L E I T U RA N Ã O R E C O M E N D A D A A M E N O R ES D E 1 8 A N O S
índice PADRÕES DE BELEZA
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IMUNIDADE TRIBUTÁRIA..............08 MACONHA..................................10 MERITOCRACIA..........................13 16
ANIMAIS ABANDONADOS..........18 LITERATURA.................................21 MAÇONARIA..............................24 SUICÍDIO.....................................26 FEMINISMO.................................28
Primeiramente, #foraTemer. Chegamos a mais uma edição da Revista Ensaio. Com muito atraso (típico de uma publicação independente) e uma novidade: essa edição é somente digital - pelo menos por enquanto. É que tá meio difícil competir pelos apoios comerciais num mercado acostumado a consumir publieditoriais como notícia. Nem sempre vamos conseguir arrecadar os fundos necessários para a impressão, especialmente pelas pautas nem tão comerciais veiculadas aqui. Mas quer saber? Que bom que seja assim! Se a internet trouxe uma coisa muito boa foi a possibilidade de produzir e disseminar conteúdo quase sem custo. Por isso, a Revista Ensaio continua, de forma impressa ou digital, a colocar o dedo nas feridas sociais e a abrir espaço para que os futuros jornalistas possam produzir de forma livre, sem as conhecidas amarras comerciais-financeiras-ideológicas que, infelizmente, pautam os grandes veículos de imprensa no Brasil e até mesmo interferem no conceito do que é ou não notícia. Não podemos deixar de agradecer a estimulante recepção da nossa primeira edição. Foram muitos elogios, muitas críticas e, principalmente, muito apoio para seguirmos em frente nesse desafio de fazer jornalismo impresso/digital independente no interior. Aos ex-alunos (agora jornalistas) formados no final de 2015 e meio de 2016, nossos sinceros agradecimentos. Sem vocês esse projeto jamais sairia do (e no) papel. Nessa edição, a Revista Ensaio abriu espaço para a participação de futuros jornalistas e publicitários em todos os processos: desde a seleção das pautas, passando pela produção das reportagens, fotografias e diagramação. Mais gente interessada em fazer diferente se juntou a nós e conseguimos manter (esperamos) a mesma “pegada” independente da edição 01. Ficam os agradecimentos também aos professores dos cursos de Comunicação, que ajudaram e muito no desenvolvimento desse projeto. É interessante ver a Revista Ensaio crescer, amadurecer e, quem sabe, em breve ter filhos. Não é fácil produzir um conteúdo de qualidade contando com o trabalho voluntário dos interessados. Talvez por isso mesmo seja mais gostoso. Porque aqui a liberdade de expressão sempre irá pautar as diretrizes do trabalho. É justamente por isso que é tão gratificante fazer parte disso! Boa leitura! #revistaensaio
Editores: Bruna Costa, Laiana Modes- Fotografias: Matheus Garrôcho, Dêto, Matheus Garrôcho, Thulio Oliveira, nio Guarieiro, Bruna Costa, Julio PaProf. Elias Costa, Prof. Ricardo Nogueira lestini, Hudson Orsine, Mylenna Bastos, Prof. Douglas Fernandes Revista Ensaio - ano II - ed.02 Revista Ensaio é uma publicação dos Reportagem: Ana Paula Ramos, MaDiagramação: Hudson Orsine e Prof. alunos de Jornalismo e Publicidade e rina Matos, Sabrina Rios, Carla Souza, Ricardo Nogueira Propaganda da Faculdade Pitágoras Carlos Henrique Montero, Jéssica Fernanda, Cynara Cardoso, Giselly Rufo, Divinópolis/MG. Ruth Flores, Hudson Orsine, Weliton Ba- Arte: Hudson Orsine, Dênio Guarieiro contato.revistaensaio@gmail.com tista, Daniel Gonzaga, Andressa Rabelo, Marco Antônio Rosa, Laila Santos, Capa: Rafael Guilherme de Sousa Coordenação Editorial: Mariana Santos, Matheus Garrôcho, Prof. Ricardo Nogueira Isadora Santana, Yuri Campos, Taísa Logo: Prof. Marcelo Tumati Melo, Carla Emília, Izabela Ortiz, AleCoordenação de Fotografia: xandre Reis, Ana Gabriella Santos, Bru- Agradecimentos: Prof. Douglas Fernandes na Costa, Vanessa Cardoso e Ricardo Monteiro Produção de Fotografia: Bruna Costa, Dênio Guarieiro, MaRevisão: Prof. Ricardo Nogueira theus Garrôcho
EXPEDIENTE
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PADRÕES DE BELEZA
TEXTO Ana Paula Ramos, Marina Matos Sabrina Rios Carla Souza FOTO Matheus Garrôcho
A
o longo dos anos, elas vêm conquistando seu espaço na sociedade. Tornaram-se fortes, correm atrás de seus objetivos e são independentes. Apesar da sociedade ter evoluído e as mulheres não serem mais tratadas como o sexo frágil, muitas ainda são “escravas” dos padrões de beleza impostos pela mídia. Nas capas de revistas, comerciais e programas de TV são apresentadas “mulheres perfeitas” (magras, altas, loiras, cabelos lisos) e este é o modelo que muitas querem seguir. O ideal da perfeição faz com que muitas escravizem seus corpos e mentes em busca de algo inalcançável. Em alguns casos ocorrem mutilações, mortes, doenças e baixa autoestima nesta corrida pelo belo. Uma das doenças que surgem por este “culto ao próprio corpo” é a vigorexia. Caracterizada por ser um transtorno de ansiedade que faz a pessoa enxergar seu corpo menor do que ele realmente é, pode levar a uma busca insaciável pelo corpo malhado e escultural. Para ter um corpo assim, muitos jovens recorrem, inclusive, a anabolizantes sem prescrição médica, colocando em risco a própria vida. São muitas as cobranças sociais para atingir esses objetivos e isto prejudica em todos os sentidos: tanto psicológico quanto físico. Onde está escrito que, para ser bonita e aceita pela sociedade, tem que ser magra, alta e de cabelos lisos? Diante disso surgem o stress, a não aceitação do corpo, dietas exageradas e distúrbios alimentares que podem acarretar sérias doenças, como a bulimia e anorexia. A psicóloga Alessandra Javoski Gama acredita que a mídia tem um papel significativo no desenvolvimento de transtornos alimentares: “A mídia propaga, inconscientemente ou indiretamente, um estereótipo de que a magreza é um sinônimo de sucesso, tanto no âmbito social quanto no econômico. Como duvidar de algo que vemos o tempo todo? Os veículos funcionam como propa-
gadores de ideais estéticos nem sempre compatíveis com a realidade dos jovens, aos quais se busca atingir, mesmo sendo fisiologicamente inatingíveis para a maioria deles”. Essa influência é bastante negativa em crianças e adolescentes, cuja personalidade está em formação. “A adolescência é um período em que os parâmetros sociais acontecem entre eles e a aparência é de grande importância na determinação da autoestima. Aquele que consegue atingir o quase ‘inatingível corpo perfeito’ ganha status, fica com o prêmio de líder da turma e, quanto ao resto, quanto mais longe deste ideal maior a probabilidade de sofrer bullying e de entrar para a estatística dos transtornos alimentares”, explica a psicóloga. Alessandra diz que na internet a coisa piora. Existe um movimento virtual pouco divulgado chamado Pro-Ana e Pro-Mia: Pro-Anorexia e ProBulimia. São adolescentes bulímicas e/ou anoréxicas com seus diários relatando crises com a balança, disfunções com a imagem corporal, dicas de como fazer para passar dias sem comer e enganar seus pais. Para tais adolescentes, este movimento não é uma doença, mas sim um estilo de vida que deve ser respeitado. Segundo a psicóloga, a mídia deveria ajudar na conscientização dos pais, da escola e da sociedade, pois estas são doenças socialmente “aceitas”: “A pessoa está magra, está bonita, então ela está legal. Mas nem sempre quem está assim está legal! Quanto está custando isto para a vida daquela adolescente que está fazendo uso de laxantes, diuréticos, ficando horas sem comer, sem beber água?”, questiona. A psicóloga explica que, quanto mais novo o paciente, mais fácil de diagnosticar e intervir. Isso porque há, atualmente, registros de crianças de nove anos com transtornos alimentares fazendo tratamento.
Do outro lado do espelho*
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“Morena, olhos cor-de-mel, 1,58m de altura. Alegre, rodeada de amigos e com uma família incrível. Meu grande problema era me ver fora dos padrões por causa do meu corpo. Cresci sendo alvo de muitas brincadeiras e apelidos. Chorava baixinho no meu canto e ninguém parecia perceber. De fato, nada disso me atrapalhava a ponto de perder a razão, mas as coisas começaram a mudar. Tinha 14 anos quando percebi que minha vida nunca mais seria a mesma.
Julho de 2009. Acompanhada do meu namorado, fui à farmácia. Subi na balança: 65,9 kg. A importância daqueles números foi dita por ele em palavras cheias de superficialidade: ‘Se você não emagrecer, vou te largar’. Tudo veio à tona: as piadas e os apelidos na escola, o distanciamento dos meus amigos. Já sabia o que fazer: Emagreça! Essa era a palavra de ordem.
Uma dieta simples e 1 hora de caminhada diária pareciam suficientes. As semanas passavam e o ponteiro da balança quase não se mexia. Pen-
sava em comida o tempo inteiro. Sentia fome, mas não podia engordar. Às vezes, mastigava a comida e depois a cuspia no lixo. Analisava-me em frente ao espelho e estava cada vez mais insatisfeita. Meu corpo cheio de curvas nunca me agradou. Eu precisava encontrar outro jeito para perder peso e, na internet, encontrei a Ana. Não seria fácil ser sua amiga, mas valeria a pena. Era só uma dieta e eu tinha o controle de tudo. A alimentação foi diminuindo gradativamente e os exercícios aumentando. Contava todas as calorias que ingeria. Passei a enganar meu corpo e não precisava mais comer todos os dias. Mexa-se! O tempo de exercício físico nunca era inferior a duas horas diárias. Não conseguia mais dormir direito e aproveitava esse tempo para fazer abdominais durante a madrugada. Alguns meses se passaram e o resultado era surpreendente: 57 kg. Ouvia muitos comentários que diziam o quanto estava bonita e magra, mas eu queria mais. Comecei a viver num mundo de mentiras. Em casa, dizia que já tinha comido na rua. Na escola, dizia que já tinha co-
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PADRÕES DE BELEZA mido em casa ou que estava sem fome. Mentia sobre como me sentia. Ocasionalmente, ouvia comentários como: ‘Isso tudo é para chamar atenção’ ou ‘Para de fazer show!’. A incompreensão me matava pouco a pouco. Algumas pessoas percebiam que algo estava errado. Minha mãe insistia para que eu fosse ao psicólogo. Mesmo sabendo que não adiantaria, aceitei. Consciente de que tudo que tende para o extremo também tende para a queda, eu continuei... e comecei a cair. Estava obcecada e me perdendo na escuridão, mas ninguém era capaz de me tirar dali. Parecia estar em um caminho sem volta.
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Já era verão. Pesava-me no mínimo três vezes ao dia para ter a certeza de que estava dando tudo certo. Uma simples maçã demandava um tempo mínimo de 40 minutos para ser consumida. Passei a usar laxantes e diuréticos para acelerar a perda de peso, mas nada parecia resolver.
alguns grãos de arroz, tomate e um pequeno pedaço de carne. Desesperadamente, minutos depois usei todos os truques que tinha lido na semana anterior sobre como provocar o vômito. Quase 1 hora debruçada no vaso sanitário. Tentei os dedos, a escova de dente e o cabo de uma colher, mas nada funcionava. ‘Não posso ficar com toda essa comida dentro de mim’, pensava. Prometi a mim mesma que, dali em diante, sempre que comesse além da conta, provocaria dor. E assim eu fiz brotar sangue da dor. No dia seguinte já tinha minha primeira cicatriz: um corte na coxa. 45 kg. Os ossos saltavam por todo o meu corpo e só eu não enxergava. Alguns meses depois já conseguia me alimentar melhor, mas me encontrava em outro extremo. Comecei a ter episódios compulsivos, nos quais eu comia tudo o que via pela frente. Certa vez me escondi no quarto com toda a comida que encontrei no armário da cozinha e a devorei em poucos minutos. Quando percebi que tinha
“Tentei os dedos, a escova de dente e o cabo de uma colher, mas nada funcionava. ‘Não posso ficar com toda essa comida dentro de mim’, pensava. Prometi a mim mesma que, dali em diante, sempre que comesse além da conta, provocaria dor.”
53 kg. Quanto mais emagrecia, mais feia me sentia. Usava roupas largas e compridas para que ninguém percebesse como estava gorda. Ninguém podia descobrir sobre aquele dia em que quase desmaiei, após ficar 7 dias sem comer. Os olhares já me incomodavam. Parte de mim negava qualquer socorro, mas os meus olhos deliravam por ajuda. Então, eu aceitei ir à minha primeira consulta ao psiquiatra. 49 quilos. Minha imagem no espelho era grotesca. Ele era meu avesso, meu pesadelo real. Nada era suficiente para conter minha mente insaciável. Era fácil dizer: ‘Sim, mãe, tomei os remédios’, quando na realidade jogava-os no vaso sanitário e apertava a descarga. No meio de toda essa história, minha maior tristeza era perceber o quanto a fazia sofrer. Ela não merecia isso. Então, segui adiante com o tratamento; agora, com a nutricionista. Tudo parecia me engordar: a pasta de dente, as folhas de alface e até a água. Eu sentia fome, muita fome. A culpa me consumiu quando me permiti um almoço baseado em beterraba,
perdido o controle, entrei em pânico. Foi aí que consegui uma nova amiga: a Mia. Sempre que entrava em desespero, ela me socorria. Vomitava até 6 vezes por dia, e às vezes nada saía – só o sangue. Mais uma vez saía sangue da minha dor. Já não sabia mais quem era. Não tinha mais forças para lutar sozinha. Busquei a perfeição e cheguei ao fundo do poço. Queria que a Ana e a Mia morressem e levassem com elas toda a dor que trouxeram. O reflexo no espelho não era meu. Encontrei forças que nunca imaginei que encontraria. Mesmo cambaleante, eu me reergui. Com o decorrer do tratamento, a Ana me abandonou. Em alguns meses passei dos 45 para os 70 kg. Passei os 4 anos seguintes tentando controlar a compulsão, o vômito e o sobe-e-desce da balança. De lá para cá, vez ou outra, a Mia vem me visitar, sem pedir licença. Quando percebo sua presença, trato logo de lhe servir um café forte, amargo e quente, e logo ela vai embora”. *Relato de uma jornalista que preferiu não se identificar
“DIGA ADEUS AOS FIOS ALISADOS!” Essa frase serviria de estímulo para quem quer deixar de vez a química. Porém, quase sempre ela vem acompanhada de expressões que relacionam a mudança de comportamento às tendências do mundo da moda. A transição capilar, período entre parar de fazer alisamento químico no cabelo e voltar para a textura natural, é um processo demorado e que exige muita paciência: tanto com os fios quanto com a própria releitura de si mesmo que essa mudança de postura pode trazer. Jéssica Fernanda, de 24 anos, começou a alisar o cabelo aos dez. Recentemente sentiu a necessidade de se reencontrar e decidiu começar a sua transição capilar: “Ao longo dos anos perdi a minha identidade para assumir o padrão liso perfeito. Hoje sinto uma liberdade indescritível! Sou livre para ser quem sou”. Decisão tomada, hora de dar início às mudanças. Além de reaprender a cuidar dos fios, Jéssica aponta mais uma dificuldade: os valores elevados dos produtos. De fato, é preciso investir em um ou outro. Contudo, mais importante que isso é aceitar seu tipo de cabelo e identificar qual técnica combina mais com ele. O erro mais comum que muitas crespas e cacheadas cometem desde cedo é tratar o cabelo como se ele fosse liso, usando o máximo de produto possível na esperança de dominar o volume. Um plano sem sucesso, já que cada textura precisa de uma atenção específica.
Foi passando por isso que Luana Silva, de 23 anos, resolveu dar dicas para outras garotas através do seu blog e canal no Youtube: “Antes, quando usava meu cabelo cacheado e na época de prancha também, eu não me sentia segura com ele, tentava a todo tempo domá-lo. Hoje, depois da transição, aceitei meu cabelo do jeito que é e acho lindo assim. Mesmo que esteja com frizz e cheio, faz parte de quem eu sou.” Responda com sinceridade: quantas vezes você se olha no espelho e critica alguma parte do seu corpo? De acordo com um vídeo criado pela empresa canadense Special K, 97% das mulheres têm um momento de “eu odeio o meu corpo” todos os dias. Os questionamentos vão desde o biotipo até o estilo de se vestir. “Eu sempre falo para minhas leitoras que cada uma é linda do jeito que é: não importa se é baixa, alta, magra, gordinha, tem cabelo liso, crespo ou cacheado. Cada menina é única e ninguém pode falar que você não está dentro dos padrões. Na minha opinião, os padrões da nossa sociedade não servem para nada, apenas para nos limitar”, defende Luana. Todo mundo lida com suas inseguranças, seja homem ou mulher, especialmente em um mundo onde a aparência é tão valorizada. No entanto, ninguém precisa se dissolver na multidão: somos todos indivíduos! Por mais assustador que seja se descobrir, é importante achar respostas para se aceitar. Como Billie Holiday costumava dizer: “Se for para cantar como outra pessoa, prefiro nem cantar”.
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IMUNIDADE TRIBUTÁRIA
Imunidade tributária para igrejas: Amém? Para quem? A legislação isenta organizações religiosas de pagar impostos incidentes sobre o patrimônio, a renda e os serviços prestados. Pórem, muitas entidades movimentam rendas bilionárias todo ano. Até que ponto esse benefício é necessário?
TEXTO CARLOS HENRIQUE MONTEIRO JÉSSICA FERNANDA CYNARA CARDOSO GISELLY RUFO ARTE HUDSON ORSINE
uma empresa privada, de acordo com sua área de atuação, para se manter ativa, deve pagar diversos tributos federais, estaduais e municipais, tais como o IRPJ, CSLL, PIS/Pasep, INSS, IPI, ICMS e ISS. Tudo isso é isento para as igrejas.
O templo de Salomão é a sede mundial da Igreja Universal do Reino de Deus. Por ser uma instituição sem fins lucrativos, a Igreja possui imunidade fiscal. Somente o custo deste templo chegou a R$ 680 milhões
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ai, pois, a César, o que é de César; e a Deus, o que é de Deus”. Estas são, segundo a fé cristã, palavras ditas por Jesus em resposta a alguns homens que o questionavam sobre os tributos que os judeus deveriam ou não pagar aos conquistadores romanos. Avançando na história, a realidade tem se mostrado bem diferente para as instituições religiosas no Brasil. A isenção tributária aos templos de qualquer culto está prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “b” da Constituição Federal de 1988. Na prática, a lei isenta entidades religiosas de pagar impostos incidentes sobre o patrimônio, a renda e os serviços prestados pelas organizações, desde que relacionados com as suas finalidades essenciais. Dados do IBGE de 2010 apontam que 93% da população brasileira professa alguma fé, sendo 86,8% declaradamente cristãos. A potência econômica alimentada pela crença gera números elevados, como as informações divulgadas pela Receita Federal, mostrando que, em 2012, as igrejas Católicas e Evangélicas arrecadaram R$ 21,5 bilhões entre dízimos, doações, vendas de produtos e aplicações financeiras. Para se ter uma referência,
Segundo o advogado tributarista e especialista em Direito Processual, Alisson de Sousa Dias, as entidades religiosas não são tributadas desde a Constituição de 1946. “O benefício fiscal sempre foi concebido como uma garantia de que a elevada carga tributária não inviabilizasse o desenvolvimento de suas finalidades essenciais. Algumas decisões judiciais vêm ampliando excessivamente as imunidades, o que contribui para que o benefício perca a sua essência”, explica. Ainda segundo o advogado, muitas instituições fazem um trabalho sério, mas a imunidade de qualquer culto pode facilitar as mais diversas ilicitudes, inclusive corrupção e lavagem de dinheiro. Líderes religiosos defendem a imunidade tributária para igrejas e templos religiosos sob o argumento do retorno para a sociedade. O pastor bacharel em Teologia, Marcos Silva Arantes, de Lagoa da Prata/MG, e o Padre Carlos Henrique Alves Resende, pároco em Divinópolis/MG, são a favor da imunidade. Segundo eles, muitas vezes a igreja faz papel do Estado, atuando em esferas onde o mesmo não atua
e mantendo projetos sociais e assistenciais que seriam inviáveis caso a imunidade não fosse aplicada. De acordo com ambos, as principais formas de arrecadação são dízimos e ofertas realizadas pelos fiéis. Porém, segundo o Pastor Luiz Eduardo Monticeli Carvalho, líder da comunidade Reformada Apaixonados por Cristo, “o benefício tem sido usado de forma traiçoeira por alguns líderes e pessoas que, às vezes, estão em busca de enriquecimento.”
Uma comerciante que tem um estabelecimento próximo a uma igreja em Divinópolis, e preferiu não se identificar ao ser questionada sobre o tema, disse: “A meu ver, é correto que a imunidade tributária seja dada às igrejas. Contudo, acredito que os benefícios devem ser dados tanto às igrejas quanto àquelas famílias que não têm condições de pagar impostos, como o IPTU.”
Algumas questões reacendem a discussão sobre a não tributação de entidades religiosas. A reportagem de janeiro de 2013 da revista Forbes traz Edir Macedo, Valdemiro Santiago e Silas Malafaia como os pastores mais ricos do Brasil, com fortunas acumuladas de 950, 220 e 150 milhões de dólares, respectivamente. Há instituições religiosas que ostentam mega construções, de valores astronômicos, e são isentas até mesmo de pagamento do IPTU, como o Templo de Salomão, inaugurado em 2014 pela Igreja Universal do Reino de Deus, com capacidade para 10 mil pessoas, e o Santuário Mãe de Deus, do padre Marcelo Rossi, que comporta 20 mil pessoas, ambos em São Paulo.
Já o empresário Gustavo Poyes tem uma visão contrária. Para ele, a isenção gera, atualmente, um grande problema, devido ao enriquecimento de líderes religiosos que protagonizam escândalos devido ao aumento exponencial de seu patrimônio, muitas vezes comprovadamente por meios ilícitos, envolvendo seus templos religiosos e desvios de dinheiro de fiéis. “A não tributação nesses casos abre precedentes de desvio de conduta devido à falta de regulamentação jurídica e tributária, deixando uma brecha para ilicitude nas movimentações financeiras. De maneira nenhuma está correta esta isenção, pois o Brasil é um estado laico e, por isso, não faz sentido imunidade a instituições de cunho religioso. Qualquer organização que permite enriquecimento de seus líderes deve ser tributada”, opina.
Anderson Saleme, vereador em Divinópolis/MG, opina sobre o assunto: “A imunidade se justifica pela igreja não ser entidade para fins lucrativos, mas para disseminar a crença e a fé. A elevada carga tributária poderia prejudicar as importantes atividades sociais das igrejas. No entanto, em tese, todo recurso arrecadado faz falta, e, no caso, se houvesse a possibilidade de arrecadação, estes recursos seriam aplicados para melhorar a atividade econômica do município.”
Para o músico e fiel Mateus dos Santos, de 19 anos, frequentador regular de uma igreja evangélica, a isenção tributária é válida. “Se bem aplicada, a imunidade é um benefício. Aprendi desde cedo o valor de se observar e obedecer as Sagradas Escrituras. Sou dizimista e faço doações para minha igreja, assim como a Bíblia ensina, mas não é uma obediência cega. Se tem evidência que um líder religioso é corrupto, eu não irei dar a ele o meu dinheiro”, afirma.
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MACONHA
UMA HISTÓRIA DE ANDRÉ O uso da maconha ainda é tabu na sociedade. É possivel mudar os conceitos sobre o uso dessa planta?
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uase todos os dias, André, de 28 anos, acende um cigarro antes de dormir. Ele faz isso há cerca de oito anos, quando descobriu esse fumo, diferente do tabaco ofertado no mercado. André diz que já sente o “agradecimento” do corpo. Ele constata isso quando percebe um relaxamento profundo: fica mais leve, enquanto os olhos pesam até se fecharem. Dá boas gargalhadas, às vezes involuntárias, quando fuma entre amigos. Segundo ele, esse fumo também é bom para a sua saúde: serve para dores de cabeça e no estômago, diminui a ansiedade e os sintomas da famosa ressaca. Porém, fumar esse cigarro não é uma coisa legal aos olhos da lei. Embora seus usuários não sejam presos por fazerem seu uso, eles sofrem as consequências dessa proibição de outra forma: se relacionam com o tráfico de drogas. Esta é a maconha. A maconha ainda é um tabu na sociedade. Uma das resistências à planta é a forma como ela é adquirida. Como o tráfico não está somente relacionado à venda de drogas, mas também à criminalidade, a maconha se inclui nesse contexto. Dessa forma, a discussão sobre a descriminalização entra em uma questão social. “Praticamente todos os casos que temos hoje no crime, de 70% a 80%, estão associados a alguma espécie de droga. É um momento muito difícil em que descriminalizamos o usuário e criminalizamos quem faz o fornecimento”, explica o advogado e professor de Direito Penal, Jarbas Lacerda. Alguns países já permitem a utilização da planta para fins medicinais, que, a propósito, é muito amplo. Outros, como é o caso da Holanda, permitem inclusive que as pessoas façam seu uso de forma recreativa, trabalhando os princípios psicoativos da planta. A principal defesa da descriminalização da maconha e mesmo de outras drogas está dentro dos direitos humanos e da liberdade do indivíduo.
TEXTO: RUTH FLORES FOTO: DÊNIO GUARIEIRO ARTE HUDSON ORSINE
Por outro lado, existe também a defesa de que a descriminalização não está somente relacionada à liberdade do indivíduo, desde que se faça uma leitura de âmbito social. Assim expõe Jarbas Lacerda: “Vivemos em um contexto social onde as escolhas de uns influenciam nos direitos dos outros. Qual o interesse que o Estado teria para fazer essa descriminalização? Só para respeitar o uso de quem gosta ou quer fazer o uso de determinada droga? Precisamos entender que, se é algo que repercute no contexto social, não pode ser uma decisão individual. E, para analisar o contexto, eu analiso não apenas a vontade dele, mas a repercussão que a droga tem, os crimes que são associados a ela. Se ela afetasse apenas a esfera do indivíduo, eu nem discutiria se ela deveria ser legalizada ou não.” Assim como André, existem usuários de maconha que levam uma vida dentro dos padrões considerados normais de um indivíduo na sociedade. Além de trabalhar como artesão, ele é formado em Biologia pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) e tem a maconha como uma forma de diversão. Ele vê a liberação da cannabis como uma maneira de preservar a saúde do usuário, simplesmente por permitir que a pessoa faça seu próprio cultivo, o que evitaria o acesso ao traficante. “Como fumo há muito tempo, tenho uma rede de contatos que sempre busca a maconha mais pura para comprar. Muito do que a gente fuma vem com misturas, galhos, pedaços de terra. Queremos fumar a flor, que é o que se fuma. Não fazemos mal a ninguém por isso, não ferimos o direito do outro, não fumamos em público, e creio que isso não vai mudar. Nós só teremos a liberdade de viver essa escolha, assim como outras pessoas consomem o álcool”, explica.
Porta de entrada? Existe a crença de que a maconha é porta de entrada para outras drogas e que, se a venda e o cultivo forem liberados, mais pessoas terão acesso e o consumo pode aumentar. No caso de Portugal, por exemplo, que descriminalizou todas as drogas em 2001, não houve aumento no consumo. Pelo contrário. O site do Instituto Ludwig Von Mises Brasil publicou em 2015 uma matéria sobre o assunto. O analista Frank Zobel, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), relata que, após a descriminalização, não houve nenhum tipo de caos generalizado e que a adoção dessa política funcionou no país. O delegado e professor de Direito, Domingos Sávio Calixto, expõe que o álcool, dentro da questão policial e social, apresenta mais riscos que a maconha. Não há registros de crimes relacionados diretamente à utilização da maconha, enquanto uma discussão em um bar pode acabar se tornando caso de polícia, assim como casos de violência doméstica, acidentes de trânsito e estupro: “Enquanto o álcool for liberado, nós não temos moral nenhuma para falar da maconha. Alguém fuma maconha, sobe no passeio e mata quatro pessoas? Alguém fuma maconha, chega em casa e ‘enche a mulher de porrada’? Para parte da sociedade, liberar a maconha vai ser o fim do mundo. Nesse sentido, o fim do mundo é o álcool”, pondera Calixto. A ponte entre a maconha e o usuário é o traficante. É justamente nas “bocas de fumo” que as pessoas têm acesso a outras drogas. No entanto, diferente de outras drogas, a cannabis é uma planta. Ela poderia ser cultivada pelo próprio usuário, o que não é permitido pela legislação brasileira. Há defensores da planta que dizem existir uma teia de interesses ao redor da criminalização da maconha. Ela apresenta, além do grande valor medicinal, importante valor econômico. Através dela se pode produzir vários produtos de uso cotidiano da sociedade. “A maconha vem de práticas estrangeiras, porque ela vem da cannabis, que é uma planta de grande potencial. Dela se faz corda, papel, remédio, combustível. Logo, eu preciso eliminar o concorrente, entendeu? Então, essa plantinha vai pagar por tudo”, completa Calixto.
Na concepção do professor e psicólogo Ânderson Matos, que é ativista em movimentos pró-maconha, o uso da erva deve ser tratado primeiramente como uma questão de saúde pública e direitos humanos. Para ele, o vício é pertinente à espécie humana, tanto na questão das drogas, como em outras coisas: café, chocolate e álcool. “A gente devia se curvar à realidade e ver que não existe um mundo sem drogas. Há o desejo de se conectar, de relaxar, de ter outra percepção. Não há nenhum pecado no sujeito deter uma outra forma de ver o mundo. Claro que existem casos extremos, em que a perca total da consciência vai apresentar algum risco para o sujeito ou pra outrem. Mas, obviamente, são casos pontuais”, reflete.
Preconceito histórico A esfera de preconceito sobre a maconha está contida na história do mundo. No Brasil, essa preocupação deu-se logo após a abolição da escravatura, através da necessidade de controle sobre uma classe minoritária, forra e negra. “Um grupo de pesquisadores da maconha no Brasil, na época pós abolição, achava, de alguma forma, que a classe alta podia associar a maconha no país com a presença dos negros. E, de fato, ela já existia na África. Então, alguns desses pesquisadores acreditam que a presença da maconha e de vários outros elementos da cultura negra refletiam um desejo de vingança. O que ocorria na observação que os pesquisadores da época fizeram foi o uso de roda de maconha junto com outros elementos da cultura negra, como o Candomblé, a Umbanda e a Capoeira”, conta Ânderson. Mas essa história não é difundida: a grande mídia não trata disso, embora trate do outro lado: o do consumo da maconha, que se relaciona com a criminalidade. “Toda desinformação que se tem só contribui para o pior. As pessoas acham que a descriminalização da maconha criaria um ‘boom’ no seu uso, que viraria uma epidemia. Vamos ter, proporcionalmente, problemas com alguém que abuse de droga da mesma forma como temos com o álcool. Então, pergunto: se descriminalizou a maconha, as pessoas que não a usam, passariam a usar? Para quê? Se você não usa, para que você vai usar?”, questiona o psicólogo.
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MACONHA
Conexão André não consente com a forma como a maconha é tratada. Na contramão, ele pesquisa e busca informações que mudaram completamente seu olhar sobre a planta. Exemplos são a sua utilização medicinal em outros países, alguns vizinhos, como o Uruguai. Depois de começar a usar maconha e, com o amadurecimento, ele inclina seu olhar sobre outras coisas: “Eu fico meio alheio às questões muito fortes implícitas pelo sistema. Não quero ser rico, mas quero ter dinheiro para fazer o que gosto. Não quero ter um carro do ano, mas quero ter um carrinho que me leve aonde eu quero ir. A maconha, junto a valores que me foram passados em toda a minha formação, contribuíram para essa visão: uma forma de vida mais natural. Muitas pessoas não vêem a cannabis com esse potencial todo que vejo, seja medicinal, financeiro, ou para melhorias na própria saúde e bem-estar. Eu fumo não para fugir de problemas, eu fumo para relaxar, para ter uma conexão mais sólida com a natureza e comigo mesmo”, finaliza.
“O SOL NASCE PARA TODOS, NÉ?” TEXTO HUDSON ORSINE WELITON BATISTA DANIEL GONZAGA ARTE HUDSON ORSINE
Passou da hora de esclarecer e questionar o mito da meritocracia Além de confusa, a ideia de meritocracia é cercada de ignorância e desinformação. Muitas pessoas acreditam ser um sistema usado e difundido pelo capitalismo ou até mesmo executado através da lei. Inicialmente, o conceito de meritocracia foi concebido no livro “The rise of the meritocracy”, publicado em 1958, que trata de uma distopia criada por Michel Young, um sociólogo britânico e ativista do Partido Trabalhista Inglês. Em sua ficção, a Inglaterra de 2034 aperfeiçoou sua capacidade de realizar testes de QI, definindo sua sociedade puramente baseada no resultado do seu teste. O autor usa o termo “meritocracia” como um substantivo pejorativo, evidenciando que uma sociedade firmada nesse regime cria uma gigantesca desigualdade social.
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Em sua obra, essa tentativa de criar harmonia social cria uma preocupação única com o talento individual. Os “perdedores” da guerra dos talentos não suportam o fato de serem considerados um fracasso por toda a vida e acabam se rebelando contra seus mestres. Apesar de ser originalmente um termo negativo, a meritocracia é considerada hoje um ideal positivo a ser alcançado. Afinal, o que define o mérito? Pode ser algo que tenha, de maneira geral, merecimento, seja intelectual, moral ou físico. Ou qualquer coisa digna de elogio ou recompensa. Para Sara Araújo, médica formada em uma faculdade particular, o mérito de se formar em Medicina depende do indivíduo, mas o acesso à oportunidade pode ser facilitado por quem pode pagar pelo curso. “Quando entrei na faculdade havia poucas vagas para bolsistas. Inicialmente, a turma tinha 90 alunos e apenas 5 eram bolsistas, pelo Prouni. Me esforcei tanto quanto eles para me formar, mas, sem dúvida, o acesso ao o acesso ao curso, para eles, era muito mais complicado”, pondera., para eles, era muito mais complicado”, pondera. Em outros campos da sociedade, a ideologia meritocrática pode ser mais justa, principalmente onde o sucesso depende exclusivamente do esforço individual. O esporte é um bom exemplo, já que, independente de classe, raça ou credo, poucos fatores podem auxiliar o sucesso de um
A Ascensão da Meritocracia é um ensaio satírico escrito pelo sociólogo e político britânico Michael Young, publicado pela primeira vez em 1958. Ele descreve a sociedade como distopia em um futuro Reino Unido em que a inteligência e mérito tornaram-se o princípio central da sociedade, substituindo divisões de classe social e criando uma sociedade estratificada entre um poder merecido, gerando uma elite e uma subclasse pessoas destituídas de mérito.
atleta a não ser o próprio esforço. O volante que disputou o Campeonato Mineiro 2016 pelo Guarani E.C., Renan do Tim, acredita que seu sucesso como jogador é mérito do seu próprio suor: “Em cada 10 crianças no Brasil, 11 querem ser jogadores de futebol. Essa era a realidade quando sai de casa, aos 11 anos. O desejo era me tornar um jogador profissional, ajudar minha família, e consegui, correndo atrás desse objetivo”. O atleta profissional realizou seu sonho de se manter e sustentar a família por meio daqui-
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MERITOCRACIA
lo que gosta de fazer. “Por todos os clubes por quais passei (16 times), sempre me dediquei e me entreguei ao máximo, e, graças a Deus, sempre pude jogar em todos. A gente sabe que a recompensa no futebol não é correta, mas hoje são vinte e um anos de luta e felicidade”, conta.
justiça? Como publicado no periódico britânico de estudos educacionais “Michael Young’s The Rise of the Meritocracy: A Philosophical Critique”, do filósofo e historiador Ansgar Allen, da Universidade de Sheffield, uma meritocracia só é perfeita quando a desigualdade é precisamente compatível com a habilidade individual. “Só seria possível conceber a administração de uma sociedade através de méritos se toda a população está no mesmo status social e pode concorrer às mesmas oportunidades, sem qualquer influência externa”, argumenta na obra. Portanto, de acordo com o historiador, numa sociedade em que o indivíduo que está à margem da sociedade tem que competir contra um indivíduo educado nas melhores escolas, estamos muito longe de ter uma competição justa. A disputa para o sucesso, de acordo com a meritocracia, não leva em consideração tais fatores sociais, criando a falsa impressão que a vida é uma competição justa. Mesmo que haja exceções, essas não validam a regra. O jornalista, advogado e contador Walter Gruen acredita que a meritocracia não é um sistema justo e pouco tem a ver com êxito financeiro, mas sim com a realização pessoal. Na visão atual da ideologia da meritocracia, o sucesso é a vitória exclusiva do indivíduo. E, para quem “venceu”, esse sistema é justo. Mas, e o oposto? O indivíduo que se esforça, mas nunca atingiu tal “sucesso”, tem culpa? “Por várias vezes vi pessoas que ganhavam promoções, vantagens e cargos, inclusive cargos públicos, simplesmente por serem filhos de alguém importante. Nessas ocasiões não faltavam pessoas mais qualificadas para assumir tais cargos, mas essa pessoa ‘sortuda’ acabava sendo escolhida. Essa situação já aconteceu comigo. Tem muita gente aqui que a família quer que o sujeito seja um jornalista, mas a pessoa não consegue escrever absolutamente nada. Ainda assim, essa pessoa continua trabalhando, porque a família garante”, pontua. Questionado se acredita que seu esforço teve mérito, Walter não titubeia: “Claro! Estudei muito e sou muito feliz com o que faço. Tenho 72 anos e não penso em me aposentar. Faço alguns trabalhos até hoje. Não acho que essa ideia tenha a ver com dinheiro ou cargo, mas sim com realiza-
ção pessoal”, analisa Gruen, que, após passar alguns períodos morando em hotéis de Divinópolis, hoje encontra-se no Lar dos Idosos, onde recebe o amparo de amigos, algumas visitas e combate o sedentarismo e o isolamento em uma nova rotina ao lado dos internos.
utopia Embora a maioria das organizações seja apologista da meritocracia, percebe-se que ela não se
expressa em sua totalidade em nenhum lugar. Governos de países como Finlândia e Singapura utilizam padrões meritocratas para a escolha de autoridades, mas influenciados também por outros conceitos. O governo brasileiro utiliza bolsas e cotas como recurso para deixar a disputa entre indivíduos mais justa, criando oportunidades para quem não tinha acesso ao ensino superior. O amplo uso da meritocracia como sistema de escolha não se mostra prático dentro da nossa so-
ciedade. Sem dúvida, a disputa entre indivíduos deve ser baseada em sua capacidade, mas nem sempre isso significa que competição seja justa. Quem está à margem da sociedade tem a mesma oportunidade que uma pessoa de classe média? Se após essa reflexão sua resposta for não, isso mostra que ainda falta um longo percurso para podermos afirmar que a meritocracia é um sistema justo. Caso sua resposta seja sim, talvez você não esteja à margem da sociedade.
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CU
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ão 8h. Você acaba de acordar e levanta da cama ainda no piloto automático. Cambaleando pelo quarto, sem ter muita noção de onde pisa, seu dedo mindinho do pé acaba indo diretamente contra a cômoda. Consumido pela raiva, sua boca espuma e eis que ele aparece: um sonoro e longo “VAI TOMAR NO CU” ecoa pelo ambiente e dita o ritmo do dia. Difícil encontrar uma pessoa que nunca tenha passado por situação parecida. Mais difícil ainda é encontrar quem nunca pronunciou a frase acima em algum momento da vida. O cu está na boca do povo. Até o Papa Francisco já pode ter exclamado tal frase em algum momento – sabendo que ele é torcedor assíduo do San Lorenzo, difícil imaginar que ele nunca a tenha dito. O que antes era uma ofensa gravíssima tornou-se gíria. Hoje, “vai tomar no cu” é falada rotineiramente em rodas de conversa nos quatro cantos do país. Mas o que é um “cu” e por que a frase foi considerada uma ofensa grave? Sabe-se lá quando o ânus, parte comum de todo organismo vivo, ganhou cu, sem acento, como sinônimo. Se todos o possuem, não seria extremamente comum falar sobre ele? Não exatamente. Em tempos antigos, o corpo e suas intimidades eram motivo de vergonha perante a sociedade. Falar em voz alta sobre elas, era chocante e visto como obra de Satanás. Steven Pinker, psicólogo, linguista e professor de Harvard que se dedica aos estudos dos palavrões, acredita que a raiz histórica de vários palavrões seja a Idade Média, quan-
TEXTO MATHEUS GARROCHO
do Deus e o inferno eram uma “presença real”. Com o passar dos anos e a evolução da sociedade (nem tanto), estes paradigmas foram se rompendo. Contudo, algumas ressalvas ainda permanecem – e o cu é uma delas. Ainda é extremamente ofensivo falar sobre a parte do corpo responsável por eliminar o que não foi consumido pelo nosso corpo; processo conhecido popularmente como cagar, fazer cocô, etc. O ânus é responsável pela regulagem do corpo humano. Além da boca, é ele quem solta a maioria das merdas de nossas vidas. Entremos de forma mais profunda no cu para entender de onde veio seu significado e o que ele realmente é. Pode parecer estranho, mas cu nem sempre foi a palavra usada para se referir ao ânus. Em seu livro “Com a língua de fora”, o jornalis-ta Luiz Costa Pereira Junior conta que, antigamente, bem antigamente mesmo, cu era o nome dado à parte de trás da agulha, por onde passa-se a linha para que seja possível costurar. Como a parte de trás de uma agulha transformou-se em sinônimo do orifício anal? Alguma alma esperta reparou que, assim como a agulha, o fundo do homem é furado e que ambos são apertados, o que dificulta que qualquer coisa passe por ali. Para a pesquisadora da Universidade de Stanford, Melissa Mohr, autora do livro “HolySh*t, a brief history of swearing”, esse tipo de palavra faz com que as pessoas compreendam a força de seu sentimento sobre algo e o quanto aquilo significa para elas. “Estudos mostram que palavrões fazem as pessoas se sentirem unidas, como parte de um grupo. Além disso, você é capaz de permanecer com a mão em um copo com água gelada por mais tempo se estiver xingando do que se estiver pronunciando palavras neutras. Isto porque palavrões levam ao aumento dos
batimentos cardíacos e faz as mãos suarem”, completa.
CU BANALIZADO
Com o passar dos anos, o uso do cu ficou banalizado e passou a chamar-se de cu apenas o ânus, enquanto o buraco da agulha ficou conhecido no mundo todo como... buraco da agulha. Hoje, “vai tomar no cu” é usado em diversas situações: “Ah, vai tomar no cu. Sério mesmo?”, diz o incrédulo. “Oooorra, velho, tomar no cu!”, exclama o chateado.
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do Cefet/MG em Belo Horizonte, escreveu, em 2008, um poema retratando o ciúme de uma mulher com um homem. Em “Ciuminho básico”, a autora mostra uma mulher ciumenta que deseja proteger seu homem das outras: coisa que a própria Ana Elisa afirma ser impossível na vida real. O texto, de teor adulto, que contém “cu” e diversos outros palavrões, foi repassado, sem análise prévia de seu conteúdo por quem fez isso, a uma turma de 5º ano de uma escola de Santa Luzia, região meropolitana de Belo Horizonte, quando os alunos se
O cu é algo universal. Não só por fazer parte do organismo de todos os seres humanos, mas por estar presente em todas as línguas do mundo. Usado em diversas horas do dia e em diferentes situações, ele é algo que representa as mais diversas emoções: alegria, tristeza, raiva, dentre outras.
“Aaaaaah, porra, tomar no cuuuuu!”, grita o torcedor entusiasmado com a vitória do seu time sobre o rival.
preparavam para receber Ana e outros autores, em um evento literário em 2015.
Em 2007, ainda nos primórdios da internet, Cris Nicolotti, atriz com mais de 30 anos de carreira, compôs a canção que mudaria a sua vida. O refrão “vai tomar no cu, vai tomar no cu, vai tomar no cu... bem no meio do seu cu” ecoou pela versão neandertal do YouTube e rendeu a ela um prêmio no Video Music Brasil, da MTV, naquele ano. “Após 30 anos de carreira, tanta luta atrás de patrocínio, de estudar a vida inteira, faço sucesso por causa de um cu”, afirmou a atriz e compositora da canção após o sucesso repentino da música, que chegou a ter uma versão declamada pela apresentadora Eliana em um teatro.
Pais insatisfeitos com o teor do texto repassado aos alunos procuraram a escola e a Secretaria Municipal de Educação. Ambos disseram que o texto foi passado aos alunos sem conhecimento prévio de seu conteúdo. A mídia classificou o poema como “erótico” e a vice-diretora e a professora de português da escola foram exoneradas de seus cargos.
O cu é algo universal. Não só por fazer parte do organismo de todos os seres humanos, mas por estar presente em todas as línguas do mundo. Usado em diversas horas do dia e em diferentes situações, ele é algo que representa as mais diversas emoções: alegria, tristeza, raiva, dentre outras.
PALAVRÕES POLÊMICOS
Ana Elisa Ribeiro, autora e professora
Com a repercussão do caso na imprensa, Ana disse no Facebook que jornais foram procurá-la como se ela fosse culpada do ocorrido, além de criticar o fato das funcionárias que foram exoneradas. Os jornais classificaram a escritora como “sórdida” e a acusaram de incitar a violência. Falta de letramento literário e digital, falta de contextualização e interpretação do acontecido, além da hipocrisia vigente, segundo ela. “Como uma ciumenta furiosa chamaria as partes do corpo? Por seus nomes científicos? Chegaremos logo a isso, se depender da imprensa e das coerções que a escola sofre, quando o assunto é a aula de literatura”, concluiu.
ABANDONO ANIMAL
Uma Pesquisa Nacional de Saúde divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que o Brasil ocupa o 4º lugar entre os países com maior número de animais de estimação (132 milhões) e o segundo lugar em espécies como cães, gatos e aves, perdendo apenas para os EUA. De todos os municípios brasileiros localizados nas áreas rurais, 65% têm pelo menos um cachorro, enquanto a proporção de lares com ao menos um cão na zona urbana é de 41%. Mais do que afeto e companheirismo, os dados revelam milhões de animais de estimação em todo o país gerando custos para as famílias. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (ABINPET), o gasto médio mensal com um animal pode variar de R$ 15 a mais de R$ 307. A variação está ligada ao tipo e porte do animal. O custo médio anual de um cão de porte grande, por exemplo, pode chegar a R$ 4 mil. Estes valores incluem gastos com ração, vermífugos, vacina, banho, tosa e veterinário, entre outros. O setor de produtos destinados aos bichinhos arrecada, em média, R$ 17,9 bilhões por ano, sendo a maior fatia do faturamento dos lucros provindos de Pet Foods (alimentos, snacks e bifinhos). Ao adotar ou comprar um pet, estes valores quase não são levados em consideração. Sem saber o quanto deve investir para manter o animal em condições básicas de saúde e alimentação, o dono acaba se perdendo e se submete a uma triste realidade encontrada nas ruas: o abandono. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, no Brasil, existam mais de 30 milhões de animais abandonados: cerca de 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães. Em cidades de grande porte, para cada cinco habitantes há um cachorro; destes, 10% estão aban-
donados. Nas menores não é diferente: em alguns casos, o número chega a 1/4 da população humana.
TEXTO ANDRESSA RABELO MARCO ANTONIO ROSA LAYLLA SANTOS MARIANA SANTOS FOTO BRUNA COSTA JULIO PALESTINI
Mas esta realidade é apenas o início de um ciclo ainda mais cruel. Como se não bastasse ficarem expostos a doenças e fome nas ruas, muitos são alvos de agressões, a maioria envolvendo cães. Este foi o caso do Pit Bull Vitório, nome dado por Catarina Silva, que há dois anos o encontrou espancado por pauladas e com membros do corpo, como pênis e dedos, arrancados. Além dos danos causados pela agressão, ele tinha desenvolvido uma doença de pele, aparentemente provocada pela aplicação de hormônios, já que ele foi criado para rixas. "A doença que diminuiu o desempenho dele parece ter motivado o abandono e a agressão feita pelo dono", conta Catarina, que desde então cuida de Vitório. Na tentativa de minimizar esses impactos surgiram vários grupos voluntários motivados pela sobrevivência e adoção de animais maltratados. Um deles, o “Socorro aos Anjos Indefesos”, foi inspirado pela própria Catarina, mesmo com poucas condições para dar assistência aos animais. “Não somos uma ONG, não temos ajuda de órgãos municipais. Recebemos apenas doações voluntárias”, explica.
PINDUCA
Em Pitangui/MG, a 65 km de Divinópolis, um caso parecido ganhou destaque estadual: o espancamento do filhote Pinduca, praticado pelo vizinho que foi pego em flagrante e responde pelo ato em liberdade. Segundo a dona do filhote, que preferiu não ter seu nome divulgado, o cão ainda se recupera das pauladas que levou na cabeça, que causaram traumatismo craniano e deixaram algumas sequelas.
Diante do caso e movidos por tristeza e revolta, alguns voluntários enviaram um ofício para a Câmara de Vereadores de Pitangui cobrando uma Lei Municipal em defesa e bem-estar dos animais. “Em decorrência da nossa insistência, a lei foi levada à votação em tempo recorde e aprovada por unanimidade por todos os vereadores”, conta Luciene Resende, vice-presidente de uma ONG protetora de animais da cidade. A Lei Municipal nº. 2.314 é abrangente e prevê penalidades “contra quem maltratar, ou, por exemplo, deixar de ali-
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Em Divinópolis, um projeto de lei com a mesma proposta tramita na Câmara Municipal de Vereadores. Se aprovado e sancionado, serão realizadas ações de fiscalização por meio das secretarias municipais de Meio Ambiente, de Saúde e de Defesa Social, além de outros órgãos competentes. O agressor primeiro será advertido por escrito e depois multado. Caso se trate de um estabelecimento comercial, o proprietário pode perder o alvará.
“Existem vários ‘Pinducas’ por aí, sofrendo maus-tratos todos os dias, sendo abandonados e esquecidos pela sociedade. O caso teve essa repercussão toda porque os tutores sabiam quem era o agressor e a denúncia foi feita, ao contrário de outros casos, em que as pessoas presenciam, na maioria das vezes, e não têm coragem de denunciar.”
mentar o animal ou deixar de levar ao veterinário cães que estejam doentes.” A multa para quem descumprir a lei varia de R$ 750 a R$75 mil, tendo em vista a condição financeira do agressor. Os valores arrecadados serão encaminhados para um fundo municipal específico para programas de defesa de animais e também para atender os bichinhos vítimas dos maus tratos.
Atitudes como essas podem minimizar o fato do Brasil não ter nenhuma lei específica sobre abandono animal e nem possuir efetividade na fiscalização para defender os animais de maus tratos. “O artigo 32 da lei que trata sobre crimes ambientais, nº9605/98, prevê pena de detenção de três meses a um ano e multa a quem praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar ami-
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ABANDONO ANIMAL mais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”, explica o cabo André Felício, da Polícia Militar do Meio Ambiente de Divinópolis. Ele explica ainda que é de responsabilidade do órgão ir até o local mediante denúncia e, caso haja evidências de maus tratos, encaminhar o animal para o órgão público competente.
EDUCAÇÃO
O Crevisa (Centro de Referência de Vigilância em Saúde Ambiental), que faz parte da Diretoria de Vigilância em Saúde de Divinópolis, é o órgão municipal responsável pelo trabalho de controle da população de cães e gatos. O coordenador do espaço, Alex Marcelino, conta que lá existe um canil com capacidade para abrigar até 72 cães e 30 gatos: “As medidas de controle da população de animais de rua são fundamentadas no procedimento de castração, para evitar crias indesejadas. Esse trabalho é realizado em cães de rua e animais de proprietários com agendamento prévio. Por isso, nunca aconteceu dos canis ficarem lotados, por causa do sistema de trabalho que temos de captura e devolução do animal ao local de origem.” De acordo com ele, mais de 2 mil animais já passaram por este procedimento no Crevisa. A estimativa é de que, em Divinópolis, existam cerca de 29 mil cães, com base no número de imunizados na última campanha de vacinação antirrábica realizada na cidade. Levando em consideração o cálculo da OMS de 5% de animais abandonados para cada domiciliado, chega-se a aproximadamente 1.450 cães vadios ou de rua no município. “Às vezes pensamos que este número seja maior, mas muitos animais que vemos nas ruas são semi-domiciliados, isto é, eles têm dono, um lar, mas saem e voltam da rua sem supervisão”, completa Alex.
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De acordo com ele, uma ação conjunta entre os órgãos responsáveis e a população parece ser um ponto de partida para promover mudanças. “É preciso educar as pessoas nesse sentido, para que não abandonem animais na rua e assumam a responsabilidade ao adotar um cão. Terão que oferecer abrigo, água e comida. Não deve ser descartado devido a mudanças, como a chegada de uma criança, doença e tantos outros motivos”, explica.
Enquanto isso não acontece, a busca por respostas continua para entender: qual o papel do homem nessa relação com o melhor amigo?
Overdose ou suicídio literário? Convenhamos, você já presenciou ou sofreu de um dos dois. Duvido que, de todos os livros que você já leu, nenhum tenha causado a típica DPL (Depressão Pós-Leitura). A conexão livro/leitor chega a ser tão intensa que afeta nossas ações e pensamentos. E esse relacionamento pode causar graves consequências. Será?
TEXTO TAISA MELO CARLA EMILIA IZABELA ORTIZ FOTO PROF. DOUGLAS FERNANDES ARTE HUDSON ORSINE
LITERATURA
CAPÍTULO 1 – Você é o que você lê? A Universidade de Ohio e o Dartmouth College (EUA) fizeram um estudo para testar como a leitura afeta nossas decisões. E adivinhe? Foi comprovado que, em certas ocasiões, mesmo que temporariamente, a leitura causa mudanças reais. O experimento mostra que, quando as pessoas se envolvem profundamente com o personagem de alguma obra literária, ela passa a ter as mesmas crenças e sentimentos do “amigo” que vive nas páginas. Aproveitando as horas na fila para conseguir um autógrafo da Paula Pimenta, autora da série FMF (Fazendo Meu Filme), na Bienal do Livro de Minas Gerais, percebi que todos que estavam ali tinham algo em comum: a paixão por romances. Vi garotas gritando, tremendo, com o coração disparado e até chorando. Não, não estou exagerando: é incontrolável! Minha reação foi parecida. Para quem adora aquele cheirinho de livro, nada melhor que uma biblioteca, livraria ou sebo, certo? Daniel Bicalho, proprietário da Boutique do Livro, em Divinópolis, acredita na magia que sai das páginas de cada edição. Para ele, livro é um objeto transcendental e comprar livros é como se cercar de arte. “Precisamos dessa arte a nossa volta”, aconselha. Legal mesmo é quando alguém usa esta paixão para criar histórias. Raphael Vitoi é um jovem escritor que usa a prosa e a poesia para colocar seus sentimentos no papel e em sua página no Facebook. Ele acredita que as pessoas devem ter cuidado para consumir coisas que vão gerar o maior valor possível e supri-las existencialmente. “Através da literatura encontrei um campo onde podia usar minhas aptidões, e, desde cedo, produzir. Não é preciso mais do que um lápis e um papel para começar a inventar histórias”, conta.
CAPÍTULO 2 – O que acontece comigo? Você já criou vozes para os personagens das histórias na sua cabeça? Acredite, você não está sozinho. Como explica o psicólogo e professor Eustáquio José de Souza Júnior, a leitura mobiliza diversas capacidades humanas e está relacionada com aquilo que somos. Segundo ele, o tipo de leitura escolhida só poderá afetar alguém se houver um interesse já existente sobre o assunto desenvolvido na história contada. Enquanto estamos mergulhados no novo mundo que a leitura nos mostra, o cérebro reage de diferentes formas: nossa mente reproduz cheiros, sons, imagens... É por meio dessas sensações que nos tornamos parte do universo que acompanhamos do outro lado das páginas. O professor de literatura Juvenal Bernardes explica que a leitura, em si, muda pessoas, mas não o mundo. Ele afirma que nós transformamos o ambiente onde vivemos e podemos até ser influenciados pela leitura. Porém, para mudar o mundo há uma série de variáveis que nos motivam, não somente a literatura. O booktuber Ricardo Monteiro, do canal Diário do Rick, no YouTube, criou o canal para compartilhar suas experiências com a leitura e acabou tendo muitas descobertas. Ele conta que até mudou seu ponto de vista a respeito de temas polêmicos através dos livros, por isso não devemos nos limitar. Agora ele se interessa não apenas pelos romances, mas por livros que tenham conteúdos sobre relações homossexuais, identidade de gênero e feminismo. “Livros sobre assuntos que não conhecia me abriram a mente”, comenta, orgulhoso.
CAPÍTULO 3 – Como você lê? Você tem tempo para ler? Se sua resposta for não, é melhor repensar este hábito. Seja romance, ficção, comédia ou drama, com a leitura você pode controlar a ansiedade, esquecer-se dos problemas e até mesmo resolvê-los, pois, ao terminar uma história, resta ao menos uma palavra de motivação ou inspiração. Além do mais, hoje é possível encontrar sua história favorita (ou uma que vai se tornar) em muitas plataformas, como audiobooks, e-books e o bom e velho livro físico. Divinópolis é uma cidade de leitores, segundo um levantamento feito no ano passado pela Data Cultura, realizado pelo presidente da Câmara Mineira do Livro, Zulmar Wernke, e publicado na edição impressa “O livro em Minas Gerais”. Os dados apontam que 55% dos divinopolitanos entrevistados se declararam apaixonados pela literatura. Para o autor da pesquisa, pessoas leitoras são mais livres, mais criativas e mais propensas a aceitar o diferente. Antes que eu me esqueça, a leitura está a cada dia mais atrelada à tecnologia, o que pode trazer bons frutos. Por isso realizei uma enquete em um dos grupos sobre livros do qual participo (Clube do Livro). Já que muitas pessoas revelaram sua paixão pela literatura, vou destacar a que mais me identifiquei: “Sou tão eclética que, para ser o que leio, teria que ser culta, dark, puta, dramática, romântica e infantil.” Esta é a opinião de Ana Cristina Silva, do Rio Grande do Sul, que considera ler mais do que um hobby, uma necessidade. Então, caro leitor, seja impressa ou virtual, literatura é arte e arte é alimento para a alma. Ler é muito mais que viajar sem sair do lugar. É ver suas dúvidas e anseios nos seus personagens favoritos, é adquirir mais conhecimento sobre as coisas e sobre você mesmo. É ser quem quiser e onde quiser. Mas lembre-se: você só é o que você lê a partir do momento em que se deixa influenciar. Quer um conselho? Se envolva com boas histórias, com boas palavras, esteja aberto a revisitar os clássicos e a conhecer novas narrativas. Seja um viajante desse universo sem limites: LEIA!
P.S: Agora sim, pode virar a página.
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Maçonaria:
o segredo está acabando? TEXTO ISADORA SANTANA YURI CAMPOS ARTE HUDSON ORSINE
Rodeada de mistérios e mitos, muitas dúvidas e boatos persistem sobre a verdadeira face da Maçonaria. Especula-se que a sociedade maçônica interfere fortemente nos acontecimentos políticos e no curso histórico da humanidade. Por que nesta organização tudo é tão misterioso?
O
ritual de iniciação começou às 23h de sábado, na Loja Maçônica Cavaleiros da Casa Real, em Divinópolis. As velas acesas são as únicas fontes de luz. Sete homens estão posicionados no centro do salão. Ao comando do Venerável-Mestre, eles se ajoelham de costas para os outros candidatos, formando um pequeno círculo. Com as línguas para fora, o líder derruba gotas de cera na língua de cada um. Expressões de dor são visíveis, mesmo na luz tênue. Em seguida, os 20 maçons presentes repetem o gesto. As línguas ficam cobertas pela cera. Eles não podem fechar a boca ou cuspir. Esperam pelo último passo: engolir o material com sangue de galinha abatida. Se você acreditou nesse ritual, faz parte de uma grande maioria que desconhece a Maçonaria. Em todo o processo descrito, a única verdade é a presença de um Venerável-Mestre, o cargo de autoridade máxima na loja. Apesar de não ser mais uma sociedade tão secreta pela simples razão de sua existência ser amplamente conhecida, ainda existem segredos que só são conhecidos por meio do ingresso na instituição. O modo de interpretar seus símbolos e os ensinamentos neles contidos podem ser os meios que os maçons encontraram de reconhecerem-se, tais como os misteriosos cumprimentos. Para o maçom Luiz Carlos de Araújo Filho, frequentador da Loja Veritas
Vincit, em Divinópolis, e da Loja Caminhos da Luz, em Nova Serrana, toda essa aura mística está relacionada à história e origem da organização. No dia 24 de junho de 1717, na Inglaterra, surge a Grande Loja Maçônica. Naquela época, a Inquisição Católica perseguia qualquer pessoa que pensasse diferente de seus dogmas, entre estes, os maçons. Por isso, a sociedade preservou-se secreta por muitos anos. Luiz Carlos explica que a Maçonaria não realiza rituais, mas sim reuniões, na sua maioria filosóficas. Sobre a questão dos homens enriquecerem após entrarem para a organização, ele desmente: “Quem entra com essa finalidade logo percebe que não é esse o propósito e sai em pouco tempo e por conta própria”. Para ele, as mulheres não são aceitas como forma de manter a tradição, visto que, no período histórico, quando a Maçonaria se consolidou, elas eram subjugadas e não dispunham de muitos direitos. Sobre a influência na política exercida pela maçonaria, o DeMolay (organização juvenil unificada e dirigida por maçons, voltada para jovens de 12 a 21 anos, com intuitos filosóficos, filantrópicos e sem fins lucrativos) Lucas Morais salienta que é uma questão delicada. Ele explica que a irmandade envolve toda a sociedade. Ao entrar para a organização, os integrantes formam uma família. Tratam-se como irmãos, as esposas dos maçons como cunhadas, as filhas das cunhadas de sobrinhas e assim por diante. Dessa forma, a irmandade os fortalece. Se solicitarem um apoio para um irmão, eles recebem esse apoio. No Bra-
sil, a Maçonaria teve fortes influências no processo de Independência, na Abolição da Escravatura, na Proclamação da República e na maior parte dos principais eventos políticos. Quando questionado se esse “poder” está enfraquecido, Lucas acredita que a influência continua tão grande como antes, mas não é possível saber até onde conseguem interferir.
Uma vez maçom, sempre maçom Recentemente, a “Folha de S. Paulo” publicou uma reportagem afirmando que a Maçonaria estaria recrutando membros nas redes sociais. Um repórter se passou por candidato, preencheu a ficha de inscrição e foi chamado para uma entrevista. No fim, uma advertência foi dada: “Nós estamos em todos os lugares e em todos os níveis hierárquicos, por isso é fácil saber mais sobre você”. Quando a equipe informou à loja maçônica que o processo seletivo seria tema de uma reportagem, a resposta foi: “O silêncio e a discrição sempre norteiam nossos trabalhos, portanto não vamos nos manifestar oficialmente sobre o assunto, que de fato é controverso. Saudações fraternais”. Flávio Gontijo Figueira, maçom da Loja Dilson Vieira da Fonseca, de Belo Horizonte, afirma que as instituições reconhecidas pelo Grande Oriente do Brasil (GOB) (maior associação de lojas maçônicas do país, que age como órgão regulador) não recrutam pelas redes sociais. Ainda hoje o único meio para se tornar um membro é por indicação. Porém, existem lojas não reconhecidas pelo GOB, sobre as quais ele desconhece a forma como admitem novos membros. Outra dúvida recorrente é sobre a contribuição mensal que os maçons fazem para as lojas. De acordo com Flávio, a mensalidade existe para cobrir as despesas do estabelecimento, como contas de água, luz, aluguel (caso exista), e também para o custo de bebidas e comidas presentes nas reuniões. Por isso, o valor não é fixo, varia de loja para loja, dependendo do local e total de membros. Ainda segundo o maçom, uma vez membro, sempre será um membro, a menos que seja expulso. Como um católico não praticante, existem maçons não praticantes também. Em relação à expulsão de um maçom, é raro acontecer, mas não impossível. O jornal “Gazeta do Oeste” divulgou em 16 de março de 2012 uma nota que as Lojas Maçônicas de Divinópolis enviaram pela internet sobre a expulsão de um maçom, tido na
época como principal suspeito de abusar sexualmente de um adolescente de 13 anos, no bairro Vila Belo Horizonte, em fevereiro de 2011. A nota termina com os dizeres: “Cumpre-nos ainda lembrar que nenhuma instituição, seja governamental, não governamental ou religiosa, por mais séria e rigorosa que seja, está imune a lamentáveis contratempos desta espécie”. Apesar de atualmente estar mais aberta ao público, a Maçonaria ainda é uma instituição que mantém fortemente a tradição. Grande parte permanece um mistério, já que o silêncio e a discrição são fortemente preservados por eles. Ou será que o grande segredo é não ter segredo algum? Quem sabe encontraram nessa aura mística uma forma de manterem-se engrandecidos diante dos olhos crédulos da sociedade comum? Algumas das Ordens Paramaçônicas DeMolay: A Ordem DeMolay não é uma instituição maçônica juvenil, mas sim unificada e dirigida por Maçons. Voltada para jovens do sexo masculino entre 12 e 21 anos, possui fins filosóficos e filantrópicos. Fraternidade Feminina e Clube das Acácias: Integradas pelas esposas dos maçons. Promovem a integração das famílias maçônicas e executam trabalhos socioculturais, prestando serviços e arrecadando fundos destinados a instituições carentes. Estrela do Oriente: Fazem parte maçons e mulheres maiores de idade com algum parentesco. Os principais objetivos são: educar, ressaltar valores morais e espirituais, fazer caridade e servir ao próximo. Filhas de Jó: É destinada a jovens do sexo feminino entre 10 e 20 anos (incompletos). Baseada nos ensinamentos bíblicos sobre a vida de Jó, tem como um dos objetivos o serviço à comunidade. Meninas do Arco-íris: Para meninas com idade entre 11 e 20 anos. O objetivo é promover a comunicação efetiva, habilidades de liderança e, principalmente, servir à comunidade.
SUICÍDIO
Rompendo o senso comum do suicídio TEXTO Alexandre Reis Ana Gabriella Santos FOTO Prof. Douglas Fernandes
Sim, precisamos falar sobre isso.
F
alar sobre suicídio tornou-se tabu e o medo de instigar alguém a cometer o ato faz com que grande parte da sociedade se cale. Mas a ignorância em torno do tema ainda não é capaz de frear os altos índices de autoextermínio. Para o psiquiatra Filipe Augusto Cursino, especialista na área da infância e adolescência, a desesperança é o sentimento que mais aflige quem pensa em se matar. Os transtornos depressivos, o abuso de substâncias e até alguns casos de esquizofrenia e transtorno de personalidade são algumas das causas que levam o indivíduo a pensar no suicídio. É válido ressaltar que cada pessoa sente e age de maneira diferente. Não há padrão que defina quem irá ou não atentar contra a própria vida. O psiquiatra informa que mais registros de suicídio surgem todos os dias. A falta de assistência à saúde com profissionais capacitados, uma sociedade preconceituosa e a desinformação são alguns dos fatores que ajudam a elevar essa taxa. O sensacionalismo em volta do tema também dificulta o debate e pode prejudicar muitas vidas. “Uma abordagem excessivamente dramática, com muitos detalhes, ou com qualquer tipo de glorificação ao suicídio, o que infelizmente existe, pode ser perigosa”, disse Filipe. Em 2012, de acordo com o relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), 11.821 pessoas se suicidaram no Brasil. Dessas, 9.198 eram homens. A alta taxa pode ser consequência do machismo que paira na sociedade e força o homem a aprender, desde cedo, a não buscar ajuda. Filipe Cursino comenta: “Homens, no meio social brasileiro, têm uma tendência maior ao isolamento social e procuram menos assistência à saúde do que as mulheres para uma mesma condição”. O suicídio no Brasil é caso de notificação compulsória. Ou seja, os órgãos de saúde são obrigados a notificar o ocorrido ao governo toda vez que alguém se mata. Atualmente, o Brasil é o 8° país com o maior índice de suicídios no mundo, segundo a OMS. Algumas entidades, como o Centro de Valorização da Vida (CVV) e a Associação
Brasileira de Estudos e Prevenção ao Suicídio (ABEPS), tentam diminuir esses números. Segundo Filipe, uma maneira de abordar o assunto com alguém que está cogitando o autoextermínio é através do diálogo sem julgamento. Buscar ajuda é a primeira atitude que deve ser tomada. “Psiquiatria, psicologia, quem puder ajudar. Mas se você não tiver acesso a uma equipe de saúde, procure alguma outra forma. Uma igreja, o Centro de Valorização da Vida, seus amigos, sua família. Peça ajuda!”, exclama o psiquiatra.
Debate silencioso Ainda não foi provado que um debate equilibrado e responsável na mídia sobre suicídio, a fim de problematizá-lo e humanizá-lo, seja estímulo para a ocorrência de novos casos. Existe, isso sim, no jornalismo, principalmente no brasileiro, um conjunto de generalizações tais como “falar
sobre suicídio gera suicídio”. Na verdade, são “leis” mal elaboradas, criadas nas redações dos veículos de comunicação, e pela própria sociedade, que, aos poucos, taxaram o autoextermínio como assunto proibido. Só se noticia caso a vítima tenha influência a ponto de carregar um mínimo de interesse público. A questão central, no entanto, não é se o suicídio deva ou não ser noticiado. Se 800 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos – uma a cada 40 segundos –, como mostra o relatório global da OMS de 2014, isso é motivo para que jornalistas, enquanto agentes sociais, convidem a população ao debate. O ponto-chave é a forma como o suicídio é (ou não) notícia e como ela é interpretada pela sociedade. É escassa a produção jornalística sobre suicídio. Quando é pauta, ou torna-se um informativo com números, sem qualquer contextualização, ou vira refém do sensacionalismo, quando as premissas básicas do jornalismo são ignoradas. Letícia Enes Soares, de 32 anos, é jornalista e viveu uma traumática experiência. Sua mãe, Rosana Resende Enes, era auxiliar de enfermagem e suicidou-se em 2010, aos 53 anos, em Divinópolis. Um site de notícias da cidade não só detalhou o ocorrido, como também o ilustrou com fotos do corpo da vítima. Posteriormente, boa parte das imagens foi deletada e a dona do veículo procurou Letícia para se desculpar. Letícia afirma que é muito saudável e enriquecedor o debate sobre o tema. “Não tenho a pretensão de apontar qual é a conduta ideal do jornalista que seja capaz de legitimar sua atividade profissional. Busco apresentar minha opinião sobre o suicídio. Perdi uma pessoa muito próxima dessa forma triste e posso garantir que nunca refleti sobre a questão como agora. Sabe por que isso não ocorreu? Porque a dor e o sofrimento de perder minha mãe dessa maneira não me permitiram. Isso ocorreu 39 dias depois da morte do seu filho mais velho, meu irmão, vítima de câncer aos 30 anos”, relata.
A veiculação do ocorrido na imprensa local, por meio de um site de notícias, tornou o suicídio público. Segundo lembra a jornalista, diante da tragédia familiar, a divulgação irresponsável não conseguiu aumentar sua dor, que já era incalculável. “A lembrança que tenho é que houve a manifestação de vários profissionais da imprensa repudiando a atuação deste veículo, solidários à minha dor. Sobretudo, condenavam a veiculação de uma matéria em que foram expostas fotos de todos os ângulos possíveis do corpo estirado no chão. Lembro-me que a foto foi tirada de cima para baixo, mostrando o corpo ao chão, no vão lateral do prédio, e o atendimento dos profissionais que ali estavam. É uma foto que ilustra a visão que minha mãe teve quando se jogou do alto do prédio. Cheguei a imprimir e até a procurar no Google essa reportagem, tentando entender porque isso aconteceu. Só hoje, fazendo essa análise e me recordando dos fatos, percebo o quanto foi irresponsável a divulgação do suicídio da minha mãe. Primeiro, pela forma. Segundo, por não ser um fato de interesse público. Terceiro, pela falta de respeito, de maneira leviana e com um tratamento muito equivocado”, recorda, triste, Letícia. Há, no Código de Ética dos Jornalistas, instruções como “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”. Além disso, em relação à responsabilidade do jornalista, entende-se que ele não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrários aos valores humanos, especialmente em coberturas de crimes e acidentes”, segundo o Código de Ética. Para Letícia, levando em consideração esse documento, a conduta adotada pela maioria dos veículos de comunicação é pertinente: “Acredito que o tema suicídio é delicado, mas merece ser debatido com o devido cuidado, ouvindo profissionais da área de saúde, famílias, sociedade.” A fria divulgação de estatísticas, enquanto puramente números, não ajuda na prevenção de suicídios. Detalhar casos em particular, menos ainda. Quantos exemplos de superação, de pessoas que se arrependeram por tentar se matar e se recuperaram, vemos nos jornais? Há casos na mídia, todos os dias, de deficientes físicos que superaram suas limitações. De histórias que servem de inspiração não só para quem passa pelo mesmo problema, mas por quem nutre empatia pela situação. Mais do que problematizar, é preciso humanizar histórias como a de Letícia e entendê-las na sua complexidade.
O telefone do Centro de Valorização da Vida é o 141. A ABEPS pode ser encontrada no site www.abeps.org.br.
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TEXTO BRUNA COSTA VANESSA CARDOSO RICARDO MONTEIRO FOTO MYLENNA BASTOS ARTE HUDSON ORSINE
FEMINISMO
"Na metade de maio senti os sintomas. Os conheço muito bem. Sou mãe. Enjôo, tontura, menstruação atrasada. Duas transas casuais. Grávida! Lembrei que em nenhuma das noites usamos camisinha. Inconsequência nossa, que fique bem claro! O tempo parou. Liguei pra ele e avisei: não tenho condições psicológicas nem financeiras de ter um filho neste momento e vou tirar. Ele respondeu, desesperado: não posso ser pai agora, você tem que tirar. Decidimos juntos: vamos abortar! Foi um inferno. Como fazer? Tentei todas as receitas de chá abortivo que encontrei na internet. Nada. Minha barriga crescendo. A gente se falava todo dia. Até que, nervosa com tudo isso, exigi que ele me ajudasse e encontrasse outra via, porque o que eu tentei não adiantou. Uns dois dias depois chegou na minha casa um pacote muito bem embrulhado dos Correios. Abri. Três comprimidos. Dois pra ingerir e o outro pra introduzir na vagina. Nem fui pra aula. Tomei o remédio e deitei. De madrugada comecei a sentir muita dor. Fui pro banheiro com diarreia, estômago embrulhando e comecei a sangrar muito. O sangue não parava. Chorava muito. Até que o feto desceu.”
E esse tal de Feminismo, o que é?
A Flávia Guizzi* tinha 28 anos quando o fato ocorreu. Para ela, as pessoas deveriam ter a opção de fazer o que quiserem com o seu corpo. E afirma que não se arrepende de ter provocado um aborto. Ela conta que sangrou por 20 dias seguidos, sentiu muita dor, emagreceu cinco quilos e não dormia direito. Não foi ao médico por medo de ser denunciada. Não contou à família nem compartilhou com amigos, apenas com uma colega de sala que passou pela mesma situação. Recuperada, relata que se sentiu aliviada e pronta para encarar a vida novamente. Por essa experiência, Flávia exalta a importância da luta pró-aborto das feministas no Brasil. Os movimentos a favor da legalização do aborto no país pelas feministas ganharam força na década de 1980. Elas consideram o aborto ilegal como problema de saúde pública e equivalente ao aborto inseguro, sendo este uma das cinco causas mais comuns de mortalidade materna no Brasil. As defensoras do tema se baseiam nas diretrizes do direito reprodutivo, que inclui o direito de decisão sobre o próprio corpo. A Rede Feminista de Saúde é uma das organizações feministas pró-aborto que nos últimos 30 anos conseguiram representatividade na formulação de políticas públicas. Através da atuação no âmbito político, levantam a bandeira da legalização do aborto, da seguridade de atendimento nos casos em que o aborto é legal no Brasil (gravidez decorrida de estupro ou risco de vida à mãe) e tentam também diminuir a punição às mulheres que realizam o aborto ilegalmente.
Mulheres são pessoas. Por isso, merecem direitos iguais. Mulheres que desempenham a mesma função dos homens devem ganhar salários iguais. Mulheres não têm a obrigação de cuidarem sozinhas da casa, dos filhos e do marido. Mulher não é propriedade do homem. Também não são produtos e não podem ser tratadas como mercadorias. O corpo da mulher é, por direito, somente da própria mulher. Estas são apenas algumas pautas do movimento feminista, que se configura atualmente como uma das principais manifestações sociais de caráter transformador. Se você, que começou a ler essa reportagem, está se perguntando: “o que as mulheres querem conseguir com esse tal de feminismo?”, ou se você torce o nariz quando bate o olho nessa palavrinha, prossiga a leitura. Você vai entender que o feminismo não é nenhum monstro tentando pisar na cabeça dos homens. Vai perceber que o movimento é justo e necessário. Em pouco mais de dois séculos de luta, as feministas conquistaram muito do que reivindicaram. No período pós Idade Média, em que os ideais de liberdade e igualdade motivaram revoluções, as mulheres conseguiram direitos civis e políticos como realizar uma graduação na universidade, direitos trabalhistas e participação política com o direito ao voto. No século XX elas lutaram pelo resgate do poder de decisão sobre o próprio corpo - e ainda lutam. O marco desta luta foi a obra “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir, que ampliou a discussão sobre o direito de uma sexualidade livre para as mulheres. No Brasil, o movimento chegou tardiamente pelas mãos da bióloga Bertha Luz, fundadora da Federação Brasileira pelo Progresso Feminista, que liderou a conquista ao voto da mulher em 1932.
*nomes alterados para preservar a identidade dos personagens.
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O Feminismo nos dias atuais e o papel da internet na sua disseminação
Entre janeiro de 2014 e outubro de 2015, o número de buscas pela palavra feminismo no Google cresceu 86,7% no Brasil, passando de 8.100 para 90.500 buscas, segundo a Agência Brasil.
Para o site Think Olga, projeto feminista que discute o que é ser mulher nos dias atuais e busca estimular o empoderamento feminino, 2015 foi o ano do feminismo na internet. Nesse ano o feminismo estampou capas de revistas, foi tema de discursos de celebridades e apareceu com força na Marcha das Mulheres Negras. Exemplos são a hashtag #primeiroassedio, criada depois que uma participante da edição infantil do programa MasterChef Brasil foi vítima de assédio virtual, a redação do Enem 2015 e em mais uma infinidade de momentos que denunciaram e tornaram pública a opressão que as mulheres ainda sofrem.
O movimento feminista está na moda. Virou pop. Hoje em dia, não há quem não conheça uma feminista. Antigamente, se uma mulher com menos de 30 anos se autoafirmasse dessa maneira, causaria pavor em seus familiares já acostumados e conformados com o machismo. As mulheres que hoje se expressam, corajosamente, na internet, são herdeiras de mulheres que pagaram caro pelo desejo de existirem como cidadãs. A internet apresentou o feminismo para muitas mulheres e o ajudou a ganhar mais apoio. Isto porque ela aproximou as causas feministas da realidade vivida pelas mulheres e mostrou como o movimento pode ser útil. O assunto está se tornando cada vez mais comum e isso contribui para a desmistificação do estereótipo negativo da mulher feminista. Algumas ideias como “feminista não tem nenhum tipo de vaidade” ou “feminista é agressiva e violenta” já não fazem mais sentido. Historicamente, o feminismo é um movimento que busca garantir que a participação das mulheres na sociedade seja equivalente à dos homens. Hoje, o feminismo se amplificou e se dividiu em vários movimentos. Ele não se resume mais so-
mente à mulher branca, de classe média, que luta por direitos civis. As diversas vertentes do movimento abrangem reivindicações da mulher negra, da mulher mãe, da mulher jovem, da mulher da periferia, da mulher lésbica. Com a internet, os “feminismos” estão se fortalecendo. E ainda há muito espaço para que mais mulheres e mais discussões existam sobre o tema. O movimento se transformou com o passar dos anos. Atualmente, existem várias formas de feminismos e cada uma defende aquilo que o interessa. Se todas as feministas buscam a mesma causa, por que elas não se juntam?
FEMINISMO
A união faz a força "Saio tarde do trabalho e pego um ônibus. Preciso me preparar, não sei o que me espera até chegar em casa. Saio cedo, mas hoje tive que fazer hora extra. Depois de algumas voltas pela cidade, chegou a hora. Seguro minha bolsa com força e estou preparada para correr, se necessário. Dou sinal de parada. Tenho que descer na praça do bairro. Ela não é bem iluminada e ainda preciso caminhar por uma rua na mesma situação para conseguir chegar em casa. Caminho pela praça deserta, ouço vozes, continuo andando. Graças a Deus não aconteceu nada. Vou pelo passeio debaixo das árvores, passos largos. Sinto que estou sendo seguida, olho para trás. Não estou enganada: tem uma sombra caminhando na minha direção. Entro em pânico. Um bandido, um estuprador ou o próprio demônio está atrás de mim. Quero gritar, mas não tenho forças. O medo tomou conta de mim. "
Caminhar por uma rua com pouca iluminação para um homem pode ser algo simples, mas para uma mulher pode ser o “fim do mundo”. O que deveria apenas fazer parte da rotina se torna um filme de terror e, no final dessa história, pode ser você a próxima vítima. Uma pergunta tão simples se tornou símbolo de um dos movimentos mais conhecidos virtualmente. “Vamos Juntas?” é o que o movimento com o mesmo nome ensina: as mulheres devem andar juntas! Essa é a prática da sororidade, que significa a união entre as mulheres. A pergunta tem se tornado uma arma contra o assédio e a violência sexual. Babi Souza, jornalista e criadora do movimento, sempre teve pensamentos feministas, porém, seu primeiro contato com a causa foi na faculdade. Desde então, ela resolveu espalhar o poder da sororidade e do empoderamento feminino. O movimento ganhou força no Facebook e seu maior público são meninas de 11 e 12 anos. Passando por uma situação como essa, ela percebeu que, se tem alguém que pode fazer algo pelas mulheres, são elas mesmas. Hoje, existem varias formas de feminismo. A jornalista enxerga a causa como uma religião. “Cada um adere aquela com que mais se identifica. O ‘Vamos Juntas?’ não existe para combater alguma coisa, mas para produzir algo bom. A ideia se tornou livro e, assim, o movimento tem alcançado mais mulheres e esclarecido o que é feminismo”, explica. A palavra feminismo se tornou algo que inibe algumas mulheres. A página do movimento não mostra-se feminista para que não aconteça esse bloqueio. As mulheres, o principal motivo por trás disso, são as que possuem dentro de si o maior preconceito e são até contra. Se fala muito sobre o feminismo, mas não se entende muito sobre o que é. O feminismo tem deixado de ser um movimento elitista graças à internet, que tem democratizado a informação.
Las Lobas Um grupo de mulheres em Divinópolis resolveu se juntar, há quatro anos, para fazer um estudo com o livro “Mulheres que correm com os lobos”, de Clarissa Pincola Ester. A obra aborda mitos, lendas e contos de fadas mostrando como a natureza instintiva da mulher foi sendo domesticada ao longo dos tempos. Assim nasceu o coletivo Las Lobas, que pratica a união e aliança entre mulheres e espalham o empoderamento feminino por onde passam na cidade. Através da arte-ativismo, performances e participação em eventos culturais, conseguem chegar até outras mulheres. Com mensagens simples, como “Sorria, Mulher! Você é linda”, quebram as barreiras do preconceito e despertam as mulheres para o poder do amor próprio. A maioria das mulheres gosta da iniciativa do coletivo. Outras, ainda presas pelo preconceito, relutam. O grupo é composto por 14 mulheres atualmente, mas a ideia é abraçar tanto mulheres quanto homens. Elas acreditam que o feminino não é apenas uma característica da mulher, mas uma parte presente em todo ser humano, assim como é o aspecto masculino. O coletivo busca despertar o lado matriarcal da sociedade. “Um lado mais acolhedor, empático e humano é o que falta no mundo”, explica Josi Gonçalves, ativista do coletivo Las Lobas.
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