Archives», 286 p.; Dominique Julia, Huguette Bertrand, Serge Bonin, Alexandra Laclau, Atlas de la Révolution française. 2. L’enseignement, 1760 – 1815, Paris, Editions de l’Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1987, 105 p.

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problema da historicidade das próprias disciplinas. Redefinindo-as como produções coletivas das instituições de ensino (e não mais como reflexo simplificado de conhecimentos), André Chervel pode assim mostrar, em um artigo pioneiro7, que a própria noção de disciplina escolar é uma noção recente, que apareceu precisamente ao mesmo tempo em que as reformas de ensino que foram implementadas na virada do século XIX-XX. Essa reformulação permitiu relançar a questão da história do ensino histórico em novos termos e perguntar não somente em que momento apareceu um ensino de história semelhante ao de hoje, mas também em que consistiam a história e seu ensino antes desse momento. Essa questão foi objeto de uma pesquisa empreendida, em primeiro lugar, no contexto de uma tese de didática da história8, retomada em uma jornada de estudos sobre o ensino das humanidades clássicas, organizada por André Chervel e Marie-Madeleine Compère no Service d’histoire de l’éducation do INRP9 -esse estudo resultou em uma obra sobre a história ensinada no século XVII10. Embasada em materiais diversos, compreende tanto os planos de estudos em vigor e os exemplos de "liçõesmodelos" propostos aos professores na época, quanto tratados sobre a educação e os resumos de história utilizados para fins pedagógicos (condição atestada por testemunhos da época e a confusão seguidamente feita entre os resumos do Antigo Regime e os "manuais" de hoje era de natureza a deturpar a interpretação do material documental). O campo geográfico abarcado é a França, não por desinteresse pela comparação nesse domínio, mas porque as fontes mais facilmente acessíveis, no contexto de uma pesquisa necessariamente limitada no tempo, são as fontes francesas. Sem retroceder ao aspecto historiográfico da questão, tentaremos resumir aqui os principais resultados dessa pesquisa, centrando-nos em dois pontos: o caráter "não-disciplinar" do ensino dos colégios do Antigo Regime e a maneira pela qual a história era ali tratada; a evolução dos "usos" da história no século XVII e, conseqüentemente, o aparecimento de novas práticas de ensino dessa matéria. Em síntese, se tentará construir um 7

André Chervel, «L’histoire des disciplines scolaires: réflexions sur un domaine de recherche», Histoire de l’éducation n° 38, Paris, INRP, mai 1988, pp. 59 – 119; repris in André Chervel, La Culture scolaire, Paris, Belin, 1998, pp. 9 – 56. Annie Bruter, Les Paradigmes pédagogiques. Recherches sur l’enseignement de l’histoire au XVIIe siècle (1600 – 1680), Université Paris VII, décembre 1993, 426 p.

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Uma parte das comunicações apresentadas durante essa jornada foram publicadas no número temático Les Humanités classiques, Histoire de l’éducation n° 74, Paris, INRP, mai 1997, 253p.

10 Annie Bruter, L’Histoire enseignée au Grand Siècle. Naissance d’une pédagogie, Paris, Belin, 1997, 237 p.

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ensaio para contribuir a uma reflexão sobre o processo de longa duração – ou seja, a constituição de um campo de saber em disciplina escolar.

A História em um ensino "não-disciplinar" A própria natureza do material documental legado pelas práticas escolares do século XVII – planos de estudos, lições-modelos e obras pedagógicas – e a impossibilidade de interpretá-lo através das categorias regulamentares pelas quais definimos hoje a disciplina escolar (horários, programas, etc.) orientou a pesquisa em uma primeira etapa: antes de qualquer tentativa de apreensão do lugar da história propriamente dita, no ensino dos colégios, é preciso esclarecer os princípios e os fins desse ensino, que não havia nenhum motivo a priori de supor idênticos aos de hoje. Se o século XVII (ao menos na primeira metade) é realmente uma época de vigoroso crescimento escolar, que viu a expansão dos colégios humanistas iniciada no século precedente11, a demanda educativa a qual atendiam essas instituições se distinguia em diversos pontos das de hoje. Retomando a si a ambição integradora, a da retórica antiga12, os estudos humanistas pretendiam conciliar em uma mesma visão três finalidades que nos acostumamos a separar claramente: uma finalidade prática de domínio da linguagem, uma finalidade cognitiva de aquisição de conhecimentos, uma finalidade religiosa de acesso à ciência e à virtude. São esses três objetivos que encontramos simultaneamente presentes no programa de estudos, inteiramente constituído de textos vindos da Antigüidade, como nos procedimentos de ensino: tratava-se, antes de mais nada, de levar os alunos a exprimirem-se através de inúmeros exercícios, orais ou escritos. Esse treinamento intensivo, fundado no estudo de textosmodelos propostos à imitação, visava assegurar o domínio das línguas antigas (ou, em todo caso, do latim; a voga do grego no século XVI não continuou no século seguinte) ao mesmo tempo em que assegurava o das técnicas – retórica e filologia – que tornavam os alunos eloqüentes e capazes de ascender ao saber: esse era, de fato, criado como corpus textual, seja ele profano, textos antigos, ou de livros sagrados. Atendendo ao mesmo tempo às necessidades da Igreja da Contra-reforma, que procurava formar pregadores, e às necessidades dos príncipes para os quais se recrutava o 11

Cf. Marie-Madeleine Compère, Du Collège au lycée…, op. cit.

Sobre essa questão, ver Marc Fumaroli, L’Âge de l’éloquence. Rhétorique et «res literaria» de la Renaissance au seuil de l’époque classique, Genève, Droz, 1980, 882 p. 12

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aparelho administrativo, necessitando de homens aptos a manejar a linguagem. Esse programa de estudos foi apoiado pelas autoridades da época, laico e eclesiástico, e adotada pelos indivíduos ou grupos que aspiravam fazer carreira, na Igreja ou no Estado. Constatamos que o nosso regime epistemológico é muito estranho, busca suas raízes na Antigüidade, que sustenta tal concepção de ensino – a qual recorria, explicitamente a dois grandes professores antigos, Cícero e Quintiliano. Fundada sobre o primado da língua (instrumento de poder e meio de comunicação entre Deus e os homens) e sobre o respeito da escrita (pelo qual as palavras inaugurais, as da Revelação, foram transmitidas desde a criação do mundo), essa epistemologia considera o saber como um dado a ser decifrado, o acesso ao conhecimento como um ato de leitura13. Por isso, a necessidade dessa etapa preliminar para chegar ao conhecimento que era o estudo das línguas e dos textos antigos: o ensino das humanidades. Por sua pretensão integradora – formar o vir bonus dicendi peritus, homem de bem que sabe falar – assim como pelo lugar central que dava aos textos, tal ensino só podia ser "não-disciplinar". A explicação dos textos antigos, ponto de partida das aprendizagens, necessitava realmente recorrer a conhecimentos de ordem muito diversas – gramaticais e filológicos, mas também geográficos, históricos, etinológicos, até mesmo botânicos, zoológicos ou mineralógicos – ao mesmo tempo que a capacidade de ressaltar as sentenças e máximas de ordem retórica, moral ou política que devem enriquecer o discurso do orador: tudo isso era considerado como conhecido pelo regente único de cada classe. Reciprocamente, as produções dos alunos chamados a reutilizar o vocabulário, as expressões, os conhecimentos de belos pensamentos descobertos nos autores estudados, deviam testemunhar sua amplitude a incorporar palavras e idéias em um conjunto textual harmonioso. A prioridade dada à finalidade retórica do ensino não significa, no entanto, que o ensino humanístico não se preocupa em transmitir conhecimentos (esse objetivo está explicitamente inscrito, por exemplo, em certas versões do mais célebre dos planos de estudo da época, o Ratio studiorum jesuíta14): também não se pode falar ou escrever sem conteúdo. 13 Sobre a longa duração dessa concepção de acesso ao conhecimento como lectio, ver Eugenio Garin, trad. française L’Éducation de l’homme moderne. La pédagogie de la Renaissance, 1400 – 1600, rééd. Paris, Fayard, 1995, coll. «Pluriel», pp. 66 – 70. 14 A versão definitiva da Ratio studiorum jesuíta, a de 1599, foi recentemente objeto de uma reedição acompanhada duma tradução francesa: Ratio studiorum. Plan raisonné et institution des études dans la Compagnie de Jésus, Paris, Belin, 1997, 314 p. Falemos aqui referência às instruções mais detalhadas da primeira versão da Ratio, a de 1586, consultável em Ladislaus Lukàcs, Monumenta paedagogica Societatis Jesu, Rome, Institutum Societatis Jesu, t. I – VII,

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Mas esses conhecimentos, não sendo estudados por eles mesmos, não eram objeto de uma exposição sistemática, salvo a título recreativo, no contexto do que se chamava então o erudito (um espaço de tempo voluntariamente deixado ao regente para repousar e fazer com que os alunos descansem da austera disciplina da explicação de textos)15: eram dados à medida da leitura dos textos, em função dos conteúdos a serem explicados. É assim que conhecimentos que dizem respeito, para nós, à história – o desenrolar de certos acontecimentos, a descrição das instituições ou dos costumes de uma certa época – podiam ser apresentados no momento da explicação de uma poesia ou de uma obra oratória de Cícero... Inversamente, a leitura dos historiadores antigos, que faziam parte dos programas das classes (na classe de humanidades, principalmente, mas também em outras classes) oportunizavam não tanto o estudo dos acontecimentos mas o dos procedimentos de escrita próprios ao historiador: mais que a própria história tratava-se conforme as finalidades gerais - as do ensino das humanidades, de aprender como escrever. Quanto aos conhecimentos necessários à compreensão das obras históricas estudadas, tendo em vista o conteúdo militar-político das obras dos historiadores antigos, consistiam principalmente em conhecimentos geográficos que permitiam ter uma idéia do teatro das operações e seguir o desenrolar dos combates descritos. A cronologia era considerada como um acessório do estudo desses textos históricos - a linguagem da época costumava unir à cronologia a geografia sob a expressão "os dois olhos da história". A ciência cronológica era de toda maneira, na época em que foram criadas as instituições de educação humanistas (isto é, no século XVI), um campo de pesquisa extremamente "preciso", exigindo uma vasta cultura filológica e científica, que não devia ser exposta em classe16. Ainda não se dispunha, mesmo se desejassem ardentemente conhecimentos que permitissem reconstituir a sucessão dos acontecimentos relacionados pelos textos antigos. O único meio de datação, pouco preciso, de que dispunham os regentes humanistas era efetivamente a filologia, na medida em que essa procede por comparação entre os diversos estágios de uma língua (o latim,

1965 – 1992, t. V, p. 151. Ver também as instruções de P. Orlandini, Circa il modo de legger dell’humanista (1582 – 83), ibid. t. VI, p. 520. 15

Não conhecendo publicações especificadamente consagradas à essa questão, permito-me indicar minha obra L’Histoire enseignée au Grand Siècle…, op. cit., pp. 61 – 71. 16 Ver Anthony Grafton, Joseph Scaliger. A Study in the History of Classical Scholarship. II – Historical Chronology, Oxford, Clarendon Press, 1993, 766 p.

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nesse caso) no curso de sua evolução17 - o que reconduz outra vez à necessidade de um domínio tão aprofundado quanto possível dos textos escritos nessa língua. Imaginamos, portanto, a impossibilidade, em um tal contexto de um "curso" de história que consistiria em uma apresentação seguida dos acontecimentos – do mesmo modo que um "curso" de qualquer matéria que fosse, na medida em que se estudasse em prioridade textos. Daí a proposição de ver no ensino das humanidades, um ensino por definição "não-disciplinar"; e isso não devido a uma incapacidade dos regentes da época em criar um outro, mas em virtude dos princípios que tinham presidido a sua organização. Foi assim que as instâncias dirigentes da Companhia de Jesus refutaram a proposição feita por muitos de seus membros de criar um curso de história, conforme o modelo praticado por seus rivais protestantes; não porque elas recusassem a história em si, mas porque romperiam com o respeito aos textos antigos, base de sua pedagogia18. Também vemos que o material documentário utilizado em tal ensino oferece amplitude à interpretação, já que seus conteúdos, na medida em que dizem respeito quase que exclusivamente às realidades tratados pelos textos antigos, são exclusivamente históricos: trata-se de palavras, de fatos, de pensamentos vindos da Antigüidade. Entretanto, essas palavras, fatos e pensamentos não chegam aos alunos de maneira ordenada pois os textos são escolhidos em função de seu grau de dificuldade lingüística, não obedecendo à ordem cronológica. Assim, não podemos pretender que os alunos dos colégios do Antigo Regime saiam totalmente despojados de conhecimentos históricos: eles tinham, ao contrário, um conhecimento da Antigüidade bem mais profundo que os alunos e mesmo os professores atuais de história. Mas esse saber histórico era desordenado e, sobretudo, lacunar, porque ignorava quase tudo o que chamamos hoje de Idade Média sem falar da época em que viviam os alunos. Esse fato pode escandalizarnos? Isso não teria mais sentido senão o de se indignar com teorias científicas que estiveram em voga antes das nossas. A história, para os regentes dos colégios humanistas, não era um conjunto de conhecimentos, o produto de uma pesquisa fundada sobre uma 17 Ver Donald R. Kelley, Foundations of Modern Historical Scholarship. Language, Law and History in the French Renaissance, New York/London, Columbia University Press, 1970, 321p. 18 Cf. François de Dainville, «L’enseignement de l’histoire et de la géographie…», art. cit.; para uma discussão da tese sustentada nesse artigo, ver Annie Bruter, «Entre rhétorique et politique: l’histoire dans les collèges jésuites au XVIIe siècle» in Les Humanités classiques, Histoire de l’éducation n° 74, op. cit., pp. 59 – 88.

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metodologia regrada: a palavra não designava um domínio particular do saber – todo o saber, na época, era tido como vindo do passado, portanto como história – mas um ramo da retórica, definido por um modo específico de escrita, o modo narrativo. Só eram, conseqüentemente, considerados como historiadores aqueles que soubessem usar esse modo com talento, em bom latim ou em bom grego – o que desqualificava os cronistas medievais19. Não se tratava, então, na época de "ensinar história" segundo o sentido atual do termo: conforme as concepções pedagógicas e científicas da época, os alunos deviam ler os historiadores antigos, pois se procurava na leitura elementos para ensinar a arte de escrever, graças à qual a França disporia um dia, ao menos esperavam, de historiadores dignos desse nome que ela ainda não tinha...

"Usos" e pedagogia da história no século XVII O paradoxo é que esse ensino das humanidades eclodiu no momento em que as concepções mudaram, procedentes de uma época mais antiga (a da cultura manuscrita da Renascença), da cristalização sob a forma de modelo pedagógico - mas não é próprio a todo sistema educativo, por definição encarregado de transmitir o que vem do passado, atrasar o que diz respeito à sociedade que o envolve? Poderíamos aqui mencionar brevemente alguns fatores dessa mudança, enumerando sucessivamente o que, na realidade, se relaciona de maneira muito mais complexa. Um primeiro fator de mudança situa-se, bem entendido, no plano político. A vitória da fidelidade monárquica sobre os vínculos de dependência confessional, que põe fim às guerras de religião20; o triunfo do absolutismo e a paroquialização da vida mundana e cultural do século XVII21 focalizam, de agora em diante, o interesse sobre a história nacional, vista através da história das dinastias reinantes e de sua corte. Paralelamente, se manifesta uma evolução do sentimento religioso: a importância cada vez maior acordada às práticas – portanto aos costumes – 19

Ver Arnaldo Momigliano, «Ancient History and the Antiquarian», 1950, trad. française «L’histoire ancienne et l’Antiquaire» dans Arnaldo Momigliano, Problèmes d’historiographie ancienne et moderne, Paris, Gallimard, 1983, pp. 244 – 293. 20 Myriam Yardeni, La Conscience nationale en France pendant les guerres de religion (1559 – 1598), Louvain/Paris, Nauwelaerts/Béatrice-Nauwelaerts, 1971, 392 p.

Ver Roger Chartier, «Trajectoires et tensions culturelles de l’Ancien Régime» in André Burguière et Jacques Revel (dir.), Histoire de la France. Les formes de la culture, Paris, Éditions du Seuil, 1993, pp. 307 – 392.

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como critério de ortodoxia confessional22, leva a acentuar fins moralizadores da educação, em que o aprofundamento do esforço de aculturação religiosa iniciado no século precedente, no âmbito da rivalidade entre Reforma e Contra-Reforma23, induz o recurso à narração histórica como meio de fazer interiorizar, desde a infância, as verdades e os valores transmitidos pelo catecismo24. No plano cultural, enfim, o progresso da produção impressa a coloca à disposição de um público cada vez mais vasto, que se estende, a partir dali, além do círculo dos "doutos" para os quais a leitura era uma atividade quase profissional25: o uso de uma literatura mais mundana, mais atraente e de mais fácil acesso que a literatura latina e grega, ao mesmo tempo que uma especialização acrescida de gêneros. Ora, todos esses fatores se encontram com uma outra mutação, dependendo ela do plano científico. O saber fundamental da época, do nosso ponto de vista, é a elaboração de uma linha de tempo única sobre a qual se ordenam os fatos até então dispersos, conhecidos através dos textos antigos e medievais26. É essa aquisição da ciência "cronológica" da Renascença, que os resumos de história - que parecem cada vez mais numerosos durante o século, em latim27 e em francês28 - pretendem vulgarizar. A utilização dessa linha de tempo dá aos estudos históricos um novo modo de apreensão dos fatos (por ordem de sucessão cronológica e 22 Michel de Certeau, «L’inversion du pensable. L’histoire religieuse du XVIIe siècle» (1969) et «La formalité des pratiques. Du système religieux à l’éthique des Lumières (XVIIe – XVIIIe)» (1973), artigos retomados em Michel de Certeau, L’Écriture de l’histoire, Paris, Gallimard, 1975, pp. 131 – 152 et 153 – 212. 23 Jean-Claude Dhôtel, Les Origines du catéchisme moderne d’après les premiers manuels imprimés en France, Paris, Aubier, 1967, 472 p. 24 Claude Fleury, Catéchisme historique, Paris, Vve G. Clouzier, 1683, 2 vol. in-12, t. I: Petit Catéchisme; Fénelon, De l’Éducation des filles, 1687 (a edição consultada é a de Paris, P. Aubouin, 1696, in-12, 272 p.). 25 Ver Henri-Jean Martin, Livre, pouvoirs et société à Paris au XVIIe siècle (1598 – 1701), 1969, rééd. Genève, Droz, 1999, 2 vol., 1091 p. 26 Anthony Grafton, Joseph Scaliger…, op. cit.; D.J. Wilcox, The Measure of Time Past. Prenewtonian Chronologies and the Rhetoric of Relative Time, Chicago/London, The University of Chicago Press, 1987. 27

Só mencionaremos aqui os dois mais célebres entre cuja utilização com fins pedagógicos é atestada, que são também os mais antigos: l’Epitomae historiarum libri X do jesuíta Torsellini, que apareceu pela primeira vez em Roma em 1598, que podemos consultar na edição de Lyon, J. Cardon e P. Cavellat, 1620, in-12, p. lim., 640 p. e index; e o Rationarium temporum… de P. Denis Petau, Paris, S. Cramoisy, 1633, 2 t. en 1 vol. in-12.

28

Há desde o início a coexistência de duas séries de resumos de história, uma em latim, outra em francês. O estudo de suas relações e a maneira em que o francês se impôs através das edições sucessivas ainda está a ser feito.

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não mais por contiguidade, temática ou geográfica). Fornece, pelas referências temporais que estabelece, um instrumento de aprendizagem que faltava até então (as datas...). Coloca, assim, mais claramente em evidência as lacunas na exposição dos acontecimentos, incitando completá-las; contribuiu, desse modo, para transformar a noção do tempo, dando uma visão linear... todas coisas que, sem atacar, destroem profundamente o respeito sempre proclamado dos historiadores da Antigüidade. Assim, vemos manifestar-se ao longo do século, através da literatura de vulgarização histórica e dos projetos ou tratados sobre a educação, aspirações a um outro tipo de relação com o passado que não seja o do ensino humanista: uma relação mais natural, mais direta, que contorna o obstáculo da aprendizagem das línguas antigas e exige o acesso a um passado mais próximo e mais acessível. A tradução dos autores antigos, se não for novidade, conhece então outra idade do ouro: os "belos infiéis"29 colocam esses autores ao alcance dos leitores (e das leitoras) que não foram obrigados às disciplinas austeras de aprendizagens humanistas. A oferta de obras históricas se diversifica: produções humanistas, que continuam sua carreira florescente, compêndios de história e histórias mais ou menos romanescas30, destinados a um público maior e menos informado. Paralelamente, se afirma cada vez mais explicitamente a necessidade de conhecer a história de seu país em um movimento, aliás não isento de contradições – as mesmas que vimos surgir no fim do século XVII, a respeito da educação do príncipe cristão, apresentada como modelo a ser seguido mas reservado ao poder e aos que são destinados por natureza; isto é, por seu nascimento31. Ora, a história mantinha nesse modelo um lugar central, como complemento indispensável das matérias "teóricas" necessárias à formação principesca que eram a moral e a política: era a história que estava destinada a fornecer os exemplos, ilustrando os preceitos abstratos que constituíam essas ciências. Essa história necessária aos príncipes englobava-se bem à história antiga, não se isolava: devia fornecer aos futuros governantes modelos mais próximos deles do que os heróis da Antigüidade, bem como conhecimentos positivos (militares, genealógicos, 29 Roger Zuber, Les «Belles infidèles» et la formation du goût classique, 1968, rééd. Paris, Albin Michel, 1995, coll. «Bibliothèque de l’Évolution de l’humanité», 521 p. 30 Sobre a "fusão" entre história e romance na segunda metade do século XVII, ver Bernard Magné, Crise de la littérature française sous Louis XIV: Humanisme et nationalisme, Lille, Atelier de reproduction des thèses Lille III, 1976, 2 vol., 1026 p., multigr.

Annie Bruter, «Des arcana imperii à l’éducation du citoyen: le modèle de l’éducation historique au XVIIIe siècle», apresentado no colóquio organizado pela Société française d’étude du dix-huitième siècle et la Société italienne d’étude du dix-huitième siècle, com l’UMR LIRE (CNRS n° 5611 – Université Stendhal – Grenoble I), «L’Institution du Prince au XVIIIe siècle», Grenoble, 14 – 16 octobre 1999, a ser publicado nas Atas do colóquio.

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diplomáticos, econômicos, etc.) sobre os assuntos do reino, isto é, sobre o presente ou o passado próximo. Uma nova pedagogia da história surge, assim, conjugando a aprendizagem da cronologia com o curso dialogado no qual o aluno escuta e discute o relato dos acontecimentos, que deverão ser em seguida redigidos: tal é, ao menos, a pedagogia descrita pelos preceptores dos príncipes no fim do século XVII32. Quanto aos primeiros "manuais escolares" de história, não provêm da educação principesca33, mas das pensões aristocráticas onde se ministravam os cursos particulares de história pelos "chambristes"34. Os preceptores dos príncipes não publicam suas obras sem fornecer uma advertência sobre a inconveniência que teria para as "pessoas comuns" pretender o mesmo saber que os príncipes. Concede-se ao homem comum somente um "uso moral" da história destinada a ensinar os malefícios das paixões: o "uso político" desta é reservado aos príncipes e aos "Grandes"35. Compreendemos, vendo a história assim colocada como disciplina central da educação ao mesmo tempo que subtraída ao comum dos mortais, o seu estatuto marginal, inacessível no último século do Antigo Regime. Era objeto de um ensino, sobre o qual encontramos vestígios através de resumos explicitamente destinados à juventude36, de exercícios

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Charles-Bénigne Bossuet, «De l’instruction du Dauphin, Lettre au pape Innocent XI» (1679) dans Œuvres complètes, Bar-le-Duc, par des prêtres de l’Immaculée Conception de St-Dizier, 1863, t. XII; Claude Fleury, Traité du choix et de la méthode des études, Paris, P. Auboin, P. Émery et C. Clousier, 1686, in-12, 365 p.; Géraud de Cordemoy, «De la nécessité de l’Histoire, de son usage, & de la manière dont il faut mêler les autres sciences, en la faisant lire à un Prince» dans Divers traités de métaphysique, d’histoire et de politique, Paris, Vve de J.-B. Coignard, 1691, in-12, VI-292 p 33 É, por exemplo, o caso, citando somente o mais célebre, de Instruction sur l’Histoire de France & Romaine par demande & réponses, Avec une explication succincte des Métamorphoses d’Ovide, & un Recueil de belles Sentences tirées de plusieurs bons Auteurs, Paris, A. Pralard, 1687, in-12, em que o autor, Le Ragois, era preceptor do Duque de Maine. 34 Faltando lugar para uma bibliografia completa, mencionaremos: Nouveaux Élémens d’histoire et de géographie à l’usage des pensionnaires du Collège de Louis le Grand du jésuite Buffier, 2ème éd. Paris, M. Bordelet, 1731, 2 partes em 1 vol. in-12. Os resumos do Padre Berthault, regente à Juilly: Florus Francicus, Paris, J. Libert, 1630, in-24, 279 p.; Florus Gallicus, Paris, J. Libert, 1632, in-24, 324 p.; Florus Gaulois ou l’abrégé des guerres de France, t. I, Paris, J. Libert, 1634, in-8°, 298 p., são talvez oriundos dos cursos desse pensionato que a tradição historiográfica considera como o primeiro a ter ministrado o ensino de história, mas a prova da utilização desses resumos para fins pedagógicos não existe. 35

Annie Bruter, «La "confiscation" de l’histoire: l’éclatement des usages de l’histoire au XVIIe siècle» in Henri Moniot et Maciej Serwanski, L’Histoire et ses fonctions. Une pensée et des pratiques au présent, Paris/Montréal, L’Harmattan, 2000, pp. 27 – 46. 36

Os resumos da época precedente visavam um público bem mais definido.

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públicos37, até mesmo de redações dos alunos38. Mas, excetuando as instituições inovadoras que foram as pensões particulares e as escolas militares, esse ensino não foi, em geral, integrado ao currículo escolar - a história continuava sendo um tipo de matéria facultativa sob a responsabilidade das famílias. Explica-se, assim, a insistência em reclamar sua introdução nos colégios no século XVIII39, quando há provas da existência de seu ensino na época; mas é o estatuto desse ensino que persiste impreciso, por causa de seu caráter marginal, não-normatizado. Somos levados, assim, a distinguir duas coisas normalmente confundidas no discurso sobre a educação (pelo fato de seguirem agora juntas, a saber, pedagogia e escolarização - chamamos aqui pedagogia toda tentativa intencional de transmissão de um saber). Se a história do ensino histórico mostra que houve a invenção de uma pedagogia da história, com seus procedimentos e seu material específico na segunda metade do século XVII, mostra também que essa invenção se fez fora do âmbito propriamente escolar: é no espaço mais flexível da educação principesca ou do pensionato aristocrático que se elaboraram métodos e instrumentos de uma instrução histórica autônoma, independente da leitura dos historiadores antigos, procedendo a uma apresentação contínua dos acontecimentos - da criação do mundo até a época contemporânea. O estudo das resistências à integração dessa história autônoma ao currículo escolar, e os fatores que terminaram impondo-a junto das humanidades clássicas, ultrapassaria muito os limites temporais desse artigo, pois levaria ao debate sobre a educação do século XVIII e a Revolução, sobre os liceus do século XIX. Contentar-nos-emos em assinalar que a introdução da história no ensino dos liceus e colégios do Império e da Restauração (mencionada nos programas desde 180240, a história é dotada de um horário específico e de um programa embrionário em 181441, de professores "especiais", em certos liceus, pelo menos a partir de 181842) não 37 Ver por exemplo Pierre Jean de Berulle répondra sur l’histoire chronologique de l’Église… Au Collège de Louis le Grand, le Vendredi 8 avril 1707, à quatre heures après midi, Arch. S.J. Vanves, É Pa 30 – 7. 38 O curso de Bossuet sobre Charles IX redigido para o príncipe herdeiro foi publicado por Régine Pouzet sob o título Charles IX, récit d’histoire, Clermont-Ferrand, Adosa, 1993. 39 Ver, por exemplo, o artigo «Collèges» da Enciclopédia, no qual D’Alembert se queixa «do pouco caso dado ao estudo da História nos colégios», Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des Arts, des Sciences et des Métiers, t. III, Paris, 1753. 40 Philippe Marchand (éd.), L’Histoire et la géographie dans l’enseignement secondaire. Textes officiels. T. 1: 1795 – 1914, Paris, INRP, 2000, textes 4, 5, 6, pp. 95 – 96. 41

Ibid., texte 12, pp. 101 – 103.

42

Ibid.,texte 15, pp. 109 – 110.

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poderia ser feita tão rapidamente, se os professores não dispusessem de um mínimo de material pedagógico já elaborado. Ora, uma parte pelo menos desse material pedagógico, remonta aos preceptores dos príncipes do fim do século XVII, como Fleury ou Le Ragois, cujas obras conhecem, ao longo do século XIX, uma carreira que só se extinguiu com as reformas republicanas43.

*** A primeira das reflexões, de ordem mais geral, pela qual gostaríamos de encerrar esse artigo, concerne à temporalidade própria da história das disciplinas escolares. André Chervel abordou o problema, assinalando a longa duração dos processos de criação e de funcionamento de uma disciplina44. No mesmo sentido - e contra uma certa tradição historiográfica, que vê na aparição do ensino da história no século XIX uma criação ex nihilo do poder político -, esperamos ter mostrado que a constituição da história em matéria "ensinável" foi um fenômeno de longa duração, cujas premissas são encontradas bem antes da época de seu "nascimento" oficial, e que continuamos em realidade, bem além: a emancipação da história como disciplina plenamente autônoma, ensinada por professores especializados, só foi conseguida na virada do século XIX para o XX45. Então, sobre a base de uma experiência pedagógica já multisecular, mesmo se ficou muito tempo reservada a uma minoria, o ensino da história pode-se tornar, nessa época, o instrumento por excelência da integração patriótica e cívica dos alunos46 - instrumento cujas incertezas, que cercam o futuro do Estado-Nação, questionam atualmente a sua própria finalidade. Essa longa duração da formação de uma disciplina escolar está ligada à complexidade de um processo, cujos múltiplos componentes tentou-se mostrar. Entraram, de fato, em jogo diversos fatores - cada um 43 Ver Martin Lyons, Le Triomphe du livre. Une histoire sociologique de la lecture dans la France du XIXe siècle, Paris, Promodis, 1987, pp. 85 – 104. 44

« L’histoire des disciplines scolaires…», art. cit., pp. 30 – 31.

45

Philippe Marchand (éd.), L’Histoire et la géographie…, op. cit., pp. 75 – 84.

46 De uma abundante bibliografia, destacarei aqui somente dois artigos que fizeram sucesso: Jacques et Mona Ozouf, «Le thème du patriotisme dans les manuels primaires», 1962, republicado em Mona Ozouf, L’École de la France, Paris, Gallimard, 1984, pp. 185 – 213; Pierre Nora, «Lavisse, instituteur national. Le "Petit Lavisse", évangile de la République», in Pierre Nora (éd.), Les Lieux de mémoire. I – La République, rééd. Paris, Gallimard, 1997, coll. «Quarto», pp. 239 – 275.

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com seu ritmo próprio de evolução. Os objetivos da educação, por exemplo, mudam no decorrer do tempo: se ficaram, durante o período considerado aqui, dominados pela finalidade retórica, pudemos vê-los enfraquecer de uma maneira que acentuou o alcance moralizante da leitura dos historiadores antigos para todos os alunos; ao passo que era confiscado o "uso político" da história, decretado monopólio dos príncipes na época do absolutismo triunfante. Mas, bem antes dessa etapa, ocorrem outras transformações pelas quais se cortou em profundidade a relação com o passado, isto é, com o ensino humanista: transformações técnicas, econômicas e sociais, progresso da escrita e da imprensa, desenvolvimento dos aparelhos administrativos, ampliação do público de leitores, transformações científicas, metodológicas e pedagógicas levadas, no que diz respeito à história, à elaboração de uma cronologia unificada, à renovação do modo de leitura dos historiadores e à experimentação de novos métodos de ensino. Sobre essa complexidade gostaríamos de insistir para finalizar, a fim de lutar contra o risco de uma leitura evolucionista, vendo na pesquisa aqui apresentada uma tentativa a mais para conferir uma "origem" ao ensino da história atual. É, ao contrário, a inter-relação constante que pensamos poder revelar entre expectativas e ambições culturais e sociais, concepções e meios científicos, técnicos ou pedagógicas, que faz da história das disciplinas escolares um campo de pesquisa tão vasto quanto apaixonante para explorar, nessa época de mudanças de nossa sociedade que questiona cada dia mais os sistemas educativos que herdamos do passado.

Annie Bruter é Pesquisadora do Service d’histoire de l’education – URA CNRS 1397/Institut National de Recherche Pédagogique. Paris/França. Maria Helena Câmara Bastos é Professora no Programa de PósGraduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Pesquisadora do CNPQ.

Recebido em: 30/03/2005 Aceito em: 28/07/2005

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Actividade e Redenção – A Criança Nova em Maria Montessori Alberto Filipe Araújo Alessandra Avanzini Joaquim Machado de Araújo

Resumo A ideia de Criança Nova em Maria Montessori (1870-1952) resulta da confluência de duas perspectivas, a da pedagogia que se pretende afirmar como ciência e a do humanismo cristão. Neste artigo, os autores procuram, numa primeira parte, especificar o que vem a ser para a pedagoga italiana a liberdade e a actividade da criança e o papel do adulto, principalmente do educador da criança que se auto-educa e, numa segunda parte, debruçam-se sobre o fundo religioso e humanista da obra montessoriana que consagra a criança como um ser espiritual e de natureza divina. Palavras-chave: actividade; activismo; criança nova; redenção.

Abstract The idea of the New Child in Maria Montesori (1870-1952) is the result of the combination of two perspectives: a pedagogical one, directed at affirming its own scientific status, and one based on Christian Humanism. In this paper the authors try to specify what the Italian pedagogue considered as freedom and activity on the part of the child and the role of the adult, most particularly the role of the educator who also ends up educating himself. At a secondary stage they concentrate on the religious background and the humanism of the Montesorian working method which consecrated the child as a spiritual being who shared the divine nature. Key-words: activity; new child; redemption.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 23-45, set. 2005


Maria Montessori (1870-1952) afirma a existência de uma vida psíquica na criança, qual "embrião espiritual" em desenvolvimento, e defende, em A Criança, que o mais urgente dever da educação é "libertar" o indivíduo oculto, ou seja, desvelar a criança desconhecida, "revelar" o seu segredo, criar condições de possibilidade ao desabrochamento da personalidade da criança, que é "um ser vivo sequestrado"1. Nesta perspectiva cientifizante da pedagogia Montessori, a liberdade da criança é ainda associada à sua actividade, a que deve corresponder a "passividade" do adulto. Procuramos, por isso, numa primeira parte, especificar o que vem a ser para a pedagoga italiana a liberdade e a actividade da criança e o papel do adulto, principalmente do educador da criança que se auto-educa. Ao assinalar à educação a finalidade de desenvolver as potencialidades da criança, Montessori tem o sonho de formar uma "criança nova", isto é, o homem de amanhã que habitaria num "mundo novo", uma sociedade de paz: "Um mundo novo para um homem novo, é a nossa necessidade mais urgente"2. Assim, numa segunda parte, debruçamo- os sobre este "halo de religiosidade humanista e cósmica"3 que consagra a criança como um ser espiritual – "um embrião espiritual"4 – e de natureza divina.

I. A actividade da criança e a "passividade" do adulto Ao posicionar-se pela actividade da criança, Maria Montessori comunga do ideal da Escola Nova que critica a passividade do aluno da Escola Tradicional e pugna por métodos activos de aprendizagem. Porém, a expressão "actividade da criança" varia de significado segundo o autor que a utiliza. No que se refere a Maria Montessori, procuramos explicitar o que vem a ser a "actividade da criança", só passível de ser observada pelo adulto se realizada em situação de liberdade e espontaneidade. Interrogamo-nos, depois, se e em que medida esta "actividade da criança" pode ser interpretada como defesa de um "activismo" em educação, para, de seguida, explicitar a "passividade" que a pedagogia Montessori requer do adulto, nomeadamente do educador. 1

M. Montessori, A Criança, Lisboa, Portugália Editora, s/d [1936], p. 154.

2

M. Montessori, L’éducation et la paix, Paris, Desclée de Brower, 1996 [1949], p.44.

3

D. Hameline, Courants et contre-courants dans la pédagogie contemporaine, Issy-lesMoulineaux, ESF, 2000, p. 52.

4

M. Montessori, A Criança, p. 217.

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1. Liberdade e actividade da criança A formação médica permite a Montessori colocar o conhecimento da biologia ao serviço da educação das crianças5 e rejeitar uma pedagogia que pretende provocar e favorecer o seu desenvolvimento mostrando-lhe como deve fazer e forçando-a se necessário. Montessori prefere deixar que a vida psíquica da criança se expanda livremente, se interesse e manifeste as suas preferências como quer fazê-lo, alimentá-la e estimulá-la mediante brinquedos apropriados, afastando simplesmente os perigos, e calmamente esperar que se desenvolva segundo as suas possibilidades. O seu método pressupõe um ambiente que favoreça a expressão do potencial da criança, competindo ao educador preparar esse "ambiente adequado ao momento vital". Mas é a criança que se auto-educa. Ela escolhe livremente as suas ocupações e os seus movimentos, buscando na multiplicidade das situações ambientais aquelas que são favoráveis ao seu desenvolvimento e à organização da sua personalidade, não se interessando de momento pelas restantes. A criança surge, assim, como centro de uma pedagogia que concebe "o processo educativo mais como irrefreado desenvolvimento da personalidade do que como disciplina de integração social"6. O princípio da auto-educação da criança assenta, em primeiro lugar, numa concepção que, inspirando-se em Rousseau, faz coincidir os termos natureza e liberdade. Contudo, para Montessori esta natureza vem a ser um impulso inato, interior, "uma energia que tende a retirar do ambiente os elementos úteis ao seu desenvolvimento"7. É esta liberdade da criança que permite as manifestações naturais da criança e a sua observação pelo educador: "O método da observação é estabelecido sobre uma base fundamental: a liberdade dos alunos nas suas manifestações espontâneas"8. Esta liberdade deve, pois, entender-se no sentido de "não dirigida pelos

5

M. de Paew, El Método Montessori tal como se aplica en las "Casas de los Niños", expuesto y comentado para el magisterio y para las madres, Madrid, Espasa-Calpe, 1935, p. 25.

6

R. Grácio, Educação e Educadores, 3. ed, Lisboa, Livros Horizonte, s/d, p. 1w5.

G. Caló,. Maria Mootessori, in J. Chateau (dir.), Os Grandes Pedagogos, Trad. de Maria Emímia Ferros Moura, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, [1956], p. 343.

7

M. Montessori, Pédagogie scientifique. 1 – La maison des enfants, Préface de M. P. Lapie, Trad. de M.-R. Cromwel, Paris, Librairie Larousse, s/d [1932], p. 27.

8

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adultos"9, porquanto a acção deste é "indirecta", isto é, através da construção de um ambiente que permite que a criança possa ser activa10. É, com efeito, a liberdade que está na base da actividade: "O método pedagógico da observação tem por base a liberdade da criança; ora liberdade é actividade"11. O seu labor é feito de actividade, ela cresce com exercício e movimento: a criança exercita-se e move-se fazendo experiências e (tal como coordena os seus movimentos e vai registando as emoções que, vindas do mundo exterior, plasmam a sua inteligência) vai conquistando a linguagem com fadiga, com milagres de atenção e esforços iniciais, que só lhe são possíveis a ela, e com irresistíveis tentativas se vai apoiando sobre os pés, correndo e procurando"12. Liberdade e actividade concretizam-se através da escolha livre dos materiais por parte da criança. Ela "tem grandes capacidades, uma viva sensibilidade interior; ela está muito predisposta quer a observar quer a ser activa"; ela "é um ser animado de paixões intensa", "ela tem uma grande paixão para aprender". Escreve Montessori em L’éducation et la paix: "A criança possui tendências naturais – que se podem chamar instintos, pulsões vitais ou, então, dinâmicas interiores – que lhe permitem uma grande faculdade de observação e uma paixão por certas coisas e não por outras. Ela pode desenvolver uma tal energia para aquilo que lhe interessa que não há outra explicação que uma espécie de instinto"13. A actividade da criança caracteriza-se pela concentração, o que torna a criança quase insensível ao mundo exterior e a faz repetir o exercício sem qualquer finalidade exterior. Desta concentração, a criança sai como uma pessoa repousada, cheia e vida, com aparência de quem sentiu uma imensa alegria14. Com efeito, ela não se fatiga com o trabalho: "trabalhando, [ela] cresce, e por isso o trabalho lhe aumenta a energia"15. É, pois, um móbil interior que explica "a [sua] actividade concentrada num trabalho e exercitando-se sobre um objecto exterior com movimentos das mãos guiados pela inteligência" e faz aparecer a Criança: "iluminada pela alegria, infatigável, porque a sua actividade é como que um metabolismo psíquico, fonte vital de

L. Sanchez Sarto (bajo la dir.), Diccionario de Pedagogia, Tomo Segundo I – Z. Barcelona, Editorial Labor, 1936, cols. 2154. 9

10

M. Montessori, L’éducation et la paix, p. 79.

11

M. Montessori, Pédagogie scientifique. 1 – La maison des enfants, p. 29.

12

M. Montessori, A Criança, p. 272.

13

M. Montessori, L’éducation et la paix, p. 77.

14

M. Montessori, A Criança, p. 166.

15

Ibidem, p. 276.

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desenvolvimento"16. A criança expressa esta necessidade interior pedindo "Ajuda-me a fazê-lo sozinha"17.

2. Montessori e o activismo Vamos já expor o problema: pode-se considerar Maria Montessori parte integrante do acuivismo? Para responder, convém antes de mais nada lembrar que Montessori dificilmente se insere num qualquer filão pedagógico, dado ela não ser pedagoga e nem se sentir como tal. De facto, Montessori é e sentese médica, uma cientista que resolve dedicar-se ao estudo das crianças anormais, integrando assim a tradição dos chamados "médicos pedagogos" – sobretudo médicos! – tal como Jean Itard e Edouard Séguin. O seu próprio desejo de construir uma pedagogia científica define-se aliás na base de uma negação substancial da reflexão e da tradição pedagógica. É nesta óptica que, na apresentação do Metodo, Montessori pode afirmar de maneira drástica que "na verdade a Pedagogia Científica ainda não foi construída nem definida. É algo de vago de que se fala, mas que na realidade não existe. Parece que até agora não passou da intuição de uma ciência"18. É precisamente porque, aos olhos dela, a pedagogia não existe, que Montessori se propõe fazê-la existir ao construí-la como ciência, indo beber à fonte da filosofia (para a parte teórica), da biologia (para a parte experimental) e do trabalho de campo19 (para a parte educativa). Um certo distanciamento, portanto, em relação à pedagogia que inclui também o movimento das escolas activas, embora Montessori mostre um verdadeiro interesse para com este último.20 Para Montessori, no entanto, existe o Método, o dela, e depois – separadamente – existe a educação nova. Tal como ela própria reparou, "a orientação da Nova Educação pela qual Claparède se interessou, toma em consideração antes a quantidade das disciplinas incluídas nos programas, com o objectivo de as reduzir para 16

Ibidem, p. 196.

17

Ibidem, p. 276.

M. Montessori, Il metodo della Pedagogia Scientifica applicato all’educazione infantile nelle Case dei Bambini, Città di Castello, Lapi, 1909, p. 5. 18

19 "Eu lá estava ou ensinava directamente às crianças das oito da manhã às sete da noite sem interrupção: esses dois anos de prática constituem o meu primeiro e verdadeiro diploma em termos de Pedagogia" (ibidem, p. 28). 20

Sobre as etapas deste encontro e, de maneira mais geral, para uma "biografia pedagógica" actualizada da Montessori, ver G. Cives, Maria Montessori. Pedagogista complessa, Pisa, ETS, 2001.

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evitar o cansaço mental. Mas não aborda o problema do modo como os alunos poderiam enriquecer a sua cultura sem ficarem cansados"21. Uma crítica, aliás, que demonstrou ter acertado com lucidez num verdadeiro problema de fundo do activismo: a direcção da escola nova corre o risco de não se afastar de modo substancial da escola tradicional, pelo menos até não ser capaz (ou pior ainda até continuar a evitar de propósito) de se pôr verdadeiras questões a nível teórico. Porém, é sem dúvida um "lugar comum" integrar Montessori de direito no activismo. É, certamente, um hábito facilitado pelo facto de o movimento chamado "activismo" constituir na realidade um universo extremamente variado e diversificado. Ainda por cima, em Montessori encontramos efectivamente traços canónicos da educação nova: a centralidade da criança, a importância do trabalho manual, as experiências, o ambiente, a supressão da carteira e da cadeira do professor enquanto sinais tangíveis de uma educação impositiva e de uma constrição física da liberdade da criança. E não faltam afinidades lexicais enganadoras. Ainda que admitamos querer inseri-la nesta corrente, são todavia precisos alguns acertos, a começar pelos ligados ao próprio conceito de "activismo". A palavra "activo" entra continuamente no vocabulário de Montessori para indicar, não apenas – o malentendido ocorreu muitas vezes – a disposição para fazer, mas, sobretudo, a disposição de um intelecto que se torna capaz de distinguir, de abstrair, de classificar22. Ser activo quer então dizer dominar o mundo graças a um pensamento capaz de transformar o caos aparente da multiplicidade numa ordem racional. Activismo neste sentido não se refere ao trabalho manual, ao estímulo dos sentidos ou à praxe, mas indica uma actividade do intelecto, uma capacidade de construir uma ordem em relação ao mundo. Para Montessori não é portanto possível falar de um "fazer anterior ao conhecer", mas, pelo contrário, trata-se de uma forte centralidade do pensamento23 ao ponto de não faltarem, no que lhe diz respeito, acusações de intelectualismo vindas dos próprios sectores do activismo. Estas acusações acabam por não perceber que, na sua obra, o pensamento é de facto uma dimensão dominante, mas sobretudo um pensamento que se enraíza na realidade: o homem não pode conhecer a não 21

M. Montessori, La mente del bambino, Milano, Garzanti, 2002, p. 9.

Cfr. M. Montessori, L’autoeducazione nelle scuole elementari, Milano, Garzanti, 1973, p. 185. 22

23 "A vida psíquica – a modos de exemplo do que escreve a Montessori –, tendo que ser uma matriz, tem sempre um carácter preexistente sobre os movimentos que lhe são ligados: portanto quando a criança quer mexer-se, já sabe o que quer fazer" (Il segreto dell’infanzia, Milano, Garzanti, 1989, p. 111).

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ser através dos sentidos, através do aguçamento progressivo das próprias aptidões sensoriais. Aprender a sentir significa aprender a distinguir, ou seja, a abstrair. Os sentidos e o intelecto constituem uma unidade, um círculo que não se deve quebrar. Não é por acaso que Montessori insiste no papel fundamental que desempenha a mão, verdadeiro "órgão psíquico", no percurso educativo24. A mão que se apodera do mundo, a mão que toca e transforma as coisas, mas também a mão guiada pelo cérebro. A mão, portanto, como uma ponte entre pensamento e acção, um intermediário insuprível que visualiza o circuito constante entre teoria e praxis graças ao qual a criança se torna capaz de transformar a percepção sensorial numa posse ordenada, racional do mundo25. O espírito, portanto, preexiste a qualquer movimento, mas os sentidos são fundamentais; sem a capacidade de sentir o homem não pode conhecer, no entanto a maneira como o homem usa os sentidos e organiza a realidade é sempre um acto antes de mais nada teórico. Portanto, o conhecimento em Montessori é sempre fruto de uma abstracção. Uma situação parecida ao que acontece com o conceito de "activismo" ocorre com outra palavra-chave: "laboratório". Tomemos o primeiro dos "Trinta pontos" da escola nova: podemos ler que a "escola nova é um laboratório de pedagogia prática". Ora bem, também a Casa de Bambini de Montessori é um laboratório, mas não no sentido de um lugar onde se aplicam novas técnicas didácticas e psicológicas, mas, pelo contrário, no sentido de um lugar que o cientista soube preparar de maneira artificial e teoricamente coerente para efectuar observações cientificamente rigorosas. Portanto, para a criança a Casa é uma escola e não um laboratório; só para o cientista-pedagogo é que se trata de um laboratório. Esta "divergência" de significado permite, aliás, enfrentar uma questão que suscitou e ainda suscita hoje perplexidades e críticas: o material didáctico26. Ficamos sem dúvida perplexos face ao uso determinado e constritivo que brota deste material: as crianças não podem pegar nas construções e outros objectos e mexer neles livremente, mas têm que ser levados pela direttrice a usar de modo correcto tal material. Uma possibilidade de ultrapassar tal perplexidade pode ser então proporcionada justamente pela diferente acepção montessoriana de conceitos como "laboratório" e "activismo". Peguemos nas próprias palavras da Montessori: 24

M. Montessori, La mente del bambino, cit., p. 152.

25

Cfr. M. Montessori, Il segreto dell’infanzia, cit., pp. 107-115.

Cfr. por exemplo J. Dewey, Democrazia e educazione, tr. it., Firenze, La Nuova Italia, 1995, p. 105). Por outro lado, é preciso sublinhar quão extremamente incisiva se torna a crítica deweyana na altura em que o material montessoriano é usado dentro de uma dimensão meramente prático-operativa, dimensão, ainda hoje, atribuída por demasiada gente ao Método. 26

29


«o material didáctico não faculta […] à criança o "conteúdo" do intelecto, mas a ordem para aquele "conteúdo"»27. O uso conforme esquemas taxativos do material pode então justificar-se na medida em que este não constitui uma finalidade em si, mas um instrumento para a construção de uma ordem mental. Nesta óptica, o que se parece num primeiro tempo com uma teoria educativa "passiva", onde a criança recebe sensações por parte do ambiente que lhe permitem conhecer, transforma-se numa teoria onde a criança tem como primeiro e urgente dever proporcionar uma ordem racional ao próprio intelecto. O material, portanto, tem como objectivo proporcionar à criança a possibilidade, através do exercício manual, de construir as próprias estruturas mentais. Dito de outra maneira, não é o conteúdo que interessa: ao propor aquele material específico, Montessori apontou de facto explicitamente para as estruturas culturais que a criança tem que construir para o próprio intelecto. À guisa de conclusão deste esboço sintético sobre as relações eventuais entre Montessori e o activismo, é preciso porém reparar no peso que tiveram as ambiguidades alimentadas pela própria Montessori acerca de todos estes aspectos: receios, malentendidos, afinidades e divergências. Enquanto que a Montessori que se sente cientista, interfere com dinâmicas de muito interesse, a Montessori que se propõe actuar de maneira "pedagógica" – mesmo quando levada por uma personalização elaborada do próprio Método – apresenta-se na realidade num plano meramente aplicativo28. Foi este plano aplicativo que de facto teve mais sucesso e que sem dúvida esteve mais próximo do activismo. Como podemos reparar, o tema das relações entre Montessori e o activismo revela-se uma questão aberta e complexa. Enfim, podemos observar que existe inevitavelmente uma ligação, até porque o clima de profunda renovação da escola e das ideias educativas foi partilhado. No entanto, em relação a um activismo que foi sobretudo um movimento de ruptura, de protesto contra uma escola ultrapassada e obtusa, mas que não soube (ou não quis) interferir de um ponto de vista teórico, Montessori mostra uma profunda vontade de reorganização teórica. O seu "activismo" talvez tenha tido dificuldade em se concretizar numa chave rotundamente pedagógica, mas soube impor em primeiro plano caracteres fundamentais com o objectivo de instaurar uma discussão pedagógica cientificamente

27

M. Montessori, Manuale di Pedagogia Scientifica, Napoli, Morano, 1921, pp. 93-94.

28

Um aprofundamento destes aspectos esteve na base da comunicação de Alessandra Avanzini Educazione nuova, scienze ‘esatte’ e pedagogia scientifica. Una rilettura del caso Montessori por ocasião do XXVI congresso da International Standing Conference of the History of Education (Genebra, 14-17 Julho 2004) New education. Genesis and Metamorphoses.

30


alicerçada como a dimensão da abstracção, do convencionalismo e da artificialidade.

3. A "passividade" do educador Para além do ambiente educativo e do material, outro factor da educação é "o carácter negativo do adulto", que se caracteriza por um estado de "calma intelectual", que, não se limitando aos impulsos nervosos, vem a ser "um estado […] de descarga mental que produz limpidez interior. É a ‘humildade espiritual’ que se avizinha da pureza do intelecto e dá a preparação necessária para compreender a criança e devia constituir a preparação essencial da mestra"29. O educador é o construtor da ambiência educativa e o seu papel consiste em perceber os objectivos visados através das simulações de que a ambiência deve ser portadora: "O adulto precisa de interpretar as necessidades da criança, para compreender e auxiliar com cuidados apropriados e preparar-lhe um ambiente adequado. Desta forma iniciaria uma nova era na educação, a de ‘auxílio à vida’"30. O educador não é um "mestre" em sentido estrito, é mais um director das experiências de aprendizagem31. Ele deve constantemente dirigir o crescimento e desenvolvimento da criança, proporcionando-lhe os materiais adequados, e deve estar sempre alerta para a iminência da mutação brusca, buscando os "períodos sensitivos" quando ocorre um repentino salto ou acesso do desenvolvimento numa nova direcção. "Tratase do professor passivo, que perante a criança suprime o obstáculo constituído pela sua própria personalidade, que apaga a sua autoridade para que possa desenvolver-se a actividade da criança e se mostra plenamente satisfeito quando a vê trabalhar sozinha e progredir, sem atribuir mérito a si próprio"32. Maria Montessori opõe-se, assim, ao "professor faz-tudo que amontoa conhecimentos na cabeça dos seus alunos" e que, para poder ter êxito na sua obra, usa "a disciplina da imobilidade e da atenção forçada dos 29

M. Montessori, A Criança, pp. 195-196.

30

Ibidem, p. 112.

Montessori usa frequentemente nos seus trabalhos o termo direttrice (directora). Nesta expressão pode ver-se uma concepção da educação principalmente como uma ocupação de mulher, por cuja emancipação pugnava. Como observa Giovanni Caló, a pedagoga italiana pretende realçar o papel de "velar e auxiliar meramente e não o de ensinar ou impor o que quer que seja" (s/d: 347). 31

32

M. Montessori, A Criança, p. 155.

31


alunos" e "serve-se largamente das recompensas e das punições, para obrigar a esta atitude aqueles que são condenados a ser seus ouvintes". Com efeito, esta disciplina estimuladora do esforço faz jus a uma concepção do "homem social" como "o homem natural posto sob o jugo da sociedade". Ela vem a ser "instrumento de escravidão do espírito", não assenta na "força triunfante" da criança e, por isso, não influencia o seu "desenvolvimento natural": "O verdadeiro castigo do homem normal está na perda da consciência da sua própria força e da grandeza do seu ser interior"33. Na pedagogia montessoriana invertem-se, pois, os papéis entre o adulto e a criança na sociedade e na escola tradicional, a ponto de ser acusada de utópica ou pelo menos de exagerada quando pretende "o mestre sem cátedra, sem autoridade e quase sem ensino e a criança transformada em centro de actividade, aprendendo sozinha, escolhendo livremente as suas ocupações e os seus movimentos"34. Na verdade, explicita Montessori, o papel do educador não é "abafar a actividade das crianças". O seu papel, aparentemente passivo, assemelha-se ao do astrónomo face aos astros que rodopiam no universo: as coisas vão por si mesmas e, para as estudar, investigar os seus segredos ou dirigi-las, é preciso observá-las e conhecê-las sem intervir. O educador tem de compreender que "a desordem do primeiro momento é necessária", que ele deve apeoas "olhar" e deixar à criança a educação de si mesma, permitir que ela passe dos primeiros movimentos desordenados aos movimentos ordenados espontâneos e faça uma espécie de selecção das suas próprias tendências que antes estavam confusas na desordem inconsciente dos seus movimentos. È assim que "a criança, consciente e livre, se revela a si mesma"35. Porém, a acção do professor não deve limitar-se à observação. Ele deve proceder também à experiência. E "a lição corresponde a uma experiência"36 PS:40). A lição, nos primeiros tempos individual37, será breve, simples e objectiva, sem lesar o princípio da liberdade: "Se provocasse algum esforço, a professora não saberia mais qual é a actividade espontânea da criança" e ela deve deixar que "a vida interior livre se 33

M. Montessori, Pédagogie scientifique. 1 – La maison des enfants, pp. 10-11.

34

M. Montessori, A Criança, p. 156.

35

M. Montessori, Pédagogie scientifique. 1 – La maison des enfants, pp. 31-34.

36

Ibidem, p. 40.

37

As lições colectivas, cuja importância é secundária, nos primeiros tempos serão "muito raras, porque as crianças, sendo livres, não são forçadas a ficar no seu lugar, tranquilas e prontas a escutar a professora ou a ver o que ela faz" (PS:40). Na verdade, as lições colectivas "não constituem nem o único nem o principal ensino, mas, antes, uma iniciação reservada para argumentação e actividades especiais" (AC:197, nota)

32


expanda". Se a lição não é compreendida pela criança pela explicação do objecto a professora, esta preocupar-se-á em "1º) não insistir repetindo a lição; 2º) não fazer compreender à criança que ela se enganou, ou que não entendeu, porque forçá-la-ia a compreender e alteraria o estado natural que deve servir à professora para as suas observações psicológicas" 38. O primeiro papel do educador é, pois, "estimular a vida, deixando-a totalmente livre de se desenvolver", "ajudar a alma que nasce para a vida e que viverá das suas próprias forças"39. Montessori distingue, assim, entre dois factores – o guia e o exercício individual –, residindo a arte pessoal do educador na oportunidade e nas modalidades da sua intervenção no que respeita a "guiar a educação espontânea da criança e inculcar-lhe as noções necessárias" – "convém associar bem cedo a linguagem às percepções"40 –, deixando à criança a sua auto-educação. Como afirma Montessori em O Espírito Absorvente da Criança, o "princípio pedagógico essencial" consiste, não em ensinar, mas em ajudar o espírito da criança no trabalho do seu desenvolvimento. Esta acção "indirecta" do educador faz com que a educação montessoriana se apresente como "altamente exigente"41 com os educadores que a promovem. Essa exigência começa por um apelo à preparação espiritual do mestre. O papel, aparentemente passivo, do educador assemelha-se, como vimos, ao do astrónomo face aos astros que rodopiam no universo. Assim, a descoberta da criança requer que o mestre seja iniciado. Esta iniciação fazse através de uma instrução que lhe indique o estado de alma mais conveniente para a sua missão, um auto-exame que conduza à renúncia da tirania – a cólera e o orgulho que o faz dominar a criança –, uma preparação interior que o faça compreender a criança. Montessori ressalva, no entanto, que o facto de o mestre ter de expulsar do seu coração a cólera e o orgulho, de saber humilhar-se e revestir-se de caridade como "ponto de partida" e "meta" da educação da criança "não significa […] que deva aprovar todos os actos da criança, nem que se abstenha de a julgar ou que nada tenha a fazer para desenvolver a sua inteligência e os seus sentimentos: pelo cootrário, não pode esquecer que a sua missão é educar, ser, positivamente, o mestre da criança". O que pretende a pedagoga italiana é que, da parte do educador, haja uma "acto de humildade" que suprima "não […] o auxílio

38

M. Montessori, Pédagogie scientifique. 1 – La maison des enfants, pp. 41 e 43.

39

Ibidem, p. 43.

40

Ibidem, p. 81.

41

L. Sanchez Sarto (bajo la dir.), Diccionario de Pedagogia, col. 2156.

33


dado pela educação, mas o nosso estado interior, a nossa atitude de adulto, que nos impede de compreender a criança" 42. Por outro lado, a educação montessoriana requer a transformação da escola: "A preparação dos professores deve caminhar a par com a transformação da escola; se nós preparámos professores observadores e habituados à experiência, convém que na escola eles possam observar e experimentar"43. Na transformação da escola inclui-se também o ambiente físico: o mobiliário, utensílios, objectos de observação e meios de trabalho devem corresponder às dimensões físicas da criança e ser adequados ao objectivo desejado de forma que a criança possa facilmente atingi-los, movimentar-se entre eles, utilizá-los. Deve, no entanto, sublinhar-se que estas exigências da educação montessoriana visam a formação de uma "criança nova", a formação do homem de amanhã. Acreditava Montessori que uma educação deste tipo faria da criança o "redentor" da humanidade e faria do mundo de amanhã um "mundo novo", uma sociedade fraterna e, por isso, de paz. Trata-se, com efeito, de um "sonho" comum ao movimento da Educação Nova, que se associa à crença seja na perfectibilidade indefinida do homem, seja no progresso infindo44.

II. Criança Nova, redenção da Humanidade A proposta pedagógica de Montessori inscreve-se numa corrente cientifizante da pedagogia, como pretende a sua Pedagogia Científica, mas reflecte também, como dizemos acima, um "halo de religiosidade humanista e cósmica" que consagra a criança como um ser espiritual – "um embrião espiritual" – e de natureza divina. A este idealismo espiritualista de Montessori não é indiferente a sua formação católica, pelo que ela inscreve todo o seu pensamento educacional na corrente humanista cristã, esmalta os seus escritos de citações bíblicas e matiza o seu vocabulário de biologista com um vocabulário evangélico45. 42

M. Montessori, A Criança, p. 215.

43

M. Montessori, Pédagogie scientifique. 1 – La maison des enfants, p. 12.

44

J. Houssaye, Pédagogie et politique. Evolution des rapports, in J. Magalhães (Org.), Fazer e Ensinar História da Educação (Actas do 2º Encontro de História da Educação/Sociedade portuguesa de Ciencias da Educação/Secção de História da Educação – Braga, 8/9 Novembro de 1996), Braga, UM/IEP/CEEP, 1996, pp. 59-62. 45 W. Böhm, Maria Montessori, in J. Houssaye (sous la dir.), Quinze pédagogues. Leur influende aujourd’hui, Paris, Armand Colin, 1994, pp. 155-157; E. M. Standing, Marie Montessori. Sa vie, son œuvre, Préface de A. Berge, Paris, Desclée de Brouwer, 1995, p. 48; R.

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Deste modo, nesta parte, realçamos a concepção montessoriana da criança como pai e mestre da Humanidade. Esta pedagoga enfatiza a ideia de "criança nova" como construtora de uma "nova" sociedade ou de um "novo" mundo, já que a criança leva dentro de si as potencialidades de o homem que virá a ser um dia. Enfatiza-se também a condição de inocência da criança que vem a ser Messias redentor e as suas ressonâncias míticas, porque para a pedagoga italiana a sociedade deve ser reconstruída, e a criança possui a potencialidade que, combinada com um ambiente estimulante, ajudará a formar um "homem novo" para um "mundo novo".

1. A criança, progenitora e mestre da humanidade Na criança aparece claramente a natureza humana: ela está próxima do espírito criador, das leis da criação, e desenvolve a sua energia potencial. Por isso, "a criança é o progenitor do homem" porquanto "todo o poder do adulto procede da possibilidade que o ‘menino-progenitor’ teve de realizar plenamente a missão secreta de que se achava investido"46. O seu labor é "produzir o homem", sem dúvida "uma grande, importante e difícil tarefa". Escreve Montessori "Se do inerte recém-nascido, mudo, inconsciente e incapaz de se mover, se forma um adulto perfeito, com inteligência enriquecida pelas conquistas da vida psíquica e resplandecente pela luminosidade que o espírito lhe confere, tudo isso é obra da criança"47. Está, pois, na criança o futuro do Homem Novo, ela anuncia um "futuro luminoso" e um "mundo novo", devendo a educação ser uma "educação para a vida", porque o que está em causa é a construção, e não a reconstrução, da mente da criança: "construção entendida como desenvolvimento de todas as imensas potencialidades de que a criança, filha do homem, é dotada"48. Assim, "o nosso primeiro mestre será a própria criança"49. O adulto deve inspirar-se na criança, enquanto "mestre de vida", construtora e guia da humanidade: "Devemos considerar a criança como o farol da nossa Grácio, Educação e Educadores, p. 175; A. Avanzini, Educazione nuova, scienze ‘esatte’ e pedagogia scientifica. Una rilettura del caso Montessori, in A. F. Araújo & J. M. de Araújo, História, Educação e Imaginário. Actas do VII Colóquio de História, Educação e Imaginário (Universidade do Minho, 8 de Março de 2004), Braga, UM/IEP/ CiED, 2004, p. 141. 46

M. Montessori, A Criança, p. 271.

47

Ibidem.

M. Montessori, A Mente da Criança (Mente Absorvente), Lisboa, Portugália Editora, 1971 [1949], p. 26.

48

49

M. Montessori, Formação do Homem, 3ª ed, Lisboa, Portugália Editora, s/d [1949].

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vida futura. Quem queira obter algum benefício para a sociedade tem, necessariamente, de se apoiar na criança, não só para a salvar dos desvios, mas também para reconhecer o segredo prático da nossa própria vida. Sob este ponto de vista, a figura da criança apresenta-se potente e misteriosa, devendo-se meditar sobre ela porque a criança, que contém o segredo da nossa natureza, se converte em nosso mestre"50. A criança não deve, pois, ser vista apenas como um ser frágil e impotente a carecer de ser protegida e ajudada. Como desenvolvemos acima, ela é "embrião espiritual", possui uma vida psíquica activa desde o dia do seu nascimento, que é "guiada pelos instintos subtis que lhe permitem construir activamente a sua personalidade humana". E é porque ela se tornará adulta que "devemos considerá-la como a verdadeira construtora da humanidade e reconhecê-la como nosso pai"51. Desde que nasce, a criança é "fonte de amor" e portadora de um "plano de estruturação inato da sua alma", podendo alcançar o seu pleno desenvolvimento graças aos "instintos que guiam interiormente os seres vivo". Estes "instintos-guias" diferem dos "instintos impulsivos referentes ás reacções imediatas do ser em face do meio e visam a conservação do indivíduo e a conservação da espécie: eles "possuem uma ciência e uma sabedoria que conduzem os seres ao longo da sua viagem pelo tempo (indivíduos) e pela eternidade (espécie)" e "são particularmente maravilhosos quando se destinam a guiar e a proteger a vida infantil inicial, quando o ser está ainda quase inexistente e imaturo, porém encaminhado para alcançar o seu pleno desenvolvimento"52. O "plano psíquico" de que a criança é portadora, sendo um plano de desenvolvimento imanente de acordo com um programa biológico hereditário, carece de um ambiente adequado à sua realização. Porém, o adulto não lhe prepara esse ambiente adequado, abandona-a53 ao "ambiente supernatural", "o ambiente civilizado onde decorre a vida dos homens", abandona-o ao "instinto de tirania que existe no fundo de todo o coração de

50

M. Montessori, A Criança, pp. 290-291.

51

M. Montessori, L’éducation et la paix, p. 61.

52

M. Montessori, A Criança, pp. 279 e 280.

53

"Ao considerar a criança, o adulto fá-lo com a mesma lógica que aplica à sua vida: vê nela um ser diferente e inútil, que afasta da sua presença, ou, com aquilo que se chama educação, faz um esforço por atraí-la, prematuramente, para a sua espécie de vida; e procede como procederia uma mariposa (se tal fosse possível) que rasgasse o casulo da sua ninfa para convidá-la a voar ou como uma rã que tirasse da água os seus girinos para os obrigar a respirar com os pulmões e a mudar para verde a cor negra que tanto os desfeia" (M. Montessori, A Criança, pp. 285-286).

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adulto", mas "ninguém vê, na criança que acaba de nascer, o homem doente, a primeira imagem do Cristo puro e incompreendido"54. A criança que chega "traz a este Mundo novas energias" que deveriam ser "sopro regenerador", ela "reflecte em si o Cristo moribundo, Cristo redentor", mas o adulto, que a devia acolher e proteger, não a sabe receber: "Não sentimos o recém-nascido: para nós, não é um homem. Quando chega a este Mundo, não sabemos recebê-lo, embora o mundo que criámos lhe esteja destinado para que o continue e o faça caminhar para um progresso superior ao nosso"55. Assim, o desenvolvimento natural da criança vê-se, paradoxalmente, travado, logo desde o início, por todos aqueles e aquelas que deveriam precisamente auxiliá-la. Numa palavra, a situação de "abandono" da criança faz lembrar segundo Montessori, as palavras de João Evangelista: "Ele veio ao mundo e o mundo foi criado para Ele; mas o Mundo não o reconheceu. Veio à sua própria casa, e os seus não o receberam" (Jo, 1, 10-11). O adulto não ajuda a criança porque ignora que ela, desde que nasce, luta pela sua existência psíquica: ele desconhece o "milagre que se está realizando: o milagre da criação a partir do nada, efectuado aparentemente num ser sem vida psíquica"56. Para a trilogia pais-sociedadeescola, a criança, "pequeno operário a quem a Natureza confiou a missão de construir a Humanidade", não passa ainda de ser extra-social, um ser que não pertence ainda à Sociedade humana e, assim, priva-se do seu "mestre", daquele que não só contém o "segredo da nossa natureza", como é igualmente o "farol da nossa vida futura"57, fazendo sentir ao homem a necessidade, não já de conquista, mas de purificação e de inocência e, por isso, fazendo-o aspirar à simplicidade e à paz. Enfim, "é a voz divina, que nada pode desviar, que chama em altos gritos os homens para os reter em torno da criaoça"58. Ora, a criança, como "embrião espiritual" cujo objectivo é encarnar a personalidade humana, carece para essa "encarnação" de uma ambiência que "possa responder ás suas necessidades vitais e facilitar a sua libertação espiritual"59, a fim de que o seu instinto de trabalho – o "desejo" de trabalhar –, com os seus ritmos, características vitais e poderes que lhe são próprios, a redimam e a transformem numa "criança superior": "Quando 54

Ibidem, pp. 36, 13 e 38.

55

Ibidem, p. 46.

56

Ibidem, p. 74.

57

Ibidem, p. 290.

58

Ibidem, p. 287.

59

M. Montessori, L’éducation et la paix, p. 62.

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os preconceitos forem dominados pelo conhecimento aparecerá então no mundo a ‘criança superior’, com seus poderes maravilhosos que hoje permanecem escondidos; aparecerá então a criança que está destinada a formar uma humanidade capaz de compreender e de controlar a presente civilização"60. O resultado natural que decorre da "personalidade criadora e superior", no domínio da educação, é a figura da Criança Nova, que surge como uma autêntica revelação ou "descoberta psicológica que guia a educação nova". As qualidades que essa criança apresenta, tal como Montessori as salienta em L’Enfant Nouveau, são a disciplina, a ordem, o silêncio, a obediência e a sensibilidade moral. Por sua vez, estas qualidades podem e devem ser completadas, entre outras, com as de "vivacidade, autoconfiança, coragem, solidariedade, em resumo as forças morais que são também de ordem moral"61. Montessori insiste em afirmar que a esperança do homem em se regenerar e criar uma "nova civilização" reside nas potencialidades infinitas que provêm do espírito da criança, pois na necessidade mais urgente, para esta pedagoga, reside na construção de um "mundo novo para um homem novo"62. Mundo novo revelado pelo espírito da Criança Nova, dado esta, por um lado, ter merecido graça aos olhos da Divindade e, por outro, se encontrar próxima do "estado paradisíaco"63: "O espírito da criança é que poderá trazer o que será talvez o progresso real do homem e – quem sabe? – o início de um nova civilização"64. Em síntese, é a criança, encarada do ponto de vista psíquico, a única a poder contribuir para que o homem receba um "impulso ao [seu] melhoramento", pois é ela que constrói o homem: "Se do recém-nascido, mudo, inconsciente e incapaz de se mover, se forma um adulto perfeito, com inteligência enriquecida pelas conquistas da vida psíquica e resplandecente pela luminosidade que o espírito lhe confere, tudo isso é obra da criança"65. O adulto, o mestre, em contacto com a Criança Nova vê-se, também ele, impelido a seguir uma nova orientação: a "vida nova". O poder do adulto esbate-se, a sua actividade de controlo apaga-se para deixar o caminho livre à criança de forma a ela afirmar livremente a sua própria

60

M. Montessori, Formação do Homem, p. 68.

61

M. Montessori, L’enfant nouveau, La Nouvelle Éducation, nº 96, 1931, pp. 105 e 106.

62

M. Montessori, L’éducation et la paix, p. 44.

63

M. Montessori, L’enfant nouveau, pp. 102-110.

64

M. Montessori, A Criança, p. 18.

65

Ibidem, p. 271.

38


actividade e conduzir o adulto: "É a criança nova que está sozinha, nos pode conduzir e mostrar-nos o nosso caminho"66. O problema da criança vem, pois, a ser um problema social que convida o homem a conhecer-se a si próprio – nosce te ipsum – pelo conhecimento do segredo da criança, as leis ocultas que guiam o desenvolvimento psíquico do homem, e a normalizar a Sociedade do adulto pelo mundo da criança. A reforma social deve associar a educação e a organização social do homem e dela fazer sair, lenta e constantemente, "um mundo novo do muodo velho: o mundo da criança e do adolescente. Deste mundo, deviam sair lentamente as revelações, as directrizes naturais necessárias à vida normal da Sociedade". E, nesta linha de ideias, "o aperfeiçoamento da educação só pode ter uma única base: a normalização da criança"67. Montessori lança, por isso, um apelo aos pais, na qualidade, não de construtores, mas de seus "custódios supernaturais" da criança: "Os pais são custódios supernaturais, como aqueles anjos protectores que a religião concebeu, dependentes única e directamente do Céu, mais poderosos que qualquer autoridade humana e unidos á criança por laços invisíveis porém indissolúveis". A "missão dos pais" vem a ser a de "empreender e abraçar a questão social que hoje se impõe: a luta para estabelecer no mundo os direitos [sociais] da criança", tão importantes, no início do século XX, como os direitos dos trabalhadores, porquanto "se o operário produz aquilo que o homem consome e cria no mundo externo, a criança produz a própria Humanidade e, por isso, os seus direitos são ainda mais exigentes em reclamar transformações sociais"68. O futuro da Humanidade depende, pois, da criança e, por isso, se compreende o alcance da profecia de Hellen Key quando afirmou que o século XX seria o século da criança. Com efeito, o século anterior pode considerar-se o século da escola, isto é, o século em que a Sociedade procurou concretizar o ideal iluminista da educação universal através da universalização da escola de massas, ideal ainda hoje não cumprido em muitos países. Porém, como denuncia Montessori, mesmo este ideal iluminista acaba por ser traído na sua concretização quando a sociedade, a família e escola parece que se unem seja para deixar morrer as crianças por falta de cuidados, seja para as "explorar" como mão-de-obra trabalhadora capaz de acrescentar algum rendimento ao orçamento familiar, seja para a "castigar" pela pretensa incapacidade e falta de interesse pelo estudo. E se, 66

M. Montessori, L’enfant nouveau, p. 110.

67

M. Montessori, A Criança, pp. 289-290.

68

Ibidem, pp. 292 e 293.

39


na primeira metade do século XX, emerge um novo ramo da medicina, a higiene escolar, preocupada com os cuidados físicos e psíquicos da criança, a sua "redenção social" requer segundo Montessori, "o reconhecimento dos direitos da criança", a quem "Cristo chamou [...] para indicar aos adultos o reino dos Céus"69 e adverti-los: "Se não te convertes e não chegas a ser como esta criança, não poderás entrar no reino dos Céus" (Mt 18, 3). Apesar de a "missão dos pais" ser, então, o empreendimento dos direitos sociais da criança e, portanto, estar "nas suas mãos [...] o futuro da Humanidade", e de esta missão que a Natureza lhes confiou os colocar acima da Sociedade, os pais procedem como Pilatos e lavam daí as suas mãos, fazendo a criança passar pela Paixão de Cristo, isto é, fazendo-a passar por uma escola onde tudo é proporcionado para o adulto: "No limiar da porta, a família deixava-a só, abandonada; e aquela porta era a defesa: constituía a separação dos dois campos e das duas responsabilidades". Este é, com efeito, "o drama social da criança: a Sociedade, insensível e quase sem qualquer responsabilidade, abandona a criança aos cuidados da família e esta, por sua vez, entrega-a à Sociedade, que a fecha numa escola" 70. A escola vem, assim a ser associada ao Inferno de Dante – a "cidade da dor infinita, habitada por gente perdida, abandonada pela Graça" – onde são convidados a entrar os "seres maus que é necessário castigar" – "Ai de vós, almas malditas!...". Depois de a criança entrar na escola, "uma professora fecha a porta" e, porque "a família e a Sociedade entregaram as crianças à sua autoridade", torna-se "dona e senhora, mandando naquele grupo de almas, sem testemunhas nem fiscalização". Enfim, a escola "tem sido lugar de profundo desgosto", um Inferno onde a criança, tal como Cristo no Gólgota, passa "horas de agonia": "Olhares severos obrigam os pés e as mãozinhas a fincarem-se nos bancos com a mesma rigidez com que os cravos prenderam Cristo à cruz. E quando naquela mente, sedenta de saber e de verdade, se tiverem imposto as ideias do professor, que as introduz à força ou como melhor lhe parece, a pequena cabeça, humilhada pela sujeição, parecerá sangrar debaixo de uma coroa de espinhos"71. Esta analogia com a crucifixação e Paixão de Cristo poderia fazer pensar numa perspectiva pessimista da família, da escola e da sociedade. Como humanista cristã, Montessori é, no entanto, optimista, porque, para além deste "sepulcro para a alma [da criança] que não pode viver com todos estes artifícios", ela vê a própria criança: "A criança ressuscita sempre e

69

Ibidem, p. 298.

70

Ibidem, pp. 302, 303 e 304.

71

Ibidem, pp. 304-305.

40


volve, fresca e risonha, a viver entre os homens". Qual Messias, ela volta para entre os homens para os conduzir para o reino dos Céus72.

2. Criança redentora e mitologia poética Alberto Filipe Araújo73 estuda a natureza ideo-metafórica do discurso educativo montessoriano e assinala nele a presença da imagem arquetípica da Criança e dos mitos da Idade de Ouro, da Androginia Humana, de Hermes, de Prometeu e de Dioniso, mostrando que a Criança Nova montessoriana se deixa configurar por mitos altamente pregnantes no plano ideo-mítico e simbólico: a) No mito da Idade de Ouro, a criança aspira à paz inocente, às maravilhas terrenas e espirituais, à renovação da vida: "Sim, existem lugares onde o homem já não sente a necessidade de conquista, mas de purificação e de inocência e, por isso, aspira à simplicidade e à paz. Nesta paz inocente, o homem busca uma renovação da vida, quase uma ressurreição no mundo opressor"74. b) No mito da Androginia Humana, a criança aparece-nos como uma espécie de ser transfigurado, ao ponto de ser a criadora e o pai do homem: "A criança não deve ser mais considerada como o filho do homem, mas como a criadora e o pai do homem, um pai capaz de criar uma humanidade melhor"75. c) O mito de Hermes indica-nos que só a criança nos pode guiar nos labirintos da vida e só ela nos pode conduzir à luz: ""Só a criança nos pode guiar e ela só o pode fazer se nós estamos prontos, intimamente, a segui-la. Ela conduzir-nos-á do nada ao começo, depois do começo ao desenvolvimento que lhe segue"76. d) Sob a influência do mito de Prometeu, a Criança Nova está predestinada a "abandonar-se à conquista do infinito" imbuída de qualidade superiores, porquanto "o homem edifica-se por si mesmo para se possuir e dirigir-se": "O homem deve construir por si mesmo o grande instrumento através do qual a alma deverá revelar-se e agir. É o que caracteriza a superioridade do homem: é-lhe preciso animar o aparelho complicado dos 72

Ibidem, p. 305.

A. F. Araújo, Educação e Imaginário. Da criança mítica às imagens da infância, Maia, PUBLISMAI – Centro de Publicações do instituto Superior da Maia, 2004b, pp. 139-140. 73

74

M. Montessori, A Criança, p. 287.

76

Ibidem, pp. 136-137.

M. Montessori, L’éducation et la paix, p. 120.

41


seus movimentos para deles se servir segundo a sua própria individualidade. O homem edifica-se por si mesmo para se possuir e dirigir-se"77. e) A força inovadora da criança advém-lhe de Dioniso, o deus da vida, dado que ela "ressuscita sempre e volve, fresca e risonha, a viver entre os homens: "Ah! Aquele coração cheio de amor será trespassado pela incompreensão do Mundo, como por uma espada, e parecer-lhe-á amargo o que a cultura lhe oferece para apagar a sua sede. Está arranjado o sepulcro para a sua alma, que não pode viver com todos estes artifícios; e quando tiver sucumbido numerosos guardas vigiarão para que não ressuscite. Mas a criança ressuscita sempre e volve, fresca e risonha, a viver entre os homens"78. O estudo d’ A Imagem da Criança Nova no Imaginário de Maria Montessori leva ainda Alberto Filipe Araújo a tentar compreender como esta pedagoga da primeira metade do século XX reactiva a mitologia cristã da criança redentora ou, então, do pequeno salvador, no pressuposto de que os seus estudos estão imbuídos de uma mitologia poética da infância como uma espécie de "idade sagrada e mítica"79. Começa ele por assinalar a profunda devoção que Montessori nutre pela figura do Cristo menino (o Menino Jesus enquanto Criança), comparando a aventura do recém-nascido ao mistério da Encarnação na figura de Jesus Menino: Poder-se-ia comparar a vida do homem às três etapas da vida de Cristo: inicialmente o menino, miraculoso e sublime, é a época da ’sensibilidade criadora’, da construção mental, tão intensa em actividades que é necessário nela depositar todas as sementes de cultura. Em seguida vem a época da adolescência: época das revelações interiores, das sensibilidades sociais. É a época onde Cristo, adolescente, discutiu com os Doutores, esquecido da sua própria família [...]. Enfim, vem o Homem que se prepara para a sua missão no mundo. E que faz ele para se preparar? Ele afronta o diabo e o vence80.

Montessori confere, assim, à Criança Divina um sentido humano, ao mesmo tempo que dá um sentido divino à criança humana. Deste modo, não fazendo, é certo, da teologia cristã o seu ponto de partida para estudar o "segredo da infância", a sua pedagogia é marcada pela sua visão cristã da infância, nomeadamente o mitologema da criança redentora, correspondente aos pares junguianos "deus-criança" e "criança-herói". Gaston Bachelard 77

M. Montessori, L’enfant nouveau, p. 109.

78

M. Montessori, A Criança, p. 305.

79

A. F. Araújo, Educação e Imaginário. Da criança mítica às imagens da infância, p.140.

M. Montessori, De l’enfant à l’adolescent, Trad. Par Georgette J.-J. Bernard, Paris, Desclée de Brower, 1992 [1948], pp. 165-166. 80

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explica: "Compreende-se facilmente que, para uma alma religiosa, a criança possa aparecer como a inocência encarnada. A adoração da Criança divina faz viver a alma que reza numa atmosfera de inocência primigénia"81. Montessori vê na criança um modelo e fonte de amor, à semelhança do Messias, que o adulto não só não compreende, como, muitas vezes, também exclui. Esta recusa aparece no seu discurso pedagógico, como referimos já, sob o signo da criança exposta e abandonada, o que não prenuncia nada de positivo quer ao nível familiar quer ao nível sóciopolítico. Daí Montessori insistir, em Educação e Paz, que as crianças são simultaneamente "mestres da vida" e "mestres da paz", sendo, assim, chamadas a desempenhar um papel crucial para evitar que a humanidade caminhe para a sua destruição. Daí que se esforce também por alertar de a criança ser ela mesmo o Messias, possuir todas as qualidades de um guia82, ser uma espécie de Hermes, o "condutor de almas", capaz de conduzir os homens maculados para o reino dos Céus. A Criança Nova montessoriana deixa-se, portanto, apreender pelas figuras de Hermes/Mercúrio e de Cristo, pertencentes às tradições greco-romana e cristã. Ela subsume, assim, todas as qualidades do mito de Hermes, sobretudo as de "puer aeternus", de "mediador" (leia-se: mensageiro) entre o passado e o futuro, o alto e o baixo, de "guia" e de "iniciador"83. Escreve Montessori em A Criança: "Tocar na criança equivale a tocar no ponto mais sensível de um todo que tem raízes no mais remoto passado e se dirige para o infinito do futuro. Tocar a criança é tocar no ponto mais delicado e vital, onde tudo se pode decidir e renovar, onde tudo está pletórico de vida, em que se encontram encerrados os segredos da alma, porque aí se elabora a criação do homem"84. Assinala Alberto Filipe Araújo85 que é, no entanto, a qualidade que faz da criança o guia do adulto que merece destaque, tanto assim que esta qualidade é uma constante, ora explícita ora implícita, nos textos de Montessori. A criança emerge como guia do homem, devendo a Sociedade seguir os seus ensinamentos, dos quais depende a sua regeneração e redenção: "Só a criança nos pode guiar e ela só o pode fazer se nós estivermos prontos, intimamente, a segui-la"86. 81

G. Bachelard, La Poétique de la rêverie, 4e ed, Paris, PUF, 1968, p. 113.

82

M. Montessori, L’éducation et la paix, pp. 136-137.

G. Durand, Figures mythiques et visages de l’œuvre, Paris, Berg international, 1979, pp. 280 e 314-315; A. F. Araújo, Educação e Imaginário. Da criança mítica às imagens da infância, p.141. 83

84

M. Montessori, A Criança, pp. 15-16.

85

A. F. Araújo, Educação e Imaginário. Da criança mítica às imagens da infância, p.142.

86

M. Montessori, L’éducation et la paix, p. 136.

43


Como "guia do homem" e "mensageiro", a Criança Nova montessoriana filia-se directamente na "biografia" de Hermes (tal como na do Menino Jesus), ao mesmo tempo que se acolhe sob a protecção de Prometeu, porquanto vem a ser heróica, invencível, divina, protectora, cósmica, futurível, residindo nela as potencialidades e capacidades do homem de se formar a si próprio e de se afirmar perante as calamidades da vida, como é o caso das guerras87. Deste modo, o pensamento educacional de Montessori reflecte as qualidades míticas de guia, mensageira, heróica, redentora e futurível. Não é, pois, de estranhar que, em Educação e Paz, a autora escreva que é o triunfo da justiça e do amor entre os homens que nos dão conta da construção de um mundo melhor onde reina a harmonia. E, se nele reside "a verdadeira perspectiva da paz" (1996:28), o "tesouro mais precioso" é a criança, "uma esperança e uma promessa" para a humanidade. Por isso, a "pedra angular da paz" é a educação88.

Alberto Filipe Araújo é Doutorado em Filosofia da Educação pela Universidade do Minho (Braga – Portugal), é Professor Auxiliar com Agregação do Instituto de Educação e Psicologia da mesma universidade. Os seus trabalhos dividem-se por três áreas afins: Filosofia do Imaginário Educacional, Filosofia da Educação e História das Ideias Pedagógicas. Entre as suas mais recentes publicações, refiram-se as seguintes: Variações sobre o Imaginário (2003) e Educação e Imaginário. Da Criança Mítica às Imagens da Infância (2004). Endereço: Rua João Pereira Neto, nº 6, 3º Esq., 4700-432 Braga – Portugal E-mail: afaraujo@iep.uminho.pt Alessandra Avanzini é Doutorada em Pedagogia pela Università degli Studi di Bologna, é Professora de História da Pedagogia da Faculdade de Scienze della Formazione dell’Università degli Studi di Milano-Bicocca. A sua pesquisa no campo pedagógico desenvolve-se em três direcções: histórica, epistemológica e teoria da didáctica. Entre as suas mais recentes publicações, refiram-se as seguintes: La musica. Una dimensione educativa (2001) e Apologia della pedagogia (2003). Endereço: strada del Paullo, 29, 43100 Parma (PR) – Itália E-mail: av_alessandra@yahoo.it Joaquim Machado de Araújo é Doutorado em Filosofia da Educação pela Universidade do Minho (Braga – Portugal), exerce funções docentes no 87

A. F. Araújo, Educação e Imaginário. Da criança mítica às imagens da infância, p.143.

88

M. Montessori, L’éducation et la paix, pp. 56 e 54.

44


Instituto de Estudos da Criança da mesma universidade. Tem trabalhos publicados nas áreas da administração educacional, da formação de professores, da pedagogia, da utopia e das políticas educativas. Entre os livros e artigos de que é autor ou co-autor, incluem-se títulos como Políticas Educativas e Autonomia das Escolas (2000), João de Barros – 1881-1960. Vida, Obra e Pensamento (2004). Endereço: Rua das Amoreiras, nº 6, 2º Esq., 4700-358 Braga – Portugal E-mail: machado@iec.uminho.pt

Recebido em: 20/02/2005 Aceito em: 28/07/2005

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Damião Francisco Alves de Moura o Rio Grande do Sul e a Guarda Aires Antunes Diniz

Resumo A emigração activa a multiculturalidade e com ela a globalização das ideias que não se verifica só nos locais de acolhimento, mas também no local de retorno do emigrante. Este é o ponto de partida do estudo da influência das ideias pedagógicas do Rio Grande do Sul do Século XIX numa pequena aldeia portuguesa e da sua difusão pelo exemplo em Portugal no arranque do seu Sistema de Ensino Primário. Palavras-chave: Sistema Educativo; Emigração e Difusão das Ideias Pedagógicas.

Abstract Emigration starts many multicultural movements and also leads ideas to globalisation not only in the point of arrival but also in the local of departure, when the emigrant returns. This is the central idea of a study about influence in XIX Century of Rio Grande do Sul Pedagogic Ideas on a small village in Portugal and his diffusion by example in the Portuguese School Primary System Take-over. Key-words: Educational System; Emigration and Pedagogical Ideas Diffusion.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 47-57, set. 2005


A casa que a Professora Adelaide Moura Pimentel me franqueou há dias é uma casa que refecte não só os sonhos de felicidade pessoal de Damião Francisco Alves de Moura, que era seu tio bisavô, mas também a firmeza dos seus propósitos de ser útil de um modo solidário às Avelãs da Ribeira, onde nasceu. É uma casa grande e apalaçada numa rua escarpada, colocada na parte cimeira das Avelãs da Ribeira. Na sua escadaria em pedra, mostra logo à entrada a vontade do dono de ter aí o conforto possível e, muito mais ainda, refmecte um local de trabalho intelectual com que se ligava aos seus mundos. Foi aí que desenvolveu as suas ideias de uma solidariedade activa espalhada pelos mais diversos aspectos da política local. Foi-o pugnando pelas acessibilidades rodoviárias e ferroviárias como procurador à Junta Geral do Distrito da Guarda, pelo mecenato que activou para que as Avelãs da Ribeira tivessem acesso mais cedo à Instrução Primária para os dois sexos, pela sua prática agrícola com que foi permitindo que a sua aldeia e a Guarda tivessem lugar nos movimentos nacionais, em que estes procuravam aumentar o papel da cultura científica na agricultura e pecuária do final do século XIX. Homem solidário nada disso queria só para si. Partilhou-o com a sua família e com a sua aldeia. Não falta contudo o quadro que o mostra em corpo quase inteiro como vencedor, e não só como homem de negócios, mas também como homem solidário e político de grande intervenção social. As fotografias que existem espalhadas pela casa, mostram uma firme vontade de encontrar e de viver a felicidade no seio da família, em que a mulher Angelina Correia Leite parece estar muito à vontade. Pela serenidade que nelas se espelha, aí tudo acontece com uma alegria que ainda agora nos impressiona. Nas fotografias estão as várias gerações em plena harmonia visual, que reflecte a paz familiar. Todos os seus sobrinhos tiveram um papel activo nas Avelãs da Ribeira, mas, na vida social, sobressai o sobrinho Alfredo Ribeiro de Moura, um homem elegante e sedutor, muito ligado à sociedade elegante da Guarda. Foi onde marcou uma forte presença social e política, estando ligado à elite republicana local. Guardados, não faltam na casa, os muitos adereços de Angelina Correia Leite, uma mulher da mais alta sociedade do Porto, habituada aí ao luxo elegante da sua época, mas que optou, contudo, por viver feliz numa aldeia calma da Beira Alta, do concelho e distrito da Guarda - as Avelãs da Ribeira. Num livro de António Soares, descobri que Damião Francisco Alves de Moura esteve ligado à criação da Sucursal no Rio Grande da Sociedade Portuguesa de Beneficência de Porto Alegre (pág. 49). Nele, até 48


se diz que morava no Beco do Afonso (agora Travessa do Afonso), nº. 8 (pág. 50). Este livro tem as direcções das associações portuguesas do Rio Grande, onde se mostra uma longa e persistente ligação entre os Portugueses do Estado Brasileiro do Rio Grande do Sul e Portugal. Esta foi concretizada numa relação particular com as Avelãs da Ribeira, mediada pela presença militante de Damião Francisco Alves de Moura. É o que pretendo retratar neste texto, em que ligo a realidade portuguesa com a SulRiograndense, onde aquele funciona como elemento de união. Com ele continuo de certo modo o trabalho publicado no vol. 3, nº 5, Abril de 1999, págs. 47-58, com o título A Década de 20 no Brasil Uma Visão Portuguesa da Educação Brasileira.

1 Quem é Damião Francisco Alves de Moura Damião Francisco Alves de Moura foi durante os últimas três décadas do século XIX a face humana e o motor da Modernidade no distrito da Guarda e nas Avelãs da Ribeira. Morreu nesta aldeia a sete de Março de 1904 e também aí tinha nascido. Iniciou a sua actividade comercial na Guarda e foi ainda muito jovem comerciar em grande escala para o Rio Grande do Sul, onde adquiriu grandes bens de fortuna. Aí também terá perdido uma parte importante dos seus haveres como resultado de uma crise comercial, que mais tarde, parece, o fez abandonar o Brasil e regressar à sua aldeia no início da década de 70. Para comprovar que nunca deixou de pensar neste regresso, ao longo da década de 60, e estando ainda residente e activo como comerciante no Rio Grande do Sul, foi adquirindo propriedades nas Avelãs da Ribeira e também nas freguesias limítrofes. Os documentos a que tive acesso mostram um grande rigor na titulação legal das suas propriedades, que foi comprando de modo a juntar diversas parcelas. Ia estruturando desta forma uma exploração agrícola viável e modelar, toda ela bem murada e de boa dimensão, que procurou sempre cultivar com recurso às modernas técnicas agrícolas. Contrariava assim os usos agrícolas locais, que assentavam numa propriedade excessivamente fragmentada em pequenas parcelas de terreno e sem grande recurso às tecnologias mais modernas. Trata-se de uma faceta que é patente no resto da sua biblioteca que ainda existe na sua casa das Avelãs da Ribeira. Mais, os poucos livros que agora restam na sua casa das Avelãs da Ribeira como resultado das múltiplas partilhas entre os herdeiros, mostram um claro e sólido interesse 49


no desenvolvimento científico da sua exploração agrícola e, consequentemente da Agricultura Regional. Quando regressou no ano de 1872, como comprova a sua actividade mecenática no apoio à sociedade 1º de Dezembro, envolve-se na vida cultural portuguesa, ganhando assim uma Comenda da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e a capacidade de influenciar alguns políticos de importância nacional. Foi por isso amigo de muitas personalidades marcantes do seu tempo, como é o caso de Bento Carqueja, Latino Coelho, José Estevão e muitos outros.1 Este facto mostra o seu peso local e nacional, granjeando para a Guarda e para Avelãs da Ribeira a atenção que de outro modo não obteriam. Casou com Angelina Correia Leite, duma família do Porto, a filha dum sócio mais velho. Conta-se que este lhe foi apresentando as filhas por ordem decrescente de idades, mas, no fim, Damião optou pela mais nova. Foram um casal feliz, mas sem filhos, vivendo mais de trinta anos nas Avelãs da Ribeira. Foi onde a viúva continuou a viver pois também aí ela quis passar os seus últimos dias de vida, fazendo antes um testamento muito claro. Quis assim impedir quaisquer conflitos posteriores. Procurou assim manter a sua família e a do marido em perfeita harmonia. Mais tarde, o corpo de Angelina Correia Leite foi trasladado para o Porto. As fotografias existentes na casa mostram um casal feliz, tendo ele mais idade do que ela, vendo-se os dois muito ligados aos sobrinhos de Damião Alves de Moura. Aí, se foram multiplicando os Damiãos e as Angelinas, sinal certo da amizade que a família continua a dedicar a este casal desaparecido há quase um século por morte do marido. Não faltam aí os muitos adereços de Angelina Correia Leite, que se mostra assim ser uma portuense elegante do final do século XIX e dos inícios do século XX. Damião Francisco Alves de Moura ao longo de trinta anos pugnou pelo desenvolvimento científico na Guarda, participando no levantamento e equacionamento dos problemas agrícolas e pecuários do micro clima que é a Guarda e o Jarmelo. A prová-lo está o conjunto de cartas sobre a realidade regional que Damião Francisco Alves de Moura, como agricultor de Avelãs da Ribeira, então do concelho de Pinhel em Junho e Julho de 1887, escreveu sobre a realidade agrícola. Faz aí uma análise rigorosa com uma larga soma de pormenores sobre os problemas da produção pecuária e agrícola. 1

O Occidente, 27º ano, Vol. XXVIII, n.º 919, 10 de Julho de 1904, pág. 151.

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É uma análise da realidade que tem acentuado rigor científico, estruturada com uma análise estratégica da competitividade regional que se insere nos interesses nacionais. Por isso, esta análise é acolhida com muita atenção pelo redactor Rodrigues de Moraes d’ "O Agricultor Portuguez".2 Num primeiro texto, refere-se aos preços da carne, que por força da diminuição de compradores da Covilhã e de Viseu, tem agora preços menores, explicitados pela baixa generalizada dos preços da carne que lista com a habilidade de um homem de negócios experimentado. Completa a notícia com a referência a um episódio de comércio internacional, que observou no Rio Grande. Esta refere-se a uma exportação de azeite em que o exportador falsifica o envio de azeite, retirando-lhe a marca de qualidade mas, as reclamações são tantas que é feita uma análise. Nesta verifica-se uma burla já que se detecta a introdução de substâncias estranhas, que prejudicam a imagem e a qualidade do azeite português. Mais, usa-se uma desculpa de mau pagador para justificar o mau comportamento quanto ao não uso da marca habitual. Diz-se que "a alfandega não consentia agora que lh’as pusessem." (pág. 136). Dirigindo estas informações ao alto funcionalismo, alerta o estado para que controle estes desmandos, que nos prejudicam na América do Sul, diminuindo aí a competitividade externa portuguesa. Termina dizendo que o ano agrícola corre bem e que as colheitas prometem ser abundantes. Explicita as experiências agrícolas que está a fazer e os bons resultados conseguidos. Mostra assim não só o faro e a inteligência de um grande comerciante, mas também a de um agricultor interessado na melhoria da produtividade e qualidade da exploração agrícola. Passado um mês, Damião Francisco Alves de Moura considera que a ventania, a seca e a pressão barométrica justificam que envie uma nova carta onde informa que tudo está agora a correr mal, pois as colheitas de batata estão perdidas e as oliveiras e as vinhas sofreram mais com a ventania do que com os calores e a seca. Quanto ao problema do gado, propõe que o estado regularize o mercado fazendo com que os criadores aperfeiçoem as raças. Mostra assim as influências da organização do mercado que observou no Rio Grande do Sul. Termina a explicar melhor o facto de a alfandega não permitir o uso de marcas. Diz que é porque aí se viu que o azeite era espanhol e mau e que, consequentemente, não devia usar uma marca portuguesa. Por outro lado, uma notícia do Estrela do Sul do Rio de Janeiro é comentada por A. Faria n’ O Agricultor Portuguez, realçando-se o facto de 2

15 de Julho de 1887, volume 10, nº 8, página 135-137 e 15 de Agosto de 1887, volume 10, nº 10, página 174.

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que Pelotas tem o seu desenvolvimento assente na indústria da carne seca, numa pecuária feito no estado de natureza, ou seja, sem estabulação, onde os animais têm características bem diversas, algo atribuído às condições do terreno e da climatologia.3 Esta ideia de que Damião Alves de Moura é um agricultor atento às práticas locais, que questiona, é expressa numa pergunta à secção de ciências veterinárias de O Agricultor Português4, enviada em 4 de Julho de 1888, em que equaciona o problema da esterilidade de uma vaca de origem raiana, que explicita ser do Sabugal. Responde-lhe o veterinário Alves Torgo que na resposta, vai pedir novos dados sobre o problema colocado. Algum tempo depois, Alves Torgo acrescenta uma nova hipótese explicativa da esterilidade que é a acidez do suco vaginal.5 Integra-se assim na vida da Guarda que vive em 1881 um momento alto da sua actividade científica (Diniz, 1999), em particular na difusão dos resultados científicos da quinta experimental da Guarda (Diniz, b), 1999), onde ele era um elemento atento e determinante através da actividade política, que exercia na Junta Geral do Distrito da Guarda. De facto, sempre muito activo, foi um político local influente sendo por diversas vezes procurador à Junta Regional da Guarda, um órgão que coordenava a Política Económica e Social no Distrito, aí prestando uma grande atenção ao papel das acessibilidades ferroviárias e rodoviárias (Diniz, 2000). É em tudo um homem multifacetado que nunca deixou de procurar as soluções dos problemas locais, regionais e nacionais, contribuindo activamente para tal objectivo. Infelizmente, ao longo do tempo, outros não lhe seguiram o exemplo na prática política, económica e social. Em tudo, foi exemplar na solidariedade social e, por força disso, vai exercer uma forte influência local no mecenato educativo tanto antes como depois da sua morte. É o que podemos observar através da imprensa local pela difusão de actos de beneficência semelhantes aos seus, algo que mais tarde vamos ver concretizados por todo o distrito da Guarda.

3

15 de Julho de 1887, volume 12, págs 49-50.

4

15 de Julho de 1889, volume 11, págs. 139-140.

5

15 de Julho de 1887, volume 11, página 171.

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2 A experiência Sul Riograndense e a Guarda Agora iremos estudar o seu papel na criação das Escolas da sua aldeia, usando o apoio de alguns portugueses radicados no Brasil e as influências políticas que foi construindo em Portugal através das suas ligações sociais. Antes, faremos uma análise breve do ambiente educativo que viveu no Rio Grande do Sul. Podemos, usando o texto de Ruedell (2002), imaginar a experiência de luta política no campo educativo que Damião Francisco Alves de Moura viveu no Rio Grande do Sul na segunda metade da década de 50 e na década de 60. Nesta altura, vivia-se aí uma lenta e progressiva organização do ensino, onde havia uma clara preocupação com a formação dos professores, com a criação da Escola Normal, com um esforço notório no aperfeiçoamento metodológico dos professores. Havia uma clara preocupação com a promoção de uma maior participação da mulher na sociedade e no seu papel na educação. Havia claras preocupações com a educação integral, numa atitude pedagógica que se expressava nos aspectos físicos, intelectual e moral, onde se ensinava a inteligência e se educação o coração, havendo aí escolas mistas que começaram a ser autorizadas por lei a partir de 1859 no interior do Estado do Rio Grande do Sul. Também havia uma clara luta pela autonomização da educação religiosa através influência liberal, havendo quem preconizasse já a supressão da instrução religiosa. Isso marcou a discussão política que originou uma larga produção de textos legais. Foi algo a que Damião Francisco Alves de Moura assistiu a propósito da criação de um sistema de oferta de instrução primária pública, que era considerada prioritária para a integração das novas gerações das colónias. De facto, tinham as mais diversas origens geográficas, com as mais diversas formações religiosas, havendo por isso abertura para uma maior liberdade confessional. Foi isto que como experiência social e política aí vivida Damião Francisco Alves de Moura trazia como bagagem cultural quando retornou a Portugal em 1872. Na sua aldeia, fez, como mecenas, diversos melhoramentos, em particular os expressos nos investimentos em edifícios escolares para os dois sexos. Esta sua acção foi para as Avelãs da Ribeira uma grande ajuda, em particular numa situação de carência de fundos públicos e de falta de dinheiro das câmaras. É o que noutros lugares iriam estar ainda ausentes durante algumas décadas, provocando aí atrasos no seu desenvolvimento cultural com claras implicações no desenvolvimento económico e social 53


local. Sabemos por isso que de outra forma estes benefícios não lhe teriam sido dados tão cedo. De facto, em Junho de 1879 é ioaugurada a Escola Primária do sexo feminino, anunciando-se logo para daí a dias a entrega da parte do edifício destinada ao sexo masculino para daí a alguns dias. Agradece então o apoio recebido de António Rodrigues Sampaio que, como Ministro do Reino, nessa altura estava a concretizar as fundações legais da Instrução Primária, regulamentando as suas bases pedagógicas, administrativas e financeiras. No momento da inauguração, Damião Francisco Alves de Moura vai falar dos esforços, que desenvolveu nos últimos anos para dotar a aldeia onde nasceu, com as escolas de instrução primária para ambos os sexos. Aí, diz amar as Avelãs da Ribeira logo depois da família. Considera a instrução o alimento espiritual da mocidade, pois lhe cultiva a inteligência e a eleva na escala social, segundo o aproveitamento de cada um. Para ele, a instrução é um meio poderoso de promoção e de mobilidade social, que dá a quem a tem "superioridade em maximo grau sobre o ignorante e o analphabeto" (Moura, 1879, pág. 3). Mostra agora uma preocupação particular com a educação da mulher que considera a base da família, invocando para o justificar Alexandre Herculano para logo dizer que a educação da mulher é o assunto menos cuidado nas Avelãs da Ribeira. Nota-se aqui uma clara influência social que tinha vivido no Rio Grande do Sul, onde como já mostrei se valorizava a educação da mulher. Anuncia então que no dia seguinte se vão iniciar os trabalhos escolares, pois está já nomeada a professora, que não podendo fornecer de certo grandes conhecimentos literários, lhes dará contudo os necessários para que entendam os benefícios da instrução, mesmo da mais limitada, ensinando-lhes também regras de moral e de religião. A professora é já bem conhecida e por isso apela a que os pais lhe entreguem as filhas, matriculando-as e fazendo-as frequentar a escola com assiduidade, libertando-as da escravatura do rude trabalho infantil familiar, que lhes criam hábitos nocivos ao corpo e à alma. Diz. Também valoriza o papel da instrução no nascimento de uma nova civilização e diz que nesta palavra se encerram todas as virtudes sociais. Destacando logo nestas os conhecimento e a prática dos direitos e deveres da humanidade, que se adquirem respectivamente pelo estudo e pelo trabalho. Por isso, apela para que usem o edifício que então se inaugura pois não o fazer seria um crime e uma ingratidão para com ele, já que tanto cuidados lhe dedicou, e, também para com os mecenas que vai listar a 54


seguir. Encontramos aí do Rio Grande do Sul os comendadores Ricardo José Ribeiro, João de Miranda Ribeiro, António José d’Azevedo Machado, o Barão de S. José, Domingos Moreira de Paiva, José Soares Vianna, Christiano Hermano Clausen, Francisco António d’Otero, António Caetano Ferraz; de Porto Alegre, o Dr. Joaquim Bernardino da Silva, Bahia Gualter, Joaquim Pinto de Faria e Silva; do Rio de Janeiro o Comendador Guilherme Costa Correia Leite; e de Pelotas, o comendador Domingos António Felix da Costa, Domingos Soares Barbosa e Domingos Guilherme da Costa. Pede no fim um voto de gratidão para com eles e ainda que estes nomes fiquem gravados na memória de todos, pois tiveram para com os avelanenses a generosidade que está expressa nos edifícios escolares modelo. Acrescenta que é algo valioso de que os avelanenses vão beneficiar antes de muitas outras aldeias do distrito da Guarda. Há contudo, oposições locais por parte do pároco que usou umas estatísticas não datadas para fazer crer que a instrução provoca o aumento da criminalidade. Trata-se de alguém bem identificado que não nomeia. Corresponde a mais um episódio da luta entre o professor e o padre, as personagens que numa aldeia pretendem dominar as consciências dos paroquianos. Aqui, há uma procura de obscurantismo que se limita a querer impor uma certa e bem determinada instrução religiosa. É por isso que o padre quer impedir qualquer instrução pois esta mina o seu monopólio ideológico. Contudo, se notamos a presença de um obscurantismo clerical este não é geral, pois já existem muitos padres empenhados na educação popular. De facto, muitos são professores e alguns até são inspectores. Tudo parece corresponder à vivência na sua terra das quase mesmas lutas políticas que, a propósito da instrução religiosa, já tinha observado no Rio Grande do Sul. Para contrariar esta ideia de modo moderado, mas sempre muito firme e também aberto vai agora transcrever um texto escolhido de Guerra Junqueiro. Mostra nele como a um analfabeto se associa um mendigo e um ladrão quando a fome aperta e, também e só porque não existe para ele uma qualquer outra forma de sobrevivência por falta de instrução. Mostra assim como a falta de acesso à escola, associado ao fenómeno da roda e da exposição6, provoca o nascimento natural de criminosos, algo que só a aprendizagem da leitura, da escrita e da aritmética podem conseguir debelar. Explica que não havendo outra aprendizagem, os jovens excluídos pela ignorância, formar-se-ão em ladroagem e aprenderão muitos vícios entre os quais dramatiza em particular o do alcoolismo. Resumirá todo o raciocínio 6

Trata-se de um fenómeno frequente, que indica o abandono físico das crianças pelos pais nos primeiros dias de vida.

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na ideia de que o alfabeto diminui o crime. É uma situação social em que o professor elimina o carcereiro porque a Escola deitou abaixo uma cadeia, já que uma consciência bem estruturada é a sentinela dos espíritos, dominando e dirigindo os instintos. No texto de Guerra Junqueiro, que Damião Alves de Moura escolhe para convencer os avelanenses, tudo é muito lógico e por isso o emigrante, que assim exerce o mecenato, incentiva no fim do seu discurso a professora a que cumpra os seus deveres, lembrando-lhe a necessidade de obter bom aproveitamento das alunas, mantendo um bom regime na Escola, pois disso depende a realização das suas aspirações profissionais. Agradece por fim a coadjuvação que recebeu das autoridades distritais e centrais. Por fim, diz que quanto aos seus trabalhos, sentir-se-á bem remunerado se a frequência e o uso da Escola aumentar. Nota-se no texto anteriormente citado que ele tem uma ideia estratégica muito clara que o guia na estruturação da confluência de capitais e de boas vontades, que se concretizam no edifício escolar e, ainda, na escolha do texto de Guerra Junqueiro, um ideólogo republicano, com que responde aos poderes locais que o querem obstaculizar. Agora, entre os poucos livros sobre educação, que restam na sua casa das Avelãs da Ribeira, há também um sobre educação cívica de 1882, que, pela sua presença, mostra uma clara sintonia com os nascentes ideais republicanos. Damião Francisco Alves de Moura estava assim a assistir na sua aldeia ao remake de uma história da política educativa que tinha assistido no Brasil, mas agora tudo lhe aconteceu como protagonista local na sua aldeia, concelho e distrito, tendo até uma influência nacional difusa, mas que é relevante como se nota nas notícias que informam da sua morte.

Epílogo No final da monarquia, havia em quase todas as aldeias professores muito empenhados na mudança das mentalidades e das formas de vida agrícolas. Tinham a convicção firme de que as ideias pedagógicas, com origem na investigação psicológica, devem sustentar o conhecimento rigoroso das regras de educação e propiciar a introdução das novas tecnologias. Este ambiente era o resultado do esforço de muitos homens que apoiavam a educação popular e que assim continuavam o trabalho pioneiro de Damião Francisco Alves de Moura. Tudo parecia encaminhado para uma mudança, mas esta pela fragilidade da República e por força do Salazarismo não iria acontecer. 56


Referências Aires Antunes Diniz a) – 1881 – A Guarda numa encruzilhada da Ciência, edição do autor, 1999. Aires Antunes Diniz b) - José Anastácio Monteiro e a Ciência Experimental na Guarda, Praça Velha, Revista Cultural, Julho de 1999, nº5, págs. 33-56. Aires Antunes Diniz- A Guarda - Os falsos e os verdadeiros problemas de um Distrito do Interior, Praça Velha, Revista Cultural, Julho de 2000, nº7, págs. 5-33. Aires Antunes Diniz - A Década de 20 no Brasil - Uma Visão Portuguesa da Educação Brasileira, História da Educação, vol. 3, nº 5, Abril de 1999, págs. 47-58. Damião Francisco Alves de Moura - Inauguração da Escóla de Ensino Primário de Avelans da Ribeira, Concelho da Guarda, Porto, Typographia Comercial Portuense, 1879. Damião Francisco Alves de Moura - Notícias da Beira Alta - O gado, o Azeite, etc, in O Agricultor Portuguez, 15 de Julho de 1887, volume 10, nº 8, págs. 135-137. Damião Francisco Alves de Moura - Notícias da Beira Alta - O gado, o Azeite, etc, in O Agricultor Portuguez, 15 de Agosto de 1887, volume 10, nº 10, página 174. Pedro Ruedell – Instrução Religiosa Escolar na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: Influências Liberais. In Maria Helena Câmara Bastos, Elomar Tambara, Lúcio Kreutz, Histórias e Memórias da Educação do Rio Grande do Sul, Seiva Publicações, 2002, págs. 101-124. António Soares - Portugueses no Rio Grande do Sul, Edições Caravela.

Aires Antunes Diniz é pesquisador em História da Educação em Portugal. Autor de vários trabalhos de História da educação.

Recebido em: 14/01/2005 Aceito em: 28/07/2005

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Notas sobre o Congresso Internacional do Ensino, Bruxelas, 18801 Moysés Kuhlmann Jr.

Resumo Este texto analisa os Relatórios Preliminares do Congresso Internacional do Ensino, realizado em Bruxelas, na Bélgica, em 1880, quanto aos aspectos da sua organização e dos seus objetivos, especialmente os relacionados à educação da criança. O congresso pretendia elucidar e vulgarizar as questões sociais e pedagógicas relacionadas ao ensino de todos os graus. Para tanto, formularam-se questões, gerais e específicas, para cada seção, e indicaram-se convidados a respondê-las, o que configurou posições, opções e restrições. As questões versam sobre variados assuntos: os programas, o método intuitivo, Froebel, os materiais didáticos, as construções escolares, os museus escolares. A preocupação com a educação das crianças ocorre nas diversas seções, direta ou indiretamente. A difusão internacional de concepções e instituições educacionais ganha impulso com os congressos profissionais, em que representantes dos diversos países legitimam modelos de integração às "nações civilizadas". Palavras-chave: congressos; ensino intuitivo; infância.

Abstract This text analyses the Preliminaries Reports from the Instruction International Congress, held at Brussels, Belgium, 1880, and focuses its aims and organizational aspects, especially those about the childhood education. The congress intended to explain and to spread the social and pedagogical issues related to all the schools grades. Therefore, it has been prepared general and specific questions, to each section, and specialists were invited to answer them, configuring positions, options and restrictions. These questions asked about several issues: programs, intuitive method, Froebel, didactical materials, school buildings, educational museums. Direct or indirectly, childhood education was under discussion in all sections. The growth of the international spread of educational conceptions and institutions is due to the professional congresses, wherein integration models to "civilized nations" were legitimated by delegates from various countries. Key-words: congresses; intuitive method; childhood.

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Apresentado no V Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação. Évora, 2004. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 59-69, set. 2005


Este texto é um primeiro produto de estudo em desenvolvimento sobre os Relatórios Preliminares do Congresso Internacional do Ensino, realizado na Bélgica, em 1880. Aqui, serão analisados aspectos da sua organização e dos seus objetivos, relacionados à educação da criança. O livro contém informações sobre a organização do encontro e pareceres escritos por especialistas. De acordo com o regulamento do encontro (art. 8º), os Relatórios Preliminares deveriam ser distribuídos dois meses antes da realização do Congresso. Com isso, pretendia-se trazer os "debates contraditórios" em resposta às questões formuladas para as diferentes seções, A adoção desse procedimento sugere uma garantia de amplo debate de opiniões, como em uma comissão de inquérito "em que todos os fatos e idéias possam ser expostos livremente e se controlar mutuamente". Prescreve-se a busca da "verdade", sem imposições: de acordo com os Relatórios, o congresso "discute, esclarece, não adota resoluções" (art. 3º). Mas a forma de organização do encontro, a definição das questões, assim como a seleção dos conwidados a respondê-las já configuram posições, opções e restrições, que permitem analisar importantes aspectos relacionados à história da educação naquela época. O interesse por esse material, localizado na Biblioteca Nacional de Lisboa, deve-se ao fato de haver encontrado referências ao Congresso em pesquisas sobre a história da educação infantil brasileira. Pode-se supor que o seu modelo de organização tenha inspirado a proposta do Coogresso da Instrução, previsto para se realizar por ocasião da Exposição Pedagógica de 1883, no Rio de Janeiro. Embora este congresso não tenha ocorrido, publicaram-se, ao estilo da reunião de 1880, os pareceres relativos às questões formuladas para as duas seções propostas: Estudo de questões relativas ao ensino primário, secundário e profissional; e Ensino superior. A proposta de realizar a Exposição Pedagógica, feita durante os preparativos do congresso não realizado, referiu-se explicitamente ao encontro de Bruxelas. Observe-se que na Exposição de 1883, as duas primeiras salas foram reservadas para a exposição oficial organizada pelo ministério da Instrução Pública da Bélgica, com documentos oficiais e informações gerais sobre a organização do ensino naquele país. A difusão internacional de concepções e instituições educacionais ganha impulso com os congressos profissionais, que ocorrem em grande número a partir de 1870, organizados não apenas em torno da educação, mas dos mais variados temas. Esses congressos, realizados muitas vezes no âmbito das Exposições Internacionais do final do século XIX e início do século XX, reúnem representantes dos diversos países para legitimar modelos e critérios de integração ao "concerto das nações civilizadas". Os mais diversos setores sociais ocupam-se da organização do estado e das 60


instituições. A definição de caminhos e procedimentos para se atingir a modernidade, o progresso, envolve um conjunto de temas como as obras marítimas, a unificação da hora, os padrões de pesos e medidas, a legislação trabalhista, industrial e penal, a higiene e a saúde, a instrução pública. O Congresso do Ensino de 1880 é uma dessas reuniões. O Comitê Geral foi composto por representantes dos seguintes países: Alemanha, Bélgica, Brasil, Chile, Dinamarca, Espanha, EUA, França, Itália, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia e Noruega (juntas), e Suíça. Os membros portugueses foram: Lourenço d´Almeida Azevedo, professor de medicina da Universidade de Coimbra; António Maria de Amorim, diretor geral de instrução pública no ministério do reino, Lisboa; A. Ayres de Gouvêa, professor de direito eclesiástico, ministro de estado honorário, Granja; José-V. Barboza do Bocage, professor da Escola Politécnica, diretor do Museu de História Natural, Lisboa; Thomaz de Carvalho, diretor da Escola de Medicina de Lisboa; Luís da Costa e Almeida, professor de mecânica racional na faculdade de ciências matemáticas da Universidade de Coimbra; Manoel Maria da Costa Leite, diretor da escola de medicina do Porto; A. X. Palmeirim, general de divisão e par do reino, Lisboa; António dos Santos Viegas, professor de física na Universidade de Coimbra; Jacintho António de Souza, diretor do Observatório meteorológico e magnético, Coimbra; e Vicente de Villa Maior, par do reino, reitor da Universidade de Coimbra. Os membros brasileiros foram o senador Manoel Francisco Correia; Benjamin Franklin Ramiz Galvão, diretor da Biblioteca Nacional; barão Homem de Mello, vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB); Baptista Caetano d’A. Nogueira, vice-diretor dos telégrafos; Barbosa Rodrigues, professor do Colégio Imperial de D. Pedro II, todos do Rio de Janeiro; e o Barão de Melgaço, contra-almirante reformado, de Cuiabá, Mato Grosso. Manoel Francisco Correia, presidente da Sociedade Propagadora da Instrução, participou da organização da Exposição Industrial de 1881, na qual foi relator da seção de Instrução Pública. Ramiz Galvão teve expressiva participação em eventos comemorativos, como a organização da Exposição de História do Brasil, na Biblioteca Nacional, em 1881 e do Livro Comemorativo do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, e na área educacional. O barão Homem de Mello foi inspetor da instrução pública no Rio de Janeiro. O Congresso de 1880 tinha por objetivo "elucidar e vulgarizar as questões sociais e pedagógicas" relacionadas ao ensino de todos os graus (art. 2º do regulamento). Chama a atenção que, no seu regulamento, a educação infantil é associada diretamente ao ensino primário, na denominação da primeira seção: Creches, Jardins de Infância, Escolas 61


Guardiãs, Ensino primário (mesmo que, fora do texto do regulamento, esta seção seja intitulada simplesmente Ensino Primário). As demais seções são: Ensino médio; Ensino superior; Ensino de matérias especiais, profissionais, técnicas, agrícolas, comerciais (fora do regulamento, denominada Escolas Especiais); Ensino popular, cursos, conferências, bibliotecas, museus, sociedades para propagação da instrução (fora do regulamento intitulada Ensino de Adultos); e Higiene Escolar. A estruturação de sistemas educacionais como componentes de modelos de organização estatal e institucional é marcada por essas duas ordens de problemas apontadas nos objetivos da reunião, os sociais e os pedagógicos, que se inter-relacionam. As questões sociais surgem da necessidade de definições quanto à educação do povo para a sociedade moderna, por meio de instituições de educação popular, distintas daquelas destinadas às "classes superiores" (assim denominadas nos textos do congresso de 1880 e em outros textos do período). Nos pareceres discutidos na seção Ensino de Adultos, isso fica explícito: adultos a serem educados são os trabalhadores e os pobres, que não foram educados em sua infância e precisam receber instrução e moralização. As questões pedagógicas indicam mais claramente a delimitação da educação como um campo de conhecimento específico para a organização da vida social. Embora o congresso se ocupe de todos os graus, nota-se uma maior amplitude de questões e propostas direta ou indiretamente relacionadas à educação das crianças, especialmente no âmbito do ensino primário. Das 932 páginas de relatórios, praticamente um terço, 304 páginas, referem-se à primeira seção. Na seção de Higiene, a segunda em tamanho (215 páginas), boa parte dos temas reportam-se à educação das crianças, como será visto adiante. Em todas as seções, havia uma questão para tratar na Assembléia Geral e outras a serem debatidas nas próprias seções, subdivididas em questões gerais e especiais, ou subsidiárias. O ponto de partida para a discussão sobre a educação das crianças relaciona-se aos objetivos políticos da educação do povo e das classes. Na seção Ensino Primário, a primeira questão, para tratar na Assembléia Geral, era: Qual o objetivo que deve perseguir o legislador ao elaborar o programa do ensino primário? O objetivo é fazer adquirir conhecimentos determinados, ou cultivar de maneira integral as faculdades físicas, intelectuais e morais? Que deve fazer a escola primária do ponto de vista da educação do povo?

O relatório, elaborado por A. J. Pick, de Viena, acaba por defender que a escola deve tornar feliz a aceitação do destino social como 62


condição natural das classes. O autor fala daquele que se sustenta com o seu suor, que espera da escola que seu filho ganhe a vida com menos sofrimento, e daquele que almeja que a escola permita a seu filho conquistar postos mais altos, que lhe tenham sido inacessíveis, nas classes da sociedade. A escola proporcionará ao primeiro, o ganho mais fácil, e ao segundo, "o poder, a influência, as honras ou a consideração; a cada um a sua felicidade [bonheur, no original], segundo a idéia que cada um se faz". Para tanto, a escola deve ser "prática". De acordo com o autor, os homens em geral poderiam ser divididos em 2 grandes grupos: aqueles em que o acaso da vida se desenrola nos limites estreitos da sua pátria, e aqueles que devido à sua posição ou por sua impulsão interior se encontrem mais ou menos em relação com o conjunto do mundo. No primeiro grupo estariam: "o camponês, o operário, o homem que ganha sua vida, etc.". No segundo grupo, "o sábio, o professor, o artista, o fabricante, etc.". Para o primeiro grupo, caberia a escola primária, que cumpriria a função de iluminar o domínio estrito da prática dos seus alunos "como um microcosmo". As escolas primárias permitiriam adquirir conhecimentos determinados, assim como os conhecimentos polític s e sociais, para que mais tarde, esses alunos pudessem ser "capazes de julgar", sem "se tornarem instrumentos nas mãos de outros". Apesar do objetivo comum, as escolas primárias deveriam ser as mais diversamente organizadas, "por que elas devem ser as mais individualizadas". Para o segundo grupo, as esc las médias iriam mostrar "a vida de conjunto, toda a humanidade como unidade". Essas considerações vão ao encontro das apresentadas por M. Steinbart, diretor do colégio científico em Duisbourg, Alemanha, na seção do Ensino Médio, em resposta à pergunta se as escolas médias poderiam dar o ensino elementar ou se isto caberia à escola primária, e se conviria fixar um mínimo de idade para a admissão nos estabelecimentos de ensino médio. Para ele, a escola média exigiria saber ler a língua materna correntemente e com compreensão, escrever com alguma fluência e sem erros, e o conhecimento das operações aritméticas. Desse modo, com a idade de 9 anos (ou 8 anos e meio, para aquelas com desenvolvimento precoce), a criança poderia ingressar no ensino médio. Portanto, no lugar de passar pela escola primária, e dela sair antes de sua conclusão, para o ingresso no ensino médio, essas crianças poderiam frequentar escolas preparatórias para esse grau. Isso mostra que, ao mesmo tempo em que se define uma distribuição etária que estrutura a escola primária como lugar de crianças, também se identifica uma distribuição social para os distintos graus de ensino, em que a escola primária não é vista como destinada às crianças das "classes superiores". 63


Essas divisões não são claramente estabelecidas no conjunto das comunicações, e o papel e a destinação do ensino primário reveste-se de um certo grau de indeterminação com relação aos seus aspectos sociais, ora entendido como um ensino para todos, ora como uma escola para as classes populares. Mas o ensino médio é claramente representado como algo para poucos. Também do ponto de vista dos sexos, formulam-se distinções sociais. Entre as questões a tratar na seção do Ensino Primário, perguntavase: O ensino das meninas exige regime e programa especial? (em que idade, a escola mista? Nas escolas mistas, bancos comuns ou separados?).

O relatório de M. E. Laporte, inspetor de ensino primário em Melun, considera que a mãe é a primeira educadora da infância e que a mulher deveria ser preparada para "exercer os graves deveres de esposa e mãe". De início, o ensino até poderia ser misto, desde que meninos e meninas ficassem separados na classe, de modo a evitar "familiaridades ou curiosidades perigosas". Mas quando, entre os 9 e 10 anos, a menina, "obedecendo a uma lei natural", passasse a se interessar pelos trabalhos das pessoas de seu sexo, seria bom "discretamente começar a restringir suas relações com os meninos" e a sua instrução deveria se realizar em estabelecimentos especiais. A distribuição social na educação é tratada para situações específicas na quarta seção, Escolas Especiais, que envolve as escolas industriais e profissionais, o ensino de ginástica, os conservatórios e a arte musical, e as escolas de "surdos-mudos, cegos e idiotas". Como questão a tratar na Assembléia Geral, procura-se a melhor organização a dar às academias ou escolas de desenho "para que a arte possa preencher, no interesse das massas, sua missão educacional", sob o ponto de vista das escolas médias, das escolas primárias, e das escolas técnicas ou industriais. Como assinalado acima, essas questões mais referidas aos aspectos sociais se articulam com aquelas de ordem pedagógica. Às vezes, de forma indireta, outras vezes, mais diretamente, como na primeira das questões gerais a tratar no interior da seção do Ensino Primário, que sugere limites à liberdade de ensino: A liberdade se opõe à lei que exige garantia de capacidade ou de moralidade dos que têm a profissão pública de ensinar? Na maior parte das legislações, figura entre as penas a proibição de direitos políticos ou civis, como o de ser tutor, de fazer parte de um conselho de família, etc. O legislador deve compreender o direito de ensinar entre essas interdições?

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As leis penais reprimem os fatos que perturbam a segurança do Estado. Nos países livres, esta repressão não atinge a simples expressão de opiniões. Se é ensinado o desprezo às leis em uma escola não oficial, mas acessível a todos, este ensino está protegido pela liberdade de opiniões e de ensino, ou constitui um fato a reprimir?

O relatório de X. Olin, membro da Câmara de Representantes e Reitor da Universidade Livre de Bruxelas, entretanto, é bastante cauteloso. Se há limites à liberdade de ensino, tanto do ponto de vista do respeito aos direitos do outro, quanto ao respeito da ordem pública, o Estado não pode pretender a infalibilidade, pois as inovações e as novas crenças notabilizamse por, em seu início serem combatidas como perigo e como heresias. A história do progresso estaria caracterizada por lutas incessantes. Se a liberdade de ensino, quando se refere a um aluno maior, na plenitude de suas faculdades, garante-se pela liberdade de escolha de seu mestre e da sua escola, a situação torna-se diferente quando o ensino se dirige à criança, pois "o homem, no debutar da vida, tem direitos sagrados e invioláveis, mas é incapaz de exercê-los por si", pois não atingiu a idade do discernimento necessário para dirigir racionalmente as suas escolhas e preferências. Assim, a intervenção governamental torna-se admissível nos povos onde a instrução seja decretada obrigatória, no sentido de se proteger a criança, pois os pais não têm aí a opção de recusar-se a enviá-la à escola. Entretanto, quanto ao último quesito, o autor considera que "aqueles que não admitem delitos de opinião não devem erigir em delito a crítica de uma lei ou de uma instituição", seja em uma escola, em uma cátedra ou na rua e conclui: Se o princípio é justo, ele o será sempre em todos os lugares. Nós somos daqueles que acreditam na justiça desse princípio: não nos exporemos então a uma censura inconsequente, ao resolver afirmativamente a questão proposta.

Na seção do ensino primário, algumas das questões propostas voltam-se para o seu conteúdo e envolvem tanto o programa de estudos, em geral, quanto aspectos mais específicos, como a importância da geometria e do desenho, em que medida o ensino deveria compreender as teorias gramaticais, e também o que e como ensinar em relação à história. Há também questões sobre a relação com as crianças: qual o melhor sistema disciplinar e o melhor sistema de emulação, qual o melhor sistema de punições e premiações; se as lições seriam para fazer em casa ou apenas na escola; quantas horas as crianças deveriam passar cada dia na escola, a necessidade de período de recreação e a duração de cada aula. As reflexões relacionadas aos procedimentos e aos materiais didáticos sobressaem nos relatórios, que detalham a discussão das práticas educativas e estabelecem seleções entre os métodos de ensino e o período 65


da infância. Pergunta-se sobre as propostas de exercícios que poderiam ser empregados para desenvolver a atividade, a espontaneidade e o raciocínio. Discute-se a organização dos museus escolares, onde os professores iriam com os seus alunos, e também as excursões escolares, como atividade pedagógica. Propõe-se a revisão do método intuitivo: com base na experiência, quais os riscos a evitar? Para tanto, pergunta-se sobre a definição do método intuitivo, sobre quais as ciências da observação que se deve ensinar, bem como se as escolas primárias devem agrupar as noções científicas sob o nome da ciência a que se reportam, ou se devem coordenálas sob a denominação geral de lições de coisas. A aplicação do ensino intuitivo relacionada ao desenvolvimento da indústria escolar pode ser verificada no Concurso Internacional para a confecção de material escolar, promovido pela Ligue de l´Enseignement para o Congresso e anunciado nos Relatórios. O concurso pretendia premiar materiais didáticos dificilmente encontrados no comércio e nas escolas primárias. O programa do concurso solicitava oito tipos de materiais, todos relacionados ao programa do ensino primário: 1. Uma coleção de instrumentos para demonstrar as leis da física e expor fenômenos relacionados a essa ciência, "composta de aparelhos os mais simples possíveis, muito sólidos, em material barato, de fácil manipulação", sem uma redução exagerada da sua dimensão. 2. Uma coleção de aparelhos simples e sólidos para a demonstração dos principais teoremas da mecânica. 3. Um globo na cor de ardósia com aproximadamente 60 cm. de diâmetro, que permitisse o desenho com giz, com as linhas dos meridianos em branco a cada 10 graus, os contornos dos oceanos em vermelho e os mares em fundo azul. 4. Uma coleção de instrumentos de agrimensura, leves, sólidos e proporcionais ao tamanho e força de uma criança de 12 anos, de modo que os alunos pudessem levá-los em excursões. 5. Um pequeno laboratório de química portátil, para as experiências as mais elementares que possam ser feitas em classe primária. 6. Um livro com série de experiências de física, de química ou mecânica que pudessem ser realizados com a ajuda de aparelhos construídos pelos próprios professores ou por objetos usualmente encontrados nas casas. 7. Uma coleção de pranchas para o ensino de história. 66


8. Uma coleção de mapas em relevo, econômicos e grandes para ensinar em classe. A delimitação do campo educacional se faz tanto pela definição dos seus limites, como pela permeabilidade desses limites, de modo que a educação se faz presente nas questões políticas, jurídicas, sanitárias, etc., assim como essas questões são contempladas no interior das idéias educacionais. Na sexta seção, Higiene Escolar, a segunda maior dos Relatórios, com 215 páginas, arquitetura, engenharia e medicina articulam-se com a pedagogia. Os aspectos materiais da organização dos sistemas educacionais não se restringem aos objetos de uso didático, mas envolvem propostas relacionadas aos espaços físicos. Inicialmente, debatem-se as principais questões de higiene a observar na construção das escolas, envolvendo a iluminação, o volume de ar, os pátios e corredores, os ginásios e outras dependências, as privadas, banheiros e lavatórios, a ventilação e o aquecimento, as medidas a prescrever aos professores. No mesmo sentido, outra questão refere-se à construção e montagem dos jardins de infância. Além do espaço físico, pensam-se propostas para o mobiliário escolar: quais os melhores modelos de carteiras, de móveis para os professores, as lousas, etc. Os aspectos relacionados à saúde são também tratados de uma forma mais direta. Considerando-se que as escolas concentram grande número de crianças, pensa-se na organização do serviço médico, tanto do ponto de vista da higiene dos locais, como da saúde dos alunos e da saúde pública. Quer-se também definir modelos para as pesquisas estatísticas que possam constatar a influência da escola no desenvolvimento físico da infância. Finalmente, tratam-se das medidas práticas a prescrever nos jardins de infância e nas escolas primárias, do ponto de vista da medicação preventiva e da alimentação. A identificação da escola primária como lugar de educação das crianças, a exigir definições específicas relacionadas a esse grupo etário, fica preponderantemente marcada pela incorporação do jardim de infância ao quadro de reflexões sobre a edificação de sistemas educacionais. A revisão do ensino intuitivo passa pela revisão das propostas de Froebel para o jardim de infância, como indica uma das questões da seção dedicada ao ensino primário: O sistema Froebel deu lugar a críticas fundamentadas? Quais os desenvolvimentos e adaptações de que é suscetível? É necessário um ensino normal especial para as professoras do jardim de infância?

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Convém aplicar no ensino primário os princípios de Froebel, e por que meios poderão ali entrar?

Foram três pareceres sobre esse tema, que ocupam 73 páginas dos Relatórios, sem contar a referência a Froebel nas discussões de outras questões. Os pareceres foram escritos por A. S. Fischer, presidente da Sociedade para os jardins de infância, em Viena, pela inspetora de ensino de Bruxelas, A. Portugal e por Jules Guilliaume.2 O tema do jardim de infância se impõe na agenda das discussões educacionais. No caso do Brasil, Rui Barbosa utilizou-se dos textos do encontro de 1880 nos seus pareceres sobre a reforma do ensino primário, em 1882, em que dedica um capítulo ao jardim de infância. Neste capítulo, Barbosa cita o parecer de A. S. Fischer e refere-se à inspetora das escolas infantis do Cantão de Genebra, a madame Portugal, para destacar a persistente influência de uma primeira educação racional. O congresso de 1880 terá influenciado na proposição de questões para o Congresso da Instrução, de 1883, sobre a organização das escolas infantis, sobre a educação física, o sistema disciplinar e a formação do professorado. Escreveram sobre essas questões Menezes Vieira, Joaquim Teixeira de Macedo, Maria Guilhermina Loureiro de Andrade, Januario dos Santos Sabino, Alberto Brandão, e Augusto Candido Xavier Cony. No parecer de Joaquim Teixeira de Macedo, este afirma que no Congresso de Bruxelas despertou grande interesse a questão dessa "primeira cultura da infância". Macedo refere-se ao parecer da inspetora Portugal e afirma: "as experiências feitas na Bélgica, Alemanha, Suíça e outros países, bem como os primeiros resultados obtidos, demonstram que os Jardins interpostos no maquinismo das instituições publicas, tornam-se um grande beoeficio para as massas; acostumam as crianças à regularidade, à ordem e ao asseio, que raras vezes encontram na casa paterna". Certamente, uma análise comparativa do conjunto das questões de um e de outro congresso, que não pôde ser feita no âmbito deste trabalho, indicaria muitos mais aspectos em que a organização do encontro de 1880 se fez presente nas propostas do congresso de 1883. Este estudo evidencia que os Rapports Préliminaires são uma importante fonte para aqueles que pretendam pesquisar os mais variados aspectos relacionados à história da educação em Portugal e no Brasil, naquele período.

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A creche e as escolas guardiãs não são referidas diretamente nas questões, embora mencionadas em alguns pareceres. Está em elaboração artigo que analisa esses pareceres.

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Referências BARBOSA, R. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. volume X. Tomo III. Capítulo IX, Jardins de crianças. Edição comemorativa do 1º centenário dos pareceres apresentados na Câmara do Império em 1882. Fundação Casa de Rui Barbosa, Fundação Cultural do Estado da Bahia, Conselho Estadual de Educação, 1982. CONGRESSO DA INSTRUÇÃO, Rio de Janeiro, 1883. Actas e pareceres. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1884, p.10. KUHLMANN JR., M. A circulação das idéias sobre a educação das crianças: Brasil, início do século XX. In: FREITAS, M. C., KUHLMANN JR., M. (orgs.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002, p.459-503. ________. As grandes festas didáticas: a educação brasileira e as exposições internacionais, 1862-1922. Bragança Paulista: EDUSF, 2001. LIGUE BELGUE DE L’ENSEIGNEMENT. Congrès International de L’Enseignement, Bruxelles, 1880. Rapports préliminaires. Bruxelles: Libr. De L’Office de Publicité, 1880. RIO DE JANEIRO. Exposição Pedagógica, 1883. Guia para os visitantes da exposição pedagógica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1883.

Moysés Kuhlmann Jr. é pesquisador da Fundação Carlos Chagas (FCC) e professor da Universidade São Francisco, SP. Publicou vários trabalhos na área de história da educação infantil.

Recebido em: 25/01/2005 Aceito em: 28/07/2005

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O currículo escolar nas leis 5692/71 e 9394/96: questões teóricas e de história Fernanda Pinheiro Mazzante

Resumo O presente trabalho tem como objetivo realizar em síntese, uma abordagem que diga respeito às leis 5692/71 e 9394/96 especificamente no trato das questões curriculares, centrais na configuração do panorama educacional brasileiro, resultantes de uma identidade política nacional requerida dentro de conjunturas históricas particulares; para tanto, serão analisados alguns aspectos em ambas que se refiram às proposições curriculares legais sem que se perca de vista a devida contextualização histórico-social em que foram elaboradas e a nãoneutralidade curricular prevista por tal contextualização. A intenção é de pensar no quanto o fomento legal direciona, ainda que de forma implícita, o posicionamento político brasileiro no campo educativo, trazendo à pauta uma educação como produto imediato das necessidades – quer econômicas, quer sociais – do país em desenvolvimento. Palavras-chave: currículo; lei 5692/71; LDB.

Abstract The present work has as objective accomplishes in synthesis, an approach that specifically concerns the laws 5692/71 and 9394/96 in the treatment of the educational curriculum, central in the configuration of the Brazilian educational panorama, resultants of a national political identity requested inside of private historical conjunctures; for so much, some will be analyzed aspects in both that refer to the propositions legal of the curriculum without it gets lost of view the due historical-social context in that were elaborated and the no-neutrality of the curriculum foreseen by such contextualização. The intention is thinking in the legal fomentation, although in an implicit way, in the Brazilian political positioning in the educational field, bringing to the line an education as immediate product of the needs - as economical, as social - of the country in development. Key-words: curriculum; law 5692/71; LDB.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 71-81, set. 2005


Retomando a configuração política e social brasileira de há 30 anos, temos especificidades bastante diretivas no que diz respeito ao clima cultural que fazia do país uma nação em que o mote do desenvolvimento econômico sustentava as ações políticas, ainda que o preço do desenvolvimento fosse o cerceamento – senão extinção - das liberdades democráticas que efervesciam em anos anteriores. Pouco mais de duas décadas após esse período, o país se encontrava em condição bem diferente: ainda que não tivessem se concretizado as forças direcionadas à democracia, já não mais o nacionalismo exacerbado integrava as frentes políticas e sociais; as reprimendas violentas contra a "subversão" por parte das autoridades políticas não eram toleradas como antes e a democracia, mais do que o nacionalismo quase irracional, passa a nortear os espaços de pensamento da nação. As diferentes conjunturas sociais, políticas e econômicas guardavam cada qual suas próprias especificidades, refletidas essas na proposta de formação de uma massa popular culturalmente favorável à estruturação de um país que ora necessitava emancipar-se economicamente, projetando-se na economia mundial – como houvera sido na década de 1970 –, ora pretendia atender à solicitação da globalização em seus aspectos democráticos e sociais – desejo premente nas manifestações populares que pediam as diretas já. A educação – como instância legítima da formação cultural da massa nacional – representa um dos vértices necessários à integração de uma nação voltada aos seus propósitos particulares, definidos segundo a conjuntura histórica que lhe é própria. A lei 5692/71, elaborada e promulgada com o objetivo de reestruturar os níveis de ensino fundamental e médio, tinha uma clara intenção eminente do contexto nacional da década de 1970: reordenar o sistema educacional básico do país1 que, naquela conjuntura política, fora considerado elemento importante na realização de uma nova ordem social, política e econômica que havia sido desperta frente às portas do militarismo em proeminência. A lei nasce em um período em que as liberdades democráticas sofriam repressão por parte do Estado autoritário e ditatorial do período militar no Brasil, cujo clima político fazia apologia às propagandas de cunho nacionalista, desenvolvimentista. Era necessário, portanto, granjear recursos para que os elementos básicos relativos à formação popular fossem garantidos com o objetivo de transformar a extensão populacional brasileira em força de apoio ao intento 1

A lei 5692/71 não faz qualquer menção à educação superior, tendo em vista que este nível de ensino houvera sido reformulado pela lei 5540/68, conhecida como Reforma Universitária. A 5692/71 se concentra nos níveis básicos do ensino: uma das realizações da ditadura militar foi a expansão quantitativa da escolarização.

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governamental: o alcance pretendido pela lei toma caráter de Reforma Educacional, preocupada em cuidar de elementos específicos à educação básica nacional. A lei, preocupada com a reforma do ensino de primeiro e segundo graus, foi imposta pelo governo quase que sem discussão e sem a participação de estudantes, professores e outros setores ligados à educação.2 O mote da Reforma Educacional prevista pela 5692/71 articulava-se politicamente com a bandeira desenvolvimentista defendida pelo militarismo, em um período em que estava em perspectiva a integração da nação brasileira pela formação de homens dispostos a trabalhar em favor da causa política, ou seja, do desenvolvimento econômico brasileiro. A bandeira da reconstrução e da ordem pairava no clima cultural então constituído pela lógica militar, bem como em seus projetos de cunho desenvolvimentista: a educação, como mediadora da formação do povo destinado ao avanço da nação, torna-se, portanto, alvo da preocupação do Novo Estado em formação. Nesse sentido, a 5692/71 foi um dos braços do novo modelo do Estado, centralizado e burocrático, legitimado até certo ponto pelo "milagre econômico" que tinha como grande chamada o desenvolvimento aliado à segurança pelo abafamento dos movimentos de contra hegemonia considerados subversivos aos fundamentos da ordem pretendida pelo Estado. Não é possível, portanto, negar a não-neutralidade das proposições curriculares trazidas pela Reforma, uma vez que estas vinham, entre outras coisas, carregadas da intenção de conter a contestação pelos mecanismos administrativos do setor público: dentre eles, a educação. O desenvolvimento pretendido pelo Estado no período imediatamente anterior à elaboração da Reforma aliava-se à extrema burocratização, organização administrativa, contenção da luta clandestina pelos mecanismos de controle também ligados à centralização do poder; o "milagre econômico" legitimava o Estado repressor que agia no sentido de abafar os movimento de contra hegemonia: os movimentos de resistência neutralizavam-se frente às malhas burocráticas coordenadas pela chamada a favor da ordem e do ufanismo nacionalista. O currículo desta lei tinha em vista a execução do Projeto Educacional a partir do Projeto Nacional, cuja função era a integração da

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O Congresso Nacional recebeu a matéria referente à lei 5692/71 com a recomendação de que fosse apreciada no prazo máximo de quarenta dias e, não sendo feita a apreciação, o projeto de lei automaticamente seria aprovado. A lei da Reforma, porém, foi aprovada no prazo previsto: a maioria dos congressistas pertencia à ARENA, partido que representava o governo. A sessão do Congresso Nacional que aprovou a lei durou pouco mais que duas horas, muito diferente do que ocorrera com a Lei 4024/61, que foi discutida durante treze anos pelo Congresso e sociedade antes de sua aprovação.

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nação e a construção da "democracia" dentro da ordem do Estado burocrático – autoritário3. A esse respeito, pode-se dizer que: (...) fazer uma reforma de grande monta num setor social como a educação significa fazer política. Num Estado centralizador e autoritário, uma reforma educacional envolveria uma ação política no âmbito nacional, com decisões centralizadas em órgãos públicos que pudessem interpretar a lei que a subsidiava, normatizando as definições dessa reforma, e promovendo uma distribuição de ações executivas que garantissem a esse Estado centralizador um controle sobre o processo. (MARTINS, 2002, p. 60).

Na efervescência do momento histórico, a Reforma coloca-se a serviço da instauração de uma nova concepção de nação, pautada na ordem, na contenção das manifestações "subversivas", que iam contra a centralidade do poder pretendida pelo governo militar; obedecendo à dupla função admitida então pelo Estado: a função política, de criação de órgãos administrativos que formavam uma extensa máquina burocrática para controle e centralização do poder, e a função econômica, que se empenhava na regulação do interesse burguês fundado na expansão do capitalismo. A educação, sem dúvida, passa a representar um dos arranjos do setor de políticas públicas, na pretensão de que fosse efetivamente realizada a adequação do sistema educacional às diretrizes políticas do Estado autoritário. Anos depois, a lei 9394/96 é elaborada em uma conjuntura política e econômica totalmente diferente daquela em que foi promulgada a 5692/71, sobretudo pelo caráter democrático que passava a configurar a sociedade brasileira, não mais sob o comando militar. Após 21 anos de governos militares, a posse do primeiro presidente civil, em 1985, desiludiu as expectativas do povo: intensas manifestações populares reclamavam as eleições diretas, conquistadas apenas em 1989, como uma "transição para a democracia". Economicamente, o país vivia o colapso causado pelo fracasso do Plano Cruzado, o que reduziu à decadência a credibilidade do governo diante do povo. Em 1987, a Assembléia Nacional Constituinte procurou articular os diferentes setores sociais em debates legais, pelos quais a educação nacional torna-se alvo de preocupação constitucional. Anos depois, o intento pretendido pela nova LDB abria mão de uma proposta de formação preocupada com o desenvolvimento econômico na mesma perspectiva em que ocorrera anteriormente em 1971.4 A então conjuntura da 3

Esse termo é utilizado por teóricos como O’Donnel e Stepan. (Martins, 2002: 57).

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Com a nova Constituição, os professore e suas entidades de representação passaram a fazer parte dos debates sobre as propostas educacionais que estavam em discussão para a elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A promulgação da lei vem após oito anos de tramitação no Congresso Nacional, em 20 de dezembro de 1996.

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nação na ocasião da promulgação da lei 9394/96 correspondia a um crescimento econômico brasileiro não acompanhado pelo desenvolvimento social: a ótica neoliberal acusa o modelo de Estado centralizador como um entrave ao desenvolvimento. O Estado passa por um esvaziamento de suas competências, sendo que as políticas outrora comandadas por ele passam para a incumbência da sociedade civil: a avalanche do neoliberalismo culmina com o empobrecimento das ofertas sociais – dentre as quais a educação. Embora o Estado de bem estar social sequer tenha chegado a existir, no Brasil ocorre principalmente na década de 80, com o final da ditadura, um "enxugamento" desse Estado: as políticas públicas de providência das necessidades sociais (saúde, lazer, educação) passam a ser uma responsabilidade maior do capital privado que dos recursos públicos, os quais se transferem grandemente para financiamento da esfera particular. Já não há mais, como antes, a preocupação do Estado com a educação popular como apêndice do desenvolvimento econômico e social: já não são mais complementares frente à dissolução da meta do Estado de bem estar social. A maior preocupação agora deixa de ser a projeção da nação no mercado mundial, padronizado pela emancipação do capitalismo, passando a centrar-se grandemente na movimentação mundial em favor do atendimento das necessidades humanas básicas – educacionais inclusive -, fundadas nas perspectivas apontadas por ícones econômicos como FMI e Banco Mundial e ícones sociais como UNESCO, UNICEF, ONU. Simultaneamente, num contexto em que o Estado é considerado um entrave ao desenvolvimento, a educação deixa de ser um direito e também se torna um "serviço" no encargo do capital privado: o esvaziamento do Estado no que se refere à responsabilidade educacional dá origem à reorientação dos paradigmas educacionais, que passam a ter como foco principal aquilo que é pedagógico e não político; em países pobres como o Brasil a educação passa a arregimentar recursos para desenvolvimento do capital humano. A análise do discurso educacional ignora a radicalidade crítica e o materialismo histórico passa a ser uma meta narrativa: a educação relativiza-se dominada pela proposta neoliberal que vê a pobreza como um desvio e não como produto das relações de produção. Concomitantemente, órgãos econômicos internacionais também disputam sua fatia de investimento na constituição da educação brasileira. O empreendimento capitalista invade a educação por meio da defesa do atendimento à pobreza e, embora esteja presente a idéia do Estado mínimo, este não deve corresponder a um Estado fraco, mas ao contrário, um Estado que garanta as leis necessárias para a livre competição: O ideário neoliberal tenta difundir a crença de que o setor público é o responsável pela crise e pela ineficiência vigente e que, por outro

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lado, o mercado e o setor privado apontam para a eficiência, qualidade, produtividade, equidade. Daí a defesa de um Estado mínimo, de um Estado que interfira apenas o necessário para garantir o processo de reprodução do capital. (MOREIRA, 1995, p. 96).

Anteriormente à promulgação da lei, em 1990, a Declaração de Jontien – elaborada em função das nações mais poderosas do mundo voltarem-se às políticas sociais de atendimento à miséria - vem como matriz para a elaboração dos Planos Decenal e Nacional no Brasil, que de fato têm em sua origem a preocupação dos órgãos econômicos e sociais do mundo globalizado minorar o déficit na assistência às necessidades básicas das nações mais pobres ou em desenvolvimento. Para esses países – inclusive o Brasil – a educação coloca-se a favor da teoria do capital humano: a globalização entende a pobreza, a desigualdade, como sinônimos de alteridade, diversidade.5 Há algo de fundamental nessa perspectiva globalizada e que vai sendo incorporado pela política educacional brasileira, pelo discurso pósmoderno vazio de análise radical: o relativismo passa a explicar a pobreza como um desvio, e não como base fundante da dinâmica capitalista. Esse mesmo relativismo que prescinde a perspectiva histórica é reproduzido nos saberes que o currículo previsto pela LDB traz. Dentro desse panorama mundial a perspectiva neoliberal vai entender a educação brasileira como equalização das oportunidades e atendimento à diversidade, a exemplo da lógica mundial já presente nas preocupações econômicas manifestadas pelo FMI e Banco Mundial e nas preocupações sociais da ONU, UNESCO e UNICEF em Jontien. Retomando mais especificamente a questão legal, a proposição curricular apresentada pelas leis 5692/71 e 9394/96 fundamenta-se em contexto sociais, políticos e econômicos adversos, haja vista que na primeira, o currículo é o mote central na questão do desenvolvimento econômico e, na última, é relativizado em função da prescrição de uma sociedade democrática. O currículo previsto pelas leis, vale apontar, é um campo de lutas para a produção de significados e de uma política cultural satisfatória aos objetivos da nação; é uma arena de conflitos na qual moldase a formação de múltiplas identidades, úteis ao desenvolvimento econômico e social. 5

A declaração de Jontien, mundialmente reconhecida, esboça uma preocupação "humanitária" com o atendimento das necessidades básicas das pessoas, dentre elas, a educação. Tanto quanto se alimentar, vestir-se, manter-se em segurança, preservar a saúde, o atendimento educacional torna-se também atendimento a uma necessidade humana primária, deficitária e/ou insuficiente em países mais pobres. Com a declaração, de um certo modo, a educação quase que cede à influência do assistencialismo.

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Em uma primeira análise comparativa entre as leis, é possível que se tenha uma percepção equivocada a respeito de ambas, sobretudo ao se tomar a disposição de títulos, capítulos e seções que as constituem: a lei 5692/71 estrutura-se em oito capítulos, enquanto que a nova LDB possui nove títulos, cinco capítulos e cinco seções; tal estrutura faz parecer em princípio que a lei 9394/96 é mais completa que a anterior. Porém, é preciso recordar que o caráter abrangente da nova LDB, não se repete na lei anterior por esta tratar-se de uma Reforma referente à educação básica apenas, e não a todos os níveis da educação nacional, tal como a LDB de 96. Estruturalmente, as duas leis assemelham-se quanto à questão curricular, contando ambas com a parte comum e parte diversificada. Porém, a composição atribuída a cada dessas partes é diferente em cada uma das leis, fato este que, para se tratar de currículo, é importante considerar. Na 5692/71 há a idéia das grandes linhas centradas em conteúdos, com áreas definidas na parte comum: a determinação curricular é feita por conteúdos, e estes, dispostos por camadas sucessivas que compõem a parte comum e a diversificada. São apontados, no parecer 853/71, os objetivos das matérias fixadas pelo núcleo comum, bem como a articulação entre ambas, a saber, que: (...) um núcleo comum não há de ser encarado isoladamente (art. 2º), se em termos de currículo, como já proclamavam os educadores no século XVIII, ‘tudo está em tudo’. A Língua Portuguesa não pode estar separada, enquanto forma de Comunicação e Expressão, de Educação Artística ou de um Desenho que se lhe acrescentem, sob pena inevitável de empobrecimento. (...) Assim também a Matemática e as Ciências Físicas e Biológicas têm de reciprocar-se e completar-se desde os primeiros momentos de escolarização... (CHAGAS, Parecer CFE 853/71).

No mesmo parecer, o relator Walnir Chagas vai definir o entrosamento das matérias quanto ao relacionamento, ordenação e seqüência, como um "inevitável artifícios cartesiano", que vise um resultado orgânico e coerente: "no relacionamento se faz uma ordenação horizontal e, na seqüência, uma nítida ordenação vertical". (Chagas, Parecer CFE 853/71). O currículo pleno é apontado pela lei juntamente com as disposições necessárias ao seu ordenamento, disposição e seqüência. Pela Reforma, o ensino de segundo grau torna-se totalmente profissionalizante, sendo que o concluinte egresso dele adquiria um certificado de auxiliar técnico para os cursos de três anos ou de técnico para os cursos de quatro anos.6 6

Mais de duzentas habilitações profissionais foram regulamentadas pelo CFE; o que se observou, foi um caos no ensino secundário, já que todos os estabelecimentos de ensino tiveram que obrigatoriamente implantar habilitações profissionais em seus currículos mesmo

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Em contrapartida, na lei 9394/96, as áreas definidas são trocadas por grandes temáticas, sem objetivo definido legalmente como no Parecer; os conteúdos curriculares obedecem a algumas diretrizes que vão aparecer no artigo 27 da LDB. Há, portanto, um abatimento devido à amplitude de atendimento a que se pôs a serviço a lei: uma perda em termos de definições legais especificas ao currículo, que se limita a exigir o mínimo básico para a formação dos alunos.7 A proposta de trabalhar com grandes temáticas amplia a margem de concepção daquilo que efetivamente chega na escola e ao aluno como conteúdo, representando um certo rompimento com a centralização e unicidade tão defendida antes pela Reforma. A centralização da qual a LDB não se ocupou centralmente, aparece como uma das tentativas de ação dos Parâmetros Curriculares Nacionais: após a Reforma do período militar, sucede-se na pós-ditadura um relaxamento na política de centralização, que vai ser retomada mais tarde não pela Lei de Diretrizes e Bases, mas pelos PCN’s, preocupados com a padronização da educação em toda extensão do território brasileiro. A idéia de plano cartesiano não aparece na 9394/96, porém, relacionado aos objetos gerais do ensino fundamental, os PCN’s, como complementares ao aporte curricular da lei postulam as inter relações entre áreas não apontadas especificamente por ela: [que os alunos sejam capazes de] utilizar diferentes linguagens – verbal, matemática, gráfica, plástica e corporal – como meio para produzir, expressar e comunicar suas idéias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação. (Parâmetros Curriculares Nacionais, 2000).

Os objetivos gerais do Ensino Fundamental aparecem nos PCN’s calcados em áreas de conhecimento, caracterizadas cada qual em objetivos específicos, os quais vão se fundir ate que cheguem a um comum que determinem as orientações didáticas. Nessa estrutura apresentada pelos PCN’s, comprova-se o fim pedagógico da política dos Parâmetros, que vai sem grandes condições para isso. Muitos encontraram como solução a implantação de habilitações menos onerosas, que exigissem menos recursos, ainda que não houvesse de fato mercado de trabalho disponível para elas. 7

A LDB contribuiu de certo modo para o rebaixamento do nível curricular da educação nacional não apenas por fazer do mínimo e do básico os conhecimentos necessários à escolaridade pretendida, mas também por se deparar com o resultado da expansão rápida das escolas secundárias e conseqüente precariedade curricular instituída. O último ano do ensino médio torna-se propedêutico e pré-universitário, haja vista a ‘invasão’ do investimento privado na política educacional brasileira e a expansão do superior como conseqüência; os cursos clássicos cedem lugar aos científicos, permanecendo a idéia de um sistema escolar rentabilizado, como meio de investimento para maior produção.

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encontrar, no final da cadeira de inter-relações entre áreas, a Didática e não o aporte político. A LDB, complementada pelos Parâmetros, foca-se naquilo que é pedagógico, estruturando-se em uma dimensão mais psicológica que sociológica. O escalonamento das matérias e de seus respectivos conteúdos correspondentes também aparece de forma diferente em ambas as leis. Ele é apontado no artigo 4º da Resolução nº 8, anexa ao parecer 853/71, em que são definidas atividades, áreas de estudo e disciplinas: Artigo 4º - As matérias fixadas nesta Resolução serão escalonadas, nos currículos plenos de ensino de 1º e 2º graus, da maior para a menor em amplitude do campo abrangido, constituindo atividades, áreas de estudo e disciplinas. (Resolução nº 8).

Diferentemente da Reforma, a proposta do trato com os conteúdos aparece na nova LDB por meio de diretrizes (já mencionadas anteriormente) e a tentativa de detalhá-los não se apresenta claramente no ‘corpo’ da lei, mas vem junto com os Parâmetros Curriculares, ainda que estes não devam ser adotados em caráter de obrigatoriedade: Os textos revelam que os PCN’s são propostas detalhadas de conteúdos que incluem conhecimentos, procedimentos, valores e atitudes no interior de disciplinas, áreas e matérias articulados em temas que se vinculam às varias dimensões da cidadania. (CURY, 2002, p. 193).

Concomitantemente aos PCN’s de 1995, a tarefa de implementação curricular contou com as Diretrizes Curriculares para o ensino fundamental, instaurada em princípios éticos, políticos e estéticos, integradas na LDB, articuladas, sobretudo com os princípios de Vida Cidadã. A lei 9394/96, em síntese, apóia-se nos conjuntos de definições trazidas tanto pelos PCN’s quanto ao que deve ser instituído para a Educação Básica, reconhecendo neles os meios de fazer com que as escolas possam ser capazes de refletir o projeto da sociedade. A ordenação/organização das séries mantém-se semelhantes nas duas leis (séries anuais ou semestrais, organização de salas de alunos de níveis equivalentes, matrícula por disciplina desde que preservada a seqüência do currículo, etc.). Porém, a 9394/96 traz a possibilidade dos ciclos como um diferencial da lei anterior. (artigo 23). A avaliação promulgada pela lei 5692/71 (artigo 14 e respectivos parágrafos) repete-se na LDB (artigo 24, inciso V), os quais prescrevem, entre outras coisas: (...) avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais. (LDB 9394/96).

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É importante lembrar que o tema da avaliação tem sido um foco de reorientação curricular, haja vista a instituição de processos avaliativos em nível federal (como SAEB, ENEM, Provão) e em nível estadual (SARESP). A consolidação de tais processos avaliativos implementa, indiretamente, reformas curriculares a partir de proposições modeladas segundo as decisões das políticas que as prescrevem. Embora as leis sejam semelhantes em alguns termos – dentre eles a avaliação, por exemplo – o contexto em que estão inseridas, em suas particularidades, não permite a mesma prática. Certamente a perspectiva contextual vai ser a principal determinante que define as perdas e ganhos que diferem uma lei da outra. Se, na primeira, as determinação legais e curriculares passaram pela racionalidade da ditadura e pelo intento de formar homens para uma nação em desenvolvimento, a última tem não menos a sua determinância na lógica neoliberal. Até que ponto ambos contextos favorecem ou não a construção de uma doutrina curricular forte e bem definida, a análise das leis pode nos indicar tendo em vista o momento político, histórico e econômico em que foram promulgadas. Fica mais que nunca evidente a não-neutralidade do currículo nas questões educacionais, cabendo certamente a definição deste como um campo de luta onde se desdobrem os conhecimentos e práticas considerados relevantes para determinadas sociedades em determinada época. Resta pensar no quanto o currículo prescrito pela lei, uma vez mediado pelo conhecimento escolar e cientificamente remodelado para atuar no tempo e espaço específicos da escola, exerce papel de intermediário do progresso de uma nação. A escola o recebe, talvez não com a mesma passividade com q8ue esse currículo é elaborado, mas de modo que nela esteja se constituindo uma instância de execução daquilo que é pretendido política e economicamente. A doutrina curricular prevista oficialmente transforma-se na escola um campo de luta, composto de um lado pela tentativa de homogeneização cultural e atendimento qualitativo e quantitativo da demanda; por outro pela resistência à precariedade da escola pública instalada ano após ano em uma dinâmica na qual é facilmente identificada a representação de um cenário mundial no qual interesses mais econômicos e político do que humanos estão embutidos.

Referências CURY, Carlos R.J. (1996). Os parâmetros curriculares e o ensino fundamental. In: Revista Brasileira de Educação. n. 2. São Paulo: ANPED.

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CURY, Carlos R. J. (2002). A educação básica no Brasil. In. Educação e Sociedade. n. 80. Políticas Públicas para a educação: olhares diversos sobre o período de 1995 a 2002. Campinas: CEDES. LEMME, Paschoal. (1984). A III Conferência Brasileira de Educação Lemme Paschoal. In: Memórias. v. 4. Brasília: Inep. MARTINS, M. do Carmo. (2002). A história prescrita e disciplinada nos currículos escolares: quem legitima esses saberes? Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco. MOREIRA, Antonio Flávio B. (1995). Neoliberalismo, Currículo Nacional e Avaliação. In. SILVA, Luiz H., AZEVEDO, José Clovis (org). Reestruturação curricular. Petrópolis: Vozes. SILVA, Teresa R. N. da, ARELANO, Lisele R.G. (1982). Orientações legais na área do currículo, nas esferas federl e estadual a partir da lei 5692/71. In: Caderno CEDES n. 13. Currículos e programas: como vê-los hoje? 1991, 4. ed. Campinas: Papirus. Brasil (MEC), 1971 – lei 5692/71. Brasil (CFE), 1971 – Parecer CFE 853/71. Brasil (MEC), 1996 – LDB 9394/96. Brasil (MEC), 1998 – PCN’s.

Fernanda Pinheiro Mazzante é Mestre em educação, história, política e sociedade pela PUC-SP; Doutoranda pelo mesmo programa da mesma Universidade. Endereço para correspondência: fpmazzante@superig.com.br

Recebido em: 03/03/2005 Aceito em: 28/07/2005

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Instrução Pública e Configuração do Mundo Urbano Flávia Obino Corrêa Werle

Resumo Este trabalho analisa como funcionam e como mudam as estruturas administrativas da instrução pública em seus processos de disciplinamento da infância no limiar da República (final do século XIX) com base em documentos da Diretoria de Instrução Pública da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Discute-se a diferenciação de níveis de escolas, a organização do tempo escolar, a diferenciação por idade e a diferenciação por gênero. Palavras-chave: História da Educação; infância; gênero.

Abstract This paper analyzes the way how the administrative structures of public instruction work and how they change, in their processes of disciplination of infancy at the atart of the Republic (end of the 19th century), based on documents of the Direction of Public Instruction of the Province of São Pedro do Rio Grande do Sul. We discuss the differentiation of levels of schools, the organization of the scholar time, the differentiation by age and the differentiation by gender. Key-words: History of education; infancy; gender.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 83-95, set. 2005


A escola pública é um espaço de formação da infância e de constituição do cidadão. Segurança, produção e civilidade estão a ela associadas. A extensão da escolarização é importante estratégia para o ordenamento de populações urbanas e para aumentar as rendas, o trabalho e a produção, diminuir os crimes e estimular o patriotismo. Criar escolas públicas elementares significa especialmente moralizar a infância, equalizando hábitos e atitudes, socializando as massas a padrões civilizados para o que é fundamental ensinar-lhes a ler, escrever e contar. Há um processo de diferenciação do sistema educativo que se produz e amplia com o aumento da urbanização. A interdependência entre as atividades nas cidades exige pontualidade, precisão e disciplina, para o que a escolarização muito contribui. Assim, a urbanização está associada à ampliação do número de escolas as quais deverão ter uma organização e funcionamento peculiar e diferenciado das mantidas por grupos étnicos específicos e das demais de zona rural. O disciplinamento que a escola produz está associado a hierarquização das escolas e à diferenciação dos alunos atendidos. Há uma rede de relações entre a escola e sua ambiência, envolvendo atores – alunos e professores – e medidas administrativas, impregnando a forma como os processos de urbanidade e civilidade são produzidos. Este texto propõe uma discussão sobre como funcionam e como mudam as estruturas administrativas da instrução pública em seus processos de disciplinamento da infância no limiar da República (final do século XIX) com base em documentos da Diretoria de Instrução Pública da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Brasil. Apenas três abordagens serão discutidas: a diferenciação de níveis de escolas, a diferenciação por idade e a diferenciação por gênero.

Diferenciação de escolas O Rio Grande do Sul1 recebeu, a partir de 1824, imigrantes alemães que trouxeram uma cultura de valorização da escola. Eles 1

O Rio Grande do Sul, no ano de 1814, contava com 70.656 habitantes e, em 1822, ano da independência, com 106.196 habitantes. Em 1824, começam as imigrações de alemães para o estado até então habitado por portugueses vindos das ilhas dos Açores e índios. A criação de gado era, até então, a predominante atividade da região e, a partir da década de 1850, começam as atividades de exportação da zona colonial por meio da cidade de Porto Alegre. Esta cidade começa a desenvolverse como centro urbano e comercial, a partir de 1870, especialmente pela exportação de gêneros da zona da colônia, entrando, a partir de 1890, em fase de franca industrialização. Assim, em 1907 a produção industrial de São Paulo e do Rio Grande do Sul se equivaliam. Considerada a população residente em 2000, São Paulo em muito ultrapassou o Rio Grande do Sul o qual conta com 10.179.801 habitantes enquanto São Paulo, com 36.966.521 habitantes.

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fundavam e mantinham escolas as quais eram instituições importantes na preservação de sua cultura, língua e costumes. O aumento do número de escolas de instrução pública foi uma forma de enfrentar a multiplicação destes estabelecimentos particulares mantidos nestes núcleos de colonização alemã. Foi uma reação a um só tempo ativa e comprometida com questões de nacionalização da população, atenta à manutenção da ordem pública, legitimação democrática e ampliação da cobertura escolar. Estes processos de reação a iniciativas locais que tinham uma marca étnica exigiam medidas administrativas que se traduziram em diferenciação2 interna do sistema de ensino público mediante a graduação de escolas. As escolas eram hierarquizadas de modo a diferenciá-las em níveis, graus ou entrâncias associadas a currículos diferentes, professores remunerados de forma diversa frente a sua localização em relação aos núcleos urbanos. A criação de níveis ou entrâncias para as escolas estava associada a novas relações sociais e econômicas e a um ambiente de urbanização que se instalava na província e que modificava as articulações estabelecidas com os alunos, os professores e referentes à administração escolar. As escolas ensinavam respeito a hierarquias e disciplina na medida em que exigiam dos alunos que se matriculassem em níveis superiores apenas mediante aprovação em exame de aptidão no nível inferior. A diferenciação de escolas em níveis permitia também a hierarquização entre os professores: aqueles que atendessem classes de nível inferior receberiam um valor menor por seu trabalho do que os que lecionassem em classes de nível mais alto. Esta diferenciação salarial possibilitava uma economia de recursos por parte do governo mesmo com ampliação do número de escolas. A formação se segmentava, a criança era submetida a exames para que a expansão da escolarização fosse viável e menos dispendiosa. A imposição da nacionalização junto a imigrantes europeus, a urbanização crescente, a moderação dos gastos públicos e o disciplinamento da infância aos padrões de civilização da época eram fatores importantes na política de escolas graduadas.

Organização do tempo escolar Com a urbanização crescente as escolas tinham que atender a um grande número de alunos. 2

Sobre processos de diferenciação característicos dos sistemas educativos ver Archer, 1979. e Chapoulie & Briand, 1994.

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O grande número de alunos atendidos a um só tempo justificava a pedagogia da imobilidade e o tratamento rígido e autoritário. Assim uma dimensão do disciplinamento era o longo período de imobilidade a que as crianças eram submetidas na escola. Para que elas conseguissem maior aproveitamento propunha-se que as cinco horas seguidas de atividades escolares fossem divididas em dois blocos um em cada turno. Para que fosse possível o ensino simultâneo3 uma alternativa inovadora era a diferenciação de horário conforme a idade dos alunos. Uma tabela pedagógica4 tal como a que funcionava em escolas da Suiça5 e da França definindo o tempo de trabalho escolar por idades era proposta para o Rio Grande do Sul. Não havia na proposta uma revisão da estratégia de disciplinamento, dos espaços ou da metodologia de instrução adotada, apenas uma diferenciação com base na idade cronológica dos alunos o que resultava num cadenceamento diferente do trabalho escolar.

Diferenciação de gênero O disciplinamento exigido pela urbanização crescente tem uma dimensão de gênero a qual, na história da instrução pública, orientou diversos processos: distribuição de escolas em distritos rurais, vilas, cidades, articulada a medidas administrativas (divisão de tipos de escolas masculinas, femininas e mistas); regulamentação quanto a que classes 3

Ensino simultâneo designa que em uma mesma sala, e no mesmo turno tem-se diferentes adiantamentos. Hoje se numa mesma sala são atendidos alunos de diferentes adiantamentos chamamos escolas unidocentes com referência nítida ao profissional que ali leciona e a decorrente indiferenciação do trabalho em seu interior. A designação ensino simultâneo, contrariamente, remete a ênfase para a metodologia de ensino utilizada. Na época não se falava em séries; a graduação em níveis de conhecimentos era indicada pelos livros usados - 1º, 2º, e 3º livros referiam diferentes adiantamentos todos atendidos em um mesmo espaço de formação.

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Meninos de 5 e 7 anos, 2 1/2 a 3 horas diárias, com intervalo de recreio de uma a outra lição, meninos de 8 a 10 anos, 3 horas a 3 1/2 diárias; meninos de 10 a 12 anos 4 horas diárias, maiores de 12 anos, 6 horas de trabalho letivo

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Trabalho anterior analisamos o quanto as políticas educativas do final de 1800 no Rio Grande do Sul se orientavam por experiências de outros países e o quanto os trabalhos de C. Hippeau influíram no sentido da orientação internacional da educação no RGS. WERLE, Flávia Obino Corrêa. Instrução pública no século XIX no RGS: importância das experiências internacionais. Trabalho apresentado no Painel: A Escola Elementar e a Instrução Pública no século XIX. V Encontro de Pesquisadores em História da Educação. Universidade de Passo Fundo, 18 e 19 de novembro de 1999.

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deveriam ser assumidas por quais professores (mulheres para aulas mistas e femininas, homens para aulas masculinas) e o estabelecimento da base material da instrução pública - aluguel de salas, higiene do espaço escolar, distribuição do espaço. Medidas administrativas, apoiados em conhecimentos científicos, em relatos de práticas em países desenvolvidos e em preceitos morais, acolhiam e mediatizavam as distinções de gênero e as propostas de disciplinamento. A base material de gestão da instrução pública no período no século XIX era reduzida e ligada à iniciativa e colaboração dos cidadãos e dos governos provinciais (Werle, 1996, a). A criação de escolas públicas muitas vezes se fazia devido a representação dos cidadãos ou a disponibilização de espaços residenciais para o funcionamento de aulas. A instância local arrecadava fundos, organizava comissões, remetia fornecimentos para aulas públicas e colaborava com a instância estadual mediando ativamente a organização da instrução pública. As aulas públicas eram casas de escolas, apenas salas em residências particulares de forma que a moradia do professor era ambiguamente um espaço público e privado. As questões de asseio e aluguel da escola constituíam itens integrados aos vencimentos dos professores, não sendo portanto uma questão estritamente privada a escolha do local de moradia e a sua manutenção e higiene. A base material indiferenciando público e privado apontava a centralidade do professor produzida também pela prática da liberdade de ensino preservada frente ao poder temporal. Esta situação que caracterizava a base material da educação na época estava condicionada a localização de edifícios disponíveis para instalar escolas e que estivessem em condições de ser alugados. Em lugares mais populosos a disputa por espaços residenciais era maior o que tornava mais altos os aluguéis das casas em que funcionavam as escolas. Por outro lado havia a definição administrativa do montante que poderia ser gasto com aluguéis o que funcionava como uma restrição à necessidade de formação, ampliação de escolas e disciplinamento da população. Os prédios escolares deveriam ademais ter uma imponência e uma diferenciação das demais moradias. Placas deviam identificar as escolas e bandeiras tremular na fachada em dias de festividade nacional. Era importante que o prédio da escola não fosse confundido nem passasse despercebido dentre as demais construções, "... os templos da instrução por alguma coisa devem distinguir-se dos edifícios particulares, e que os nossos jovens compatriotas devem habituar-se na escola a solenizar as grandes datas da Pátria!" (Relatório de 16/12/1897). Foi lento e prolongado o processo de diferenciação dos espaços de instrução pública. Não foi contínua nem homogênea a sua diferenciação 87


e especialização material: casas, casas identificadas por placas e bandeiras até prédios especiais. Data de 1883 a proposta de construção de um prédio especial para funcionamento da instrução pública elementar. O Dr. Adriano Nunes Ribeiro, engenheiro e Diretor de Instrução Pública argumentava que a província possuía muitas escolas - 403 - mas não dispunha de casas adequadas para escolas. Isto porque estabelecia-se um professor em uma casa, depois de muitas dificuldades para encontrá-la, tendo os procedimentos de formação e disciplinamento que adaptarem-se ao mesmo. Afirmava o referido diretor: ..."Tenho observado que este sistema de funcionarem as escolas públicas em casas alugadas - e que não foram construídas para esse fim especial - é essencialmente sul-americano. Não só no Brasil como em quase todos os Estados da América do Sul, é esse o sistema seguido. No entanto é doutrina corrente em todos os países que possuem um verdadeiro sistema de educação pública que, para dar-se uma educação sólida, o que em primeiro lugar se necessita é ter-se "bem construídas e mobiliadas casas para escolas". Já não falo nos Estados Unidos, que tem um capital enorme convertido em casas destinadas à educação pública. Na Dinamarca, em muito pouco tempo, construiram-se cerca de 500 casas para escolas e na Suécia as comunas, à porfia, fazem enormes sacrifícios nesse sentido, ... Em todos os países, os parlamentos votam grandes somas para a construção de casas para escolas públicas. Só entre nós pretende-se resolver esse... problema, alugando-se ruins vivendas para nelas darem aulas os professores públicos!" (Relatório de 1883)

Propunha por isso a construção de um edifício especial para funcionar uma escola. O modelo do edifício era o Regulamento de Instrução Pública da França, datado de 7 de junho de 1880.

Em cada edifício duas escolas O prédio deveria comportar duas escolas uma para meninos e outra para meninas. Não era uma escola mista, pois havia espaços diferenciados: sala de aula e pátio de meninos e sala de aula e pátio de meninas. Tal como a base material, a docência seguia uma forte marca de gênero. O prédio possuía uma escola para meninas e residência para a professora, bem como escola separada para meninos e uma residência para o professor. Era um prédio com 24 metros de frente e dois pisos. A fachada principal tinha três portas e quatro janelas. A porta central era a de entrada 88


na escola, dando acesso conjuntamente para a aula dos meninos, à esquerda e para a aula das meninas, à direita. As salas de aula abriam-se para o exterior por quatro amplas e altas janelas, duas voltadas para o pátio interno e duas na fachada exterior para a rua. Cada aula comportava 20 alunos que seriam acomodados em carteiras individuais enfileiradas voltadas para o quadro e para a mesa do professor que ficava sobre um estrado, num plano mais alto. O pátio media 23 metros de comprimento e em toda a extensão era dividido por um muro que separava os espaços para meninas e para meninos. Rente ao muro dos fundos da escola estavam as latrinas havendo igual número delas no lado de meninos como no lado de meninas.

FACHADA EM CORTE DO PROJETO DE UM EDIFÍCIO PARA SERVIR DE TIPO DE ESCOLA PARA 40 ALUNOS DE CADA SEXO FEVEREIRO DE 1883

Havia no pátio, em ambos os lados, tanto no masculino como no feminino, uma pequena área coberta com apetrechos de ginástica. No piso superior situava-se a moradia do professor, à esquerda, e da professora, à direita. Eram residências com igual número e distribuição de peças mas sem comunicação entre si. O acesso para a moradia do professor e da professora se fazia por escadas de exclusivo uso de cada uma.

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Duas portas laterais, mais estreitas que a central situadas em extremos opostos da fachada, davam acesso à residência do professor e da professora. A residência do professor e a da professora tinham uma cozinha, um WC, dois quartos, um gabinete, uma sala e uma varanda. Era um prédio segmentado por gênero, feminino do lado direito, aula feminina e residência da professora, e masculino à esquerda, aula masculina e residência do professor. A professora para passar de sua residência para a escola não precisava sair à rua pois havia comunicação interna entre a escola e a entrada de sua casa. Da mesma forma o professor tinha acesso direto à escola masculina sem sair do prédio. Este projeto de prédio escolar mostra o imbricamento de espaços públicos com a casa do professor. Não era uma escola mista, mas um prédio que acolhia duas escolas, uma masculina e outra feminina. A proposta de edifício escolar ainda amalgamava o espaço público e o espaço privado, mas segmentava por gênero.

FACHADA INTERNA DO PROJETO DE UM EDIFÍCIO DE ESCOLA - 1883

Antes do Diretor de Instrução Pública, em 1883, apresentar o projeto para servir de tipo de escola, as aulas públicas já traziam uma diferenciação por gênero, sendo criadas como masculinas, femininas ou mistas.

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Aulas mistas A diferenciação de aulas para o sexo masculino e aulas para o sexo feminino era entretanto, uma prática dispendiosa, frente ao que estrutura-se uma proposta de disseminação de aulas mistas. Novamente a autoridade das experiências européias eram a base legitimadora e estruturadora da argumentação. "Distinguem-se completamente as escolas mistas das unisexuais pelo real aproveitamento que dão ao ensino público. A reunião dos dois sexos estabelece entre os alunos um feliz estímulo, do qual resulta vantagem ao ponto de vista da educação e do ensino, que não apresentam as destinadas a um só sexo. Este fato foi criteriosamente observado pelo eminente pedagogo francês Hippeau, que inteiramente convencido das vantagens das escolas mistas, aconselhou seu estabelecimento, como medida de alto alcance, ao governo de sua pátria. Alguns espíritos têm prevenção com as escolas mistas, porque dizem eles, o contato diário, íntimo mesmo, de jovens de dois sexos, dá lugar à transmissão de termos obscenos, que todo o menino de certa idade conhece, às meninas que, a seu turno, tornam-se depravadas na linguagem. Se isso pode suceder nas cidades, onde facilmente o menino assenhora-se ao dicionário pornográfico, o mesmo não se dá nas paróquias rurais, onde a simplicidade da vida, a unidade do meio e o trabalho contribuem para a conservação dos bons preceitos de moral, que, felizmente para nós, é conservada com acrisolado amor. Uma palavra menos conveniente pronunciada pelo menino da roça,... seguramente não será repetida porque o delinquente receberá como castigo à falta, o desprezo dos companheiros. O preconceito pois, existente nas cidades contra as aulas mistas, não prevalece no meio rural, onde os pais sem nenhum receio enviam as filhas à escola... Nas escolas se qualquer aluno pronunciar uma palavra incorreta, maliciosa, ou ofensiva, levantará contra si os próprios colegas e, repreendido pelo mestre, envergonhado pela presença de meninas, não repetirá a falta ou não mais regressará a aula. O estímulo é então incessante e enorme! O menino não quer de modo algum ficar aquém da menina, enrubece se não dá a lição sabida, porta-se com correção nos atos e procura manter-se limpo nas vestes. A menina, a seu turno, vendo diante de si o representante do sexo oposto, também, nos seus naturais caprichos, não deixa lugar as censuras, evitando cuidadosamente um motivo que importe em repreensão. E destes dois fatos resultam não só menor trabalho ao mestre, como maior proveito ao Estado, pelo progresso dos alunos nestas escolas. Além destes proveitos certos, outro não menor ainda se nota. As escolas mistas são dirigidas por senhoras, as quais confiou a natureza, como um dom, o segredo da educação e ensinou, possuindo todas, mesmo as de pouco preparo mental, um método

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natural, baseado no amor, conseguindo da infância, que lhe é confiada, resultados que os homens não conquistam: elas baseiam-se na lhaneza e na paciência, ao passo que estes, na maioria dos casos, baseiam-se na rispidez intolerante, pretendendo dominá-lo pelo terror eles procuram mais infundir o medo, em vez do respeito e amor, que elas incutem no espírito infantil com suas habilidades. A mulher tem o dom de penetrar o coração da criança, descobre-lhe a indole e as inclinações, encaminha-a ou desvia-a com o jeito que só ela tem, ao passo que o homem, só muito excepcionalmente pode fazê-lo. Por todos estes princípios, e ainda pelo de economia, afim de que o Estado possa aumentar o número de escolas, sou de opinião que toda a escola rural deve ser mista, mesmo as que são dirigidas por homens. Não vejo inconveniente se o Governo deliberar essa conversão, quando é certo que em todas as escolas do sexo masculino, na zona colonial, os professores recebem, extra-matrícula, grande número de meninas. Ali os pais confiam as filhas aos mestres masculinos, alguns moços e solteiros, sem que um só fato imoral se haja dado para condenar-se a prática. Resultaria dessa conversão ou autorização, ficar o sexo frágil, com meios de educar-se em quase todos os locais. (Relatório 10/12/1897)

As vantagens de educar meninos e meninas conjuntamente eram traçadas relacionalmente e abrangiam dimensões formativas de ordem cognitivas, atitudinais, morais e higiênicas, mantido o caráter das distinções consensuadas socialmente. De fato entretanto, a restrição econômica definia a diferenciação e justificava o fato de cadeiras do sexo masculino situadas nos distritos rurais serem transformadas em mistas conservando a especialização de cadeiras do sexo masculino e feminino apenas em cidades, vilas e povoados. Era como se a formação em aulas mistas fosse de segunda categoria frente ao padrão de separação: aulas masculinas e aulas femininas. Nas vilas e cidades, espaços mais modernos e urbanizados, era necessário manter o padrão que, em zonas rurais poderia ser flexibilizado. Instalar aulas mistas trazia uma variável nova para a administração da educação e para os processos de formação e disciplinamento da infância. Se homens eram os professores de meninos e mulheres de meninas, quem deveria lecionar em escolas mistas? Interditar homens ou mulheres para a docência seja de meninos (as professoras), seja de meninas (os professores) implicava em maiores gastos por exigir a abertura lado a lado, de aula masculina e aula feminina.

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Os responsáveis pela instrução pública logo justificaram: professores e professoras poderiam bem atender a meninas e meninos. A distinção por gênero, entretanto, estava na base da argumentação tendo em vista o pressuposto de que professores e professoras desenvolviam processos de formação diferentes. As professoras6 disciplinavam pela brandura e pelo amor, e os professores pela rispidez e pelo medo. O mito do homem portador de um comportamento constantemente autoritário e da mulher permanentemente afetuosa orientava e era reforçado pela administração da instrução pública. De fato, os motivos financeiros e a necessidade de extensão da escolaridade decorrente da urbanização eram as justificativas mais fortes para que mulheres e homens atendessem classes mistas. A preferência por escolas só para meninos e escolas só para meninas permanecia e, frente a ela, é que a argumentação contrária se construía. Este padrão decorria da cultura e organização social da época e encontrava acolhida e expressão na base material e nos processos de gestão da instrução pública. Aceitava-se que os professores recebessem meninos em sua casa que era uma "casa de escola"; meninas, não. A estas era permitido freqüentar a "casa de escola" de professoras. Se professores, sensibilizados pela inexistência de escola feminina na localidade, resolvessem receber meninas como alunas nas escolas masculinas, não deveriam registrá-las na matrícula da escola. A moralidade do professor (deveriam ser casados, adultos e idôneos e o atendimento decorria do pedido dos pais) era forte argumento para que atendesse classes mistas e não apenas masculinas. Havia encoberta a necessidade de evitar que a relação de instrução pudesse ensejar abuso da menina. É possível também que a não recomendação de acesso de meninas à casa do professor e de meninos à casa da professora estivesse relacionada às condições de higiene dos locais.

Elementos conclusivos O disciplinamento da infância se faz mediante a extensão da escolarização e as exigências da urbanização que se acelera no Rio Grande do Sul no final do século XIX e início do século XX. As políticas públicas que propõem respostas a estas questões constituem-se frente a um complexo de elementos culturais e econômicos. 6

Sobre a atuação das mulheres na instrução pública rio-grandense ver Werle, 1996 (b)

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As práticas e crenças sociais como presença constante nas instituições de instrução pública demonstram o quanto a administração dos sistemas educativos as incorpora e frente a elas reage. Os disciplinamentos a que a sociedade submete a infância são incorporados, mediados e reapresentados sob formas novas pelos sistemas educativos. O parcelamento do tempo escolar, a distribuição de prédios e a diferenciação de espaços da escola bem como a sua segmentação em níveis são exemplos neste sentido. A administração dos sistemas educativos elabora e diferencia políticas que trazem uma proposta de disciplinamento nesta rede de relações e condicionamentos. É um disciplinamento associado a hierarquização dos dispositivos pedagógicos, das escolas, dos professores e aos processos de crescente urbanização que se acentuam no século XX. A institucionalização de práticas escolares transformando-as, formalizando-as e organizando-as ocorreu simultaneamente aos processos de urbanização no Rio Grande do Sul.

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Flávia Obino Corrêa Werle é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), pesquisadora em História da Educação e autora de vários trabalhos sobre instituições escolares.

Recebido em: 05/05/2005 Aceito em: 28/07/2005

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Universidade e comunidade na perspectiva dos movimentos estudantis dos anos 1960 Luís Antonio Groppo

Resumo Neste artigo, procuro discutir a práxis dos movimentos estudantis universitários dos anos 1960 em relação às "comunidades" no entorno das unidades de ensino. Constata-se, primeiro, uma relativa carência de ações efetivas, principalmente porque os movimentos estudantis se preocupavam, sobretudo, com a intervenção na política nacional e nos rumos gerais da sociedade de que faziam parte. Ainda assim, na sua riqueza e complexidade, os movimentos estudantis dos anos 1960 enfrentaram a questão da relação com a "comunidade", o que se observa em projetos e propostas criativas de ação prática, revelando uma potencialidade que poderia ter sido mais bem aproveitada. Palavras-chave: Movimentos estudantis; Universidade; Comunidade.

Abstract In this article I intend to discuss the praxis from student movements of sixties, in its relations with the "communities" in the universities ‘neighborhoods. I evidence, first, a relative failure of effective actions, principally because the student movements preoccupy, especially, with the intervention in national politic and in the general ways of their societies. Indeed, in their wealth and complexity, the student movements from the sixties confront the question of the relation with the "community", what it looks in creative projects and propositions of practical action, what reveals a potentiality what can be better used. Key-words: Student movements; University; Community.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 97-119, set. 2005


Neste artigo, procuro discutir a práxis dos movimentos estudantis universitários dos anos 1960 em relação às "comunidades" no entorno das unidades de ensino. Um tema em que, na verdade, residem mais projetos, propostas, boas intenções e potencialidades do que ações efetivas. Isto se deve a dois motivos. Por um lado, como ainda hoje acontece em relevante grau, os estudantes se originavam, em sua maior parte, de fora da comunidade do entorno das unidades de ensino universitário. Por outro, os estudantes, em seus movimentos, preocupavam-se, sobretudo, com a intervenção na política nacional e nos rumos gerais da sociedade de que faziam parte. Nos seus discursos e lemas, tendiam muito mais a falar da política internacional, do imperialismo, da ditadura ou da democracia limitada, das injustiças sociais gerais e da alienação gerada pelo consumismo do que sobre as necessidades e os interesses das populações concretas vizinhas às unidades de ensino. Ainda assim, na sua riqueza e complexidade, os movimentos estudantis dos anos 1960 enfrentaram a questão da relação com a "comunidade". Esta questão pode ser flagrada não apenas nas respostas criativas que, muitas vezes, foram dadas, mas principalmente na potencialidade não aproveitada – ainda que desperta – desta relação. Potencialidade revelada, por exemplo, na solidariedade prestada aos movimentos de libertação nacional, às lutas antiimperialistas e aos movimentos dos negros norte-americanos, no uso e invenção de técnicas de comunicação e propaganda para levar os ideais do movimento para a população comum (como as brigadas estudantis mexicanas) e, enfim, em certos aspectos das ocupações de universidades pelos estudantes e da criação de antiuniversidades ou universidades críticas, que buscavam colocar em prática a concepção de uma universidade aberta e democrática. Outrora, fiz estudos sobre os aspectos político-sociais dos movimentos estudantis dos anos 1960 (Groppo, 2000). Ali, preocupavamme mais em compreender e caracterizar, como um movimento mundial, as rebeldias juvenis de 1968. Neste sentido, este artigo visa complementar aqueles estudos, demonstrando que, ao lado das preocupações generalistas e generalizantes dos movimentos estudantis, puderam se desenvolver – ainda que em caráter precário e nem sempre consciente – experiências, ensaios ou simplesmente propostas voltadas à resolução de questões relativas ao âmbito do "micro", do cotidiano, das comunidades envolventes.

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Uma onda mundial de revoltas Os movimentos estudantis dos anos 1960 não foram um fenômeno exclusivo dos países "desenvolvidos", nem se pode dizer que tenham se iniciado aí ou aí foram mais longe. Isto não significa desconsiderar a importância dos movimentos do Primeiro Mundo, pelo contrário. Na França, destacaram-se o Maio de 68 em Paris e a greve que parou o país neste mês; na Alemanha, movimentos estudantis na então Berlim Ocidental desde o início da década de 1960; na Itália, uma greve de amplas proporções em 1969; nos EUA, amplos movimentos estudantis e de grupos de esquerda contra a Guerra do Vietnã etc. Na América Latina, destacam-se o Brasil e o México (onde o governo mexicano mandou o Exército atirar contra multidão desarmada na Praça das 3 Culturas, matando centenas de pessoas e prendendo 2 mil). Na Ásia, Japão, Vietnã, Paquistão e Bangladesh (onde, em 1968, quando era ainda parte do Paquistão, a ocupação do país pelo Exército resultou na morte de milhares de pessoas, inclusive 500 estudantes da Universidade de Dacca), Sri Lanka, Índia, Iraque, Irã, Síria, Israel, Palestina, Turquia, Líbano, Tailândia, Birmânia, Malásia etc. Na África, Nigéria, Senegal, Egito (onde uma batalha entre polícia e estudantes resultou na morte de 60 pessoas), Argélia, Marrocos, Mauritânia, Congo, Camarões etc. No antigo mundo socialista, Polônia, ex-Iugoslávia, ex-Checoslováquia, antiga Alemanha Oriental e, na China, a Revolução Cultural Chinesa. Apesar da diversidade nacional, regional e étnica dos movimentos estudantis, havia uma base comum. Primeiro, se tratava de movimentos de juventude universitária com origem principalmente das classes médias (principalmente das "novas classes médias"). Segundo, os movimentos se deram principalmente nas grandes cidades, que eram centros políticos e econômicos (São Francisco, Washington, Nova York, Londres, Berlim, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Cidade do México, Praga, Tóquio, Cairo etc.). Terceiro, tinham como "causa" um contexto histórico geral em comum: fatores geopolíticos como a Guerra Fria e a descolonização da Ásia e da África; fatores sócio-econômicos como o enorme avanço da economia mundial no Pós-2a Guerra e a ascensão das novas classes médias (mais ligadas aos setores de serviços e técnicos); e fatores político-culturais como as transformações nas universidades, os novos radicalismos e a contracultura. Foram inúmeros os temas comuns originados por esta "onda mundial" de revoltas juvenis: a forte crítica ao "imperialismo" norteamericano (inclusive dentro dos EUA, nos protestos contra a Guerra do Vietnã); a crítica à conivência soviética para com o imperialismo americano 99


e sua tese da "convivência pacífica"; os temas da democracia radical na sociedade e na Universidade; solidariedade aos movimentos antiimperialistas de libertação nacional, no Vietnã, na África, Ásia e América Latina; influência dos socialismos do "3o Mundo" ou heterodoxos, como o maoísmo e a Revolução Cultural Chinesa, a Revolução Cubana, o mito do Che e a teoria do foco, muitas vezes incentivando ações revolucionárias e a luta armada; propostas de reestruturação e transformação da vida cotidiana e da cultura em conjunto (não após) a transformação política e econômica, sob a influência da Revolução Cultural Chinesa, por um lado, e da Contracultura e dos hippies, por outro. A respeito deste último aspecto, em todos os movimentos sempre houve ações efetivas na arte e na contestação de valores e tradições da vida cotidiana: no Brasil (cinema novo, canção de protesto e tropicalismo), nos EUA (movimento hippie, drogas psicodélicas, relações tensas, mas complementares entre radicalismo estudantil e contracultura), na França (grafites, panfletos), no mundo socialista soviético (literatura e teatro de dissidentes), na Revolução Cultural Chinesa (cartazes e caricaturas) etc. Acredito que a verdadeira questão não é por que os estudantes de hoje não seriam tão politizados ou não se revoltam tanto quanto antes, mas por que se revoltaram nos anos 1960. A resposta está na conjugação de todos estes fatores agravantes. As alternativas oferecidas pelo "sistema" eram, então, insatisfatórias, seja da mídia e indústria cultural massificada, seja do discurso de fundo moralizante e tradicionalista do mundo "democrático", seja a estreita visão ortodoxa vinda do comunismo soviético. Contra isto, os jovens buscaram respostas e modelos alternativos: Che Guevara e Cuba, Mao e China, Vietnã e lutas dos povos oprimidos nos países do 3o Mundo, intelectuais e novas organizações de esquerda que criticavam o comunismo soviético (Marcuse e Escola de Frankfurt, novas revistas e organizações de nova esquerda na Europa, grupos de discussão e ação estudantil) e contestadores culturais (no Brasil, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, cinema novo, música de protesto e tropicalismo; nos EUA, poesia beat, descoberta e uso de drogas "psicodélicas", hippies, contraculturas e a busca de misticismos orientais). Nos anos 1960, entre as visões alternativas, funcionando inclusive como detonador dos movimentos estudantis, estava a crítica da universidade e sua relação com a sociedade. Inclusive - como é o tema deste texto – com propostas e atuações em prol de novas relações entre a universidade e a "comunidade" – ainda que com muita incipiência, limites e equívocos.

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Reviravolta nas universidades Um importante ponto de partida para compreender os movimento estudantis dos anos 1960 e as perspectivas de sua "ação comunitária", são as transformações enfrentadas pela instituição de onde brotaram tais movimentos, a universidade. A primeira grande reviravolta das universidades, em todo o mundo, no pós-Segunda Guerra Mundial, foi seu processo de "massificação" – o que não deve ser confundido com sua "democratização": Antes da Segunda Guerra Mundial, mesmo a Alemanha, França e Grã-Bretanha, três dos maiores países, mais desenvolvidos e instruídos, com uma população total de 150 milhões, não tinham juntos mais que aproximadamente 150 mil universitários, um décimo de 1% de suas populações somadas. (No final dos anos 1980) os estudantes eram contados aos milhões na França, República Federal da Alemanha, Espanha e URSS..., isso sem falar no Brasil, Índia, México, Filipinas e, claro, EUA, que tinham sido pioneiros na educação universitária de massa (Hobsbawm, 1995, p. 290).

Como se percebe pelos dados acima, este processo de massificação não era exclusivo do Primeiro Mundo, mas também se via presente em alguns nichos de "desenvolvimento" no Terceiro Mundo, sem esquecer do antigo mundo socialista. No Brasil, por exemplo, os 27 mil estudantes universitários em 1945 se transformariam nos 425 mil no ano de 1970 (Reis Filho, 1998, p. 66; Martins Filho, 1998, p. 11-26). Mas esta reviravolta mais visível tinha vinculação orgânica com outra ainda mais importante: a transformação na "função social" das universidades, que passam a ser, de modo mais patente, centros de formação profissional e de mão-de-obra técnica especializada. Um primeiro componente da "crise da universidade" dos anos 1960 está dado: o confronto entre o modelo tradicional e elitista, visando formar as "elites" intelectuais e políticas, e o modelo tecnicista-profissionalizante. Enquanto o modelo tradicional possuía uma concepção contemplativa do saber, o segundo propunha a formação de técnicos especializados em dadas áreas da ciência aplicada, valorizando a ciência no seu aspecto instrumental.1 Galbraith, em 1967, descrevendo a tecnoestrutura que passou a dirigir as grandes empresas no capitalismo mundial de então, demonstrava que a grande expansão nas matrículas para o ensino superior – 1

Segundo Michel Foucault, "Maio de 68 matou o ensino superior nascido no século XIX, esse curioso conjunto de instituições que transformou uma pequena fração da juventude na elite social" (apud Singer, 1997, p. 153).

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principalmente nos EUA, mas não apenas – se explicava pelo fato de que as novas tecnologias, nas mãos das grandes empresas, exigiam mão-de-obra especializada, a ser formada, a partir de então, pelas universidades massificadas (Galbraith, 1977). Apesar de Galbraith tomar como modelo, principalmente, os EUA, esta promiscuidade entre universidade, tecnologia e mercado era denunciada em outros países, como na Itália, em 1968, em que o documento produzido pela Comitê de Agitação dos estudantes que ocuparam a Universidade de Turim afirmava: A investigação científica na Itália está organizada e dirigida diretamente pelas indústrias e exclusivamente para seu proveito... Os pesquisadores da Universidade se convertem praticamente em dependentes da indústria que dá a eles o encargo. Se a soma dada para o financiamento da pesquisa é demasiadamente grande, o instituto de pesquisa se transforma praticamente em um departamento da oficina de projetos da indústria que financia e controla a pesquisa, como é o caso da maioria dos institutos da Politécnica de Turim e de alguns institutos da Faculdade de Química (Documento estudantil produzido pela Comitê de Agitação dos estudantes que ocuparam a Universidade de Turim, "Didattica e repressione", apud Viale,1969, p. 16).

Enquanto isto, nos países do "Terceiro Mundo", não apenas na América Latina, mas também naqueles territórios recém-libertos do imperialismo ocidental, a educação superior passou a ser vista como uma espécie de garantia à elite política e social. Classes populares e classes médias, onde se desenvolveram, passaram a considerar a educação – e não apenas a superior – como parte nodal dos projetos familiares de "ascensão social". Não era evidente que a universidade estava deixando de ser produtora instantânea de novos quadros para as elites intelectuais e políticas. Logo, portanto, teria de vir a frustração. Parte da rebeldia estudantil dos anos 1960 é, muito provavelmente, fruto mais ou menos inconsciente da frustração de classes sociais médias e subalternas diante dos resultados mais ou menos magros do investimento de recursos e de esperanças nos filhos que foram graduar-se. Provavelmente, mais que no Primeiro Mundo, foi no Terceiro Mundo que mais se evidenciou esta contradição da universidade em sua relação com a nova estrutura da sociedade e da economia. Na verdade, cronologicamente, talvez excetuando o caso particular da Universidade Livre de Berlim Ocidental, é oas universidadew do Terceiro Muodo que a "questão universitária" começa a gerar mais claramente movimentos estudantis que passariam, logo, a contestar todos os demais aspectos sociais, políticos e econômicos do mundo nos anos 1960. Foram diversas as tentativas dos governos de implementar reformas universitárias, não apenas no Brasil, mas também em países 102


"desenvolvidos" como a França (cujo Plano Fouchet, introduzido no final de 1967, foi uma das causas do Maio de 1968), reformas estas que, simplesmente, tentavam adaptar as universidades a esta nova realidade profissionalizante e tecnicista. Nos três "mundos", inclusive nas universidades da América Latina e da antiga Iugoslávia, os estudantes viram-se em meio a um contraditório processo de "reviravolta" das universidades, processo do qual nem sempre puderam compreender a essência. Contudo, em geral, foi da crítica à condição da universidade que surgiram os principais movimentos estudantis. Foi a partir da reflexão sobre a crise do ensino superior que os jovens partiram à crítica de quase todas as questões mais gerais sobre a sociedade, política e economia de sua nação e do globo. Os movimentos estudantis chegaram a considerar que, no fim, o que seria realmente importante aprender estava não apeoas fora das universidades, como também era desconsiderado pelos professores de então, nos anos 1960, temas como "a psicanálise, Vietnã, o desenvolvimento econômico,... a difusão social e política da pesquisa filosófica etc. etc." ((Documento estudantil produzido pela Comitê de Agitação dos estudantes que ocuparam a Universidade de Turim, "Didattica e repressione", apud Viale,1969, p. 24). Na visão dos movimentos estudantis, portanto, não se tratava de opor o elitismo à massigicação, ou a ciëncia contemplativa à razão instrumental, mas sim, fundamentalmente, de pregar a politização da ciência e a função social da educação: Nossa preocupação não é somente formar técnicos, cientistas ou artistas, mas que eles tenham uma formação integral, com uma função engajada, uma dimensão social, voltada para o progresso de sua pátria, de liberdade para os homens, de humanização para este mundo de todos os homens (Jorge Fagali Neto apud Revista DCE USP Livre,, p. 1). Nos falam de "tratamento etiológico". Nos falam de "profissionalismo asséptico". São termos incompatíveis... É necessário, como médicos, que nos politizemos. É necessário que velemos pela SAÚDE DE TODOS OS HOMENS, não só dos que vão aos consultórios particulares e clínicas de luxo... O doutor Guevara2 não era um "profissional asséptico" (Boletim informativo de grupo de estudantes de medicina de Salamanca, em fevereiro de 1968, apud. Garrigó, 1970, p. 122).

Estes dois relatos exemplificam a concepção generosa, mas idealista e até elitista, que os movimentos estudantis tinham a respeito do seu papel na transformação da sociedade, de como deveria ser a relação 2

Referência a Ernesto "Che" Guevara, médico de naturalidade argentina, que foi braço direito de Fidel Castro na Revolução Cubana que tomou o poder em 1959.

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com as camadas populares e as comunidades. Como se verá adiante, esta postura às vezes elitista se chocará com outra concepção forte presente no interior das ideologias destes movimentos, vindo do ideário das esquerdas socialistas: o poder da transformação social estaria nas mãos das classes proletárias, transformação (ou "revolução") esta da qual os estudantes participariam apenas como uma espécie de detonador, de estopim. Na verdade, talvez o mais profundo entre os vários dilemas e contradições enfrentados pelos movimentos estudantis nos anos 1960.

Movimento estudantil e classes populares Entre os fenômenos sócio-culturais que mais influenciaram os movimentos estudantis dos anos 1960, destaco três: o terceiro-mundismo expresso pelas lutas dos povos do "Terceiro Mundo" pela independência e/ou contra o imperialismo; as "novas esquerdas" (incluindo aqui socialismos heterodoxos como o foquismo e o maoísmo); e as contraculturas. Quanto ao tema aqui discutido, sobre a relação entre movimento estudantil e comunidade, o terceiro mundismo apareceu expresso principalmente na forma da solidariedade prestada às lutas dos povos oprimidos – em 1968, principalmente aos vietnamitas. No caso dos Estados Unidos, esta solidariedade significava também o apoio e até a participação nas lutas dos "povos oprimidos internos", ou seja, dos movimentos dos negros norte-americanos. Após as vitórias de Martin Luther King no final dos anos 1950, a estratégia da desobediência civil contra as leis discriminatórias recomeçaria, mais ou menos espontaneamente, em 1960, quando estudantes negros passaram a freqüentar restaurantes reservados aos brancos. Logo, estudantes de universidades para negros em todos os Estados Unidos agitavam-se, invadindo pacificamente locais reservados para brancos e fazendo sit-ins (tática de permanecer sentados no chão durante protestos proibidos, mesmo durante a repressão policial, sem nunca resistir violentamente). Estas ações logo passaram a ser organizadas por associações como o SNCC (Comitê de Coordenação Estudantil Não-Violento) e o CORE (Congresso pela Igualdade Racial), contando inicialmente com brancos ao lado dos negros, que também realizaram diversos programas de educação ao cidadão – como parte delas, militantes viajavam aos Estados do Sul, onde o racismo era mais forte, para conhecer suas realidades e, ao mesmo tempo, participarem de programas sociais.

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Contudo, na segunda metade dos anos 1960, duas tendências mudaram um pouco esta relação inicialmente promissora entre estudantes brancos e movimentos negros. Primeiro, dada a violência policial crescente – mesmo contra protestos pacíficos – e a influência das ideologias terceiromundistas e novo-esquerdistas que advogavam o uso da violência, os movimentos negros tenderam a legitimar o uso da violência e se aproximaram, também, de uma concepção que considerava inconciliável a convivência entre negros e brancos – o que levou ao SNCC e o CORE a dispensarem os voluntários brancos. Segundo, os movimentos estudantis (brancos) norte-americanos passaram a se preocupar, sobretudo, com a questão da Guerra do Vietnã, um problema aparentemente mais distante – era mais fácil ser solidário com o diferente que estava distante a milhares de quilômetros – e mais próximo – eram os jovens quem estavam sendo convocados para lutar e matar, e até morrer, numa guerra considerada irracional. Isto talvez explique o comportamento de um militante negro durante o Congresso do SDS (Estudantes por uma Sociedade Democrática), a mais importante organização estudantil norte-americana na segunda metade dos anos 1960, que afirmou veementemente: ... nós negros suspeitamos de vocês, os revolucionários brancos, porque não estamos seguros da firmeza do seu compromisso. O que preocupa vocês é a Universidade, que abandonarão dentro de 4 ou 5 anos, e vocês estão se evadindo do principal problema social... Um problema que está fora do campus. Muitos negros como eu há tempo que abandonaram o campus, dando exemplo de como alguém pode sair do sistema. Só acreditaremos em vocês quando deixarem de ser estudantes. Enquanto seguirem considerando-se estudantes continuarão jogando os jogos que jogam os estudantes... e estes jogos se jogam na Universidade (Garrigó, 1970, p. 25).

Trata-se de uma crítica radical à estratégia da "reforma" da universidade, que cosidera esta instituição incapaz de realmente se engajar na resolução dos problemas sociais mais imediatos do seu entorno. Contém uma crítica, justa até certo ponto, de que o movimento estudantil conseguia ser solidário com povos distantes e discutir problemas de âmbito geral com muito mais facilidade do que se engajar em lutas contra injustiças arraigadas na sua própria sociedade, contra injustiças sofridas por camadas populares vizinhas da própria universidade. Assim, um grande paradoxo invadiu o movimento estudantil, principalmente, como na América Latina, onde a influência das ideologias das novas esquerdas era maior. Ele se referia à relação do movimento estudantil com as classes populares trabalhadoras. México, Brasil, França, Alemanha, ex-Checoesláquia etc. tiveram, em 1968, movimentos estudantis que, no discurso e na prática, 105


tentaram ir ao encontro das "classes populares" – com diferentes graus de sucesso. O movimento estudantil oscilava entre conceber o operário e o camponês como líderes de uma revolução em que o estudante deveria se engajar (a visão ortodoxa da luta de classes), ou conceber a si mesmo – estudante – como mobilizador e educador das massas populares (uma visão elitista do populismo). Contudo, principalmente a partir de 1968, as novas esquerdas estudantis tenderam a concluir que o capitalismo, o imperialismo e os regimes coniventes só poderiam ser vencidos através do recurso à violência. Com a violência organizada, mesmo que em pequenos grupos terroristas, acreditavam estar contribuindo com a revolução popular ou, então, despertando nas camadas populares a consciência revolucionária. Numa contradição inusitada, no mesmo momento que o movimento estudantil conseguia inflamar o mundo, através da mobilização em massa de estudantes, em geral apoiados pela população, principalmente nas grandes passeatas nas principais cidades do mundo, a maior parte de seus líderes – informados pelas novas esquerdas – concebiam soluções voluntaristas e violentas de "revolução". No Brasil, diante do apoio massivo de populares – vindos não apenas das classes médias – às passeatas estudantis no início de 1968, vários líderes estudantis quiseram ler este fenômeno como prova da disposição do povo de usar até mesmo a violência para "derrubar a ditadura" e combater o imperialismo: "As mais variadas parcelas do povo saíram da passividade em que se viam e despertaram para a luta. Não se trata de meras explosões passageiras, trata-se de uma ofensiva das forças populares revoltadas..." ("Ante Projeto de Carta Política para UNE", 1968, p. 1). Enquanto isto, na França, a partir de Paris, acontecia o famoso "Maio de 68". Destaca-se, na manhã do dia 13, a Jornada Nacional de Protesto, convocada pelo movimento estudantil e as centrais sindicais contra a repressão aos estudantes, numa passeata que reuniu entre 700 e 800 mil pessoas. Iniciava-se a greve geral, que deveria durar apenas 24 horas nos planos das centrais sindicais, mas que se estendeu para muito além do esperado – no seu auge, em 3 de junho, contou com 9 milhões de grevistas em todo o país. Mas a greve foi refluindo a partir de então, apesar de desesperadas tentativas do movimento estudantil de estabelecer o contato direto com as "bases" operárias. Diante dos acordos entre as centrais sindicais – principalmente a CGT, informada pelo poderoso partido comunista francês – com o patronato e o governo francês, e diante do contra-ataque das forças conservadoras da sociedade francesa, o movimento estudantil e a greve geral foram se enfraquecendo, até desaparecer, e só restar, aparentemente, a força renovada do governo conservador de De 106


Gaulle. Contudo, restou também a inesperada experiência de uma união – efêmera no tempo, poderosa no espaço – entre estudantes e trabalhadores, principalmente os jovens operários, que foram os últimos a acatar a ordem de desmobilização dada pelos comunistas franceses. No próprio antigo Bloco Soviético se deram experiências de união entre trabalhadores e estudantes, principalmente na ex-Checosláquia. A partir de revoltas estudantis, no final de 1967, iniciou-se o processo que culminaria na "Primavera de Praga", quando um novo secretário geral do partido comunista, Alexandre Dubcek, esboçaria o projeto de um "socialismo com face humana", com intenso apoio da sociedade checoeslovaca – processo brutalmente interrompido pela invasão das tropas soviéticas em agosto de 1968. Enquanto durou a primavera, os estudantes foram uma espécie de "vanguarda" na mobilização da sociedade civil, tomando a frente na formação de organizações autônomas em relação ao partido comunista. A partir de março de 1968, os estudantes diretamente se encarregaram de agitar os meios operários. No dia 13, estudantes da Faculdade de Filosofia em Praga publicaram a "Carta Aberta aos Operários", rechaçando as acusações dos conservadores de que eles desejavam "restaurar o capitalismo na Checoeslováquia, quer dizer, o desemprego, a fome e a pobreza" e apelando aos operários para que, junto com os estudantes, façam "a união das forças progressistas da sociedade" (apud Broué, 1979, p. 64). Nos dias seguintes, foram feitos os primeiros contatos entre fábricas e faculdades. O porta-voz dos metalúrgicos de uma fábrica declarou em uma assembléia estudantil: "Aqueles que são seus inimigos não são os verdadeiros operários, são os parasitas, os burocratas do partido que não sabem nem mesmo manejar uma chave-de-fenda" (apud Broué, 1979, p. 64-5). Após a invasão pelas tropas russas e a tentativa de "normalização" do paíw – ou seja, o retrocesso em relação às mudanças feitas durante a primavera de Praga –, os estudantes voltaram a agitar a vida política, com intensas discussões, recriação de Parlamentos Estudantis e contatos com organizações populares e comitês operários. Foi convocada uma greve geral em novembro de 1968, quando os estudantes ocuparam as unidades de ensino e, diante do silêncio da imprensa, utilizaram a comunicação oral direta, panfletos e boletins mimeografados para expressar suas idéias. Delegações de operários se dirigiram às universidades, ocupadas pelos estudantes, para demonstrar solidariedade. Pressionado pelos russos, o governo – ainda controlado por Dubcek – pediu o fim da greve, o que se deu no dia 20 de novembro de 1968. Quanto à influência das contraculturas, sua principal influência em relação ao tema aqui discutido se refere às universidades críticas e as 107


anti-universidades – fenômeno em que foi igualmente importante a influência das novas esquerdas. Tratarei desta questão mais adiante.

Da questão universitária à crítica político-social Influentes líderes estudantis nos anos 1960, como Daniel CohnBendit (na França) e Mario Sávio (em Berkeley, Estados Unidos), reconhecem que a questão universitária foi a ponta de lança que levou o movimento estudantil a questionar praticamente todas as instituições, valores e políticas da sociedade e do sistema mundial de então: A crítica da universidade era uma crítica fundamentalmente política, tão radical que colocava em questão toda a sociedade (Cohn-Bendit, 1988, p. 49). A universidade é o lugar onde as pessoas começam seriamente a questionar as condições de sua existência e levantam o tema a respeito da maneira como podem se comprometer com a sociedade em que nasceram (Savio, 1965, p. 181).

A partir da insatisfação e protestos contra a "crise da universidade", os movimentos ampliaram seus questionamentos a ponto de abarcar praticamente todos os problemas sociais, como se os estudantes se considerassem a consciência crítica de um sistema social que se autoalienava diante das injustiças econômicas e dos desmandos da geopolítica da Guerra Fria. A abrangência das preocupações do movimento estudantil dos anos 1960 logo extrapolou o universo das unidades acadêmicas, ainda que, como se viu, esta práxis em direção à sociedade envolvente estivesse muitas vezes carregada de arrogância, elitismo, populismo e pretensão. Certamente, informados pela condição juvenil – que sobreval riza a experimentação (mais do que a experiência) e a vivência desabonada e idealista de ações que se acreditam transformadoras -, os movimentos estudantis foram capazes de grande criatividade, foram ousados em práticas que revolucionaram (mesmo que apenas momentaneamente) as relações de ensino, as relações cotidianas, as artes e os valores. Em si mesmos, os movimentos estudantis eram uma forma de "educação comunitária", como práticas de transformação social, como exemplos a serem seguidos ou invejados por outros jovens e outros setores sociais. As reações dos diversos segmentos sociais foram variadas – entre os extremos do apoio entusiasta da população às passeatas estudantis e da aversão dos adultos que chegou a caracterizar um verdadeiro "conflito de gerações".

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São os casos bem sucedidos de relação com outros setores sociais que mais aqui nos interessam. Primeiro, justamente a integração de diversos setores sociais com os estudantes nas passeatas. Este foi um fenômeno muito mais característico dos movimentos do Terceiro Mundo, principalmente na América Latina – como México e Brasil, casos em que o manifesto estudantil representava diversos graus de insatisfação e demandas da sociedade civil em seu todo contra regimes autoritários. Um líder estudantil de Minas Gerais, em 1968, afirmava cruamente que o assassinato do estudante Edson Luís – estopim do movimento estudantil brasileiro em 1968 – era parte das comemorações do quarto ano do golpe militar de 1964, e provocava: "Devemos nos calar, devemos nos largar em nossas salas de aula? Devemos nos largar nas Universidades, ou em nossas residências, enquanto companheiros nossos, irmãos nossos foram ontem assassinados violentamente na Guanabara, por uma polícia orientada, por um governo orientado, por uma ditadura orientada? Nós achamos que não".3 O relato representa os estudantes se colocando na responsabilidade de tomarem a frente na luta contra um regime imposto pela força, ilegítimo, carregando em seus ombros a missão de toda uma sociedade civil. Em 26 de junho de 1968, na cidade do Rio de Janeiro, aconteceu o mais importante evento do movimento estudantil brasileiro de 1968, a Passeata dos 100 Mil. Foi uma marcha pacífica de uma multidão formada não só por estudantes, mas pela população da metrópole, com o apoio de diferentes categorias sociais, em destaque as classes médias intelectualizadas. Notas de solidariedade aos estudantes foram feitas por organizações das mães de alunos, professores, jornalistas, servidores públicos, a Ordem dos Advogados do Brasil, setores do clero etc. (Dirceu & Palmeira, 1998). Na Cidade do México, por sua vez, no dia 13 de setembro do mesmo ano, o movimento estudantil convocou a "Marcha do Silêncio". Uma quase surrealista passeata, com centenas de milhares de pessoas em completo silêncio, foi organizada para provar que o movimento estudantil não era formado por arruaceiros e vândalos, como queria fazer crer o governo mexicano, mas sim por jovens organizados e com objetivos claros: "Parecia que estávamos pisoteando toda a verborragia dos políticos, todos os seus discursos, sempre os mesmos, a demagogia, a retórica, o monte de palavras que os fatos jamais respaldavam... íamos varrendo tudo debaixo de nossos pés" (Luis González de Alba, delegado do CNH (Conselho Nacional de Greve), apud Poniatowska, 1987, p. 60).

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Jorge Batista, em programa da Rádio Itatiaia, de Belo Horizonte, em 29 de março de 1968.

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Perspectivas de ação comunitária Os movimentos estudantis, nos anos 1960, esboçaram diversas práticas e rascunharam concepções do que é hoje conhecido como "educação comunitária". Procuro, abaixo, discutir alguns exemplos das práticas esboçadas a partir dos movimentos estudantis, tentando caracterizar que concepção ou concepções de educação comunitária emanavam do radicalismo estudantil da década de 1960. Já no início dos anos 1960, no Brasil, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e os estudantes participaram de várias ações de educação e cultura popular, principalmente no Nordeste, como o Movimento de Cultura Popular, de Paulo Freire, vinculado à Prefeitura de Recife, e o Movimento de Educação de Base, criado pelo CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil). Em Natal (RN), por exemplo, com a participação ativa dos estudantes da esquerda católica "ao lado das atividades de coordenação, treinamento, produção e transmissão de aulas radiofônicas, o Sistema Natal chegou a compor folhetos de cordel, como instrumento a ser utilizado na tarefa de conscientização do trabalhador rural" (Silva, 1989, p. 87). Como se sabe, tais campanhas, muito combatidas por setores tradicionais da sociedade antes mesmo do regime militar, foram reprimidas e silenciadas com o golpe de 1964. Outra ação muito importante foi o Centro Popular de Cultura (CPC), organizado pela UNE no Rio de Janeiro, em 1961. Peças teatrais, shows musicais, filmes de cinema, folhetos de cordel e revistas foram produzidos durante os poucos anos de ação do CPC. O CPC representava a integração entre arte, cultura e movimentos estudantis que atingiria seu auge, em todo o mundo, na segunda metade dos anos 1960 – com destaque à Contracultura. Se a idéia do CPC era a de produzir uma "arte popular" que seria instrumento de conscientização política das classes trabalhadoras – numa proposta que misturava populismo e elitismo com generosidade –, o CPC se notabilizou principalmente por animar encontros e reuniões de estudantes promovidos pela UNE em todo o país. Durante o movimento estudantil mexicano de 1968, foi criado um notável instrumento de propagação das idéias e demandas do movimento: eram as "brigadas estudantis". Cada brigada reunia de 8 a 15 estudantes, sob a coordenação de uma organização criada especialmente para o movimento, o CNH (Conselho Nacional de Greve). Entre as atribuições dos brigadistas, coletar dinheiro entre a população da capital para sustentar o movimento e realizar pequenos comícios-relâmpagos nas ruas, ônibus, mercados, bairros operários e fábricas. Também se formaram brigadas médicas, para atender feridos pela polícia durante manifestações, e 110


brigadas com funções logísticas, como a de suprir as necessidades dos delegados do CNH durante suas longas assembléias. Segundo dados, chegaram a funcionar simultaneamente mais de 800 destas brigadas (Jorge Carrión et. al., 1969): Nas escolas nos organizávamos da seguinte forma: ao terminar as assembléias nos reuníamos em três salas e nos púnhamos de acordo sobre os lugares que devia se dirigir cada brigada, repartíamos os sacos para coletar o dinheiro e a propaganda que necessitávamos. É interessante assinalar que nestes dias se repartiam aproximadamente 600 mil panfletos diários e juntávamos de mil a dois mil pesos diários. Ademais, nos comícios relâmpagos, já não falávamos apenas nós, mas também convidávamos o povo a tomar a palavra (Salvador Martínez de la Roca apud Poniatowska, 1987, p. 33).

Os panfletos distribuídos pelas brigadas ewtudantis logo passaram da publicização das demandas estudantis para a tarefa de conscientizar a população sobre os problemas políticos (como o regime autoritário travestido de democracia revolucionária) e os problemas sócioeconômicos (como a extrema desigualdade social e a exclusão de enormes massas populares). O movimento mexicano logo teve ao seu lado o apoio de professores e autoridades acadêmicas. Mas quando o movimento migrou seu epicentro para o bairro de Tlatelolco – após a ocupação do campus da Universidade Autônoma do México pelo exército –, o principal apoio social passou a vir dos moradores deste bairro de classe média, onde moravam vários professores, funcionários públicos e pais dos estudantes das escolas secundárias aí instaladas. Gerou-se em Tlatelolco uma verdadeira integração entre estudantes – universitários e secundaristas – e moradores. Os moradores chegaram a auxiliar os estudantes nos seus conflitos com as forças policiais, fornecendo "munição" em forma de pratos, garrafas e água fervente que eram jogados contra os policiais, ou informando aos estudantes, do alto dos prédios, a posição das tropas. Havia também uma organização de pais de família e vizinhos que apoiavam os estudantes e até os defendiam durante os ataques dos policiais e soldados (Poniatowska, 1987). Entretanto, no final da tarde de 2 de Outubro de 1968, cerca de 10 mil soldados do exército atacaram os estudantes reunidos em Tlatelolco, disparando durante pelo menos meia hora contra os manifestantes, fazendo pelo menos 400 mortos e milhares de presos. Um outro interessante caso de inter-relação entre população e estudantes se deu no Maio de 68 em Paris. No dia 11, diante do fracasso de uma nova tentativa de ocupar a Universidade de Sorbonne, os estudantes resolveram ocupar o Teatro Odéon, onde foi inscrita a famosa frase "a imaginação no poder". O Comitê de Ação Revolucionária que ocupou o 111


Teatro Odéon teria afirmado que seu objetivo era "a sabotagem sistemática da indústria cultural, em particular do espetáculo, a fim de deixar livre espaço a uma verdadeira criação coletiva" (Dumazedier, 1968, p. 64). Foram promovidos no teatro verdadeiros psicodramas coletivos, quando pessoas comuns, jovens ou adultas, subiram no palco e expuseram livremente seus pensamentos e experiências, diante da platéia abarrotada de ouvintes, que reagiam com aplausos, apupos ou desaprovações, numa verdadeira terapia de grupo. Durante o Maio de 68 francês um outro fenômeno importante – quando novamente pessoas comuos se integraram ao movimento estudantil – foi a produção de cartazes pelo Ateliê Popular, um "anárquico instrumento de propaganda dos manifestantes", criado após a invasão da Escola de Belas Artes de Paris. Quase todos os cartazes continham uma frase de efeito e desenhos monocromáticos simples, nos quais frase e desenho combinavam-se para criar sentidos inesperados e bem humorados. Qualquer interessado poderia participar, de modo que a grande maioria dos cartazes foi fruto da criação de "pessoas anônimas, que passavam por lá". O uso de uma técnica simples, a serigrafia, facilitava isto. Cerca de 1 milhão de cartazes foram produzidos durante um mês, produção interrompida quando a polícia desocupou a Escola (Fraga, 19/05/1968). O maior desejo dos estudantes quase sempre foi o de "mobilizar" as classes trabalhadoras. No Rio de Janeiro, segundo Vladimir Palmeira, o principal líder estudantil fluminense de então, quase todas as passeatas estudantis passavam ou terminavam na Central do Brasil, terminal ferroviário que liga o centro do Rio aos subúrbios: "A Central se tornara uma tradição para nós, uma espécie de marca registrada, porque em volta da estação se reunia o pessoal mais pobre, a massa de operários indo ou voltando dos subúrbios, e por isso costumávamos terminar lá nossas passeatas" (Vladimir Palmeira apud Dirceu & Palmeira, 1998, p. 92-3). No México, os estudantes preocuparam-se com a população pobre e miserável do interior do país, principalmente os camponeses. A preocupação, em geral, gerou mais discursos apologéticos do que ações efetivas. Mas em pelo menos um caso foi-se para além da retórica, no povoado de Topilejo, próximo do Distrito Federal. Em agosto de 1968, um dos ônibus que fazia a ligação deste povoado com a Cidade do México sofreu um acidente, com vários mortos e feridos. A empresa queria pagar uma pequena indenização às famílias dos mortos. Os habitantes do vilarejo se indignaram e começaram a reter os carros desta empresa, exigindo a modernização destes veículos, a melhoria da estrada e uma maior indenização. "Então o povo, reunido em assembléia, decidiu recorrer aos estudantes. Foram expor seu problema à Escola Nacional de Economia da 112


UNAM (Universidade Autônoma do México) e, ao invés de discuti-lo brevemente, os estudantes resolveram ajudar em tudo que fosse possível a Topilejo" (Gilberto Guevara apud Poniatowska, 1987, p. 45). Um ônibus da UNAM passou a refazer a linha interrompida pela empresa, enquanto estudantes de enfermagem, agricultura, serviço social e medicina foram ao povoado prestar serviços de orientação. Os camponeses do vilarejo formaram uma nova comissão para sua luta, com a participação de estudantes, fazendo a empresa recuar e prometer, primeiro, uma melhor indenização e, após a chegada de novas brigadas estudantis, também modernizar seus veículos. Enquanto isto, autoridades prometiam a melhoria da estrada. Porém, este parece ter sido o único contato mais sério do movimento estudantil com a massa desprivilegiada de que tanto falavam. Provavelmente, o caso mais forte de conversão da rebeldia estudantil em uma forma de "educação comunitária" – na verdade, mais próximo do que seria um trabalho de "promoção social" – é os Estados Unidos. É nos Estados Unidos que o ímpeto dos movimentos estudantis parece ter gerado mais ações efetivas com as "comunidades". Experiências muitas vezes inusitadas, mas principalmente variadas e criativas. Os Estados Unidos, desde os próprios anos 1960, quase imediatamente renderam frutos no que seria a transformação dos anseios da juventude rebelada nas universidades em "educação comunitária", em projetos e práticas que, assim como nos aspectos de atuação política direta dos movimentos estudantis, ilustram também os limites e as possibilidades, a ansiedade e a generosidade, os rancores e os desejos da onda mundial de revoltas dos anos 1960. Andrés Garrigó (1970) demonstrou como, nos Estados Unidos, no final dos anos 1960, muitos estudantes rebeldes partiram para trabalhos de benefício social, ingressando em diversas instituições de promoção social criadas pela sociedade civil, ou formando suas próprias instituições, inclusive dentro das universidades. Ele conta mais de duas mil instituições deste tipo, na sua maior parte criada pelos próprios estudantes, com diversos métodos de trabalho, da alfabetização de crianças órfãs e adolescentes em conflito com a justiça à pressão política para reformar a instituição de ensino. São muitos os exemplos retratados, nem todos originados a partir do radicalismo do movimento estudantil, outros procurando canalizar a rebeldia juvenil (como os Corpos de Paz, criados por John Kennedy). Por exemplo, o Conselho de Voluntários das Montanhas do Sul estimulava as famílias pobres dos Apalaches a utilizar melhor os recursos oferecidos pelo governo, inclusive fazendo com que estudantes voluntários vivessem com famílias locais. Outras associações trabalhavam em comunidades pobres de brancos, com estudantes – que se empregam em fábricas – procurando 113


conscientizar os pobres sobre como evitar o recrutamento do exército. O Army 10 Project mobilizava estudantes para o trabalho social em cidades que tinham bases militares, tentando conscientizar os soldados sobre o absurdo que era a Guerra do Vietnã. O American Friends Service Committe, por sua vez, procurava fazer um trabalho social em relação às classes médias, buscando "eliminar o complexo de frustração individual e de isolamento, mediante sua participação em atividades que tenham sentido para sua vida" (Garrigó, 1970, p. 95), como grupos de discussão e festivais artísticos e, principalmente, a conscientização contra o forte racismo impregnado. Também hawia programas para jovens de origem latinoamericana que estavam fora da escola, oferecendo-lhes tutores e animando sua cultura latina. Os estudantes negros, por sua vez, organizavam campanhas paralelas, como os Institutos de Estudos Negros, tutorias negras e associações anti-recrutamento. Em várias universidades, os estudantes animavam a formação de comunidades e cooperativas, como na Universidade de Oxford, Estado de Nova Iorque, onde foi criada uma Sociedade para a preservação dos costumes americanos primitivos, que cultivava uma granja e adotava como estilo de vida a pobreza voluntária em uma vida rural simples. Já o Programa de Desenvolvimento de Cooperativas do Sul tinha o objetivo de organizar pobres brancos e negros com cooperativas que produziam e distribuíam alimentos, em que os estudantes trabalhavam como contadores, gerentes, empregados ou diretores de marketing. Outro importante fenômeno em que se podem interpretar as perspectivas do movimento estudantil em relação à comunidade, são as ocupações de unidades estudantis. Inicialmente realizadas, em geral, como forma de pressão contra autoridades acadêmicas e políticas, várias vezes transformaram as universidades ocupadas em locais de experimentação de novas formas de ensino. Em geral, o que se pretendia era criar uma universidade aos moldes dos desejos e interesses dos estudantes mobilizados – promovendo cursos e eventos na medida de suas demandas, ministrados por convidados ou pelos próprios estudantes. Mas, muitas vezes, estas iniciativas abriram as unidades de ensino para as pessoas comuns – inclusive as comunidades envolventes –, para participarem de cursos e eventos de diversos tipos, alguns especialmente dirigidos para a população não estudantil. No mês de julho de 1968, quando deveriam ocorrer as férias escolares, muitas das faculdades do Rio de Janeiro e de São Paulo continuaram repletas de estudantes. Destacava-se a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, ocupada pelos estudantes. O jornal da União Estadual de Estudantes de São Paulo anunciava que "a ocupação das 114


Faculdades tem um sentido eminentemente político" (Jornal da UEE, julho de 1968, p. 8). As atividades programadas para o mês de julho incluíam discussões para a reformulação dos cursos, discussões políticas, cursospiloto, conferências e a preparação do Congresso da União Nacional dos Estudantes da UNE.. No jornal eram anunciados também shows musicais, filmes e peças de teatro. Nas lembranças de José Dirceu, que presidia então a União Estadual dos Estudantes de São Paulo, as faculdades ocupadas transformavam-se em verdadeiras "repúblicas livres, onde se fazia política, arte, cultura – e até se estudava": Lá comíamos e bebíamos, fazíamos reuniões, eventos, conferências; lá dormíamos e namorávamos. Milhares de estudantes circulavam pelos pátios e corredores, era uma verdadeira feira, em ebulição permanente. Festivais, aulas paralelas, seminários, exposições, cineclube... Imagine o que era uma universidade ocupada em 68. Parecia que estávamos diante do embrião de uma sociedade diferente, inaugurando novas formas de relacionamento e de cooperação entre as pessoas. Aquilo era uma festa (José Dirceu apud Dirceu & Palmeira, 1998, p. 120-1).

Nos Estados Unidos, nas universidades de Cornell, Boston, Ohio, Berkeley e Columbia os estudantes também ocuparam as universidades em abril de 1968. Destacou-se a ocupação da Universidade de Columbia, em Nova York, em 23 de abril. Os estudantes chegaram a manter o reitor durante alguns momentos como refém, protestando contra os vínculos da universidade com uma instituição militar (evocando a questão da Guerra do Vietnã) e contra práticas consideradas segregacionistas – a universidade construíra um ginásio vizinha ao bairro negro do Harlem, cujos moradores foram relegados a espaços marginais, reservando-se os melhores espaços exclusivamente para os alunos da universidade. O movimento estudantil aderiu às reclamações de jovens extremistas da comunidade negra e opôs-se à prática de segregação. Dos movimentos juvenis dos anos 1960, para além da questão da reforma ou revolução da universidade, surgiram as universidades críticas e as anti-universidades. Um exemplo nos Estados Unidos foi a Midepeninsula Free University, em Palo Alto, estado norte-americano de Califórnia, uma universidade dirigida pelos próprios estudantes, sem edificações, sem notas, exames, reitores, decanos, catedráticos, sem burocracias e nem o conceito de disciplina,. Na declaração de princípios da fundação desta universidade livre, destacam-se como valores a liberdade de investigação, a autoprogramação individual da educação, a visão qualitativa da educação contra a concepção quantitativa (que mede a educação em unidades, notas e graus), a elevação da consciência e, enfim, dois princípios que apontam para duas 115


direções diferentes: "a educação que não tem conseqüências para a ação social ou para o desenvolvimento pessoal é vazia"; "o estado natural do homem é a contemplação extática" (Garrigó, 1970, p. 70-1). O primeiro princípio alude aos desejos das novas esquerdas de uma universidade aberta para as populações trabalhadoras. O segundo, reflete a "invasão" das universidades críticas pelas contraculturas (algo mais forte oo Estados Unidos, mas observado também na Europa). As contraculturas logo passaram a dar o tom dos cursos dados nas antiuniversidades norte-americanas. Curiosamente, atingiam tais universidades livres uma instigante relação com as comunidades envolventes – as universidades se tornavam locais de atração de jovens hippies e beatniks, que vinham oferecer ou fazer cursos sobre esoterismos, exotismos, filosofias transcendentais etc.. Muitas universidades, como a unidade de Berkeley, da Universidade da Califórnia, viviam envoltas por comunidades de jovens e adultos ligados à contracultura, que participaram ativamente dos movimentos estudantis e ajudaram a inserir neles suas experiências alternativas, enriquecendo – e tornando ainda mais complexas – as perspectivas de integração dos movimentos estudantis com a comunidade.

Conclusão Nos anos 1960 se tornou evidente a massificação das universidades, inclusive no antigo mundo socialista e no "Terceiro Mundo". Na verdade, um sintoma do novo papel atribuído ao ensino superior nas sociedades industriais, em que as "novas classes médias" deveriam ocupar funções de caráter técnico especializado e qualificado, seja na indústria, seja no setor de serviços. A um primeiro choque entre a concepção tradicional/ elitista da universidade e a concepção moderna/ tecnicista, soma-se um conflito mais importante ainda, nos anos 1960, de ambas estas concepções contra a visão politizante dos movimentos estudantis, que advogavam uma função, antes de tudo, social da universidade e dos profissionais formados por ela. Foi nesta instituição em expansão, mas em crise de identidade e legitimidade – a universidade –, que se deu o início dos movimentos juvenis dos anos 1960, uma verdadeira onda mundial de revoltas, que, apesar da enorme diversidade e complexidade de eventos, organizações, temas, lemas e interesses, estavam unidos em torno de questões essenciais comuns. Questões estas não apenas relativas à crise da universidade, mas principalmente em relação ao contexto geopolítico gerado pela Guerra Fria.

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Os estudantes universitários de então – assim como hoje – muitas vezes vindos de fora das comunidades que envolviam as unidades acadêmicas, mesmo quando despertos para a participação sócio-política, tendiam a falar e agir mais em prol das questões gerais da sociedade e política – em âmbitos nacional e internacional – do que em relação aos problemas imediatos do entorno das universidades. Inclusive, há casos em que uma interessante inter-relação inicial entre movimento estudantil e movimento de minorias logo recrudesceu – como nos Estados Unidos, entre estudantes radicais brancos e movimentos dos afro-americanos. Ainda assim, como dito, houve várias ações reais de integração entre movimentos estudantis e comunidades envolventes durante a onda mundial de revoltas dos anos 1960. Mas, principalmente, uma torrente de boas intenções e perspectivas criativas de "educação comunitária". Ações, intenções e perspectivas que derivam da real ou desejada integração dos estudantes na "revolução popular" – de onde emerge também o dilema que às vezes paralisaria esta integração entre estudantes e classes populares: os estudantes deveriam dirigir a revolução popular, ou servir somente como estopim para a transformação social dirigida diretamente pelos trabalhadores? Nos extremos do elitismo populista e da visão ortodoxa das lutas de classe, entretanto, muitas foram as ações efetivas dos estudantes e seus movimentos, como se discutiu. Para os militantes dos movimentos juvenis de hoje, os anos 1960 talvez tragam, como "lição", não apenas o que seus estudantes radicais efetivamente fizeram (e tentaram fazer), mas também o que não fizeram (ou não fizeram na intensidade necessária). A distância histórica ajuda a tornar mais consciente a necessidade de se trabalhar também com a comunidade, com o âmbito do local e do micro, e não apenas contemplar as questões mais gerais, do âmbito do macro (nacional e global). Talvez melhor, revelase a necessidade de partir do local e do comunitário – enfocando seus problemas – para alcançar o nível do geral e do global.

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Luís Antonio Groppo é Professor do Programa de Mestrado em Educação Sócio-comunitária do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), Unidade Americana. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). End.: Av. Armando Césare Dedini, 1155 - CEP 13405-268 - Piracicaba/SP Telefone: (19) 34232072 E-mail: luis.groppo@am.unisal.br

Recebido em: 17/07/2005 Aceito em: 20/04/2005

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Contribuições à história das relações estado/educação escolar: o período de 1937 à 19461 Lindamir Cardoso Vieira Oliveira

Resumo O estudo objetiva apontar alguns traços do ideário educacional proclamado pelo Estado no período de 1937-1946, governo Getúlio Vargas. São destacadas: concepção dominante de educação; relações vida/estado; competência de educar; o processo da educação; papel da escola; métodos pedagógicos; problemas e soluções educacionais; a posição da ABE no novo contexto. Foram priorizadas como fontes todos os números da Revista Cultura Política, publicação do DIP (Departamento de Investigação e Propaganda do governo Vargas), Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, publicada pelo MES(Ministério da Educação e Saúde), através do INEP, discursos presidenciais e ministeriais referentes à questão educacional, anais da ABE (Associação Brasileira de Educação), além da legislação considerada relevante na perspectiva da política e gestão do ensino nos seus diferentes níveis e ramos promulgada nos anos do Estado Novo. Observa-se que o período é marcado por um reordenamento do sistema escolar e seu ideário aos novos tempos econômicos e políticos. Palavras-chave: Política Educacional; História da Educação Brasileira; Relações Estado/ Educação Escolar

Abstract This paper studies some traits of the educational policy adopted by the State, during the Vargas government, from 1937 to 1946. The main traits are: the prevailing conception of education, life-state relationships, educational competency, educational process, the role of school, pedagogical methods, educational issues and solutions, and the Brazilian Association of Education response to the new political context, among others. The source for this study has been: all the issues of journals Revista Cultura Política, published by the DIP (Department of Investigation and Publicity), Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, published by the MES (Ministry of Education and Health), supported by INEP; speeches about education addressed by the president and ministries; the proceedings of the Brazilian Association of Education as well as the legislation on education made public during the Estado-Novo, considered to have reorganized the Brazilian school system and its educational policies according to the new economic and political scenery. Key-words: Educational Policy; History of the Brazilian Education; State-Education Relationships.

Este texto insere-se nas discussões do GT cadastrado no CNPQ intitulado Gestão Democrática e processos de inovação das escolas sob sua coordenação. Financ. FUNDAC/UMESP.

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História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 121-144, set. 2005


O presente estudo surge de questões colocadas pela prática docente da autora com a disciplina História da Educação no curso de Pedagogia. Observou-se, inicialmente, a escassa bibliografia referente à história da educação escolar brasileira voltada especificamente para os anos do Estado Novo e a necessidade de se conhecer, de forma mais aprofundada, as formas e estratégias utilizadas pelo governo getulista para desmobilizar as intensas discussões que tinham a política educacional como foco e que vinham acontecendo no âmbito da sociedade civil desde o final da Primeira Grande Guerra Mundial. Estas desencadearam internamente acirradas polêmicas, que vão ter sua culminância em 1932, no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e no capítulo sobre a Educação da Constituição de 1934 (NAGLE, 1969). A idéia inicial era acompanhar a ascensão das idéias autoritárias no campo educacional após a promulgação da referida Constituição. O contato, em particular, com números da Revista Cultura Política desviou nossa atenção para o ideário educacional do governo getulista e suas idéias-força. Tem-se, portanto, por objetivo, visualizar as idéias-força do campo educacional proclamadas pelo Estado no período de 1937-1946. Foram destacados como eixos: concepção dominante de educação; relações vida/estado; competência de educar; o processo da educação; papel da escola; métodos pedagógicos; problemas e soluções educacionais; a posição da ABE no novo contexto. Foram priorizadas como fontes todos os números da Revista Cultura Política, publicação do DIP (Departamento de Investigação e Propaganda do governo Vargas), Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (MEC/INEP), discursos presidenciais e ministeriais referentes à questão educacional, além da legislação considerada relevante na perspectiva da política e gestão do ensino, promulgada no período. Durante a pesquisa, a observação da adesão de intelectuais preocupados com a questão educacional ao novo governo, levou a uma análise dos anais de conferências promovidas pela ABE no período.

O Estado Autoritário Os anos 30 são marcados pela ascensão das idéias autoritárias no Brasil. A mudança política ocorrida em Outubro de 1937 significou a entrada e consolidação dessas idéias em todas os setores da vida nacional. A configuração ideológica do Estado Novo manifesta-se enquanto uma interpretação da realidade econômica, política e social, interna e externa da época de forma bem delineada nos discursos presidenciais, ministeriais e na legislação educacional e em todos documentos analisados. Enquanto um 122


momento político autoritário as vozes dissonantes que conseguem se contrapor, em âmbito nacional e de forma pública à voz oficial são rigorosamente punidas. A ideologia estadonovista é erigida sobre três pilares: o anti-liberalismo, o anti-totalitarismo e o nacionalismo. Com este sustentáculo, são construídos conceitos como o de liberdade, autoridade, sociedade, homem e Estado. Na perspectiva de teóricos defensores do Estado Novo e vinculados às discussões de temas educacionais (AMARAL, 1938; CAMPOS, 1940) a democracia liberal se fundamenta na exacerbação da liberdade individual. Sem uma força que se coloque acima dessa dissonante organização social, chega-se ao caos onde nada sobrevive. No caso brasileiro, apontam estes autores que o Estado Liberal é uma terra de ninguém, ao alcance das oligarquias estaduais, que cresceram enquanto se desintegrava a unidade espiritual e política da nação. Está presente a crítica constante ao federalismo de fundo liberal o que encaminha os teóricos para a valorização do Estado centralizador e autoritário. Era preciso, portanto, um sistema político que, ligado à realidade brasileira, restabelecesse sua "unidade", encerrando a demagogia do sufrágio universal. A experiência internacional - Itália, Alemanha, Rússia – vivendo momentos de totalitarismo e por ser este um regime que não admite nenhuma forma de liberdade, onde tudo é dirigido pelo Estado, até o pensamento dos indivíduos que integram a coletividade, não se coloca como alternativa viável. Para Azevedo Amaral (1938), o Estado autoritário é o meio termo entre estes extremos. Nele, o indivíduo conserva na sua plenitude as prerrogativas da personalidade humana. Sua liberdade é definida em função da sua sintonia, enquanto indivíduo, com o ritmo da vontade coletiva e com os interesses nacionais. Em outras palavras, o indivíduo é livre e os limites dessa liberdade estão nos valores vigentes, na preponderância dos interesses do seu grupo profissional e nacionais, sobre os seus. Sua liberdade deve ser cerceada, na medida em que sua ação pode trazer efeitos desejáveis ou não à segurança do Estado e prosperidade da nação. Ela é proporcional à elevação do indivíduo. Mas, quem traça estes limites? É o Estado. Ele e a nação constituem um todo perfeito e indissolúvel. O Estado, como a expressão orgânica da nação está investido de autoridade absoluta para coordenar, ajustar e equilibrar as correntes de qualquer natureza que se justaponham no jogo do dinamismo social. (1938, p. 196) E isto é realizado através das finalidades que o Estado Novo estabeleceu no encaminhamento das questões nacionais. A ele cabe uma 123


função educativa em sentido amplo, orientando a formação intelectual e moral dos elementos da coletividade, e isto "não apenas na restrita acepção pedagógica da função educativa, mas sentido do plasmagem de uma consciência cívica, caracterizada pela identificação com a ideologia do regime" (AMARAL, 1938, p.272). Para tanto, torna-se imprescindível o papel das elites intelectuais. São elas que orientam o Estado. A elite intelectual torna-se no Estado Novo quase que um órgão associado ao poder público, um centro de elaboração do pensamento nacional. E sua função não se restringe a interpretar os ideais e sentimentos do povo; a ele cabe ainda "revelar ao próprio Estado as possibilidades de desenvolvimento incluídas como forças latentes, no estilo atual das instituições". (ibid., p. 275) Com tão nobres fins, as prerrogativas espirituais da elite não podem ser sujeitas a restrições. Assim, é o Estado, orientado pelas elites intelectuais, que traça os limites e rumos da nação. Como, porém, escolher os governantes? Como o exercício das funções estatais envolve dificuldades e exige aptidões, que não se encontram senão em pessoas raras, o Estado deve se preocupar em organizar processos de seleção para o governo, procurando investir de autoridade aqueles que tenham capacidade para arcar com os problemas da direção nacional. A ação política deve ter como colunas mestras, o binômio liberdade/autoridade. A autoridade, enquanto expressão dinâmica da vontade coletiva, das massas incultas, compelindo as forças individuais a se manterem dentro dos limites compatíveis com a segurança estrutural do sistema. A liberdade, enquanto "a energia contraditória que se manifesta na ação do indivíduo, resiste ao poder compreensivo da autoridade" (Ibid., p.277) Com esta constituição e orientação, o Estado, no plano econômico, substitui o empirismo pela planificação racionalizada. Intervém na economia com o objetivo de coordenar os interesses privados em um sistema equilibrado, antes de tudo, salvaguardando o bem público. O Estado não apenas coordena, mas, tem também um papel complementador das atividades econômicas; atua investindo na economia, corrigindo abusos, reajustando situações prejudiciais ao interesse coletivo. Isto não significa, como nos regimes totalitários, o cerceamento da iniciativa privada. Já se foi o tempo do "laissez faire". Para os ideólogos do novo regime o que se observa é a necessidade de se reinterpretar o sentido da liberdade na ordem econômica. Os limites da liberdade do setor privado estão nos interesses coletivos nacionais, nas diretrizes que são traçadas pelo Estado, conforme é observado na Constituição de 37. O parágrafo 1º do art. 143 da Constituição, por exemplo, restringe a brasileiros 124


natos a exploração das fontes de energia hidroelétrica. A Constituição veda aos estrangeiros a formação de empresas de utilidade pública que não possuam em maioria, dirigentes brasileiros (sobre as diversas medidas que expressam os limites do setor privado da economia e o "nacionalismo econômico", ver CAMPOS, Francisco Entrevista à imprensa, abril/1939, op. cit., p. 111-144. Ver também IANNI, 1979, p. 58-71). É interessante observar que muitas medidas adotadas pelo governo, de fundo nacionalista, são criticadas por Azevedo Amaral (Ibidem, p. 218ss). O trabalho é enaltecido como gerador de rique{as, fonue de bemestar do homem e da sociedade, dever social. Entretanto, se não organizado, abre um abismo na humanidade. Em termos de organização do trabalho, o corporativismo, proposto pela constituição de 37, complementa as orientações traçadas, ao possibilitar o que os teóricos os Estado Novo chamam de representação por grupos profissionais. Em linhas gerais, são estas as idéias - forças dos ideólogos do Estado Novo, que em muito se aproximam do pensamento Integralista sem, entretanto, o mesmo burilamento e sem exacerbar determinados temas como a brasilidade, a revolução espiritual e o nacionalismo (TRINDADE, 1980).

Vida e Educação Em termos abstratos, a educação é vista como um processo de transmissão cultural e, em alguns momentos, como de reconstrução desta cultura. Sua finalidade é adaptar o ser humano às exigências da sociedade, socializá-lo. Sobre o conceito de educação, assim se expressa Lourenço Filho: A educação se apresenta como processo regulador dos valores que devem subsistir e dos valores que devem mudar, segundo as novas condições impostas pela vida social. É assim, de uma parte, processo de continuidade cultural que, espontaneamente, tende à estratificação das formas e dos métodos de vida; de outra, processo de permanente reconstrução e reajustamento, diante das mudanças que se operam nas técnicas de produção da riqueza e dos bens da cultura, das novas condições de vida política. (LOURENÇO FILHO, 1944, p. 8)

Sobre os fins da ação educativa, Gustavo Campanema, na Exposição de Motivos da Lei Orgânica do Ensino Secundário, observa que "formar a personalidade, adaptar o ser humano, às exigências da sociedade, socializa-lo, constitui finalidade de toda espécie de educação" (NÖBREGA, 1952, p. 311). 125


À educação cabe preparar o educando para a vida, pois "educação é vida", no momento presente e não num futuro longínquo. Como mostra Neuza Feital: Educação é vida. A educação deixou de ser ensaio, treinamento, imitação, para ser a própria vida. Aos educadores de hoje cabe a responsabilidade de preparar os educandos para a vida cada vez mais ampla e mais feliz. (FEITAL, 1944, p. 142)

Ao referir-se ao projeto de reforma do Ensino Secundário, que compõe as intituladas Leis Orgânicas do Ensino, enfatiza o então Ministro de Estado, Gustavo Capanema, na Exposição de Motivos da referida lei, que estas inspiram-se "de um modo geral, na fecunda verdade pedagógica de que a educação deve ter vida a fim de que possa ser útil preparação para a vida". Dessa maneira, a questão da educação nacional deve ser proposta sempre tendo em vista os demais aspectos da vida coletiva, através dos quais são explicados seu destino, desenvolvimento e origem. Como a realidade presente está fundada na busca da "unidade moral, política e econômica da nação", este é o caminho que a educação deve trilhar, pois ela desempenha um papel fundamental na reorganização social. Em alguns momentos é claramente exposto o papel da educação na sedimentação do poder político (LOURENÇO FILHO, 1944; p. 221) A ela cabe, fundamentalmente, divulgar os ideais que integrem a nação, preparar as elites intelectuais que dirigirão a sociedade e formar para o trabalho. Para alguns autores, a educação aparece ligada à Segurança Nacional com o papel de consolidá-la, coibindo fatores desagregadores. Isto está claro ainda em Lourenço Filho: Em qualquer concepção educativa a realidade permanece; educar é buscar a segurança. A segurança no próprio indivíduo pelo equilíbrio de suas tendências, desejos e aspirações. A segurança no grupo primário a que se pertence; a segurança nos grupos maiores onde este grupo esteja inserto; a segurança, enfim, no organismo social mais amplo que os grupos referidas contenha(...). Pode-se dizer que as forças armadas e a corporação dos educadores, (...) hão de compor as falanges de um só e mesmo exército. (Apud PINHEIRO, 1941, p. 79)

Se a educação participa na consolidação do regime autoritário, não deve ser esquecido seu papel na formação das elites dirigentes. É o que mostra Rui de Aires Belo: A educação, sendo por natureza uma obra inspirada em ideais transcendentes, deve também visar objetivos mais largos do que os

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da vida social ambiente, para poder criar as elites morais e intelectuais, que deverão conduzir a sociedade, avantajando-se a ela, corrigindo-lhe os defeitos com seus exemplos e sua ação, levandolhe uma valiosa contribuição pessoal para seu desenvolvimento e progresso. (BELO, 1944, p. 164)

Embora estejam sempre presentes muitas concepções da escola nova, o ponto de partida para o processo educativo, diferentemente desta, é o interesse coletivo e não o do educando. Quem expressa estes interesses é o Estado, pois, sociedade e Estado se identificaram. Dessa maneira, a expressão "educação é vida" adquire uma conotação diferente daquela empregada pelos escolanovistas, pois, acaba por identificar vida e Estado.

A competência de educar Sobre a competência de educar, há consenso de que cabe ao Estado orientá-la, por este representar a vontade integradora da nação e também porque a vida moderna adquiriu complexidade tal que a família não tem mais condições de educar sozinha seus filhos. Dessa forma a, educação É obra do Estado, e, pela própria Constituição de 37, entende-se que ela deve ser obra eminentemente nacional em suas bases, em seus quadros, nas suas diretrizes. Nossa Constituição está fundada na compreensão da unidade moral, política e econômica da nação. Sociedade nacional e processo educativo aí aparecem integrados, como expressões de uma obra política comum. Supõe esta obra um plano orgânico a desenvolver-se sobre todo território nacional (LORENÇO FILHO, 1944;,p. 10)

Complete ao Estado traçar os rumos da educação nacional. Para Feital, "à proporção que a vida moderna restringe as oportunidades da família, a tarefa da escola e das outras instituições vai tomando vulto". (FEITAL, 1944, p. 142) É significativo o número de artigos da revista Cultura Política que, ao se referirem à importância da educação, deixam claro que resolvidos os problemas educacionais serão resolvidos os problemas nacionais. É, no entanto, diferente do "entusiasmo pela educação", caracterizado por Nagle (s/d, p. 97ss), quando este analisa as relações educação e sociedade na Primeira República e observa a crença do poder do processo de escolarização como alavanca na solução dos problemas brasileiros. Aqui é a educação orientada pelo Estado. Enquanto no período pós-primeira grande guerra, lutava-se por maior quantidade de escolas frente ao analfabetismo, aqui a luta é por uma melhor qualidade, entendida como reforço da unidade nacional, como 127


inculcação ideológica. (VENANCIO FILHO, 1941; p. 268; PEREGRINO JÚNIOR, 1944, p. 162) Uma segunda observação é que, em muitos momentos, as conjunturas nacional e internacional são entendidas como indicadores decisivos nas mudanças a serem realizadas na educação. Dessa maneira, a nova configuração político-social do país, e as providências tendentes a imprimir-lhe unidade política e econômica, haveriam de condicionar a obra geral da educação, quer a resultante de seu processo espontâneo, quer a das instituições deliberadamente postas a seu serviço. Por mil e uma formas, a vida do país tem se tornado mais "nacional", isto é, mais integrada, e tanto a educação começa a exprimir este novo estado de coisas, em virtude do novo ambiente criado, quanto o reforça, pela atuação das instituições de ensino e de educação extra-escolar. (BACKEUSER, 1941, p. 144)

No entendimento de Raimundo Pinheiro, a escola se vê tem só a função de preparar o indivíduo; mas de preparar o indivíduo para a sociedade criada pelos imperativos da hora que passa. (1941, p. 79)

O processo da educação A educação deve se processar de maneira integral e não apenas como preparação instrutiva. Considerando que sua finalidade é consolidar a unidade moral e espiritual do país, é fundamental que no processo de preparação das novas gerações estejam incluídos o respeito à pátria, seus símbolos e tradições, o conhecimento de nossas riquezas e potencialidades. Nesta direção, aponta Feital: A educação deve se processar no sentido da cuidadosa preparação do indivíduo para tornar a pátria mais feliz, fazendo-a mais disciplinada e mais forte. Assim, entre nós, esta educação especializada - despertando na alma do brasileiro o senso da história, o amor às tradições, o culto dos grandes nomes nacionais, a cooperação de cada qual na vida coletiva do país - em todos incutirá clara noção das possibilidades espirituais e materiais do Brasil, e os meios de aumentá-las no interesse da amplidão dos seus destinos. (FEITAL, 1944, p. 143)

Por isto, Jerzy Zbrozek acrescenta que: Não basta ensinar o amor à pátria se ao mesmo tempo o espírito da juventude não foi impregnado das razões inquebrantáveis sobre as quais se baseia este amor e das quais ele é a expressão mais pura; mais generosa mais desinteressada. Penso que cortadas estas amarras a educação cívica é um engano. (1943, p. 142)

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A educação, no entanto, não se processa integralmente se limitada ao intelecto e não se dá a importância necessária à educação física. Peregrino Júnior sintetiza o pensamento de diversos autores, neste aspecto, ao notar que: a educação física é indispensável à estruturação não só corporal, mas espiritual e moral dos povos modernos que desejam sobreviver aos conflitos, aos tumultos e sofrimentos desta hora dramática que o mundo está vivendo (...) só se pode melhorar es condiÿões do homem brasileiro cuidando, ao mesmo tempo da sua cultura e da sua saúde; de um lado, aperfeiçoando os valores criadores das elites, de outro apurando as aptidões eugênicas das massas. (1944, p. 144)

A importância da educação física pode, assim, ser justificada dentro do contexto das exigências de defesa da nação existentes no momento, e, propiciando condições para o melhoramento da raça. Neste processo é sempre lembrado o papel do professor, sua formação, pois, é ele um elo fundamental entre os valores morais e intelectuais, e as novas gerações, que não os tem fixado. Mostra Fernando de Azevedo que: O papel do professor - ao mesmo tempo um educador - deverá ser não somente um despertador de vocações e um organizador de cultura, mas um formador de caracteres e um criador de valores morais e espirituais, por cuja palavra, exemplo e atitudes, se vai traçando antecipadamente o leito onde se escoarão as aspirações e o destino das gerações saídas de suas mãos, daí que sua formação educativa tem que passar ao primeiro plano das cogitações de uma política de educação nacional. (Apud VENANCIO FILHO, 1941, p. 405)

E não se pode esquecer da formação para o trabalho, traduzida na Constituição pelo ensino profissional e pré-vocacional, destinado às classes menos favorecidas. Sobre ela, Lourenço Filho observa: O plano em que se compendiem as bases, os quadros e as diretrizes da educação nacional deverá ser um estatuto da educação para o trabalho, dando expressão concreta à letra a ao espírito mesmo da Constituição. (1944, p. 27)

O papel da escola A escola deve ser organizada nos seus cursos e caminhos segundo os imperativos da sociedade, veiculando os valores e ideais que consolidem a ordem estabelecida e defendam os interesses nacionais, para que o Brasil possa, dessa maneira, cumprir seu papel entre os povos. 129


Pedro Calheiras Bonfim expressa o pensamento de vários autores ao se referir aos objetivos da escola: O objetivo da escola atual é de integrar, no sentido orgânico e construtivo, a nacionalidade, não se limitando ao simples conhecimento de conceitos e nações, mas abrangendo a formação de novos cidadãos de acordo com os solidários interesses nacionais. O ensino é, assim, um instrumento de ação para garantir a continuidade da pátria e os conceitos cívicos e morais que nela se incorporam. (1943, p. 96)

Deodato de Morais bem caracteriza como os objetivos mais gerais podem ser atingidos pela organização escolar, ao ressaltar que o conteúdo do ensino escolar deve se pautar pelo: - Culto à saúde - através da educação física e sanitária; - Culto ao trabalho - ao orientar para o trabalho; - Culto à economia - ensinando a poupar e saber gastar, é preciso que as escolas não só ensinem teoricamente às novas gerações "a técnica do bem gastar", mas que concorram para que os discípulos das várias classes sociais e de ambos os sexos tenham suas cadernetas econômicas e cuidem consciente e carinhosamente de aumentar os seus pequenos depósitos; - Culto da moral - ensinando a aceitação dos deveres impostos pelo Estado Autoritário, pois os indivíduos não têm direitos, têm deveres. Os direitos pertencem à coletividade. É o Estado que se sobrepondo à luta de interesses, garante os direitos da coletividade e faz cumprir os deveres para com ele. (1941, p. 35)

Lourenço Filho acrescenta que a organização escolar não pode ignorar o desenvolvimento econômico mas deve seguir, nas suas opções de cursos, a diferenciação que vai ocorrendo na organização do trabalho, "para que se possa produzir em larga escala os quadros técnicos médios para o comércio, indústria e agricultura". (1944, p. 18) Quanto ao papel dos diferentes níveis de ensino, ele fica assim definido: - ensino primário: obrigatório e gratuito, é onde devem ser dados os elementos essenciais da educação patriótica e a ele cabe, do ponto de vista social, homogeneizar os indivíduos fornecendo os instrumentos mínimos da cultura; - ensino pré-vocacional e profissional: é o primeiro dever do Estado em matéria de educação e a ela cabe diferenciar os indivíduos, segundo aptidões e tendências, orientando para o trabalho; - ensino secundário e universitário: destinam-se à preparação das individualidades condutoras, das elites que dirigirão o país nos seus vários departamentos, através da formação de uma 130


sólida cultura geral e específica (nas universidades) e do ensino dos conceitos cívicos e morais. Sobre o ensino primário, pré-vocacional e profissional Lourenço Filho mostra que: Ambos correspondem às duas grandes funções da educação, do ponto de vista social, que são as de homogeneizar na base dos instrumentos mínimos da cultura; diferenciar segundo as aptidões e tendências para a atividade produtiva, ou seja, para o trabalho. Desta forma pretende-se atender ao ponto de vista do grupo e do indivíduo. (Ibidem, p. 18)

Sobre o ensino secundário Capanema, na Exposição de Motivos das Leis Orgânicas, observa que: O ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre os povos. Ele deve ser, por isso, um ensino patriótico por excelência. (NÖBREGA, 1952, p. 312)

Quanto ao papel da universidade, Melo Cansado observa que: Além de formar as elites que dirigirão o país nos seus vários setores de atividades material e mental, ela conformará a psicologia da nossa gente, plasmando uma nova alma compreensiva e criteriosa, dentro da alma eternamente vibrátil e boa do nosso povo. A universidade estruturará, então, personalidades integrais, pondo à disposição do homem o mais sensível e complexo dos instrumentos: a inteligência. (1945, p. 78)

É sempre lembrado que o professor dos diferentes níveis é o responsável pela construção do "Espírito Nacional" ao fazer, de alto a baixo, o nível cultural das sociedades, nível este que influi nos destinos mundiais. Assim, O catedrático que, dentro das universidades e escolas técnicas superiores, prepara as elites dirigentes, o mestre escola que, no âmbito dos estabelecimentos primários, modela as massas, o professor secundário que, nas escolas de ensino geral ou especializado, dá retoques de aprimoramento à educação do primeiro grau e encaminha a transição para o terceiro nível, todos, enfim, que exercem o magistério, assumem, por isto mesmo, responsabilidades grandes no modo pelo qual cada nação vem a se formar. (BACKEUSER, 1944, p. 150)

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Os métodos pedagógicos As referências aos métodos pedagógicos começam a aparecer nas publicações oficiais, de forma significativa, a partir de 1943, quando da promulgação das Leis Orgânicas de Ensino. Está presente a crítica à educação tradicional, aos passos formais de Herbart na apreensão do conteúdo de ensino (exposição, comparação, sistematização ou generalização e aplicação do conhecimento). Na perspectiva da educação tradicional, métodos e matérias acabam por se resumir na transmissão do "acervo da experiência acumulada, trabalhando pela inteligência adulta, sistematizado por ela", o que significa atender aos ensinos em detrimento da aprendizagem. (CAVALCANTI, 1944, p. 141). O método a ser utilizado não deve considerar apenas a especificidade dos conhecimentos, nem a ordenação em tópicos segundo a lógica do adulto. Deve priorizar a capacidade do educando, o seu grau de amadurecimento, a sua experiência. É aconselhada a divisão da matéria de ensino em unidades didáticas "bastante amplas para serem significativas e bastante concentradas para serem apanhadas cada uma como um todo". (Ibidem, p. 192) Somente assim são considerados os princípios lógicos e psicológicos do conhecimento: análise e síntese. Para Virgínia C. de Lacerda, a matéria de ensino deve atender: As necessidades do conhecimento fornecendo aqueles indispensáveis na colimação do fim visado; à natureza da própria matéria, no estado atual do seu desenvolvimento; a ligação lógica e vital dos assuntos de modo que cada unidade, embora independentemente, leve naturalmente à seguinte e decorra naturalmente da anterior, permitindo a sistematização do conhecimento; a formação clara e precisa que indique o awsunto principal como núcleo de organização e difusão. (1943, p. 40)

A relação professor/aluno deve ser marcada pela grande devoção do primeiro em relação ao segundo. Mostra, por exemplo, Routh Costa Rodrigues: "o professor precisa, acima de tudo, compreender os alunos, viver para eles, amá-los desejoso de aperfeiçoar e desenvolver nestes valores morais e culturais". (1944). São, ainda, destacados valores como lealdade e cooperação entre os alunos e entre professores e alunos. É o que realça Helena Antipoff, ao mostrar que somente quando os mestres fazem do ensino um processo de descobertas, que quando os educandos, num trabalho conjunto, aprendem a separar fantasia e realidade, passando assim,

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a buscar a verdade das coisas, é que pode a escola colaborar na formação de uma sociedade democrática. (1944, p. 37-45) São feitas referências à organização dos parques infantis e sua importãncia, sendo as sugestões para suas práticas pautadas pelos princípios da escola nova, tais como: contato com a natureza, estímulo à observação e atividade infantil, ordenação da rotina escolar dentro das capacidades interesses das crianças. (Revista Cultura Política, v. 4, n. 36, Jan. 1944) A leitura dos trabalhos referentes a métodos de ensino deixa entrever a predominância dos ideais da escola nova, não sendo observado neste aspecto da pedagogia do Estado Novo o mesmo autoritarismo perceptível nos demais aspectos. Esta constatação evidencia uma distância entre a filosofia da educação aceita e os instrumentos de sua viabilização. É importante observar que, excetuando-se alguns autores, os métodos pedagógicos escolanovistas, da maneira como são expostos pelos autores no material pesquisado, se colocam apenas como "forma" para veicular qualquer conteúdo. São desconsideradas as raízes do pensamento escolanovistas, onde os métodos são fundamentais na construção de uma sociedade democrática. A convivência pacífica entre o direcionamento autoritário imprimido à educação escolar e os métodos apregoados pela escola nova de fundamentos liberais - pode ser justificada nas diferentes possibilidades de arranjos ideológicos das convicções liberais. Não deixa, entretanto, de ser contraditória. Depende da ênfase que se dê uma outra idéia dessa doutrina. Assim, a formação integral do educando é apregoada, só que a ênfase deve ser dada aos aspectos biológicos, psicológicos, didáticos, aí destacando-se a importância da educação moral e cívica e educação física, não sendo considerados os fins sociais da ação pedagógica, a educação enquanto instrumento de segregação social. Os métodos são apregoados como meios, com fim em si mesmos. É importante lembrar que a escola nova não se coloca, na sociedade burguesa como revolucionária; seus princípios, de fundo liberal, dissimulam os mecanismos de discriminação da própria educação, bem como da ordem econômica. Não afetam o estabelecido em suas estruturas. Em outras palavras, embora com aspectos contraditórios, esta convivência não é motivo de estranhamento.

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Problemas e soluções educacionais De 3 a 8 de novembro de 1941, realiza-se no Rio de Janeiro, sob a presidência de Gustavo Capanema, o I Congresso Nacional de Educação promovido pelo Estado. Conforme ficara definido na reorganização do MÊS (Ministério da Educação e Saúde), em 1937, caberia ao Estado promover conferências de Educação e Saúde de dois em dois anos. Esta, entretanto, é a primeira e única realizada sob o patrocínio do Estado durante o período. Contou com a participação de autoridades do MES, dos governos dos Estados e do Distrito Federal e órgãos governamentais. Neste congresso foram tratados assuntos ligados à organização do ensino no país, destacando-se as exposições sobre o ensino elementar, o ensino técnico-profissional e a organização da Juventude Brasileira. A Juventude Brasileira era uma entidade nacional destinada a congregar a mocidade para a educação física, moral e cívica. Fora criada pelo decreto 2072 de 8/3/40 e assemelhava-se às milícias juvenis "Balili e Avanguardisti" dos partidos fascistas italianos. A diferença é que no contexto italiano elas eram utilizadas como mobilizadoras das massas, com uma atuação política com muito maior amplitude que a Juventude Brasileira. Possuía uma Direção Nacional e já contava com auxílio do governo federal. Sua atuação e composição seriam, conforme estabelecido, limitadas às unidades escolares; os alunos das escolas primárias comporiam a Ala Menor da Juventude Brasileira e receberiam uma sólida formação e disciplina e civismo; os de ensino médio comporiam a Ala Maior e receberiam a formação cívica e pré-militar. Com a entrada do Brasil na guerra, contra os países do Eixo, estas milícias vão sendo desmobilizadas, o que não significa que a formação patriótica tenha deixado de ter importância nas escolas. Quanto à organização dos cursos elementar e técnicoprofissional, são lançadas no Congresso as bases das reformas que estruturarão estes níveis, a partir de 1942; as chamadas leis Orgânicas do Ensino. São apresentados os levantamentos do INEP sobre as precárias condições do ensino superior elementar, em termos quantitativos e qualitativos e a necessidade de intervenção do governo central através de apoio financeiro aos Estados, para sua difusão. Medidas neste sentido só viriam a ser concretizadas no final do Estado Novo, em 1945. Além da inclusão, em caráter de obrigatoriedade, da educação moral e cívica nos cursos médios, das exposições sobre a organização, difusão e elevação da qualidade do ensino Primário e Normal, são levantadas questões relativas à articulação do ensino de formação técnica 134


com o ensino secundário, as formas de viabilizar a ligação escola e indústria, a necessidade de formar técnicos médios atendendo ao mercado de trabalho. Todas as questões foram consensuais entre os participantes. A idéia central é a educação enquanto um instrumento de integração das massas nos quadros de ideologia estadonovista, o que significa formar a criança e o adolescente para o momento vivenciado pelo Brasil, dentro dos conceitos cívicos imprescindíveis à "unidade nacional", afastando a juventude de idéias que possam subverter a ordem e habilitando-a no trabalho, para construir as nossas riquezas. Na revista "Cultura Política" um tema bastante recorrente é a questão das escolas rurais, das escolas primárias, sua legislação e organização, o problema da substituição das escolas estrangeiras no sul por escolas nacionais de igual qualidade. Sobre as escolas rurais, Raimundo Pinheiro se refere à necessidade de se dar atenção à formação dos professores para estas escolas; propõe a escola ligada ao meio, ás necessidades ambientais. Para o autor, "a escola tradicional, em vez de preparar para a vida de hoje, freqüentemente tem ensinado coisas antiquadas a meramente convencionais, pretendendo que o futuro seja igual ao presente". (1941; p. 79) As referências ao ensino rural têm como tônica a necessidade de se demonstrar as excelências da vida no campo, e estão sempre aliadas a preocupações sanitaristas. Com relação aos demais níveis de ensino, é também ressaltada a urgência de articulação entre o ensino secundário e aqueles de formação técnica, o imperativo de se organizar cursos técnico-profissionais segundo as formas e tipos de produção, oferecendo, assim, os quadros médios requeridos pelo mercado de trabalho. Lourenço Filho, após levantar os problemas mencionados, mostra que é com o Estado Novo que a expressão "educação nacional" passa a ter sentido e força, pois, "por muito tempo a nação não teve a consciência comum da unidade de cultura que a devia integrar", assim, "a educação deve ser organizada e ter objetivos que atendem à realidade econômica do país". Daí a escola para o trabalho, como condição para a manutenção e fortalecimento da unidade política e moral da nação. Acrescenta o autor que os resultados da educação, quaisquer que sejam "as doutrinas ou teorias que a informem, terão de ser sempre avaliadas segundo dois aspectos: coesão social e respeito à personalidade humana" (1944). A "personalidade humana" era entendida como fim em si mesma.

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A ABE na nova realidade A Associação Brasileira de Educação foi fundada em 18/10/24, por iniciativa de Heitor Lira da Silva. Como ressalta Nagle, é ela "a primeira e mais ampla forma de institucionalizar a discussão dos problemas de escolarização em âmbito nacional" (NAGLE, s/d; p. 123) Foi constituída como sociedade civil, de adesões voluntárias, cuja filiação era feita na sede da identidade no Rio de Janeiro e nas seções regionais. A idéia originária do fundador era que a sede da entidade fosse móvel, reunindo-se anualmente em um estado da federação, ora no norte, ora no centro, ora no sul, facilitando assim o intercâmbio entre os educadores das diferentes regiões. O departamento criado no Distrito Federal acabou, inevitavelmente centralizando as atividades. Das conferências e atividades por ela promovidas, de sua criação até o início do Estado Novo, tem destaque, principalmente pela repercussão, a V Conferência Nacional de Educação, realizada em Niterói, entre dezembro e janeiro de 1932/1933. Seu tema geral foi: sugestões para o capítulo Educação e Cultura, integrante do ante-projeto da Constituição, e para um "Plano Nacional de Educação". Era o apogeu das discussões entre pioneiros e católicos sobre o ensino religioso. (CURY, 1978) Até a V Conferência a ABE congregava em seu interior três tendências: - os liberais-igualitaristas, para quem a escola pode contribuir para o desaparecimento das desigualdades sociais, constituindo um sistema social democrático, desde que seja acessível igualmente a todos os indivíduos, e trabalhe, em seu interior com ideais democráticos. - os liberais-estilistas, para quem à escola cabe formar as elites dirigentes, não pela diferenciação econômica mas pela capacidade dos indivíduos, segundo suas aptidões naturais, selecionando-se mais competentes. Para evitar conflitos de orientações e influências liberalizantes, é o Estado quem deve direcionar o ensino; - os católicos e integralistas, que tinham em comum a oposição ao liberalismo e as atribuições à escola de elemento de recomposição da Unidade Nacional, proveniente sua desagregação, muito mais de um "estado de espírito" do que fatores econômicos. (CURY, 1978; CUNHA, 1986). Na Constituição de 34, de breve duração, cada uma dessas tendências tem sua pequena vitória: os católicos com a inclusão do ensino 136


religioso nas escolas públicas; os liberais com a criação do Conselho Nacional de Educação, cujo objetivo é elaborar o Plano Nacional de Educação; dentre eles, tem primazia os igualitaristas, ao ser aprovado que a educação é direito de todos e dever do Estado (Art. 148), que a organização e manutenção dos sistemas educativos é competência dos Estados, territórios e Distrito Federal (Art. 151), o que significa a descentralização do ensino. À medida que o quadro político vai sendo agravado, vai perdendo força, no interior da ABE, o liberalismo – igualitarista (CUNHA, 1980). Com a Intentona Comunista e a decretação do Estado de Sítio, inicia-se uma perseguição aos liberais ligados ou não à Aliança Nacional Libertadora. Em fevereiro de 1936 é decretada a prisão de Anísio Teixeira. Realiza-se em junho/julho do mesmo ano, no Distrito Federal, o VII Congresso Nacional de Educação promovido pela ABE e sua análise situa o evento como um dos suportes das idéias educacionais estadonovistas. Muitos eventos da ABE serão patrocinados pelo INEP. A leitura de algumas conclusões deste evento, cujo tema central é a Educação Física, é expressiva: 1º - É um problema nacional de grande relevância promover a educação física da população escolar em todos os graus, e, especialmente, a feminina, que tem sido a mesma cuidada. 2º - A orientação médica, sempre que possível, deve ser dada por profissionais especializados, conhecedores dos princípios fundamentais da educação. 3º - O professor de educação física deve ser um educador, no sentido amplo da palavra, para poder apreciar sempre a criança no seu aspecto global.

Sço sugeridas as formas de estabemecer o campo de atuação do profissional da educação física nas escolas públicas e no âmbito dos municípios, e estados. Propõe-se, ainda, a criação de Conselhos e Departamentos Estaduais de Educação, definindo sua constituição e duração de mandatos. Sobre as suas funções destacam-se as consultivas e deliberativas e cabe a estes conselhos: a. Elaborar o plano estadual de educação; b. ter a iniciativa, na época própria das reformas ou alterações do plano; c. dar parecer sobre as normas propostas pelo departamento de educação, relativas à carreira do professorado, fixando as condições de investidura, acesso, remoção, disponibilidade e recondução; d. opinar sobre os processos disciplinares contra funcionários técnicos de ensino, nos casos de aplicação da pena máxima; e. apresentar sugestões sobre a proposta orçamentária dos serviços de educação, inclusive sobre a aplicação das subvenções, auxílios e

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quotas especiais dos fundos de educação. (Revista de Educação, 1935, p. 109)

Como pode ser observado, as preocupações vão sendo centradas em aspectos administrativos, bio-psicológicos e didáticos da Educação Física num momento altamente conturbado da vida política brasileira. Embora as conclusões sobre a criação de Conselhos e Departamentos Estaduais de Educação, ainda mostrem uma aspiração descentralizadora, considerando, entretanto, o próprio tema, o contexto político e a forma de abordagem, pode-se sugerir a predominância no interior da ABE de outras tendências que não a igualitarista. Após esta conferência, entre 1940 e 1941, a ABE realiza cursos de férias para o professorado, com o objetivo de atualizar, oferecer oportunidades de intercâmbio e trabalhar o sentimento nacional (VENANCIO FILHO, 1941, p. 274). O primeiro curso, em 1940, desenvolveu temas como: "A Educação Física na escola primária", o "Rádio e o Cinema na Educação", "Ciências Naturais", "História do Brasil". Em 1941, parte dos cursos são dedicados aos "problemas da educação cívica, moral e física", com palestras e excursões previamente organizadas. Os patrocinadores foram o INEP e o Instituto Nacional de Geografia e Estatística. Em 1942, a ABE, tendo como presidente F. Venâncio Filho, realiza em Goiânia, por ocasião da inauguração da nova capital, o VII Congresso de Educação, para a realização deste, contou com o apoio do IBGE e o Interventor do Estado, Pedro Ludovico Teixeira (Transcrito na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. X, n. 12, Jun/1945; p. 444446). O programa dos trabalhos constawa de um tema geral, sobre os objetivos e a organização do ensino primário fundamental, nas cidades, zonas rurais, zonas de imigração e zonas de alto sertão; e ainda de nove temas especiais envolvendo desde prédios escolares até as "missões culturais". O que se pode concluir pelos seus resultados, é que a educação é uma área técnica, e nela devem atuar os técnicos. Se atentarmos para as conclusões sobre os objetivos gerais da escola primária, observamos que estes não destoam da ideologia educacional do Estado, apresentada anteriormente. É ressaltada adaptação da escola ao meio; nos grandes centros o ensino técnico-profissional, no interior, o ensino agrícola. A ênfase nacionalista leva à preocupação de acabar com as escolas primárias de imigrantes, que ensinavam outras línguas e não a portuguesa. Em outubro de 1944, quando no plano interno vão crescendo a crítica ao getulismo e, externamente, as vitórias dos aliados fortalecem as frentes democráticas, Adalberto Menezes de Oliveira, então presidente da 138


ABE, assim coloca os novos caminhos a serem buscados pela entidade por ocasião do XX aniversário da entidade: É assim fora de dúvida, que a reconstrução do mundo, nas bases acima referidas, vai exigir a revisão dos sistemas educacionais de todos os países (...). Pensamos, pois, que a ABE, deverá, no novo período de suas atividades, e que será certamente um dos mais fecundos, delinear um programa referente às várias faces do problema da educação de após-guerra, tanto do ponto de vista nacional como internacional, e que apresentam um vasto campo para sugestões e estudos. (1944, p. 281ss)

Assim, nas condições políticas emergentes, no interior da ABE, os ideais liberais numa vertente igualitarista voltam à tona. Foi durante o IX Congresso Brasileiro de Educação que, de fato, estes ideais foram afirmados. Os trabalhos foram divididos por comissões: Filosofia da Educação; Política Educacional; Técnica Pedagógica e Administração Escolar; Problemas Internacionais de Educação. Foram apresentadas 60 teses das quais foram extraídas as conclusões aprovadas em plenário pelos 200 educadores e representantes de instituições culturais e de órgãos governamentais. O Congresso chegou a muitas conclusões. A Educação democrática é concebida como: Aquela que, fundada no principio da liberdade e no respeito à pessoa humana, assegura a expansão e a expressão da personalidade, proporcionando a todos igualdade de oportunidade, sem distinção de raças, classes ou crenças na base da justiça social e da fraternidade humana, indispensáveis a uma sociedade informada pelo espírito da cooperação e do consentimento. Por isso mesmo, a educação democrática exige, além de uma concepção democrática de vida, uma organização social em que a distribuição do poder econômico não estabeleça nem antagonismos nem privilégios.

Dentre os objetivos da educação democrática para os novos tempos pode-se destacar: Despertar a consciência da liberdade, o respeito pelas diferenças individuais, o sentimento da responsabilidade e a confiança do poder da inteligência para encaminhamento e solução dos problemas sociais;Desenvolver a fé comum nos princípios fundamentais relativos à vida nacional e ao regime democrático, buscando: a unidade e a independência da nação; liberdade de pensamento e de culto; igualdade dos cidadãos perante a lei; forma representativa que permita ao povo, por seus mandatários eleitos opinar sobre questões públicas e elaborar as leis; responsabilidade do governo perante o povo; garantias constitucionais para o exercício dos direitos civis e políticos e o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à assistência e à recreação. Evitar que influências dogmáticas deturpem o caráter democrático da escola e atentem contra a expressão da personalidade do educando.

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São aprovadas ainda, entre outras, teses que garantam a gratuidade da educação em todas as modalidades e em todos o graus, exigidas garantias econômicas aos professores pelo Estado, exigida a flexibilidade dos cursos de grau médio, como fator de educação democrática. Quanta à autonomia universitária, é aprovado que deve ser aplicada a todas as universidades brasileiras e que esta deve significar " autodireção da comunidade de todos os institutos, sem prejuízo da autonomia de cada um isoladamente". Nas conclusões referentes à formação democrática dos professores tem destaque a de nº 3. Nos programas dos Institutos de preparação do magistério, dever-seão excluir, qualquer que seja a matéria a tratar, aqueles itens que indiquem a exaltação dos governos de força ou que exaltem figuras de ditadores e conquistadores, dando-se, ao contrário, especial destaque, aos pontos que se relacionem com os vultos de profundo espírito humanitário e progressista, e com os direitos da pessoa humana, como ser moral.

No tema "Educação para a Cooperação Internacional e para a Fraternidade Humana", recomenda-se a todas as organizações nacionais e internacionais de educação que procurem, dentre outros tópicos: Evitar que se renovem os males incalculáveis causados pela militarização da adolescência na Itália e na Alemanha, durante o regime nazi-fascista, velando para que não se infiltre qualquer forma de espírito belicoso na vida e nas organizações escolares nem se altere a justa expressão da personalidade juvenil.

São, ainda, buscadas formas de participação do Brasil no U.N.O.E.C.R. (Organização das Nações Unidas para a Reconstrução Educacional e Cultural), criando inclusive, neste órgão um Departamento Pan-Americano de Organização Internacional de Educação, para discutir e elucidar os problemas continentais de educação. (Transcrito na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. X, n. 13, Agosto/1945, p. 259ss) Assim, a escola deve ser democrática, ou seja, inspirada nos ideais de fraternidade humana e justiça social, gratuita e acessível a todos. É o Estado que compete traçar os rumos educacionais, com base nas Ciências da Educação e "nos conselhos populares de educação". Permanece, quanto à educação rural, a postura assistencialista, "a escola ligada ao meio", como pode ser observado nos itens aprovados. Propõe-se a "auto-direção" para a universidade, o fim da exaltação do "Chefe Nacional" anteriormente cultivado na preparação dos professores. Propõe-se evitar os males da militarização da infância e adolescência e das organizações para militares no interior da escola. Reconhece-se que, numa sociedade marcada pelas 140


desigualdades econômicas, a educação tende a privilegiar aqueles que já são privilegiados. A escola deve contribuir na formação de atitudes democráticas, para que se possa construir uma sociedade democrática. Poder-se-ia dizer que este é o segundo Manifesto dos Educadores. Grande parte dos itens vão ser inseridos na Constituição de 1946. Caberia dizer que a história da ABE, no período do Estado Novo, está marcado pela predominância dos ideais liberais numa linha elitista, chegando em alguns momentos, como na VII e VIII Conferência a se identificar com a ideologia do regime, e, na medida em que vai sendo deteriorado o Estado Autoritário, ressurgem os ideais liberais numa linha igualitarista.

Considerações finais Pelo exposto, quanto ao ideário pedagógico proclamado pelo Estado no período, pode-se concluir que os intelectuais que o justificam, partem da constatação de que a educação está inserida em um contexto e é este quem determina os caminhos que ela deverá trilhar. Como a sociedade brasileira procura recuperar a unidade moral, política e econômica da nação, a educação escolar pode e deve contribuir neste sentido, sendo, para alguns autores, um instrumento decisivo para a consecução dos objetivos traçados, tanto no que se refere à organização dos seus diferentes ramos e níveis de ensino, na forma de cursos e disciplinas, quanto aos aspectos ligados ao conteúdos veiculados. No plano moral e espiritual, cabe a educação escolar divulgar as idéias e valores cívicos, como o respeito `a pátria, seus símbolos, às tradições e, tendo em vista a educação integral do indivíduo, à educação moral e espiritual e deve ter destaque à educação física. No plano político, a educação escolar contribui ao formar as elites dirigentes, escolhidas estas, menos por suas condições financeiras e mais pelos dons invulgares. Tem ela a finalidade de aprender o "pensar popular" e orientar os rumos da nação. Conforme a análise documental e dos periódicos, no plano econômico, a educação escolar contribui ao formar para o trabalho, atendendo a diferenciação social existente (uma escola para os pobres e um ensino acadêmico para os demais), pois, sem trabalho não há riqueza. O ensino é, assim, um instrumento garantidor da ordem que o Estado, enquaoto a expressão da vontade geral, capta e realiza. Estas são as idéias-forças ao nível do Estado. A ABE, que até então defendera posições de vanguarda frente aos problemas educacionais sobrevive no novo regime, com suas divergências internas, sem as 141


discussões que a caracterizam e, em muitos momentos, respaldando o novo ideário. Se até o Estado Novo era ela o centro das discussões sobre os problemas educacionais, o governo criou o INEP, a possibilidade das conferências de educação serem promovidas pelo Estado através deste e com o apoio de muitos educadores. As tarefas dadas à educação viabilizadas nas mudanças no sistema escolar através das Leis Orgânicas, a criação do INEP e o fato do Estado passar a ser o promotor de discussões educacionais, em termos mais abrangentes, sugerem um reordenamento do sistema escolar às mudanças da base econômica em processo.

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Lindamir Cardoso Vieira Oliveira é docente do PPG em Educação na linha de Políticas e Gestão Educacionais da Universidade Metodista de São Paulo. Endereço: R. Quinze de Setembro 41, apto. 51, Vila Mariza São Bernardo do Campo - SP- CEP 09619-070 E-mail: lindamiroliveira@uol.com.br

Recebido em: 02/12/2004 Aceito em: 24/04/2005

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A História da Educação no Timor-Leste e os seus distintos Processos de Alfabetização Nilce da Silva

Resumo Este artigo trata da história da educação do Timor-Leste com foco na temática da alfabetização e propõe reflexão que pretende envolver o mundo da lusofonia. Timor-Leste, país de colonização portuguesa até os anos 70 do século passado, tornou-se de modo violento colônia da Indonésia, e assim permaneceu, durante as três últimas décadas do século XX, até que se tornou país independente. Neste processo, distintas foram as tentativas de alfabetização implantadas neste país. Neste contexto, faremos algumas considerações. Palavras-chave: alfabetização; Timor-Leste; lusofonia.

Abstract This article is about the history of education in Timor-East with focus in the thematic of the literacy. We do some reflection that intends to involve the world of the lusophonie. TimorEast, country of Portuguese settling until years 70 of the passed century, colony of Indonesia became in violent way, e thus remained, during the three last decades of century XX, until independent country became. In this process, it had been implanted many literacy process in this country. In this context, we will make some considerations. Key-words: literacy; Timor-East; lusophonie.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 145-158, set. 2005


O Crocodilo andou, andou, andou. Exausto, parou, por fim, sob um céu de turquesa e - Oh! Prodígio - transformou-se em terra e terra para todo o sempre ficou. Terra que foi crescendo, terra que foi se alongando e alteando sobre o mar imenso, sem perder por completo, a configuração do crocodilo. O rapaz foi seu primeiro habitante e passou a chamar-lhe Timor, isto é, Oriente. (Mito timorense: O Primeiro Habitante do Timor)

Situando o Timor-Leste: aspectos geográficos Um dos grandes estudiosos do Timor-Leste é Maurício Waldman, por isso, baseamo-nos em suas obras, citadas na bibliografia deste artigo, para fazer uma breve descrição acerca da localização geográfica do Timor. O Timor-Leste situa-se no Sudeste da Ásia, bem perto da Oceania. É uma área de transição, ou seja, é um pouco Ásia e um pouco Oceania. O formato desta ilha, que compõe o arquipélago de Sonda, é como o contorno de um crocodilo, sendo que, justamente por isso, este animal é um dos símbolos do país. Ao Sul e Leste é banhado pelo Oceano Índico (Mar de Timor) e ao Norte, pelo Mar de Banda. Porém, não é toda a ilha que é Timor-Leste, uma parte dela ainda é jurisdição da Indonésia. Sendo assim, podemos perceber que Timor, país equatorial, possui dois vizinhos "importantes". Um, a própria Indonésia, com quem forçosamente faz fronteira; e outro, a Austrália, cujo ponto mais próximo está a 650 km. A ilha de Timor é de origem vulcânica – faz parte do conhecido Anel de Fogo – local de intensa atividade geomorfológica, pois nas suas proximidades há uma fossa oceânica ativa. O seu ponto mais alto é o Monte Ramelau ou Tatamailau, com 2.963 metros de altitude, situado nas proximidades da fronteira com a Indonésia e, de Leste a Oeste é cortado por uma extensa cadeia e montanhas da onde saem diversos rios caudalosos especialmente na época das chuvas, entre outubro e dezembro. Possui inúmeros vales férteis nesta cadeia. Ao longo do litoral da Ilha, há uma planície, assim como, banco de corais de extrema beleza.

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O Timor - Leste Hoje: indicadores sócio-econômicos A situação da República Democrática do Timor-Leste, cuja capital é Díli, hoje é uma das mais miseráveis do planeta. De acordo com fontes oficiais do Fundo Monetário Internacional, 20% da população timorense é obrigada a viver com menos de um dólar por dia, algo em torno de R$2,50 reais; 63%, com R$ 5,00 por dia. Ressalta-se que mais de 70% desta população vive da agricultura; 22%, de serviços e apenas, 5%, da indústria. Tem população absoluta de, em torno, 800.00 habitantes que ocupa seus 18.899 Km2. O seu atual presidente, José Alexandre "Xanana" Gusmão enfrenta esta dura realidade que, dentre outros dados, aponta para uma expectativa média de vida de apenas 57 anos e apresenta uma taxa de mortalidade infantil de 86 por 1.000 nascimentos; aumentando para 144 por 1.000 nascimentos quando a idade limite é de cinco anos. Mais de 50% da população timorense não tem água tratada o que faz com que algumas doenças sejam as principais causas de muitas mortes no país. Como se não bastassem estes dados, 30% das moradias estão danificadas pelos anos de luta deste país, sendo que, desta cifra, 80% ainda está totalmente destruída. Conta com, aproximadamente, 60% de pessoas em situação de pouco ou nenhum domínio da língua escrita, seja o Português e ou o Tétum. Porém, além destas duas línguas consideradas oficiais, tem-se que: Aproximadamente, 24%, 200.000 pessoas falam Tétum; em torno de, 180.000, Mambae; perto de 13%, 110.000 pessoas, Macassae; o Bunak é falado por, aproximadamente 7% da população; 5,4%, o Baequeno; 5,4%, Kemak; já o Fatalucu é falado por 4,5% da população e ainda, tem-se o Isni que é a língua de 290 pessoas. Sendo assim, tratar da História da Alfabetização neste país, propósito deste artigo, além do pesar que sentimos pelo sofrimento da população decorrente de anos de colonialismos e dura resistência, aliado ainda à diversidade lingüística da população, é uma tarefa que nos parece muito promissora em termos do debate sobre a alfabetização nos países que constituem o "mundo da lusofonia".

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A história de Timor: pré-colonização aos dias de hoje De acordo com as pesquisas realizadas por Serrano e Waldman (1997), o Timor, na Antigüidade mantinha laços comerciais com diferentes fontes: indianas, árabes, malaias, entre outros povos. Apenas no século XVI, na época do Mercantilismo e das Grandes navegações, países europeus, sobretudo Portugal e Holanda, começam a se interessar pela posse deste território. Até o século XX, Timor foi considerada colônia de Portugal, sempre em combate com os holandeses e, somente em 1914, a linha fronteiriça com os Países Baixos foi fixada definitivamente, consagrando a divisão de Timor entre as duas potências européias. Mesmo sendo colônia de Portugal, as estratégias de dominação deste país europeu não alcançaram o interior do Timor: Nas preocupações da metrópole quando ao destino império colonial, o primeiro pensamento fixava-se em Angola, a mais importante colônia sob todos os aspectos, a ‘jóia da coroa do Império Português’ que abrigava uma população metropolitana e branca superior a 300.000 pessoas (CUNHA, 2001, p. 26).

Com a libertação de outras colônias portuguesa da África, no período da eclosão da Revolução dos Cravos em Portugal, 1975, o povo timorense preparou-se também para a sua libertação. Porém, tal fato não ocorreu no tempo e na maneira esperada. A Frente Revolucionária do Timor Leste Independente (FRETILIN) durou muito pouco tempo, pois logo após a proclamação da independência de Portugal por Timor, a Indonésia, com apoio dos EUA, anexa este país ao seu território. Mortes, repressão, rios de sangue tomaram conta do país, sob a liderança do General Suharto, sem qualquer amparo legal e à revelia do posicionamento da Organização das Nações Unidas (ONU) que considerava Timor como colônia de Portugal. Apenas em 2002, Timor-Leste alcança o estatuto, reconhecido mundialmente, de país independente. Vejamos em seguida, em que consiste a história da educação em Timor, em seus diferentes períodos, salientando as questões referentes às alfabetizações implantadas neste país.

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As alfabetizações em Timor: em português, em inglês, em tétum... Na medida em que Timor possui uma variedade geográfica exemplar (montanhas, vales férteis, planícies etc), nele existem diferentes ecossistemas e grupos populacionais distintos. Assim também, há uma grande diversidade de "culturais locais" que fazem da história da alfabetização deste país, processo extremamente complexo e diversificado, tendo em vista também, as diferentes dominações às quais foi submetido. Mesmo os mauberes, dos quais falamos acima, já que descendentes de diferentes populações e instalados há milênios no país, diferenciam-se entre si. Portugal, conforme já adiantamos, não obteve por resultado a inserção no interior do país e assim, com relação à história da alfabetização neste país, temos, um sinuoso caminho a percorrer. A língua utilizada pelos timonerenses, sem a exclusão das outras línguas da ilha, tem sido o Tétum. Na medida em que esta língua goza de prestígio entre a população. Durante muito tempo, os portugueses colonialistas – missionários e administradores - utilizaram o Tétum para iniciar seus trabalhos de evangelização e de imposição do catolicismo. Com este contato próximo, forçado e pelo período de 470 anos, a cultura portuguesa, especialmente, a língua e a religião acabaram por fazer parte da cultura timorense. Desta maneira, ao contrário da vizinha Indonésia Muçulmana, Timor consolidou-se como um país católico. Na medida em que Timor era a colônia portuguesa mais afastada da Europa, os timorenses dirigiram seus relacionamentos comerciais com os países próximos na Ásia e Oceania. Sendo assim, tampouco Portugal investiu de modo intensivo em Timor, contrariamente do que fez em Angola, por exemplo, e assim, de uma maneira ou de outra, Portugal abriu as portas de entrada do Timor para a invasão pela Indonésia. Timor Leste sempre foi uma colônia bastarda, a mais remota, rebelde e negligenciada. Era a antecâmara do inferno. O período de 1945 e 1965 não registrou qualquer avanço digno de menção no desenvolvimento da colônia. Nem um quilômetro de estrada asfaltada, nem uma ponte sobre as inúmeras ribeiras que sulcam o território e o tornam intransitável na estação das chuvas. Díli viu sua primeira central elétrica inaugurada em meados dos anos sessenta... Apenas um liceu em todo o território e até 1970 meia dúzia de timorenses tinha conseguido chegar a uma Universidade na Mãe Pátria (Ramos-Horta, J. in CUNHA, 2001, p. 27).

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Acrescenta-se a esta situação de descaso que ainda pesava moralmente aos portugueses ter perdido Goa, Damão e Diu, em 1961, para as tropas indianas. Sendo assim, a questão timorense transformou-se para Portugal em um caminho para projetar-se honrosamente no âmbito internacional, especialmente e,sobretudo, quando a dois timorenses foi atribuído o Prêmio Nobel da Paz em 1992, D. Ximines Belo e RamosHorta. Assim, os condicionantes da atitude de Portugal diante da questão do Timor-Leste situam-se, antes, na esfera do orgulho nacional e não propriamente na dos interesses políticos e econômicos concretos em relação àquele território. Bem diversa é a perspectiva indonésia da questão (CUNHA, 2001, p. 61).

Antes de tratarmos do processo de alfabetização prório do período de dominação da Indonésia no Timor, vejamos um pouco mais a respeito do Tétum que conviveu (e ainda convive) com a Língua Portuguesa. Tétum ou Tetun é uma língua Austronésia e tem muitas palavras advindas tanto do Português como do Malaio. Tem como característica fundamental ser uma língua de contato, de comunicação, mesmo depois da colonização portuguesa e inclusive por ela, conforme já assinalamos anteriormente. Em Díli, capital e principal cidade do país, fala-se o Tétum com algumas pequenas variações e por isto ele ganha diferentes dominações: Tetun-Prasa, em justaposição com o Teten-Terik, dentre outras. De acordo com da Silva, a Língua Portuguesa teve o auge da sua difusão no Timor na metade do século XIX. Por isso, o tétum e os outros vernáculos ficaram impregnados de expressões, vocábulos e estruturas sintáticas portuguesas. Sendo assim, as pessoas que freqüentavam a escolas eram alfabetizadas em Língua Portuguesa, entretanto, naturalmente, falava-se me locais públicos do país o Tétum-Dili (Tétum de Praça) que se constitui em uma variante do Tétum mesclado à Língua Portuguesa. Com relação ao processo de alfabetização em Língua Portuguesa, a metrópole foi de uma debilidade total. Portugal construiu, em torno de, 40 escolas durantes séculos de dominação e em período tardio. Em 1953, apenas 8.000 estudantes freqüentavam as 39 escolas primárias existentes no território. Em 1974, aqueles números cresceram para 60 mil e 456 respectivamente. Embora o ensino secundário fosse quase inexistente e a taxa de analfabetismo permanecesse acima dos 90%, uma incipiente elite timorense floresceu nos principais centros urbanos. Seu destino era geralmente o funcionalismo público – cujos quadros eram integrados por 81%

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dos timorenses-, as forças armadas ou, em casos mais raros, a continuação dos estudos na metrópole (CUNHA, 2001, p. 117).

Vale à pena também destacar a seguinte passagem escrita por L. F. Thomaz: Em Timor-Leste, a difusão do ensino, como veículo de implantação da língua portuguesa, foi lenta e tardia: em 1970-71, freqüentavam a escola básica 28% das crianças em idade escolar; em 1972-73, aquela porcentagem ascendia a 51%, para atingir em 1973-74, os 77%...só em 1938 foi inaugurado o primeiro liceu. Segundo o último censo populacional realizado no período colonial português, em 1970, a taxa de analfabetismo situava-se, então, em 92%. Se aos alfabetizados que falam, lêem e escrevem o português, juntaram-se is analfabetos que bem ou mal o falam, chega-se a uma porcentagem de 15 a 20% da população total que era capaz, às vésperas da ocupação indonésia, de expressar-se no idioma de Camões. (CUNHA, 2001, p. 182)

Na década de 70, quando houve a tentativa de libertação do Timor Leste, o Tétum apenas recebeu reconhecimento e promoção oficial como Língua escrita com a criação do Instituto Nacional da Lingüística (INL) que estabeleceu uma ortografia padronizada para esta língua, apoiada pela FRETILIN. Deste modo, lançaram-se campanhas de alfabetização no Timor em Tétum, inclusive com o apoio da Igreja Católica. Esta "reforma", "adaptação", ou melhor, fusão entre L. Portuguesa e Tétum se constituiu em resistência à dominação da Indonésia. Este processo incluiu a simplificação de palavras portuguesas, a assimilação de palavras Tétum à grafia da L. Portuguesa. Um exemplo disto é o próprio nome do país: em Tétum "TimorLeste" é "Timor: o país do sol nascente". Por curiosidade, vejamos um pouco das palavras da Tétum: barak - muito bo'ot - grande ki'ik - pequeno mane - homem fetu - mulher foho - montanha tasi - mar malae - estrangeiro liafuan - palavra rai - país Agora, observemos palavras derivadas do Português que compõem o léxico Tétum: 151


aprende - aprender demais - mesmo em português (tambem 'barakliu') entaun - então eskola - escola igreja - mesmo em português istoria - história paun - pão povu - povo relijiaun - religião serveja - cerveja tenki - tem que Excetuando os poucos letrados dos meios urbanos de Timor, o português não chegou a ser língua de comunicação no referido país e esta função tem sido ocupada pelo Tétum. Cunha afirma que, em 200 /01, apenas 3% da população fala português. Além disto, há que se destacar que a Igreja Católica administrava estas poucas instituições educacionais. As primeiras delas foram fundadas por missionários no século XVIII e, em meados da década de 60, a Igreja controlava 60% da instrução primária. Na medida em que a Indonésia interessava-se sobremaneira pelo petróleo e gás natural do Timor, este país invade o Timor de modo truculento, não medindo a força da violência física e cultural e o número de mortos que causaria. Neste período, ano de 1975, dentre outras medidas, a Indonésia declara o Timor como a 27ª. Província da República Indonésia e proíbe o uso da Língua Portuguesa, declarando a língua Bahasa Indonésia como "nova" língua do Timor Leste, e assim, a partir de lei nacional de 25 de maio de 1974, o ensino da língua indonésia torna-se obrigatório. Obviamente, esta "nova" língua não era compreendida pelos timorenses e por isso, no ápice do domínio indonésio em Timor-Leste (1975-199), as escolas que ainda alfabetizavam e ensinavam em Língua Portuguesa, passaram a ensinar em Indonésio e a cultura e a história indonésia. Tal processo ocorreu sob o domínio de Suharto, que aplicava, além desta política ideológica por meio das escolas, da imprensa etc, por meio do exército aterrorizava a população. Cabe ressaltar que além de banir as línguas locais, a Língua Portuguesa e outras, mais precisamente o holandês, as autoridade de Jacarta elegeram o Inglês como língua a ser ensinada nas escolas como língua estrangeira, pois a Bahasa Indonésia não tinha condições de se comunicar com o mundo. De olhos postos na nova geração de timorenses, o governo central tem realizado vultosos investimentos na área da educação. Em

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discurso pronunciado em julho de 1996, por ocasião do aniversário da Província do Timor-Leste, o Ministro do Interior indonésio, para enfatizar os significativos progressos decorrentes da anexação, citou o número de escolas de todos os níveis introduzidos no território após a saída dos portugueses. O empenho indonésio na melhoria do setor educacional timonense constitui exemplo expressivo das intenções de Jacarta em relação ao futuro: ao inculcar valores javaneses na juventude timorense... Coerentemente, o ensino dos idiomas Tétum e Português... são desestimulados, em prol do baixa indonésio, a língua da unidade (CUNHA, 2001, p. 94 e 95).

Ao lermos na íntegra o discurso do referido ministro, temos que a Indonésia, neste período, criou 55 escolas para a educação infantil, 709 unidades para o Ensino Fundamental e, portanto, para a alfabetização propriamente dita, que comparadas com as 47 escolas feitas em todo o período da colonização portuguesa, mostram a força e o peso do investimento indonésio na escolarização. Apesar disto e, talvez por isto, o povo timorense não esmoreceu frente à violenta invasão indonésia, física e simbólica, e durante quase duas décadas lutou pela sua independência. Nesta luta, o Tétum destacou-se e ocupou o lugar de língua de unidade nacional. A aversão da maioria dos timorenses à idéia da integração explica-se por a Indonésia continuar historicamente o império holandês, a que Timor, sob a proteção portuguesa, resistira durante quatro séculos a deixar-se integrar... Estão de fato ausentes de Timor os elementos fundamentais da ossatura indonésia e lhe dão certa unidade através da diversidade de etnias que a compõem: o Islão, a língua indonésia e a elite malaio-javanesa que constitui os seus quadros (THOMAZ, L. F. in CUNHA, 2001, p. 135).

Ou seja, o povo timorense não estava optando na sua resistência apenas pela língua portuguesa ou não, estava também optando pela religião. Conforme o estudioso da questão, João Solano, ao longo de quatro séculos de colonização portuguesa, os missionários católicos converteram apenas 30% dos timorenses e, no período da invasão indonésia, a porcentagem subiu para 90%. É neste turbulento período que os trabalhos de Paulo Freire na área de alfabetização foram utilizados pela resistência timorense, liderada por Xanana Gusmão, e muitas pessoas alfabetizaram-se em Tétum à luz das idéias deste educador. Depois de ressaltados estes aspectos da história, da luta do povo timorense, em 2002, quando este conseguiu sua independência, torna-se um dos membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e neste grupo encontrou-se com parceiros solidários, que por conta das suas histórias de libertação, como ex-colônias de Portugal tinham muito em 153


comum com Timor, dentre tantos aspectos a negação frente a uma globalização da anglofonia. Da mesma maneira, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) – Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, apoiaram as lutas do povo maubere. Em 2001, foi instituído o Instituto nacional de Lingüística (INL) que teve e tem como missão tratar ortografia timorense a fim de que todas as línguas deste país possam ser escritas com as mesmas convenções. Esta tarefa, ainda que de passagem, sabemos que não é fácil, pois, para tanto, especialistas do INL precisam dominar as línguas do país, a Língua Portuguesa, o Tétum, a lingüística românica, dentre outros tantos conhecimentos. Feitos estudos por este Instituto, em 2002, ano da restauração da independência, já todas as marcas essenciais inerentes à ortografia nacional de Timor-Leste estavam no seu devido lugar. O grande desafio residia em coordenar estas convenções e eliminar as incoerências que ainda permaneciam e permanecem. Infelizmente existe um grande obstáculo para uma democrática implementação de tal método de alfabetização nas escolas primárias: a falta de um adequado programa de estudos em Tétum. Outro importante obstáculo é a poliglossia: na maioria dos distritos, quando principia a instrução primária, as crianças de tenra idade ainda não falam o Tétum. Para compensar tamanha lacuna seria necessário criar simples materiais pedagógicos na língua materna que, à exceção de algumas cartilhas e livros de contos em tétum, não existem. De acordo com da Silva, mesmo com o apoio do governo, vai demorar bastante até que os lingüistas, colaborando com os educadores, produzam um programa de estudos integral em Tétum, baseado em Língua Portuguesa, para não falar nas outras línguas, com o objetivo maior de fazer com que os professores dos anos iniciais da escolarização não ensinem mais em Indonésio. Para este famoso lingüista, o inglês, o indonésio poderiam ser ensinados nas escolas, em estudos secundários, no mesmo plano em que outras línguas estrangeiras podem ser estudadas: alemão, italiano, francês... O Brasil, pela segunda vez, já que a primeira conforme mencionamos, refere-se á contribuição de Paulo Freire, colabora com o Timor – Leste, sobretudo, no âmbito da lusofonia. Muitas universidades brasileiras e Organização NãoGovernamentais (ONGs) engajaram-se no processo de colaborar para que a Língua Portuguesa consolide-se no país.

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Também de setores não-governamentais da sociedade têm partido manifestações de apoio à causa maubere, incluindo a constituição de grupos solidários e outras iniciativas diversas. A Diretoria da Associação Brasileira de Imprensa propôs, num gesto simbólico, acolher o líder timorense Xanana Gusmão (que em agosto de 1996, recebera o título de Cidadão Honorário da Capital federal) como sócio honorário daquela influente instituição. O líder do Conselho Nacional de resistência Maubere, Jose Ramos-Horta, recebeu o título de Doutor Honoris Causa de uma importante universidade brasileira, a Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas. 1 Algumas ONGs brasileiras dedicam-se à questão timorense. Recentemente, partiu de entidade brasileira uma campanha, circulada por meio da internet, incitando o boicote a produtos oriundos da Indonésia (Barbosa Lima SOBRINHO, Revista Lusofonia in CUNHA, 2001, p. 218).

Atualmente, um dos programas brasileiros que tem se destacado neste sentido é o Programa de Qualificação de Docentes e Ensino da Língua Portuguesa no Timor-Leste, que tem contato com a participação de profissionais que colaborarão para a formação de professores de Língua Portuguesa, na elaboração de currículos, na gestão administrativa e, ainda, na área da pesquisa.

Considerações finais Destacaremos alguns aspectos que permanecem no Timor Independente e mostram como é longo ainda o caminho que este país tem para percorrer no sentido de construir sua unidade nacional, sobretudo no que diz respeito às questões da alfabetização. De acordo com a resolução da UNESCO de 1953, temos que: O melhor meio para ensinar é através da língua materna do aluno. Em países bilíngües, a alfabetização consiste em ensinar às crianças em primeiro lugar a ler e escrever a língua materna. Depois, nas classes superioras da escola primária, principia o estudo da segunda língua.

Discutimos: e, em Timor-Leste, como se aplica este princípio? Os prováveis alunos em fase de alfabetização neste país têm diferentes línguas maternas. A maior parte delas não tem transcrição escrita.

1

Grupo de Solidariedade com Timor-Leste (Curitiba); Clamor por Timor (São Paulo); Centro de Estudos e Solidariedade Amílcar Cabral (Rio de janeiro); Instituto Brasileiro de Amizade e Solidariedade aos Povos (Pernambuco), dentre outras.

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Sendo assim, na impossibilidade, ao menos momentânea de se alfabetizar em língua materna para muitos, o Tétum poderá assumir esta função. Porém, caso isto ocorra, a comunicação escrita entre os timorenses e o mundo não poderá ocorrer, tendo em vista a não utilização da língua em outros locais. Neste sentido, deparamo-nos com a seguinte situação, tanto para o futuro aluno como para o professor que atuará com ela em sala de aula: uma criança com língua materna "A", que será alfabetizada em Tétum e que deverá também ser alfabetizada em outra língua. Neste contexto, o professor precisará ter noções da língua materna "A", dominar o Tétum e ainda uma terceira Língua. E qual seria esta terceira Língua? Hoje, a população timorense apresenta uma clivagem: existe uma nova e uma velha geração. A primeira é composta por pessoas da "velha guarda" que conhecem a Língua Portuguesa; já, as pessoas mais jovens, que vivenciaram o rápido processo de colonização da Indonésia, aceitam o Tétum, porém fazem restrições com relação ao aprendizado do Português, pois muitos afirmam que o Inglês seria uma Língua de maior comunicabilidade entre Timor e o mundo. Não podemos nos esquecer, neste sentido, que ainda há os que defendam o uso do idioma Indonésio como oficial na medida em que por meio dele se faz a maior parte das relações comerciais do país na Oceania e na Ásia. Dito de outro modo há pessoas em Timor que internalizaram o modo de colonização salazarista e outras, o modelo cultural indonésio. Importantes estudiosos da questão agrupam as línguas utilizadas em Timor em duas categorias: a) Línguas que desde há muito fazem parte da cultura local das línguas que só há pouco tempo foram introduzidas: o Tétum, os outros catorze vernáculos e a variedade timorense do português. b) O Português, o Inglês e o Indonésio. Neste debate, há que se levar em consideração também a influência cultural da Língua Portuguesa, mais especificamente, a religião católica, que além de disseminada pela população timorense, continuou com suas práticas no domínio indonésio, em Tétum. Sendo assim, a população, em sua maioria, é católica, e ficaria incompatível desvincular, neste caso, Língua e Religião. Além disto, na medida em que o Português e o Tétum têm um estreitamento em nível lexical, da pronúncia e das estruturas gramaticais, construído ao longo dos anos, a alfabetização em Língua Portuguesa não massacraria as línguas locais, diferentemente se o Inglês tomasse este lugar. 156


Ou seja, a Língua Portuguesa, como língua de alfabetização para Timor Leste carrega com ele a outra vantagem de ser fácil para os timorenses na medida em que estes conhecem o Tétum-Dili, conforme assinalamos acima. O português não é um idioma demasiado difícil para os timorenses, pois estes já possuem um relativo conhecimento passivo do português devido ao fato de que já falam o Tétum-Díli. Talvez, consideramos, para a sobrevivência do Tétum, o seio da Língua Portuguesa é o mais indicado. Apesar deste raciocínio, que parece ser o mais adequado, não há como negar que os timorenses, especialmente os negociantes, precisarão do indonésio para continuar com seu trabalho juntos aos países vizinhos. E por isto, para muitos, a alfabetização na Língua Indonésia será necessária. O mesmo argumento pode ser usado com relação ao Inglês. Há o medo, por parte da geração de jovens timorenses, que ao aprenderem a Língua Portuguesa, percam lugar no mercado nacional e internacional, pois abandonarão o Inglês, língua dominante, praticamente, no mundo todo. Dito de outro modo, o aprender a ler e a escrever em Língua Portuguesa é considerado uma ameaça para estes jovens. É neste momento que o apoio do Brasil e dos demais países de língua oficial portuguesa faz-se necessário, desde que, aprendam o Tétum para manter a cultura original no país e colaborem com a reconstituição deste país. O governo timorense, neste sentido, precisa continuar com as medidas que já vem adotando no sentido da promoção do Tétum como Línguas Modernas, dentre elas, destacam: o estudo e aprovação do sistema ortográfico apropriando, publicando dicionários e gramáticas; o acolhimento dos falantes desta Língua; a criação de uma editora nacional para possibilitar a publicação de livros em Tétum e em outros vernáculos, obviamente que com valores de venda compatíveis com a população local. Além destas medidas, é importante que se crie também, como diversos lingüistas deste país têm destacado, fundações timorenses que incentivem a preservação e a difusão da cultura oral, da arte, do canto, da dança e de outras manifestações culturais. Finalmente, a mais forte das instituições que pode promover a solidificação da independência neste país, é a escola, sobretudo junto às novas gerações e especificamente no período da alfabetização.

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Referências CUNHA, João Solano C. da Cunha. A Questão do Timor-Leste: origens e evolução. Brasília: FUNAG/IRBr, 2001. WALDMAN, Maurício, 1993, Em Timor-Leste, A Luta Continua, artigo in Dossiê "Véspera", número 247, de 07/03/1993, AGEN - Agência Ecumênica de Notícias, São Paulo. WALDMAN, Maurício e SERRANO, Carlos, 1997, Brava Gente de Timor, Prefácio de Noam Chomsky, Editora Chama, São Paulo, SP. " Estudos Coloniais. Lisboa, 3 (1-2), pp. 39-60.Silva, Sebastião Aparício da (1887). Diccionario de Portuguêz-Tétum.Macau: Typographia do Seminário.Tilman, Armindo (1996). —Matadalan nosi tetun – Timór lian. Lisboa(edição privada). Declaração de José Ramos Horta à Folha de São Paulo, 21-10-1996. http://www.timorcrocodilovoador.com.br/geografia-mauricio_waldman.htm Sebastião Aparício da Silva, "Identidade, Língua e Política Educacional" in http://www.ocs.mq.edu.au/~leccles/cnrtport.html http://portal.mec.gov.br Dados FMI.

Nilce da Silva é professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão: Estudos sobre Populações (I)migrantes no Brasil e no Mundo: o papel da instituição escolar. SITE: www.projetoacolhendo.ubbi.com.br. Endereço eletrônico: nilce@usp.br

Recebido em: 10/03/2005 Aceito em: 20/04/2005

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Conflito e ambigüidade entre Jesuítas e Protestantes no Brasil-Colônia através da depredação dos prédios escolares da Companhia de Jesus Rachel Silveira Wrege

Resumo Resultado de uma pesquisa de Iniciação Científica (UNESP) e posteriormente de Mestrado (UNICAMP) abordo nesse artigo aspectos da educação escolar jesuítica no Brasil-Colônia a partir da leitura da Obra de Serafim Leite 'História da Companhia de Jesus no Brasil'. Através das pesquisas realizadas pôde-se observar que os ingleses os holandeses e os franceses exerceram uma interferência significativa sobre o funcionamento das instituições escolares dos jesuítas. Palavras-chaves: História da Educação; Educação Colonial; Jesuítas.

Abstract As a result of a “Scientific Initiation” (UNESP) and, afterly, a “Master Course” research, in this article I analyze aspects of Jesuitic school education in Brazil-Colony from Serafim Leite book titled “The Society of Jesus History in Brazil”. Through my researches, I could observe English, Dutch and French people exercised significant influence over Jesuitic school institutions performance. Key-words: Jesuits; Protestants; Brazil-colony.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 159-172, set. 2005


Ao se deparar com a bibliografia de História da Educação Brasileira referente à educação escolar jesuítica no Brasil-Colônia, pode-se perceber que a Obra do padre Serafim Leite "História da Companhia de Jesus no Brasil" tem sido utilizada constantemente enquanto fonte de consulta. Em conseqüência de um estudo mais profundo desta Obra é que no período compreendido de agosto de 1988 ao mesmo mês de 1989 me propus a realizar um trabalho de Iniciação Científica, que se configurou na monografia "Instituições Escolares Jesuíticas na Obra de Serafim Leite", sob a orientação da Profa. Dra. Maria Lúcia Spedo Hilsdorf, quando ainda cursava Pedagogia na Unesp de Araraquara/SP. Em resumo, este trabalho inicial consistiu no levantamento acerca dos colégios jesuíticos descritos na Obra de Serafim Leite "História da Companhia de Jesus no Brasil", nos seus livros "Suma Histórica da Companhia de Jesus no Brasil", "Páginas de História do Brasil", e, numa bibliografia de contexto histórico que apresentasse os vínculos dos colégios jesuíticos com a história do BrasilColônia. Ao elaborar a monografia de Iniciação Científica pude constatar que os estudos nela contidos a respeito da História da Educação jesuítica no Brasil-Colônia se apresentavam de maneira fragmentada, pois num trabalho inicial, não se teve o objetivo de se fazer um levantamento de assuntos a partir da leitura de toda a Obra de Serafim Leite, mas apenas foram lidos os capítulos que mencionavam, de modo claro, os colégios. A proposta de um estudo completo da "História da Companhia de Jesus no Brasil", tornou-se, então, imprescindível, a fim de que a área de História da Educação tivesse disponíveis informações acerca da educação escolar jesuítica a partir desta principal Obra do padre jesuíta Serafim Leite. A respectiva pesquisa foi elaborada no Mestrado da Universidade Estadual de Campinas, tendo como dissertação "A Educação Escolar Jesuítica no Brasil-Colônia: uma leitura da Obra de Serafim Leite 'História da Companhia de Jesus no Brasil'", sob a orientação do Prof. Dr. Dermeval Saviani. De março de 1991 a junho de 1993 foram lidos os sete primeiros tomos que compõem a descrição da atuação jesuítica na Colônia, sendo que no decorrer da extensão do trabalho do padre Serafim Leite procurei extrair todo o conteúdo relacionado à vida das escolas dos jesuítas. Por conseguinte, a pesquisa direcionou-se tanto para os aspectos da existência interna, bem como para os elementos externos à educação escolar, ou seja, na composição da dissertação de Mestrado tive o objetivo de abordar o relacionamento das escolas jesuíticas com a sociedade colonial; contudo, dei destaque para a exposição de cada colégio e de suas características pedagógicas. Tive o cuidado de me distanciar da interpretação de Serafim Leite, por ser apologética e excessivamente descritiva, considerando-se que o autor foi padre da própria 160


Ordem Jesuítica, sendo destinado a traçar o histórico da presença jesuítica no Brasil-Colônia. Sendo assim, ao longo da dissertação ficam evidenciadas as partes da "História da Companhia de Jesus no Brasil" em que Serafim leite é apologético, mas, sobretudo, há um aproveitamento completo da descrição que este historiador faz sobre os colégios, com o acréscimo de uma tentativa de interpretação analítica de minha parte. A característica principal da leitura feita da Obra de Serafim Leite consubstanciou-se no trabalho de percepção de um temário vasto, que na dissertação, aparece no interior do desenvolvimento dos capítulos. Fazem parte do corpo da dissertação temas ou assuntos como: o vínculo entre ensino e catequese no século XVI e os colégios de meninos; a diferenciação entre aldeamentos, casas de ensino e colégios; os jesuítas como comerciantes de açúcar: a mudança do recebimento da redízima dos funcionários públicos reais para a busca direta, por parte dos padres, do açúcar produzido nas fazendas da Colônia; o agravamento financeiro da Companhia de Jesus por ocasião da vinda de meninos órfãos de Lisboa; a dualidade no ensino provocada pela implementação dos colégios, em detrimento dos colégios de meninos; a existência de escravos negros nas fazendas de manutenção dos colégios e a pseudo-humanização de seus trabalhos, com a introdução de instrumental agrícola; as diversas proveniências das verbas para o sustento das atividades escolares; o caso específico do Brasil; a concessão da Companhia de Jesus de Roma para a criação do ensino elementar e, os ajustes feitos entre as peculiaridades educacionais da Colônia e o cumprimento do plano de estudos da Companhia de Jesus "Ratio Studiorum"; os conflitos entre o padrão de ensino oferecido pelos colégios jesuíticos europeus e a realidade educacional encontrada no Brasil; o rigor na avaliação do rendimento escolar, as conseqüentes reprovações e evasões escolares e, a decisão de tornar o ensino jesuítico mais adequado às características dos alunos dos colégios do Brasil; a confluência dos autores europeus, portugueses e da Colônia estudados nos cursos de Humanidades, Filosofia e Teologia; o rígido esquema disciplinar dos colégios e os vários tipos de castigo conforme a gradação das idades; os períodos de férias e de feriados como forma de tornar os alunos mais rendosos e concentrados nos estudos; os estímulos pedagógicos provocados pelas festas solenes de formatura; a escolha de reitores pelos próprios padres e pelo padre Geral; o nomadismo dos jesuítas ocasionado por discordâncias que tinham com os políticos e, também devido às condições economicamente desfavoráveis de permanência nos locais onde provisoriamente se estabeleciam. Vê-se que o elenco de assuntos tratados no desenvolvimento da dissertação de Mestrado é bastante amplo. No entanto, tal temário, de certa 161


forma, existe em maior ou menor profundidade nos textos de História da Educação, que tratam do período jesuítico no Brasil-Colônia. Talvez um assunto, de extrema relevância, ainda não tenha sido estudado, pois não foi ainda pensado, sendo que consiste nas incursões estrangeiras de holandeses, franceses e ingleses, que ao invadirem o território colonial, tomavam conta das dependências dos colégios jesuíticos, enquanto locais estratégicos de esconderijo e de abrigo contra as investidas portuguesas. Desta feita, o predomínio jesuítico no âmbito da educação escolar ficava sem expressão nos períodos em que as vilas se viam sem defesa suficiente para combater as tentativas de colonização de tais incursores de origem protestante. O Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente, sendo fundado em 1549 com a chegada dos padres jesuítas ao Brasil, recebeu a interferência de corsários ingleses. Esta instituição escolar assumiu a forma de Colégio de meninos para atender a filhos de colonos e a meninos índios, mediante o ensino das primeiras letras do português e da doutrina jesuítica, sendo que restava aos melhores alunos a aprendizagem da língua latina. A mudança desta escola para Piratininga em 1953 deveu-se à falta de condições financeiras dos padres e, logo em 1585 eles também saem do local por solicitação do capitão, que não desejava a presença deles, porque se posicionavam contra a escravidão indígena praticada pelos colonos. Mas o motivo principal dos padres terem fechado a escola de primeiras letras de Piratininga foi a destruição de toda a Vila de São Vicente por piratas ingleses que se aliaram aos índios. As invasões desses corsários provocaram o deslocamento dos padres para outros locais, onde criaram outras escolas. Sendo assim, uma primeira característica dos colégios em relação às invasões estrangeiras era a interrupção dos estudos, seguida por um certo nomadismo da parte dos jesuítas; tanto é que de Piratininga eles rumam para Santos, aproximadamente, em 1585 com a garantia de que teriam a proteção militar e a ajuda financeira dos moradores e do capitão local. Tão logo os jesuítas chegaram, instalaram uma casa de ensino nas dependências da câmara de vereadores para oferecerem aulas de primeiras letras e de doutrina para os moradores. Entretanto, o atendimento a esses moradores de Santos encerrou-se devido à invasão da escola também pelos ingleses, em 1591, sendo que os jesuítas se retiram de lá temporariamente. Apesar do roubo de uma verba, por parte dos corsários, que seria utilizada para a construção de um prédio escolar apropriado, os jesuítas resolvem permanecer em Santos, mesmo estando os estudos interrompidos. Nove anos depois, passado o perigo inglês, em 1600 estavam funcionando duas casas de ensino na capitania de são Vicente em Piratininga e em Santos.1 1

S.I. SERAFIM LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t.I,p.251-267.

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O atraso na criação do Colégio do Rio de Janeiro, ocorrida apenas em 1573, é explicado através da colonização portuguesa ter sido ameaçada pelas invasões francesas na capitania. Os jesuítas e os colonos portugueses chegam ao Rio de Janeiro em 1552 e, procuram fazer com que o local se tornasse habitável e que não fosse ameaçado pelos franceses. Supondo que em 1573 os conflitos com os franceses haviam se resolvido, os padres fundam uma escola e em 1581 o seu funcionamento permanece, só que os alunos dividem o tempo dos estudos com a organização de uma frente de combate aos franceses, que foi auxiliada pelas mulheres da Vila. A má impressão acerca desta frente comandada por um padre surtiu o efeito desejado, culminando na temerosidade dos franceses:2 ...os Jesuítas, e a própria mulher de Salvador Correia de Sá, Dna. Inez de Souza, organizaram a defesa, colocando-se a própria Dna. Inez à frente dum batalhão de mulheres: pondo chapéus militares na cabeça e empunhando arcos e flechas, encheram as fortalezas, dando a impressão de estarem guarnecidas. Os estudantes do Colégio juntaram-se num batalhão semelhante".3

As invasões estrangeiras de franceses no Rio de Janeiro foram responsáveis pela pendência na construção de um prédio escolar adequado às necessidades desta vila porque o padre Nóbrega, ao falecer em 1570, no período do conflito, não pôde dar continuidade ao processo de legalização do terreno do colégio que havia sido doado por Estácio de Sá. A falta de um padre que se empenhasse na solução deste problema, bem como o acúmulo de dívidas dos jesuítas, não saldadas para com os vendedores de materiais de construção do Rio de Janeiro contribuíram para que o colégio só fosse inaugurado em 1581, sendo que a sua existência foi possível em conseqüência do estabelecimento, pelo rei português, da doação da metade das multas locais da Vila para os jesuítas.4 A colonização tardia de Sergipe deveu-se à atuação francesa em termos de colonização no local, aliada aos índios. Além do mais, os padres do Colégio da Bahia indo para lá em 1575 enfrentam o agravante de não terem sido bem-vindos pelos próprios colonos portugueses escravizadores de índios e, por isso fundam uma casa de ensino e de catequese, reforçando a presença religiosa e colonizadora com a vinda de índios catequizados da Bahia. Essas providências ocasionaram a colonização portuguesa do Sergipe a partir de 1589, mas o ensino não passou de simples catequese e primeiras letras porque a Bahia e Pernambuco dispunham de colégios de 2

Op.cit., t.I,p. 362-365, 368-369, 375-378, 380-389, 394-396, t.II, p.457.

3

Op.cit., t.I, p.396.

4

Op.cit., t.I, 397-401, 410-413, 417-418.

163


fato e, julgaram os jesuítas que o local era precário para a sobrevivência de um colégio de maior porte. Certamente também, a presença anterior da ameaça dos franceses não encorajou a fundação de um ensino mais solidificado.5 O Colégio da Bahia, que foi fundado logo que os jesuítas chegam ao Brasil em 1549 e oferecia a educação elementar, o grau intermediário de Humanidades e os cursos superiores de Filosofia e Teologia, no século XVI não foi atingido pelas invasões estrangeiras. Esta tranqüilidade não existiu, no século XVII, no respectivo colégio, entre 1623 e 1654. Não bastando o problema dos padres com as revoltas de índios, eles tiveram de enfrentar as tentativas holandesas de tomada da Bahia, incumbindo-se com as atividades de ensino e, principalmente, trabalharam no encorajamento dos soldados portugueses e realizaram a difícil tarefa de reforçar os princípios católicos para a população portuguesa local, indo de encontro às idéias protestantes veiculadas pelos holandeses.6 Saíram com a mesma pressa os nossos Padres pelas ruas, casas e fortalezas, a animar e confessar os soldados e o mesmo fizeram muitos dos outros Religiosos. Prepararam-se com não menor cuidado as almas para a morte que os corpos para a guerra.7 Assim andaremos por êstes matos, acudindo do modo que pudermos a esta pobre gente para que se não meta com os hereges...8

A tomada completa pelos holandeses em 1624 obrigou os padres a fecharem o colégio por tempo indeterminado; brevemente, esses padres e os alunos internos foram se abrigar na casa de lazer e de devoção que este colégio possuía, que por se situar proximamente não serviu para a moradia e o ensino elementar enquanto os holandeses estiveram na Bahia. Sendo assim, alguns padres e alunos vão para Porto Seguro, a fim de trabalharem em duas aldeias indígenas com a doutrinação sobre os índios e a alfabetização em português para os índios menores, considerando-se que os alunos internos não prosseguiram, no momento os seus estudos, pelo contrário tiveram que auxiliar os padres na condução da catequese e do ensino. A transferência desses padres e alunos, assim como para os outros padres e alunos do mesmo colégio que se direcionaram para Sergipe num trabalho semelhante, pode ser considerada como característica principal das invasões holandesas referentes ao Colégio da Bahia. Esta instituição escolar 5

Op.cit., t.I, p.439-450

Op.cit., t.V, p. 70-71, 74-75, 96, 99-101, 243, 246, 10-11, 25-30, 34, 37, 57-59, 247-251, 199201, 255-258.

6

7

Op.cit., t.V, p.29

8

Op.cit., t.V, p. 42-43, 59, 92, 106-114, 128, 163-164.

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ainda assumiu grande parte do ônus financeiro do conflito, pois os índios que trabalhavam nas fazendas dos jesuítas atuaram como soldados e, durante o embate com os inimigos, foram sustentados com os recursos do colégio. Apesar desses auxílios para que a colonização portuguesa na Bahia se firmasse, os jesuítas não contaram com o respaldo político e militar do rei de Portugal porque no acirramento do conflito, alguns deles foram exilados para a Holanda, numa atitude de coação psicológica dos holandeses em relação à Coroa Portuguesa, para possíveis negociações. Resultou disso a permanência dos padres na Companhia de Jesus dos Países Baixos até 1626 e, retornaram ao colégio quando o problema entre holandeses e portugueses tinha se resolvido há um ano. Por conseguinte, a Bahia sendo reconquistada pelos portugueses em 1625, ficou notória a falta dos padres nas atividades docentes e administrativas do colégio, que voltou a funcionar.9 Os holandeses ao impedirem o funcionamento do colégio, invadiram as suas dependências e improvisaram quartos nas salas de aula, sendo que destruíram objetos tipicamente católicos, para demonstrarem que seriam capazes de substituí-los por ornamentos de origem protestante. Preponderando os portugueses sobre os holandeses, o colégio também não foi poupado com a conseqüente ocupação tanto de soldados portugueses como espanhóis, que serviam à união política da Espanha e de Portugal, ou seja, à Coroa Ibérica e, consideraram o prédio escolar um lugar seguro e interessante para se abrigarem contra os holandeses. Os poucos padres que se encontravam presentes tiveram, então, que se acomodar em poucos quartos, o que se faz pensar que o zelo religioso ficou prejudicado devido ao uso excessivamente indevido do colégio; em 1625 ele foi reconstruído e, na biblioteca, livros fundamentais para a preparação das aulas e de utilização constante dos alunos não pertenceram, pelo menos essas cópias, à nova biblioteca, pois os holandeses trataram de roubá-los. Acrescentam-se ao desfalque temporário de livros na biblioteca, a destruição da igreja que ficava perto do colégio e, que não foi de imediato, construída novamente, em função de dívidas não pagas pelos jesuítas ao rei de Portugal por causa dos gastos com o colégio. Este endividamento aproximou ainda mais o ensino da catequese, fazendo com que os padres realizassem as missas nas salas de aula.10 Os holandeses retornando à Bahia em 1638, mesmo estando sob o comando de Maurício de Nassau, tiveram dificuldades para penetrar na capitania, pois tanto os colonos portugueses como os jesuítas tinham adquirido formas de resistência. Os alunos internos atuaram na ministração 9

Op.cit., t.V, p. 30-35, 46-50, 55-56, 58-59, 80, 106, 240, 261.

10

Op.cit., t.V. p. 42-43, 59, 92, 106-114, 128, 163-164.

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da doutrina cristã junto aos soldados portugueses e no cuidado dos feridos, enquanto que os alunos externos, por não serem jesuítas, se tornaram soldados sem um prévio preparo militar. Esta educação para a guerra era feita na prática do conflito, sendo que os alunos deixavam os estudos nessas épocas de ameaça colonizadora externa. Como o colégio não fora destruído, tornou-se possível o tratamento dos soldados feridos no combate na enfermaria e na conhecida "botica" da instituição escolar. Também parte da alimentação dos soldados foi oferecida pelos jesuítas, através, principalmente, da carne que era abatida das fazendas não atingidas do colégio. Ainda, os jesuítas professores, vendo-se impossibilitados para exercerem a docência, construíram trincheiras e mais, ajudaram com dinheiro, a manter o conflito. Como a única fonte de alimentação acabou ficando a cargo dos padres, os holandeses ao perceberem esta exclusividade, destruíram toda a atividade produtiva da Companhia de Jesus na Bahia, a fim de que os soldados portugueses se enfraquecessem, ainda mais que a Bahia estava sem comunicação com o restante da Colônia. Vê-se, portanto, que o conflito de 1624 ocasionou apenas a destruição de um engenho do colégio, ao passo que em 1638 o prejuízo foi maior para os jesuítas, que além de se verem sem os seus meios de sobrevivência, tiveram de pagar os trabalhadores que haviam contratado, anteriormente, para coordenar e controlar os trabalhos desempenhados pelos escravos negros das fazendas do colégio. Dada esta situação, o Colégio do Rio de Janeiro assumiu este pagamento e, os padres Vieira e Filipe Franco, na qualidade de padres respeitados em Portugal, solicitaram ao rei uma ajuda financeira para que a Bahia, realmente, voltasse para o domínio português. Este pedido dos padres ao rei de Portugal demonstra que os holandeses haviam atingido o alvo acertado para enfraquecer os portugueses, entretanto, com a manutenção do conflito pelo portugueses, a Bahia é reconquistada no ano de 1647.11 Com a retirada dos holandeses, o colégio volta a oferecer o ensino, pois nesta invasão não ocorreu a destruição de seu prédio; a igreja que inexistia desde 1624 demorou para ser reconstruída, por causa do receio dos padres de que os holandeses voltassem à capitania e que destruíssem os ornamentos sagrados. Sendo assim, a construção do prédio da igreja deu-se em 1654, mediante a ajuda financeira de fazendeiros que moravam proximamente à Bahia, com a doação de dinheiro e, sobretudo, de parte da produção açucareira de suas propriedades, em troca da realização de missas rezadas em favor das almas desses proprietários. O título adquirido por esses nobres como benfeitores da igreja era útil na medida em que 11

Op.cit., t.V, p. 10-11, 34, 37, 25-30, 57059, 199-200, 60-66, 89, 201, 243, 246-251, 255-258.

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estimulava a doação de verbas para os jesuítas vindas de mais nobres. Os holandeses, vendo-se sem chances de retomar à capital do Brasil, ocupam o território de Angola, que também pertencia a Portugal e, enviam jesuítas de lá, em exílio, para o Colégio da Bahia, na esperança de conseguirem negociações, conforme o mesmo procedimento utilizado com os jesuítas da Bahia.12 Os padres do Colégio da Bahia, ao elaborarem um plano de criação de um seminário para índios, destinado à formação cristã e, não para o preparo sacerdotal, por conta das invasões holandesas este projeto não foi efetivado em seguida e, quando em 1728 esta instituição foi fundada, com o apoio financeiro do rei de Portugal, já havia se descaracterizado, ao constatar-se que objetivou ser residência e lugar de estudos para alunos internos, filhos de fazendeiros, que tinham a finalidade de virem a ser padres jesuítas. O rei português aproveitou o atraso na construção do seminário para não aprovar a licença para o funcionamento do projeto pedagógico inicial e original desta escola, forçando a sua mudança para se constituir em casa de educação para alunos internos nobres, decisão esta que provocou a separação dos futuros padres dos alunos externos do Colégio da Bahia, pois a maior parte do tempo passaram a conviver neste seminário, sendo que só as aulas as tinham em conjunto com os alunos que não tinham feito a opção pelo sacerdócio.13 Sergipe, como parte da região baiana, não possuiu qualquer forma de escolarização no século XVI; no século subseqüente, a partir de 1620, os jesuítas planejaram a fundação de uma casa de ensino que pudesse oferecer o curso de primeiras letras e a doutrina cristã para filhos de fazendeiros e, para os moradores de um modo geral, desde que não fossem índios. Nas regiões de pouco desenvolvimento econômico, como era o caso de Sergipe, as casas de ensino se assemelhavam às primeiras escolas jesuíticas do século XVI quanto ao aspecto curricular, mas se diferenciavam por darem acesso ao ensino apenas para os colonos de origem portuguesa, eliminando os índios dos estudos. A falta de desenvolvimento da atividade econômica e a permanência de uma simples casa de ensino elementar foram, em parte, ocasionadas pelo problema das invasões holandesas, que além do mais, indiretamente, impediram a construção imediata de uma casa de ensino:14 Enfim de 1631 diz-se que já se tinha começado a Residência fixa e estavam nela o P. Sebastião Vaz, Superior, Dom o Ir. Gaspar de 12

Op.cit., t.V, p. 107-117, 128, 163-164, 64-66.

13

Op.cit., t.V.p.87-89, 141-148, 151, 153-155, t.II, p. 300, 393-395, 401-402.

14

Op.cit., t.V, p.316-318.

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Almeida. Mas era Residência precária, não tanto por si-mesma, como pelas perturbações da invasão holandesa que se aproximava do Rio de São Francisco e não deixaria em paz a própria Capitania de Sergipe e o Rio Real. E assim só mais tarde se retomaria, além das Casas das Fazendas, a idéia de residência na Cidade. E com a nota de que os Sergipanos queriam não apenas Residência, mas Colégio. A idéia surgiu por volta de 1681, (...) A 4 de julho de 1684 a câmara da Cidade do Sergipe escreve a El-Rei, e pede-lhe auxílio, para concluir a matriz, e a renda de 2.000 cruzados para fundar um Colégio. Acordou-se no Conselho Ultramarino que não se poderia deferir, enquanto não constasse que El-Rei era obrigado a dotá-lo.15

Pernambuco situava-se perto de Sergipe, contudo não fazia parte da região da Bahia e representava o centro administrativo do nordeste. Enquanto lugar central, Olinda dispôs de uma casa de ensino desde a chegada dos jesuítas ao Brasil em 1549; a partir de 1568 esta casa foi transformada em colégio, através das aulas de primeiras letras, humanidades, Filosofia e Teologia. A política educacional de Portugal para com o Brasil se consolidou e foi demonstrada através dos professores do ensino de primeiras letras e de latim, que, de certa forma, ainda eram leigos, pois não dispunham do curso completo de Teologia Moral. Nem este ensino precário existiu entre 1635 e 1654, em razão das invasões holandesas, sendo que os cursos de Filosofia e de Teologia Moral existentes antes da tomada do local pelos incursores, voltaram a funcionar somente a partir de 1673. O extenso tempo sem a existência dos cursos fez com que a câmara de vereadores de Olinda solicitasse a reabertura do colégio à Companhia de Jesus de Roma, como se esta instituição nunca tivesse funcionado anteriormente. A descontinuidade no oferecimento do ensino por causa da interferência holandesa no local, provocou o deslocamento dos jesuítas das atividades docentes para um trabalho de pregação religiosa imbuída de uma ideologia patriótica com o objetivo de encorajar os soldados junto ao conflito com os holandeses e, pode-se observar que a dedicação dos padres, bem como o encerramento do colégio por tempo indeterminado não permitiram a formação, durante este conflito, de filhos de nobres que queriam se destinar para a carreira política, para cargos da administração ou a fim de se prepararem para o sacerdócio. A escassez de padres atuantes não se justificava apenas porque o curso de Teologia foi interrompido, pois, sobretudo, os holandeses ao invadirem Pernambuco, assim como a Bahia, exilaram os jesuítas para a Holanda, que tiveram a opção de ficar, no caso de alguns desses padres e, outros não voltaram porque se encontravam em

15

Op.cit., t.V. p. 316-317

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idade avançada; portanto, um número reduzido de jesuítas retornou a Pernambuco.16 Antônio Vieira e mais alguns padres que conseguiram permanecer em Olinda tiveram uma atuação significativa na reconquista desta parte da Colônia. Provém de Vieira a proposta feita ao rei de Portugal de se criar a "Companhia de Comércio das Índias Ocidentais", mediante a aliança feita com os judeus, para que o trono português tivesse condições financeiras de manter Pernambuco sob domínio. Em termos reais, esta Companhia veio a ser fundada pelo rei de Portugal e sustentou o conflito dos portugueses com os holandeses em Pernambuco, a partir do auxílio dos judeus. Fez parte da estratégia de reconquista a idéia, também do padre Vieira, de propor enganosamente a venda de Pernambuco para o governo da Holanda e, enquanto isso, os portugueses se fortaleceram contra os holandeses presentes. Este plano foi acertado porque em 1647 Portugal reconquista o que havia perdido e, em 1654 a Grã-Bretanha ao possuir o predomínio econômico sobre Portugal, reconhece os limites pernambucanos como sendo de domínio português.17 A participação do Colégio de Olinda no embate em relação aos holandeses se deu com a formação de uma companhia de estudantes em que os alunos se transformaram em soldados, conforme a vontade e a disponibilidade de cada um deles. Como os padres haviam realizado um trabalho de catequese com os índios de algumas aldeias que se localizavam perto de Olinda, os catequizados também atuaram como soldados, sendo auxiliados pelo aproveitamento dos escravos negros que trabalhavam nas fazendas dessa instituição escolar, restando aos padres a transmissão de doutrina e de incentivo para todos aqueles que tinham se disposto a recuperar Pernambuco para os domínios de Portugal. É interessante perceber que o conflito não se dava só no âmbito político porque os padres tinham de trabalhar com afinco para que a doutrina jesuítica fosse difundida, com o intuito de neutralizar o ideário religioso protestante dos holandeses. Os problemas religiosos dos jesuítas com o Protestantismo chegaram ao extremo do Colégio vir a ser demolido, tanto é que teve de ser construído novamente depois, em 1666, quando os holandeses haviam se retirado completamente do local.18 Recife situava-se proximamente de Olinda e, por isso, enfrentou igualmente o problema das incursões holandeses, que interferiram no Op.cit., t.V, p.343-344, 346-347, 378, 384, 392-394, 383, 385-388, 332-333, 405-408, 412413, 408-409, 414-415, 434-435, 432-433, 401. 16

17 Op.cit., t.V,p. 343-344, 346-347, 378, 384, 392-393, 383, 385-388, 406, 409, 393-394, 401, 405-407, 412-413, 408, 414-415 18

Op.cit., t.V, p. 348-351, 400, 403, 416-417, 371, 378, 392.

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andamento das atividades educacionais. No século XVI não houve iniciativas referentes à educação escolar em Recife porque os jesuítas consideravam suficiente existir o Colégio de Olinda na região. No início do século seguinte, Recife deixa de ser apenas entreposto comercial de Olinda e conquista atividade econômica própria através do desenvolvimento do comércio. Esta vida citadina estimulou e exigiu que os moradores de lá solicitassem aos jesuítas a abertura de uma casa de ensino, que existiu em 1619 a partir de empenho do Colégio de Olinda, ficando dependente jurídica e economicamente desta instituição de maior porte conforme a ordenação do padre Geral de Roma. A respectiva casa foi fechada logo em seguida porque o padre Provincial considerou suficiente o funcionamento de uma escola de franciscanos em Recife e o Colégio de Olinda, não podendo ser este padre contrariado dado o fato de ser o coordenador e supervisor do ensino na Colônia. Ainda que fosse do desejo do capitão local e dos moradores, a reabertura imediata da casa de ensino não foi viável em razão da presença holandesa, que na prática reforçou a intenção do padre Providencial ao impedir o funcionamento de um colégio. O ensino de primeiras letras deixou de ser oferecido, servindo a casa para moradia dos padres e principalmente, como centro de disseminação da doutrina jesuítica e de oposição sistemática aos princípios religiosos dos holandeses.19 A expulsão dos holandeses não retirou traços deixados por eles em Recife quanto à arquitetura de duas casas que a Companhia de Jesus passou a ser proprietária e, que foram utilizadas na obtenção de aluguel a moradores da Vila; ao observar-se que foram construídas na época do conflito pelos incursores. A verba retirada do aluguel dessas casas passou a ser convertida para a manutenção de uma casa de primeiras letras que foi criada em 1659, com a saída dos holandeses. Como o conflito resolveu-se somente em 1654 um colégio não foi instituído a princípio porque Recife ficou muitos anos sem sequer uma casa de ensino. Sendo assim, a descontinuidade na existência da educação escolar, ocorrida por causa das invasões holandesas, não permitiu uma passagem rápida da casa de ensino para colégio. Isto significa compreender que além do ensino ter sido inconstante, ao haver o seu retorno, os jesuítas o iniciaram pela educação elementar e nem planejaram, naquele momento, a criação dos cursos superiores da Filosofia e Teologia. Este grau de ensino só foi inaugurado em 1678 quando a casa de ensino foi modificada para colégio e, pode-se concluir que o ensino adquiriu estabilidade depois que os padres tiveram a garantia de que não haveria mais as incursões de holandeses.20 19

Op.cit., t.V., p. 460-462, 484-485.

20

Op.cit., t.V, p. 461-462, 484-485.

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As poucas informações que se têm a respeito dos jesuítas na Paraíba, como parte da região nordestina, é de que lá não existiu escola até 1683, por causa da interferência holandesa, sendo que se percebe que é com a saída dos holandeses, em 1654, que a Companhia de Jesus passou a realizar um trabalho efetivo de catequese com os índios; logo depois, o ensino elementar é oferecido, precariamente, em uma igreja periférica da cidade.21 O Rio de Janeiro, enquanto sede da região sul da Companhia de Jesus na Colônia, foi prejudicado com as invasões estrangeiras no século XVII. Ademais, assim como no século XVI, no século XVIII visualizou-se a presença de franceses na capitania do Rio de Janeiro e, o colégio dos jesuítas nesta cidade, dispondo dos cursos de primeira letras, Humanidades, Filosofia, Teologia Moral e Especulativa, não funcionou normalmente nos anos de 1648 e 1711 em conseqüência da invasão francesa. Deve-se ressaltar que o curso de Teologia Especulativa, que se traduzia nos últimos dois anos da Teologia, continuou sendo dado sob a forma de aulas particulares. O projeto de fazer com que este curso fosse regular e extensivo a um número maior de alunos se concretizou em 1725, num período em que os franceses já haviam sido expulsos. A saída deles foi possível porque ocorreram negociações, isto é, os vencidos exigiram do capitão a posse de bois e de açúcar retirados das fazendas dos jesuítas, por serem as únicas que dispunham de maior produtividade.22 Apesar dos cursos terem funcionado de forma descontínua no colégio, o prédio escolar não foi destruído pelos franceses, o que possibilitou o prosseguimento das aulas assim que o conflito foi resolvido. A proteção do prédio escolar, feita pelos jesuítas que trabalhavam no colégio através da construção de trincheiras, se explica em função da experiência com as invasões holandesas que se deram concomitantemente às incursões em Pernambuco e na Bahia, em 1624. Quanto a essas invasões holandesas, os padres do Rio de Janeiro enviaram alimentos para os padres da Bahia, que estavam sem meios de sobrevivência. O conflito, não sendo solucionado em 1624, em 1640 e em 1648 volta a se dar e, os soldados portugueses além de se prepararem militarmente, foram submetidos à doutrina religiosa, enquanto forma de encorajamento.23 Os anos de conflito enfrentados pelos jesuítas do Colégio do Rio de Janeiro corresponderam ao mesmo período em que o Colégio de Vitória, situando-se na região, se viu ameaçado também pelos holandeses. Os padres 21

Op.cit., t.V, p.491-493, 496-497, 503.

22

Op.cit., t.VI, p. 3-6, 50-51, 53, 47-49, 52-53, 42-46.

23

Op.cit., t. VI, p.6, 13-14, 20, 95-96, 103-105, 29, 32-36, 40, 42-47, 49.

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deste colégio, que ensinavam as primeiras letras e o latim, deixaram as atividades de ensino porque precisaram estimular doutrinariamente os soldados portugueses e tiveram que organizar os índios das aldeias pertencentes ao colégio para o conflito. Somam-se a essas iniciativas o fato da instituição escolar ter sido ocupada pelos próprios soldados portugueses que recebiam assistência médica. O colégio também era considerado lugar seguro para a recuperação desses soldados e, transformou-se, então, em centro médico e em fonte de distribuição de alimentos, por serem os jesuítas os mantenedores financeiros da oposição a qualquer tentativa estrangeira de colonização.24 Ao longo desta exposição, pôde-se observar que os ingleses e, sobretudo, os holandeses e os franceses exerceram uma interferência significativa sobre o funcionamento das instituições escolares dos jesuítas. Esses incursores não só repudiaram os jesuítas, como destruíram muitos dos seus colégios e fizeram com que o ensino se desestruturasse, tornando-o descontínuo.

Referência SERAFIM LEITE, S.I. História da Companhia de Jesus no Brasil.Lisboa e Rio de Janeiro: Liv. Portugália e Civ. Brasileira, t. I-VI, 1938-1949.

Rachel Silveira Wrege é professora do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp de Presidente Prudente/SP.

Recebido em: 30/03/2005 Aceito em: 30/06/2005

24

Op.cit., t.VI, p. 133-135, 138-139.

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O Método Bacadafá: leitura, escrita e língua nacional em escolas públicas primárias da Corte imperial (1870-1880) Alessandra Frota Martinez de Schueler

Resumo O presente trabalho investiga o Método Bacadafá, método pedagógico para o ensino de leitura e escrita, proposto e utilizado por alguns professores das escolas públicas primárias na Corte imperial, entre os anos 1870 e 1880. A análise do surgimento de tal método de ensino permitenos perceber a dinâmica da produção de saberes e das disciplinas no interior das escolas primárias da cidade no final do século XIX. O domínio e a produção de saberes e de disciplinas escolares conferiam ao professor primário da Corte uma relativa autonomia em relação aos regulamentos e às normas oficiais da Inspetoria de instrução pública da cidade. Saberes, métodos e disciplinas escolares foram, então, permanentemente apropriados, (re)elaborados e (re)inventados nas e pelas experiências e práticas pedagógicas dos professores e seus alunos. Palavras-chave: Métodos de ensino; saberes e práticas docentes; história da educação na Corte imperial.

Abstract This research aims to present a pedagogical method, the Bacadafa Method, for the teaching of reading and writing, proposed and used by a number of teachers in primary schools of the Imperial Court, between the years of 1870 and 1880. The analysis of the emergence of such a teaching method allows us to realize the dynamics of the development of knowledge and disciplines within the city’s primary schools at the end of the 19th century. The command and development of knowledge as well as school disciplines conferred on the court’s primary school teachers a relative autonomy in relation to the regulations and official norms of the City’s Public Schooling Inspectorate. Knowledge, methods and school disciplines were, thus, permanently acquired, (re)elaborated and (re)invented in and by the experiences and pedagogical practices of the teachers and their pupils. Key-words: Method and school disciplines; knowledge and pedagogical practices; educational history on imperial Court.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 173-189, set. 2005


Na década de 1870 surgiram algumas propostas pedagógicas e métodos de ensino das várias disciplinas escolares, muitos dos quais idealizados e aplicados pelos próprios professores públicos primários no decorrer de suas trajetórias e experiências docentes na cidade do Rio de Janeiro. Uma destas propostas educacionais, traduzidas em uma metodologia para o ensino da leitura e da escrita para as crianças das escolas primárias, "saltou" dos arquivos, especificamente dos Códices do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, e dos poucos manuscritos produzidos pelo seu autor, o professor Pinheiro de Aguiar, e também pelo seu principal usuário e divulgador, o professor Costa e Cunha. Sobre o autor do método de leitura Bacadafá – Pinheiro de Aguiar – pouco consegui descobrir. Soube apenas que ele nascera na província de Minas Gerais, era professor de desenho e piano, e exercia interinamente o cargo de professor público na terceira escola primária de meninos da Freguesia de Santana, local onde também dirigia uma escola particular. Já a respeito de Costa e Cunha, principal entusiasta e divulgador do método de ensino, foi possível apreender um pouco mais de sua trajetória profissional. O professor das escolas de meninos da freguesia rural da Ilha do Governador, e das urbanas Santana e Sacramento, Antonio Estevam da Costa e Cunha, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, e integrava uma família de professores públicos. Filho de um antigo mestre-escola da Corte, Antonio Severino da Costa, possuía dois irmãos menores como colegas de ofício, os adjuntos Eudóxia Brazilia da Costa e Jorge Roberto da Costa. Costa e Cunha aprendeu as primeiras letras na escola pública primária regida por seu pai, no centro da cidade do Rio (Sacramento), onde também iniciou a aprendizagem do magistério como professor adjunto à escola. Após o primário, fez cursos preparatórios com vistas a estudar Ciências Naturais, na Faculdade de Medicina. Formado em Farmácia por esta instituição continuou a se dedicar ao magistério público primário da Corte, tendo se destacado, na década de 1870, não apenas por sua atuação como co-redator da revista Instrução Pública, mas também por produzir livros e compêndios variados sobre instrução e métodos de ensino, entre outras publicações.1 1

História sagrada do Antigo e Novo Testamento. RJ, 1876; Novo Methodo Theorico e Pratico de Analyses Sintatica para uso do Imperial Colégio Pedro II e da Escola Normal da Corte. RJ, 1874; Nova Selecta dos Antigos Classicos: Frei Bernardes, Luiz De Souza, Rodrigues Lobo, Camões, seguida do programa para os exames de preparatórios, RJ, 1877; Primeiro livro ou expositor da língua materna, pelos professores Januário dos Santos Sabino e Antonio E. da Costa e Cunha, adaptado pelo governo para uso das escolas primárias da Corte, 2ª ed., 1883; Memória sobre as Escolas Normais. RJ, 1878; Grammatica elementar portuguesa, adaptada do ensino das escolas de instrução primária, quer dos menores, quer dos adultos, e bem assim dos

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A trajetória profissional de Costa e Cunha foi marcada pelo seu empenho em aplicar e divulgar o novo método de ensino e aprendizagem da leitura – o qual considerava "genuinamente nacional" – para os alunos das escolas públicas primárias da cidade, o Método Bacadafá, de autoria de Pinheiro de Aguiar, com quem, aliás, aprendera pessoalmente a tecnologia pedagógica, quando foi nomeado interinamente pelo governo para avaliar os resultados práticos da novidade na escola primária de seu colega, localizada na Rua General Pedra, 73, na Freguesia de Santana. Ao solicitar a permissão ao governo imperial para o uso do Bacadafá, o próprio Pinheiro de Aguiar explanou os objetivos, os materiais e os procedimentos necessários à aplicação de seu sistema de ensino de leitura – materiais que, em 1875, doaria à terceira escola pública de meninos de Santana, na ocasião de seu júbilo, juntamente com seus últimos vencimentos como professor público.2 Antes de explorar brevemente os passos metodológicos de sua técnica de ensino, cabe aqui registrar que este Ofício3 requerendo, em maio de 1871, autorização à Inspetoria de Instrução, foi um dos poucos documentos encontrados nos arquivos produzidos por Aguiar, a respeito de sua invenção pedagógica, pois, ao que tudo indica, daí em diante, a divulgação do método de leitura ficou sob a responsabilidade do professor Costa e Cunha.4 Segundo o autor do Bacadafá, a sua metodologia baseava-se na busca por uma reorganização total do ensino primário, no que dizia respeito às principais disciplinas escolares, e não apenas à leitura e à escrita, embora estas fossem enfatizadas como centrais, ponto de partida fundamental à aprendizagem escolar. Dessa forma, o seu sistema pedagógico viabilizava, simultaneamente, os processos de ensino e aprendizagem de três ramos ou disciplinas escolares: a escrita e a leitura (também chamados ramos literários), o desenho e a música (referidos como ramo artístico) e a aritmética (a contabilidade). Pinheiro de Aguiar afirmava que seu principal objetivo com o método era proporcionar a prática ligeira da leitura e da Colégios, Liceus, Escolas Normais e aulas preparatórias; Manual do Examinando de português. Paris, 1883; Viagem de um parisiense ao Brasil: estudo e crítica dos costumes, por Mad. Toussaint Simon. Tradução anotada, RJ, 1883. Saiu no Jornal do Commércio, 1883, nºs 73, 75, 80, 82, 83 e 84; Themas e raízes. These ao Concurso à Cadeira de Português do 2º ao 5º ano do Internato do Imperial Colégio Pedro II, 1883, 54 pp. 2

Arquivo Nacional. Fundo Educação. IE4 15. Ofício de Antonio Pinheiro de Aguiar ao Inspetor Geral, no qual abria mão dos vencimentos como regente da escola pública de Santana. Anexo - inventário dos móveis da escola de Santana, doados pelo professor. 11/04/1875.

3

Arquivo Nacional. Fundo Educação. IE 4. Ofício de Antonio Pinheiro de Aguiar ao Ministério do Império. 06/05/1871. 4

AGCRJ. Códice 10.4.8. Parecer de José Bento da Cunha Figueiredo sobre o Método Bacadafá, em resposta a Costa e Cunha. 30/12/1871.

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escrita pelos alunos, em um processo crescente de dificuldade do ensino, no qual se incluíam progressivamente a aprendizagem de sílabas e letras, a leitura vagarosa, a leitura corrente ou ligeira e a leitura expressiva ou analítica, além das regras escriturais de sintaxe, gramática, ortografia e fonética (entoação de voz em "leitura alta e baixa"). Como demonstrou Mortatti (Mortatti, 2000), a fonética, desde meados do século XIX, passou a auxiliar no estudo biológico da linguagem, focalizando os aspectos físicos e fisiológicos da produção humana da fala, para além dos processos estruturais e gramaticais da língua falada e escrita, e, também neste sentido foi aplicada aos métodos pedagógicos de ensino da leitura e da escrita. Não há dúvida de que o Bacadafá se apresentava como um método de leitura onde esta era definida como uma arte, que envolvia o processo de apreensão das idéias representadas pelas letras (vistas e ouvidas) e pelas palavras, a partir da síntese – soma dos valores das letras –, e que demandava ênfase na educação simultânea de ver e de ouvir. Neste aspecto, o método de Aguiar não se distanciava muito dos seculares métodos de soletração/silabação utilizados nas escolas primárias, mais conhecidos como sintéticos (MACIEL, 2002). Entretanto, na prática da leitura, o Bacadafá apresentava-se como uma metodologia intermediária entre os tradicionais métodos sintéticos, que incluíam tanto a denominada soletração do alfabeto, a começar pelas vogais, quanto à silabação: o b-a-bá, e os modernos métodos analíticos (AMÃNCIO, 2002). Nestes, predominavam a palavração e a análise de frases, isto é, a aprendizagem da leitura realizava-se por intermédio não apenas da representação gráfica e fonética das palavras, e de pequenas orações delas derivadas, mas, sobretudo, de sua decodificação semântica. Nos métodos analíticos, enfatizavam-se, portanto, os processos de cognição, interpretação e produção de sentidos no uso da língua e da linguagem. O Bacadafá se constituiria, então, no que Mortatti identificou como um típico método de ensino de leitura misto, posto que formulado a partir da (re)elaboração e da recomposição do sintético e do analítico (MORTATTI, 2000). Pelo sistema do método Bacadafá, as crianças aprendiam a ler e a escrever partindo do mais elementar ao mais complexo, do concreto ao abstrato, sobrepondo-se, sucessivamente, a aprendizagem gráfica, fonética e semântica de letras, sílabas, palavras e frases. Começavam então a entrar em contato com a visualização concreta das letras, cujas imagens se grafavam em ardósias ou em quadros desenhados (daí a importância do desenho como ramo artístico, uma habilidade a ser desenvolvida nas crianças), bem como com a vocalização e a soletração dos sons respectivos, cantarolada em conjunto pela classe, o que tornava a musicalidade um ingrediente 176


fundamental do processo de aprendizagem da leitura. Posteriormente, a partir das letras aprendidas, passava-se à formação de sílabas, palavras e frases, por meio de etapas e quadros sucessivos, nas quais se alternavam permanentemente a soletração, a silabação e a apreensão de sentidos das palavras e frases, a palavração. Uma outra inovação do Bacadafá consistia na ruptura com algumas práticas tradicionais de ensino da escrita nas escolas primárias, nas quais se enfatizavam a arte da caligrafia, ou seja, a aprendizagem de uma escritura manuscrita segundo regras rígidas e modelos formais. Estas práticas, ao preocuparem-se demasiadamente com o formalismo estético da escritura, traziam sérios problemas ao ensino da leitura e da escrita, pois acarretavam longa demora na aprendizagem, muitas vezes ocorrendo a saída das crianças da escola sem que tenham adquirido as habilidades elementares do escrever, já então considerado diferente (e mais positivo) do que o caligrafar: (...) Nas escolas imperiais, não se sabe quanto tempo cursam os alunos, filhos de pais pobres, ignorantes e desleixados, que mal vêm os pequenos ler uma palavra de jornal, retiram-nos da escola para um ofício (e ainda é bom quando é para isto!) Ou para o serviço da casa, ou outras vezes para deixá-los na ociosidade pelas ruas, perto das tavernas, criando-os para o vício e para o crime (...). Cumpre ensinar-lhes a escrever do que a caligraphar... (grifos meus)

As contradições entre as práticas de ensino/aprendizagem da caligrafia por parte do público escolar da Corte imperial – na sua maioria composta por crianças pobres, segundo Pinheiro de Aguiar – consubstanciavam-se na saída precoce dos meninos das escolas primárias para os ofícios ou serviços domésticos, tão logo se iniciassem na leitura, ainda que rudimentar, sem que aprendessem satisfatoriamente a arte da caligrafia, a escrita. Para solucionar este problema, portanto, fazia-se mister modificar não apenas os métodos e as técnicas de ensinar, mas também as próprias práticas da escritura, abandonando-se a formalidade e a estética caligráficas em favor de uma escrita simples, corrente, baseada nos modelos gráficos comuns às letras tipográficas e impressas. Isto no mesmo momento em que, nas principais cidades do Império, se insinuava vigorosamente uma indústria voltada para a produção de livros, cartilhas e materiais didáticos para o ensino do moderno método intuitivo e das chamadas lições de coisas. (TEIXEIRA, 2004; FARIA FILHO, 2000; MACIEL, 2002; TAMBARA, 2002) Ainda que não seja meu objetivo analisar o método Bacadafá de uma perspectiva estritamente técnica, isto é, enfocando detalhadamente as fórmulas empregadas, as semelhanças e as diferenças entre este e os outros métodos de ensino e os seus resultados pedagógicos, é importante ressaltar 177


que esta proposta integrava as disputas simbólicas a respeito da produção e da utilização de variados métodos de ensino da escrita e da leitura, apresentados freqüentemente como modernos e inovadores, em oposição a supostos métodos e técnicas atrasadas e tradicionais, os quais, no entanto, surgiam em contextos similares, demonstrando a existência de múltiplas temporalidades e percepções diferenciadas sobre os processos de ensinar e aprender a ler e a escrever (MACIEL, 2002). Sem dúvida, estas disputas estavam relacionadas aos processos de constituição e organização do sistema de ensino estatal no afã enunciado pelos poderes públicos de civilizar as "massas incultas e analfabetas", como um caminho necessário ao progresso da nação e à modernidade. Nesse sentido, o Bacadafá é aqui interpretado como um entre outros projetos e modelos pedagógicos, políticos e culturais, que visavam representar e concretizar práticas de ensino da língua, escrita e falada, na produção tensa de uma gramática nacional, nas quais o que estava em jogo era a determinação dos próprios sentidos (em conflito) da alfabetização das classes populares. Por isso, problemas educacionais e pedagógicos, especialmente os métodos de ensino e a formação de professores, passaram a ocupar educadores, administradores, professores, legisladores e intelectuais, em um momento em que a língua se tornava cada vez mais compreendida como uma construção coletiva de grupos sociais, e se relacionava estritamente com a linguagem, ou seja, com a capacidade dos indivíduos de se comunicarem, ao mesmo tempo, de forma inteligível e abstrata.5 Assim, nos anos 1870 e 1880, os professores divulgavam suas experiências e técnicas metodológicas – as quais, em regra, adquiriram boa recepção nas escolas -, através de publicações, cartilhas, livros escolares, palestras e conferências, o que expressava, para além da efervescência de idéias renovadoras em relação ao ensino da leitura e da escrita, um movimento explícito de luta pela nacionalização dos materiais didáticos e de emergência de um mercado editorial pedagógico. Neste movimento, portanto, é que se pode compreender o surgimento do método de leitura Bacadafá, na cidade do Rio de Janeiro, no início de 1870. Método que, visando à reorganização do ensino e ao enfrentamento das dificuldades dos 5

Para Saussure, a partir de meados do século XIX, a língua deixava de ser considerada "morta" e imutável porquê estreitamente relacionada à tradição e ganhava aos poucos a significação de expressão da intercomunicação, dinâmica e viva, dos grupos sociais e da coletividade, no movimento de produção de uma nova gramática, na qual os Estados buscavam consolidar e difundir uma linguagem comum, falada e escrita, representante da nacionalidade. Na Europa, foi um importante momento para a derrocada da hegemonia do latim e para a emergência de idiomas que, nos processos de lutas lingüisticas, se tornariam oficiais – os idiomas nacionais. (SAUSSURE, F 1974, p. 12).

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alunos na aprendizagem das primeiras letras, era caracterizado, principalmente, por constituir uma criação nacional, um verdadeiro método brasileiro. Segundo Costa e Cunha, nomeado pelo governo para avaliar a eficácia do método de ensino e, posteriormente, principal defensor de seu uso nas escolas públicas, o sistema possuía a seu favor, principalmente, o fato de que trazia as marcas nacionais: de um lado, pela sua própria origem, de autoria de um professor público nativo, e, de outro, pelos emblemas, as cores, em fundo verde e amarelo, e pelos símbolos de que se revestia: ... Quando pela primeira vez vi esse método, a parte o interesse que tomo como brasileiro por tudo quanto é invenção ou iniciativa nacional, e como professor, por quanto direta ou indiretamente interessa a instrução popular, convencido como estou de que o professor que limita a sua tarefa a de dar escola, apenas tem desempenhado uma parte de seu ministério – senti pelo quadro verdadeira fé e considerei-o capaz de remover certas dificuldades do 6 ensino elementar da leitura e da escrita...

Os sentidos políticos, pedagógicos, culturais e estéticos do método, bem como o intuito de colaborar com a produção de uma forma brasileira de ensinar, inclusive com ênfase em representações eleitas como expressões simbólicas de conteúdos de um ensino genuinamente nacional, foram claramente expostos pelos professores (tanto o autor, quanto o divulgador), consistindo a principal inovação da proposta exatamente o suposto caráter nacional do método de leitura Bacadafá. Pinheiro de Aguiar defendia seu método tanto pela sua eficácia técnica, ou seja, pela rapidez com que prometia instruir as crianças, e também os adultos, quanto pela sua importância cultural e política para a formação de um sentimento de nacionalidade e de uma identificação dos indivíduos com a pátria e a história nacionais. Na sua concepção, o sistema possibilitava despertar o interesse dos alunos pelos povos indígenas, pela sua cultura e pelas suas lutas contra os "conquistadores brancos", os portugueses. Isto porquê, segundo ele, o seu método se caracterizava por trazer à escola pública primária imagens e desenhos, práticas de leitura e escrita, nas quais se incentivavam o amor e o respeito à nação e ao povo, então representados pelas primeiras populações indígenas, símbolos da verdadeira origem étnica, raízes de (inventadas) tradições históricas e culturais e elemento inicial essencial da formação social dos brasileiros (HOBSBAWM & RANGER, 1997). 6

AGCRJ. Códice 11.3.28. Ofício ao Inspetor Geral de Instrução, com o Parecer de Antonio Estevam da Costa e Cunha sobre o Método Bacadafá, de Antonio Pinheiro de Aguiar. 14/12/1871.

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De fato, o Bacadafá estava baseado em representações indígenas, gráficas e sonoras, as quais foram criadas pelo seu idealizador como símbolos da nacionalidade, e, portanto, deveriam ser difundidas e legitimadas como marcas oficiais, através do ensino escolar da língua nacional, na aplicação prática das técnicas de leitura e escrita nas escolas da cidade do Rio de Janeiro, centro do poder imperial. Segundo Aguiar, o seu patriótico método de ensino: propõe-se a ensinar, por um meio breve e suave (...) Consta de duas partes distintas. A primeira consiste em um quadro, base do método, no qual se acham representados quatro índios guaranys, com os respectivos nomes – bacadafá, gajalama, naparasa, tavazaxa – escritos por baixo, e, por cima, as cinco vogais. (...) A segunda é um quadro sinótico de silabário português, com uma cartilha onde há palavras que serão formadas pelos alunos, a partir das sílabas do quadro...(...) (grifo meu)

É possível perceber, pela explicação do autor, que o seu método de ensinar a ler consistia na composição de vários conjuntos silábicos, cujos sons emitidos a partir da pronúncia conjugada das letras sugeriam nomes indígenas – bacadafa, gajalama, naparasa, tavaxaza. Tais conjuntos silábicos eram divididos em quadros dentro dos quais havia desenhos com representações de rostos de indígenas e caboclos, em uma homenagem ao brasileiro e a sua origem étnica. Estes quadros poderiam ser reproduzidos manualmente nas ardósias ou em cartões de papel impressos, distribuídos aos meninos como material básico de ensino da leitura e escrita, juntamente com a cartilha.7 Associando a soletração, a silabação e a palavração, a partir desses quadros silábicos, os alunos aprenderiam a visualizar as letras e figuras pictóricas, e não somente estas imagens como também os sons viabilizariam a construção de palavras e frases, cujos núcleos iniciais seriam representados pelos nomes indígenas. Nesse processo, utilizando as ardósias e os quadros de giz ou de papel cartão seriam feitos os exercícios práticos de ditado de sílabas, palavras e frases, todas baseadas nas letras e sílabas que compunham os nomes dos indígenas desenhados no quadro. Para aplicar a metodologia, além dos objetos e utensílios necessários a todas as escolas primárias, dizia Pinheiro dede Aguiar, faziase necessária a confecção de: "um quadro (pintura fina) representando os 7

Pinheiro de Aguiar informou ao Ministério do Império que ele havia, por sua conta, mandado imprimir 100 exemplares de cartilhas e outros materiais do Método Bacadafá para o uso dos alunos da escola de Santana. Pela sua indicação, as edições foram impressas na Typographia de Pinheiro, in 8 C, na Rua de Sete de Setembro, 456, 1871. Ver, AGCRJ, Códice 10.4.20. Ofício de Antonio Pinheiro de Aguiar ao Inspetor Geral, de 06/07/1875. Há um exemplar no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, no Códice 15.3.5., o qual infelizmente não pôde ser reproduzido ou fotografado por estar entre os manuscritos.

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índios que constituem o emblema do sistema Bacadafá, com os respectivos nomes; um quadro geral no qual se acham representadas todas as sílabas de que se compõem os vocábulos das línguas pátrias; três quadros representando as palavras da terceira classe do sistema; uma mesa de madeira pintada; 4 carteiras de madeira pintada para servirem de escrever com giz em uma face, e na outra, sobre papel, e 4 bancos.8 Embora não tenha elementos para tratar das práticas e dos usos escolares destes móveis e recursos pedagógicos na efetivação da metodologia de ensino Bacadafá é notável, em sua concepcão teórica, a produção de uma releitura da colonização portuguesa na América e a busca das raízes nacionais. Nessa perspectiva era clara a influência do romantismo, também presente na historiografia oficial oitocentista, promovida tanto pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro como pela própria Coroa, que exportava representações de um Império civilizado, sempre conjugadas com polissêmicas figuras laudatórias da paradisíaca natureza. Um paraíso tropical no qual se integravam o "bom selvagem", os indígenas nativos da Terra de Santa Cruz, e a sua descendência que, miscigenada pelo cruzamento (biológico e cultural) de brancos e índios, formaria o conjunto dos "caboclos da terra", símbolos construídos do povo brasileiro.9 Nesta fábula pedagógica, causa uma certa estranheza o silenciamento e a exclusão dos variados grupos étnicos de africanos, traficados e escravizados por três séculos, cujos descendentes, muitos dos quais livres e libertos nos anos 1870 e 1880, constituíam a maioria da população do Rio de Janeiro, uma cidade negra e mestiça, por excelência. Entretanto, esta ausência não era rara, como já foi referido, nos discursos e nas representações imperiais10, nos documentos e nos projetos educacionais da época, embora em alguns casos os professores, educadores e intelectuais 8

Os demais objetos inventariados foram: "uma imagem do Redentor, sobre um monte de pedras para imitar o calvário; duas carteiras maiores e dois bancos; um retângulo de madeira com exames e números para marcar o ponto dos alunos; uma mesa de madeira envernizada com duas gavetas para uso do professor; três cadeiras; uma ampulheta de campainhas; cinco bancos de madeira; uma talha de argila para água; exemplares de escrita em ponto grande, e, uma porção de exemplares de Episódios da História Pátria e do Catecismo".

9

Consultar: Schwarcz, 1999 e Monteiro (1996).

10

Para Schwarcz (Schwarcz, 1999), o indígena idealizado, porquê idílico e homogêneo, era representado como a face positiva da miscigenada população do Império do Brasil, cuja imagem seria encontrada na variada produção simbólica e cultural promovida pela Coroa. Nesta produção, via de regra, os africanos e escravos, quando surgem, figuram em posições de submissão, acentuando-se a marca de uma possível inferioridade étnica na hierarquia racial, em relação aos índios e aos brancos portugueses, já prenunciando, talvez, uma leitura simultaneamente hierárquica e harmônica da pretensa composição étnica da sociedade brasileira, ou a "fábula das três raças".

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tenham ousado propor a inclusão, via escola, dos descendentes de africanos, escravos ou não. Para Costa e Cunha, que além de professor adjunto primário da cidade exercia o cargo de professor suplementar de português e de geografia no Colégio Imperial Pedro II, a grande vantagem do método de leitura Bacadafá, na verdade, não havia sido devidamente explicitada pelo seu próprio autor, quando o apresentou ao governo imperial, inclusive com a presença ilustre da Princesa Isabel e seu marido, o Conde D’Eu, no dia 16 de dezembro de 1871, na escola pública de Santana.11 Na sua opinião, concordando com o sucesso (e a repercussão junto ao governo) alcançado pela invenção, no que diz respeito aos seus objetivos de ensino mais específicos – os de ensinar as crianças a ler e a escrever –, o método de Pinheiro Aguiar abria um vastíssimo campo a ser explorado pelos professores na docência de outras matérias e disciplinas escolares, notadamente quanto aos aspectos físicos, naturais, culturais, sociais e políticos do país, ou seja, quanto à geografia e à história nacionais: ...Que vastíssimo campo para um professor instruído! Sobre aqueles índios, íncolas brasileiros, seus costumes, seu caráter, suas guerras com os conquistadores, e, de dedução em dedução, sobre a rica madeira a natureza do país, as plantas medicinais e o fumo, o café, o açúcar, o algodão, a borracha, as minas e os minerais (...) a sangüinária história da América Espanhola e Portuguesa (...) e, depois, a divisão histórica e política do Império, a comunhão brasileira das Províncias e de cuja união resulta o poder e a força da nação, a forma representativa, os deveres do cidadão, a Constituição do Estado...

É interessante observar a elaboração interpretativa e os diversos usos que o professor Costa e Cunha esperava fazer do método de leitura Bacadafá, ainda que reconhecesse que sua leitura não se adequasse perfeitamente à proposta do autor, Pinheiro de Aguiar, quem enfatizava sempre, talvez como uma estratégia de convencimento ao governo, a eficácia técnica e metodológica do seu sistema para ensinar a ler e a escrever correntemente, com a maior brevidade possível, e com maiores chances de êxito, dadas as dificuldades que julgava existir na aprendizagem da caligrafia para as crianças. A visão de Costa e Cunha sobre as vantagens e usos do método era mais elástica, na medida em que acreditava no aproveitamento do Bacadafá para outros objetivos pedagógicos e políticos, para além da difusão do ensino da língua e da gramática nacionais, como, por exemplo, o 11

AGCRJ. Códice 11.3.28. Ofício de José Bento da Cunha Figueiredo comunicando ao professor Antonio Pinheiro de Aguiar o dia marcado para a apresentação do Bacadafá à Princesa Regente e ao Conde D’Eu. 14/12/1871.

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ensino de uma determinada versão da história nacional (ao mesmo tempo, natural, política, cultural e social), marcada pelas visões ambíguas sobre as relações entre índios e conquistadores, colonos e colonizadores, em uma perspectiva evolucionista, na qual se realçavam determinados momentos, pontos de chegada e de glorificação do presente e de um futuro próximo almejado: a formação da nação e a constituição de um Império estável, cujo poder e força se baseavam na unidade (os laços de união entre as Províncias e a Corte) e na autoridade do monarca. Costa e Cunha enxergava no método Bacadafá possibilidades concretas para viabilizar seus próprios projetos de introduzir nas escolas públicas primárias de primeiro grau, o grau mais elementar do ensino e único efetivamente existente na cidade, conhecimentos que julgava fundamentais à formação de uma dada nacionalidade, e, portanto, de um determinado modelo de cidadão brasileiro. Sem rodeios, em seu Parecer sobre o método de Pinheiro Aguiar, o professor adjunto explicitava as motivações pelas quais julgava ser excelente o sistema de ensino, e, por essas razões, referendava a sua aplicação nas escolas primárias oficiais. Desde 1872, Costa e Cunha passou, então, a auxiliar o autor a divulgar o método de leitura entre os professores, nas Conferências e na imprensa pedagógica, e a ensiná-lo nas escolas que regia - tarefa para qual, aliás, havia sido indicado pelo Inspetor Geral. Em 1877, quando professor efetivo da escola pública de meninos da freguesia da Ilha do Governador, Costa e Cunha utilizava o método de leitura Bacadafá, no qual fez alterações bem ao seu gosto, criando novos usos e acrescentando as disciplinas que acreditava serem fundamentais à formação do brasileiro e do cidadão identificado com a nação. Havia então requerido ao Ministério do Império, obtendo sucesso no seu pedido, permissão para ampliar o programa de ensino primário, passando a ensinar aos alunos história e geografia pátrias, deveres e direitos do cidadão e desenho linear, com livre escolha dos compêndios e métodos pedagógicos, além de inaugurar uma biblioteca aberta à consulta popular na sua escola.12 A originalidade do método Bacadafá não residia tanto na técnica de ensino da leitura e da escrita, a partir da composição entre as metodologias sintéticas e analíticas, mas, sobretudo, na sua aplicação para o conjunto das disciplinas e dos saberes escolares, os quais também se produziam pela e na escola, no cotidiano das práticas e experiências de aprendizagem, na dinâmica da interação pedagógica entre os alunos e o professor. A referência ao uso do método para o ensino de uma história e de uma geografia nacionais, sem dúvida, demonstra quanto os saberes 12 Requerimento concedido ao professor Antonio Estevam da Costa e Cunha por Aviso do Ministério do Império, publicado em 22/08/1877 no periódico A Escola, vol. 2, p. 77.

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escolares e as disciplinas que compõem o programa de ensino primário não são apenas conseqüência das diretrizes legais e das normas emanadas pela direção do sistema de ensino, a Inspetoria Geral da Corte, mas, também resultavam da produção dos professores, da articulação dos saberes docentes (saberes que incluíam tanto o domínio das disciplinas específicas do primário, quanto os métodos e as técnicas pedagógicas, além do conhecimento adquirido pela experiência com as práticas pedagógicas e sociais na escola, o savoir-faire).13 As disciplinas escolares, portanto, também foram construídas e produzidas pela escola, como demonstra a proposta metodológica de ensino da leitura e escrita utilizada pelos professores Aguiar e Costa e Cunha. Basta ressaltar que estes professores, no âmbito das escolas públicas primárias, militavam pela introdução da história e da geografia, com ênfase na busca de uma nacionalização do ensino primário (MATTOS, 1999). Projeto no qual se passava à valorização e à construção de representações sobre a nacionalidade, através da produção e da divulgação de saberes sobre aspectos da natureza e da cultura, dos povos e das raças, suas origens étnicas, a miscigenação, além da produção de um conhecimento histórico heróico sobre a pátria, ressaltando-se a formação política e social do brasileiro – conhecimento que, aliás, vinha sendo, desde meados do século XIX, parte da produção oficial do Império, com o financiamento das pesquisas e das publicações do Imperial Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ressalta, ainda, no método Bacadafá a produção simbólica de uma interpretação sobre a formação étnica e cultural do Brasil, na qual os nativos, ao interagirem com os brancos portugueses, colonizadores e colonos, geraram a síntese da nacionalidade, formando representações sobre o suposto brasileiro típico, o caboclo. Ao relacionar indígenas – homogeneizados e idealizados num modelo de um "índio histórico", como o chamou John Monteiro - à gênese da nacionalidade, os professores Aguiar e Costa e Cunha, pari passu, contribuíam para o silenciamento em relação aos escravos e libertos, descendentes de africanos, classificando e hierarquizando as chamadas raças, a despeito da diversidade dos grupos étnicos e culturais que habitavam o vasto território do Império. Quanto a esta questão, já se posicionou o citado John Monteiro: ...O que estava em jogo, evidentemente, era a caracterização do Brasil enquanto país civilizado ou, pelo menos, país capaz de superar o atraso e as contradições para alcançar um lugar ao lado das 13

Heloísa Villela, ao estudar os saberes na Escola Normal de Niterói argumentou no mesmo sentido em relação ao potencial criativo da escola, e de seus agentes, no que diz respeito a elaboração e a apropriação das disciplinas escolares (Villela, 2002).

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luminosas civilizações do hemisfério norte. Intrinsecamente amarrada aos problemas do índio e da escravidão, a perspectiva de se atingir tal estado dependia, em última instância da incorpporação ou da eliminação destes elementos. No entanto, pelo menos enquanto ainda vigorava a escravidão, o debate em torno das idéias de "raça" e "civilização", fixava-se prioritariamente no 14 índio. (grifos meus)

No que diz respeito à aplicação do método Bacadafá nas escolas primárias da cidade do Rio de Janeiro, quais teriam sido as repercussões, os resultados e as reações dos alunos ao iniciarem a aprendizagem das primeiras letras através das imagens dos indígenas desenhados em cartões impressos e nas lousas, concomitante aos sons, ouvidos e reproduzidos nas suas falas, dos nomes, das sílabas e das palavras inventadas por Aguiar, como expressões das tradições e da cultura deste índio histórico? Infelizmente, não encontrei registros sobre as práticas e os usos deste método nas classes regidas pelo autor ou pelo divulgador, o professor Costa e Cunha. Entretanto, em artigo publicado na revista pedagógica Instrução Pública, Costa e Cunha, apesar de não tecer comentários sobre os possíveis resultados alcançados pela aplicação do Bacadafá com os alunos das escolas públicas, emitiu sua opinião sobre a resistência apresentada pelos adultos, alunos dos cursos noturnos abertos em algumas s escolas oficias na década de 1870, em aprender a ler com este método. Segundo ele, os adultos resistiriam ao método devido às suas imagens, que conteriam um forte apelo infantil, além do fato de que estes adultos repudiariam as referências culturais aos caboclos da terra.15 Por quê haveria este repúdio, se é que havia, ou o que levava o nosso professor a tal conclusão sobre uma suposta recepção pouco calorosa do Bacadafá entre os alunos dos cursos noturnos? É difícil precisar. Como hipótese, é possível pensar que, por ser a cidade do Rio de Janeiro o principal centro cultural e político do Império (portanto, cidade associada às idéias de cosmopolitismo, de modernidade, de progresso e de civilização almejadas), possuindo como maioria dos seus habitantes uma população constituída de afro-descendentes - muitos dos quais já livres ou libertos na década de 1870 -, o método Bacadafá não tivesse condições favoráveis de repercussão entre os alunos adultos, que provavelmente não encontravam identificações possíveis entre suas origens étnicas, suas vivências e experiências sociais e culturais. Ou ainda, que, de fato, negassem a associação do brasileiro típico, síntese da nação, com o índio e 14

MONTEIRO, 1996, p. 78.

15

Método Bacadafá. A Instrução Pública. 18/08/1872. p. 158-160.

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o caboclo, reagindo contra o silenciamento em relação aos africanos, aos escravos e aos libertos. Evidentemente, não há outros indícios que me permitam conduzir a reflexão neste sentido. No entanto, em relação ao método Bacadafá, cabe ressaltar a sua importância, no sentido de demonstrar a dinâmica da produção de saberes e das disciplinas no interior das escolas primárias da cidade no final do século XIX, o que destacava os professores primários como sujeitos ativos, centrais nesse processo de construção dos conhecimentos e das práticas pedagógicas escolares. O professor primário neste contexto, ao contrário das representações negativas sobre os denominados métodos tradicionais de ensino, que enfatizavam a repetição dos programas oficiais, a memorização e a sabatina, era também produtor de conhecimentos, de saberes escolares e de metodologias e técnicas pedagógicas, elaboradas e reelaboradas a partir não apenas de suas trajetórias intelectuais (formação, leituras, influências téoricas, etc.), mas também de suas vivências e experiências no cotidiano das práticas pedagógicas, do ensino e da interação com os alunos de suas escolas (TARDIF, 2004). O domínio e a produção de saberes e disciplinas escolares conferiam ao professor primário da Corte uma relativa autonomia em relação aos regulamentos e às normas oficiais da Inspetoria de instrução pública da cidade, o que, em última instância, abria possibilidades e condições de existência, no interior dos processos de institucionalização da escola pública da cidade (e da forma escolar que se construía no século XIX), de diversificadas culturas escolares16, nas quais espaços e temporalidades múltiplas se corporificavam em modos diversos de 16

Aproprio-me aqui das reflexões realizadas por Luciano Mendes Faria Filho sobre os usos da categoria cultura escolar nas pesquisas sobre a história dos processos de escolarização e da educação nos oitocentos. Segundo o autor, a cultura escolar permite "articular, descrever e analisar, de uma forma muito rica e complexa, os elementos chaves que compõem o fenômeno educativo, tais como: os tempos, os espaços, os sujeitos, os conhecimentos e as práticas escolares." (FARIA FILHO, 2003, p. 85). A expressão é aqui utilizada no plural – culturas escolares -, pois, de acordo com Viñao-Frago, é preciso atentar às diferenças e às diversidades de práticas, representações e formas de organização escolar. As culturas escolares representam o conjunto de aspectos institucionalizados, com variadas modalidades e níveis de organização (como a cultura específica de um estabelecimento docente; a comparação entre culturas escolares de diferentes níveis, da escola primária às academias; o contraste entre as escolas rurais e urbanas, por exemplo). O conjunto dos aspectos institucionalizados que constituem as culturas escolares incluem práticas e condutas, modos de vida, hábitos e ritos, a história cotidiana do fazer escolar, os objetos materiais, a função e os usos dos espaços físicos, a simbologia, os modos de pensar e as idéias compartilhadas. As culturas escolares, para ViñaoFrago, compreendem, portanto, todos os aspectos relacionados à vida escolar, ou seja, fatos e idéias, mentes e corpos, objetos e condutas, maneiras de pensar, dizer e fazer, sendo relevantes os aspectos de organização dos espaços, dos tempos e os modos de comunicação e linguagem empregados nas práticas escolares. (VINÃO-FRAGO, 1995, p. 68-69).

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organizar o tempo e de distribuir os corpos e os objetos materiais do ensino. Saberes e disciplinas escolares foram, então, permanentemente apropriados, (re)elaborados e (re)inventados nas e pelas experiências e práticas pedagógicas dos professores e seus alunos (SCHUELER, 2002). Os significados do método Bacadafá, e de outros métodos aplicados e propostos pelos professores públicos e particulares da cidade do Rio de Janeiro, sem dúvida ainda precisam ser investigados em outras pesquisas. No entanto, cabe ressaltar que, através do uso e da divulgação deste método de ensino, os professores Aguiar e Costa e Cunha adquiriram notoriedade entre seus pares, membros do magistério público, e entre a cúpula da Inspetoria Geral. Em março de 1877, o Inspetor Geral, o conservador José Bento da Cunha Figueiredo recomendava, em uma Circular aos delegados de instrução das freguesias urbanas e rurais da cidade, a aplicação do método Bacadafá. Embora a recomendação oficial não vinculasse os professores, que mantiveram a autonomia para proceder à escolha, ou não, do referido método de leitura e escrita em suas escolas, o fato é que ela demonstra não somente a existência de uma produção de saberes e técnicas de ensinar a partir das escolas, mas, sobretudo, o relacionamento estreito entre a produção de saberes docentes e a elaboração dos programas de ensino, das normas e das políticas oficiais para a educação pública primária na Corte.

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Alessandra Frota Martinez de Schueler é Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Mestre e graduada em História pela mesma universidade. Professora Adjunta na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na UNILASALLE/RJ. E-mails para contato e divulgação: alessandrafrota@hotmail.com; alefrotaschueler@yahoo.com.br.

Recebido em: 03/01/2005 Aceito em: 20/04/2005

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Resenhas


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Uma rica história do livro didático e do ensino de História no Brasil Maria Helena Câmara Bastos

GATTI, Jr. Décio. A Escrita Escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990). Bauru/SP: EDUSC, 2004. 252 p.:il.

Décio Gatti Jr, professor da Universidade Federal de Uberlância/MG, acaba de lançar a obra "A Escrita Escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990)", co-edição da Editora da Universidade do Sagrado Coração/EDUSC e da Editora da Universidade Federal de Uberlândia/EDUFU. O livro resulta de sua tese de doutorado em educação defendida na PUCSP em 1998, sob a orientação da professora Drª Ester Buffa, que o prefacia. É amplamente ilustrado com as capas dos livros didáticos analisados e propagandas das editoras, totalizando setenta imagens. O estudo, sob o enfoque sócio-histórico, insere-se no campo da hisuória das disciplinas escolares e, especificadamente, da história dos manuais/livros didáticos. O autor examina as mudanças de conteúdo e as formas editoriais em livros didáticos de história, destinados ao ensino fundamental e ensino médio, escritos e publicados entre as décadas de 1970 e 1990. Também colheu depoimentos junto aos autores e editores dos livros didáticos examinados. O estudo parte da premissa de que a partir da década de 1960, quando tem início o processo de massificação do ensino no Brasil, tenha ocorrido a "transformação dos antigos manuais escolares nos modernos livros didáticos; a passagem do autor individual à equipe técnica responsável pela elaboração dos produtos editoriais voltados para o mercado escolar; e a evolução de uma produção editorial quase artesanal para a formação de uma poderosa e moderna indústria editorial" (p.16). A obra está dividida em cinco partes: a introdução, em que apresenta a temática e os procedimentos investigativos, centrando-se na questão do livro didático como objeto material da cultura escolar e fonte de pesquisa; o capítulo 1 – Do autor individual à equipe editorial, da passagem da produção praticamente artesanal a uma produção em escala industrial do livro didático, em que analisa o perfil, o papel, o histórico e o cotidiano dos autores entrevistados no processo de redação das coleções produzidas entre História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 193-194, set. 2005


as décadas de 1970 e 1990; o capítulo 2 - Da produção artesanal à indústria editorial, em que aborda as editoras de livros didáticos e seus editores, em consonância com as políticas públicas no setor editorial didático; o capítulo 3 – Da escola de elite à escola de massa, em que analisa a centralidade que o livro didático assume na escola brasileira entre as décadas de 1960 a 1990, esuabeleceodo relações entre livro didático e currículo escolar, analisando o surgimento dos livros paradidáticos, dos recursos multimídia, e as práticas sociais ligadas aos livros didáticos. Nas considerações finais, constata que, no período analisado, houve uma renovação tanto nos conteúdos dos livros didáticos como na forma, que passou por melhorias consideráveis: definição de formato, capa e projeto gráfico mais em acordo com as necessidades dos alunos no que diz respeito à linguagem, ilustrações e, sobretudo, durabilidade dos livros (p. 236). A obra é um convite a todos os pesquisadores da área de História e de História da Educação, especialmente aqueles que procuram adentrar no campo da história das disciplinas escolares, do currículo e da história dos livros didáticos e paradidáticos, tanto pela abordagem teórico-metodológica como pela análise pertinente e adequada ao objeto de estudo. Francis Bacon em seu ensaio "Estudos" desenvolveu uma estranha comparação entre ler e comer, ao distinguir três maneiras de usar os livros: "Alguns livros são para provar, outros para engolir, e uns poucos para mastigar e digerir"1. Sem entrar no mérito dessa analogia, acrescentaria uma quarta maneira de ler: o prazer de saborear e de apreciar. Assim, convido o leitor a saborear e apreciar os interessantes capítulos desta obra, que espelham seriedade e consistência teórico-analítica.

Maria Helena Câmara Bastos é Professora no Programa de PósGraduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Pesquisadora do CNPQ.

BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.16.

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História e Historiografia da Educação no Brasil Eduardo Arriada

VEIGA, Cynthia Greive; FONSECA, Thais Nivia de Lima e. (orgs.). História e Historiografia da Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

Nos últimos anos a Editora Autêntica de Belo Horizonte tem primado por belas edições, diversas delas dedicadas a uma temática que aos poucos torna-se relevantes nos estudos históricos, qual seja, a história da educação. Durante muitos anos relegada ao esquecimento, não esqueçamos a observação feita por José Honório Rodrigues em sua obra "Teoria da História do Brasil: introdução metodológica", que salientava na época a falta de estudos nessa área. O texto das autoras Cynthia Greive Veiga e Tahis Nivia de Lima e Fonseca, organizadoras da obra coletiva "História e historiografia da Educação no Brasil", vem em boa hora suprir uma lacuna nos estudos historiográficos. O trabalho foi desenvolvido por um grupo de pesquisadores vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação (GEPHE) e ao Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), ambos da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. O presente texto divide-se em três eixos temáticos, o primeiro: "Abordagens, conceitos, metodologias", prioriza uma abordagem mais teórica e ampla da historiografia, ressaltando aspectos conceituais e teóricos da história da educação. Temos o artigo de Cynthia Greive Veiga, "História Política e História da Educação", onde procura caracterizar o processo de escolarização da sociedade brasileira, utilizando teoricamente autores da corrente "nova história política", como por exemplo, Norbert Elias, Peter Burke, Lynn Hunt. Thais Nivia de Lima e Fonseca, em "História da Educação e História Cultural", traça um amplo paralelo da relação entre essas duas vertentes da história. Por sua vez Luciano Mendes de Faria Filho, no texto "O processo de escolarização em Minas Gerais: questões teóricometodológicas e perspectivas de análise", aborda essa temática a partir da análise conceitual da cultura escolar. O segundo eixo temático, "Diálogos e interfaces", procura clarificar os possíveis intercruzamentos com outras áreas do conhecimento. Bernardo Jefferson de Oliveira, com o texto "Imaginário científico e a História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 195-196, set. 2005


História da Educação", investiga a relação entre historiografia da ciência e a historiografia da educação. Regina Helena de Freitas Campos investiga por sua vez, a interferência da psicologia na organização do campo pedagógico no texto intitulado, "História da Psicologia e História da Educação – conexões". No terceiro e último eixo temático, "Campos de Investigação: a história da educação no Brasil", procuram os autores analisar os possíveis procedimentos metodológicos em diferentes temas da história da educação, qual sejam: manuais escolares, infância, alfabetização, formação de professores. O artigo de Ana Maria de Oliveira Galvão e Antônio Augusto Gomes Batista, "Manuais escolares e pesquisa em História", resgatam a singularidade da discussão sobre as fontes utilizadas, sua natureza, sua importância, suas possibilidades, dentro da perspectiva de uso dos manuais escolares. O texto de Maria Cristina Soares de Gouvêa, "A escolarização da meninice nas Minas Gerais oitocentistas: a individualização do aluno", procura caracterizar a idéia de infância enquanto construção história e cultural de um dado momento histórico. Por sua vez o texto, "História da Alfabetização: perspectivas de análise" de autoria de Francisca Izabel Pereira Maciel, analisa os aspectos fundamentais desse campo de investigação, onde aponta as suas principais tendências. Por fim o trabalho de Eustáquia Salvadora de Sousa e Tarcísio Mauro Vago, "Última década do oitocentos, primeira década da Gymnastica na formação do professor mineiro", exploram a história escolar da Educação Física, trabalhando com uma rica documentação que possibilita descurtinar nuances do processo de escolarização dessa disciplina. Esses diversos textos nos permitem verificar como consta na apresentação da presente obra, o quanto é importante analisar o processo da educação para que se possa ampliar a compreensão das formas como, em tempos e espaços distintos, diversas sociedades se organizaram social, cultural e politicamente, suas contribuições para se fazer, contar e estudar a história e a compreensão de suas especificidades e diferenças no tempo. Portanto, segundo os autores, é possível problematizar a educação em diferentes tempos históricos, em espaços escolares ou não, baseando-se em diferentes temas, o corpo, o aluno, a leitura, as instituições, os saberes, etc...em diferentes sujeitos, a criança, a mulher, o negro, o professor, etc... e em diferentes documentos; os periódicos, os relatórios, os manuais, os livros de leitura, etc... bem como em diferentes abordagens teórico-metodológicas.

Eduardo Arriada é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). 196


Documento


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Lei n. 1, de 1837, e o Decreto nº 15, de 1839, sobre Instrução Primária no Rio de Janeiro 1837. – Nº 1. Paulino José Soares de Sousa, Presidente da Provincia do Rio de Janeiro: Faço saber a todos os seus habitantes, que a Assembléa Legislativa Provincial Decretou, e eu sanccionei a Lei seguinte.

DA INSTRUCÇÃO PRIMARIA. CAPITULO I. DAS ESCOLAS DE INSTRUCÇÃO PRIMARIA. Artigo 1º As Escolas Publicas de instrucção primaria comprehendem as tres seguintes classes de ensino: 1ª Leitura, e escrita; as quatro operações de Arithmetica sobre numeros inteiros, fracções ordinarias, e decimaes, e proporções: principios de Moral Christã e da Religião do Estado; e a Grammatica da Lingua Nacional. 2ª Noções geraes de Geometria theorica e pratica. 3ª Elementos de Geographia. Artigo 2º A matricula dos alumnos será dividida nas tres classes de ensino sobreditas: e nenhum será admitido a frequentar alguma das duas classes ultimas, sem que se tenha mostrado prompto em todos os elementos da primeira. Artigo 3º São prohibidos de frequentar as Escolas Publicas: 1º Todas as pessoas que padecerem molestias contagiosas. 2º Os escravos, e os pretos Africanos, ainda que sejão livres ou libertos. Artigo 4º As Camaras Municipaes são obrigadas a prestar aos Professores publicos dos seus Municípios casas sufficientes, situadas dentro dos Povoados, para estabelecimento das Escolas. Artigo 5º As mesmas Escolas serão fornecidas pelo Governo da Provincia dos moveis, e utensis necessários, de Compendios, Livros, Traslados de Calligraphia, Estampas, papel, tinta, e pennas, á vista de hum História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 199-205, set. 2005


Orçamento annualmente organisado pelos Professores, informado pelos inspectores respectivos, e approvado pelo Director. Artigo 6º O Presidente da Provincia designará os lugares em que devão ser conservadas as Escolas actualmente existentes; e aquelles onde convenha crear outras de novo: dependendo a fixação definitiva do estabelecimento das mesmas Escolas da approvação da Assembléa Legislativa Provincial. Artigo 7º Toda a Escola que no decurso de dois annos consecutivos deixar de reunir quinze almnos matriculados, pelo menos, com frequencia effectiva, será transferida pelo Presidente da Provincia para outro lugar, onde possa ser frequentada por numero maior de discipulos.

CAPITULO II. DOS PROFESSORES. Artigo 8º A serventia vitalicia do Emprego de Professor das Escolas de instrucção primaria só pode ser provida em pessoas habilitadas pela forma prescripta na Lei Provincial de quatro de Abril de mil oit centos trinta e cinco. Não comparecendo Candidatos habilitados por essa forma, será a regencia da Cadeira provida temporariamente em Mestres os mais idoneos que for possivel; aos quaes o Presidente da Provincia arbitrará a gratificação que julgar conveniente, não podendo nunca exceder o ordenado marcado nesta Lei. Artigo 9º Os Professores que forem providos na serventia vitalicia das Escolas de instrucção primaria, nos termos do Artigo antecedente, vencerão annualmente seiscentos mil réis de ordenado, e perceberão mais huma gratificação de cinco mil réis. Por alumno, que for declarado prompto em cada huma das tres classes de ensino designadas no Artigo primeiro, precedendo exame publico. Artigo 10º Os mesmos Professores só por sentença, e nos unicos casos seguintes, poderão perder os seus Empregos: 1º Condemnação á pena de galés, ou por crime de estupro, rapto, adulterio, roubo, ou furto, ou por algum outro da classe d’aquelles que offendem a Moral publica, a Religião do Estado, ou os bons costumes. 2º Abandono da Escola por tempo consecutivo, excedente a tres mezes. 3º Negligencia habitual e incorrigivel no cumprimento de seus deveres. 4º Tendo sido suspenso por tres vezes. 200


Artigo 11º A fórma de processo para formação da culpa, e para o julgamento, nos casos do Artigo antecedente, será a mesma estabelecida para os crimes de responsabilidade dos Empregados Publicos. Artigo 12º Os Professores sobreditos serão suspensos, sempre que forem pronunciados por algum dos crimes especificados no Artigo decimo, ou por algum outro que não seja afiançavel; e poderão ser suspensos: 1º Sendo pronunciados por crime afiançavel. 2º Por correcção nos casos seguintes: 1º, negligencia, ou omissão no desempenho dos deveres do seu Officio: 2º, embriaguez habitual: 3º, falta de frequencia da Escola. Haverá falta de frequencia de Escola, todas as vezes que o Professor se ausentar do lugar d’ella, sem motivo urgente, justificado por mais de tres dias lectivos conscutivos, ou achando-se no mes-lugar, deixar de dar lições por mais de seis dias. 3º Desobediencia formal ás ordens do Director, ou do Inspector respectivo. Artigo 13º Nos casos comprehendidos no numero segundo e terceiro do Artigo antecedente, a suspensão não poderá exceder de hum mez, e em todos os casos será ordenada pelo Director, depois de ouvido o Professor, devendo ser por aquelle communicada, antes de sua intimação, ao Presidente da Provincia, que poderá declamar improcedente, sempre que a não julgar bem fundada. Artigo 14º O Professor suspenso perderá metade do ordenado durante o tempo da suspensão: todavia, nos casos em que esta for imposta, em conseqüência de pronuncia, por algum dos crimes comprehendidos nos numeros segundo, terceiro e quarto do Artigo decimo, se por sentença definitiva for julgado innocente, ser-lhe-ha mandada pagar a parte do ordenado que houver deixado de receber. Artigo 15º Todo o Professor de serventia vitalicia que tiver servido effectivamente por tempo de vinte annos completos, terá direito para obter a sua jubilação com o ordenado por inteiro. Aquelles que, antes de completarem os vinte cinco annos de serviço effectivo, ficarem impossibilitados de continuar no exercício do seu Magisterio, serão aposentados comparte do seu ordenado proporcional ao tempo que houverem servido. Artigo 16º Os Professores jubilados poderão continuar a reger as suas Cadeiras, se o Presidente da Provincia, com attenção ao bom serviço que dos mesmos se pude esperar, julgar conveniente admiti-los: haverão neste caso huma gratificação annual de trezentos mil réis, além do ordenado da sua jubilação; e serão conservados em quanto bem servirem. 201


CAPITULO III. DAS ESCOLAS DE MENINAS Artigo 17º Nas Escolas Publicas de instrucção primaria de Meninas serão ensinadas as materias comprehendidas nos numeros primeiro e terceiro do Artigo primeiro, menos decimaes e proporções, e a coser, bordar, e os mais misteres próprios da educação domestica. Artigo 18º as Cadeiras das expressadas Escolas serão providas em concurso, presidido pelo Presidente da Provincia, ou pela pessoa a quem elle delegar. Artigo 19º As Professoras actualmente existentes, e as que no futuro forem providas, vencerão o ordenado annual de seiscentos mil réis, e perceberão mais a gratificação de cinco mil réis por cada discipula que for julgada prompta, precedendo exame. Artigo 20º Em tudo o mais as Escolas Publicas de Meninas, e suas Professoras, ficão comprehendidas nas disposições da presente Lei.

CAPITULO IV. DO DIRECTOR E DOS INSPECTORES. Artigo 21º Haverá na Capital da Provincia hum Director encarregado da direcção da todas as Escolas de instrucção primaria da Provincia, com a gratificação annual de hum conto e duzentos mil réis, ficando comprehendidas n’esta quantia as despezas do expediente necessário para o desempenho de suas atribuições. Artigo 22º Incumbe ao Director: 1º Inspeccionar e fiscalisar todas as Escolas de instrucção primaria da Provincia, por si e por intermedio dos Inspectores dos Municipios. 2º Regular o systema, e methodo practico do ensino, escolher ou organisar os Compendios, e modelos das Escolas e dar as providencias necessárias para que a instrucção seja em todas ellas, submettendo tudo á approvação do Presidente da Provincia. 3º Organisar os Regulamentos internos das Escolas, que sujeitará á approvação do mesmo Presidente.

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4º Dar aos Professores todas as instrucções e esclarecimentos necessários para o desempenho das suas obrigações; e exigir dos mesmos e dos Inspectores as informações que julgar convenientes. 5º Decidir quaesquer duvidas e contestações que possão ocorrer entre os Inspectores e os Professores. 6º Formar annualmente, hum mez antes da reunião ordinária da Assembléa Legislativa Provincial, e entregar ao Presidente da Provincia para ser presente á mesma Assembléa, o Relatorio do estado da instrucção primaria de toda a Provincia, indicando n’elle os obstáculos que impecerem o seu andamento, e os meios que julgar mais conducentes para os remover. Artigo 23º Em cada Município haverá hum Inspector das Escolas no mesmo existentes, nomeado pelas Camaras respectivas d’entre os seos Membros, podendo todavia recahir a nomeação em outro qualquer Cidadão idôneo residente no Termo. Artigo 24º Fica a cargo dos Inspectores: 1º Inspeccionar todas as Escolas do seu Municipio, e fiscalisar n’ellas o cumprimento da Lei e dos Regulamentos. 2º Receber e transmitir ao Director os Mappas dos alumnos, que os Professores são obrigados a dar, acompanhados das suas observações sobre o estado de adiantamento dos mesmos almnos, e sobre o mais que julgarem conveniente informar. 3º Propor ao Director os melhoramentos de que, no seu entender, forem susceptiveis as Escolas sujeitas á sua inspecção. 4º Informar sobre todas as pretenções dos Professores do seu Municipio. 5º Passar aos mesmos Professores as attestações de frequencia necessárias para poderem receber os seus vencimentos.

CAPITULO V. DISPOSIÇÕES GERAES. Artigo 25º Todos os Professores de Escolas de instrucção primaria, assim publicas como particulares, são obrigados a dar aos Inspectores dos respectivos Municipios as informações que delles exigirem e Mappas exactos dos seus alumnos, nos prazos e pela fórma que for determinada pelos competentes Regulamentos, sob pena da mulcta de dez mil réis por cada falta que commetterem. Artigo 26º Os Professores de Escolas particulares de instrucção primaria são obrigados a solicitar do Presidente da Provincia licença para 203


poderem abrir as mesmas Escolas, que lhes será concedida gratis: devendo instruir os requerimentos com attestações de boa moral, passadas pelo Parocho da Freguezia do seu domicilio, e pelo Inspector do respectivo Municipio. Artigo 27º Ficão derrogadas todas as Leis e disposições em contrario. Mando por tanto a todas as Authoridades, a quem o conhecimento, e execução da referida Lei pertencer, que a cumprão, e facão cumprir tão inteiramente, como nella se contém. O Secretario desta Provincia a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Governo da Provincia, aos dois desta Provincia a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Governo da Provincia, aos dois dias do mez de Janeiro de mil oitocentos trinta e sete, decimo sexto da Independencia e do Imperio. Paulino José Soares de Sousa.

_________ DECRETO 1839. – Nº 15. Paulino José Soares de Sousa, Presidente da Provincia do rio de Janeiro: Faço saber a todos os seus habitantes, que a Assembléa Legislativa Provincial decretou, e eu sanccionei a Resolução seguinte. Artigo 1º Os Professores de Instrucção primaria, que tiverem sido isentos de frequentar a Escola Normal, por se acharem nas circunstancias da excepção do Artigo 1º da Lei Provincial de quatro de abril de mil oitocentos trinta cinco, numero dez, tem direito ao vencimento do ordenado e gratificações declaradas no Artigo dezaseis da mesma Lei, desde o dia da referida declaração. Artigo 2º Os mesmos Professores vencerão o ordenado e gratificações do Artigo nono da Lei de dois de Janeiro de mil oitocentos trinta e sete, numero hum, se, por meio de competente exame, se mostrarem habilidades para ensinarem todas as materias determinadas no Artigo primeiro da mesma Lei.

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Artigo 3º Os Professores que, não sendo isentos de frequentar a Escola Normal, tem continuada o reger suas Cadeiras, vencerão, da publicação da presente Lei em diante, metade do ordenado que compete aos que se tiverem habilitado na dita Escola, em quanto, por falto de quem os substitua, não forem jubilados, ou se não habilitarem, nos termos do Artigo doze da Lei de quatro de Abril de mil oitocentos e trinta e cinco, numero dez. Artigo 4º Ficão declaradas e ampliadas pela fórma sobredita as referidas Leis de quatro de Abril de mil oitocentos e trinta e cinco, numero dez, e dois de Janeiro de mil oitocentos e trinta e sete, numero hum. Mando por tanto a todas as Authoridades, a quem o conhecimento, a execução da referida Resolução pertencer, que a cumprão e facão cumprir tão inteiramente, como nella contêm. O Secretario desta Provincia a faça imprimir, publicar, e correr. Dada no Palacio do Governo da Pr wincia aos dezasete dias do mez de Abril de mil oitocentos trinta e nove, decimo oitavo da Independencia e do Imperio. Paulino José Soares de Sousa.

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Orientações aos colaboradores

História da Educação aceita para publicação artigos relacionados à história e historiografia da educação, originados de estudos teóricos, pesquisas, reflexões metodológicas, discussões em geral, pertinentes ao campo historiográfico. Os textos devem ser inéditos, de autores brasileiros e estrangeiros, em português ou espanhol. A revista publica, também, trabalhos encomendados e traduções de artigos que possam contribuir significativamente na área da História da Educação. Possuiu, ainda, duas outras sessões: resenhas e documentos. A primeira, deve apresentar o conteúdo e comentários sobre publicações recentes ou reconhecidas academicamente. A sessão documentos publica material importante e de difícil acesso para servir de fonte para a pesquisa histórica. Os artigos e as resenhas são submetidos aos membros do Conselho Editorial e/ou a pareceristas ad hoc. A seleção dos artigos para publicação toma como referência sua contribuição à História da Educação e à linha editorial da revista, a originalidade da temática ou do tratamento dado ao tema, a consistência e o rigor da abordagem teórica e metodológica. Os originais devem ser encaminhados à Comissão Executiva em via impressa, com resumo de até 150 palavras e 3 palavras-chave, ambos em língua portuguesa e inglesa ou francesa, acompanhados de disquete, digitados em MS Word for Windows (2.0 – 6.0 e 7.0) ou softwares compatíveis. Os arquivos dos disquetes, preferencialmente, não devem estar formatados, ou seja, os textos devem ser corridos, sem tabulações, sem endentações e com "Enter" (Retorno) apenas no fim de cada parágrafo. Podem contudo, manter os atributos de letra, como negrito e itálico, especialmente nos títulos e subtítulos de obras nas referências bibliográficas. Os textos preferencialmente não devem exceder a 20 laudas, com aproximadamente 30 linhas, digitadas em espaço 11/2 em fonte corpo 12 pontos. O autor deve fornecer, também, dados relativos à instituição e área em que atua, bem como indicar o endereço (inclusive eletrônico) para correspondência com os leitores. O nome do autor e a instituição a que o mesmo está vinculado devem constar de folha anexa ao texto.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 207-208, set. 2005


Os artigos devem ser enviados para: REVISTA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Caixa Postal 628 CEP 96001-700 – Pelotas – RS. Fone/Fax: (53) 278.6908 e (53) 278.6653 Ou para os seguintes endereços eletrônicos: E-mail: tambara@ufpel.tche.br E-mail: etperes@ufpel.tche.br A correção gramatical dos artigos é de inteira responsabilidade de seus autores. Da mesma forma os artigos representam a expressão do ponto de vista de seus autores e não a posição oficial da revista História da Educação. A colaboração é inteiramente gratuita, não implicando retorno de espécie alguma por parte da revista.

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