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As partes nuas CLAUDIA SCHROEDER
Apresentação
1.
e se entenderam ferozes
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em sua delicadeza
2.
infringir aquelas leis do amor
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e não esfregar um sexo no outro
3.
é que nessa coisa do amor animal
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não há ressentimentos me respondeu
4.
e eu escrevo o todo
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esse que quase não acontece
5.
não queria ser tocada
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pelos espinhos da tua mão
6.
meus espelhos me disseram aos berros
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7.
e paramos com essa coisa
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de apenas sobreviver
Apresentação Os poemas são corpos. As palavras, com a sua matéria e os seus feitios, são capazes de construir a solidez e a complexidade de um corpo. Neste livro de Claudia Schroeder, avançamos por páginas habitadas por corpos a falarem de outros corpos, palavras, sensibilidade, sensualidade, palavras de pele. Tocamos estes poemas com a ponta dos dedos, e sentimos o sangue correr, e precisamos de passar a língua pelos lábios. Este é um corpo de mulher, tem a biologia dos óvulos, capazes de gerar filhos, ou o filho, referido em vários poemas, mas também tem tesão, também dá tesão, mas também se confronta com a idade, não é um corpo simples, mas é um corpo extremamente belo. Além disso, o corpo levanta dúvidas de vários níveis: a identidade, a presença, o género. São questões importantes, estruturais porque dependemos do corpo, ou será que é o corpo que depende de nós? Em qualquer dos casos, as mãos que seguram este livro neste momento, assim como os olhos que o leem e o cérebro que o pensa, são essenciais. Da mesma maneira, os fluídos que circulam debaixo da pele, orgânicos e reais, a saliva que nos cobre o interior da boca, também são essenciais. 7
Não há fronteira entre o amor e o sexo. Quando avançamos por um, de repente, damos por nós no meio do outro. O amor, tão ontem, e, no entanto, tão presente aqui. Amor que foge daquele outro amor, com o mesmo nome, mas muito menos elaborado e, por isso, menos forte, menos verdadeiro. Este é um livro em que todos os temas apresentados são caminhos, todos são questões de gente. Nestas breves linhas, escrevi onze vezes a palavra corpo. Todas foram necessárias. Vou escrevê-la mais uma vez, porque preciso dizer que este é um livro-corpo.
JOSÉ LUÍS PEIXOTO
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1.
e se entenderam ferozes em sua delicadeza
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fazem uns anos que me percebi de pele fina lembrando as mãos de minha avó que não está os primeiros cabelos brancos apavorantes o que fazer? Arrancá-los ou cobri-los de juventude vi as rugas no sorriso antes liso as pálpebras dobrando cansadas a flacidez do rosto que em outra hora se mostrava repuxado como se houvesse ali uma plástica e uma libido a zero pelo peso das maçanetas que precisei abrir e fechar sozinha Mas encontrei teus olhos que nada assim podiam ver e disse tanta coisa ao contrário do espelho puxou meu rosto com a mão e as pálpebras se desdobraram para o beijo novo e como segredo me voltou aos vinte e poucos anos aquele cabelo mais longo tinha o dourado da Gamboa e a pele o arrepio dos teus dedos •
me pediste um poema não pediste, mandaste que eu o fizesse e nele haverá coisa alguma não poderei escrever coisas sobre as coisas que nele estarão mas teremos alguma coisa que possa ser lida com testas a interrogar sobre quais coisas quero dizer ou que não consigo dizer ou nomear ou descrever como desejei antes de pedir a mim um poema pedir não, exigires que o faça sem alguma coisa que sempre quis te dizer. •
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e o amor que todos já descreveram de seus modos (e sem modos) os poetas os mendigos aqueles que não aprenderam a pronunciar os esses nos plurais os letristas as mães dos mendigos e dos letristas até os políticos vez ou outra se arriscaram
nas tripas esse tal anagrama ROMA. •
nunca vi tantas definições do indefinido e sua intensidade distinta assim como os cânceres (até os agressivos tem infinitos graus) todo mundo prega e diz que se deve amar mas o amor é invasivo não há botões Ligar e Desligar é essa coisa imensa e malévola e pacífica e desesperadamente desejada que quando vem traz uma dor ›
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2.
infringir aquelas leis do amor e não esfregar um sexo no outro
me puxou para dentro de um poço agarrada na trança feita pela minha mãe eu, no auge dos quarenta pela vez primeira doida sem saber o porquê voltada a outro corpo igual ao meu uma pele similar e alva peitoral inflado duplamente no meio das pernas a falta de uma protuberância ostra gêmea que me nasceu
libido e fome ambas penduradas no teto cardápios fascinantes modulam manequins em segundas peles louças feitas a mão oferecem ostras feito vulvas chupamos as conchas nudez em látex devemos ser estudados seguimos famintos.
e eu sigo presa pelo pescoço que vai em direção à boca forrada com dentes de drácula que nunca no espelho haviam me aparecido.
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não suporto mais estes cofres cheios de segredos mal guardados
minhas costas você me tem por elas algemada me trai pelas costas me fala pelas costas tantos pecados
portas que se abrem e derrubam essas coisas que parecem tolas
espera que eu descubra e quebre uma taça no chão e esbofeteie o lado esquerdo da face e esfregue na cara uma saliva última e lhe dê as costas e tome a frente da minha vida e caia em todas as camas
doentes verdades fotografias de tantas bundas bilhetes eróticos recados tentadores a uma outra novo alvo para uma trepada aleatória uma cantada ingênua até se transformar em uma penetração anal
em que sempre quis que minhas costas se deitassem. e eu aqui perdendo meus anos tentando em vão ser sua única vadia
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3.
é que nessa coisa do amor animal não há ressentimentos me respondeu
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esfaqueada te invoco para entender como é usar uma adaga num corpo feminino
na noite em que vou morrer estou aqui bebendo água escrevendo poema sem dedicação
é macio fácil prazeroso
olhando um filho a jogar videogame e visualizando mensagens invasivas e livros lidos pela metade e plantas mal aguadas e infiltrações na parede lateral
repito a operação e o gozo se eleva mas era só fazer amor o de verdade que tudo resolvido estaria
os chinelos no chão (de uma lua de mel que nunca houve) diante dos pés de unhas mal cortadas mãos secas de esfregar travessas onde foram assadas algumas comfort foods
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tão igual a tudo tão igual a sempre na noite em que vou morrer •
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aquela alma que ficou no porta-retrato esse retrato perto da porta que me olha e essa outra que fica me lembrando disso quando meus olhos não se contém em ficar olhando um corpo morto através do vidro e a mão que não cria coragem em virar o porta-retrato para a parede ou girar as pequenas peças que mantém a fotografia prensada entre o vidro e o compensado arrancar a fotografia dobrá-la em quatro partes guardar numa caixinha bem menor do que a saudade
relembrei a amante de meu pai suas crenças nas conquistas construídas em terreiros trago o amor de volta se nem tinha sido? como acreditar ser amor se amor foi outra coisa? o amor não precisava subir na vida não estacionava um carro zero não adquiria casa na praia (até agora ninguém foi) dedos não carregavam diamantes HStern nem bolsas de grifes distantes a amante de meu pai não poderia chamar de amante aquele que tem o amor na outra que habita a casa.
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4.
e eu escrevo o todo esse que quase não acontece
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Casar. Querer aos 80. Encaixar o botão na casa tão tímida do outro casaco decidir alterar o nome a essas alturas aceitar que tudo pode vir tardio sem mais poder parir. Usar véu olhar céu e sorrir as rugas afirmando que a juventude só engana os corações estagiários.
PARA LISE
às vezes eu penso que se você tivesse conhecido meu filho isso não teria acontecido fantasio que ele te faria não beber aqueles remédios pra dor meu filho é predestinado coisa Matrix capaz de convencer a si mesmo a passar uma noite a forçar o “célebro” a torcer que cientistas descubram como eliminar uma cadeira de rodas de um par de pernas como ressuscitar um velho porque ainda não era velho para morrer
Casar um dia num dos últimos da vida.
dia desses cravou na terra uma flor morta porque se não der certo vira adubo, mamãe.
(Entender que amor demora mas pode ser agora)
por isso eu lembro das tentativas vem conhecer meu filho pare de olhar as fotos da nossa viagem à Europa ›
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tão meninas por dentro tão meninos quanto o meu filho e agora você não acorda não pode ver o rosto dele e nem mais o meu rosto em fotografias reveladas
sentado na ponta do sofá o rosto igual à capa do vinil de mãos dadas com minha irmã aquele gêmeo me habitava os sonhos beijinhos suaves na boca não-minha o namorado daquela que no mesmo quarto meu, dormia
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a capa do vinil passou para debaixo da pilha o namorado virou ex ficou calvo e o desejo pueril seguiu sentado no sofá daquela sala •
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5.
não queria ser tocada pelos espinhos da tua mão
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meu corpo vai passando pelo teu quase sem encostar a pele areia fina em mão entreaberta formigas a ponto de morrer debaixo de passos humanos na calçada
uma cama se rompe ao meio ali suportamos nossos corpos a mão dele é um vibrador sem pilhas no gozo entrego-me a mim meus sussurros não-ouvidos dizem coisas proibidas nos redondos espelhos passam somente imagens minhas e a nudez alheia de um corpo ainda perfeito não mais desperta cócegas nas córneas
permaneço imóvel para que vejas como meu corpo se comporta vez em quando quebro o silêncio que os ossos emitem com tímidos e tristes te amo já de mentira •
há apenas rastros farelos pelos estampando azulejos e miragens de um passado em que risadas altas e gemidos eram a música que perturbava as solidões de vizinhos e vizinhas •
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foram tantos relacionamentos sem nome que a conta perdi
a bula da pílula é o marcador de livros
tanto corpo entrando no meu cheiros insuportáveis gostos que não me agradavam atitudes esquivas ou famintas demais
é o que temos
mãos segurando mole minhas carnes pesos de tórax sufocando o meu respirar
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para não parir para não perder a página
gente passando dedos nos meus cabelos despenteados em um arrancar dolorido de fios e eu minimamente coerente ao menos de amor não os chamava •
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6.
meus espelhos me disseram aos [berros
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as tuas barbas ficaram brancas há manchas nas pálpebras teus lábios endureceram tuas mãos também perderam só os óculos se mantêm os mesmos pendurados em orelhas maiores de lóbulos caídos a juventude onde teu olhar se fixou está nas fotografias das tuas gavetas não não está no meu olhar.
as cartas de amor os clichês das flores as mensagens provocantes enviadas presentes-surpresa no cartão de crédito sou dona de uma lista de todos os itens e datas e horários de cada coisinha endereçada para um lugar um número de telefone irreconhecível as lingeries faturadas nunca me chegaram sigo nua sem rendas faço de morta enquanto você mantém uma outra bem viva.
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você pensava que era uma mulher gigante mas eu sou gigante
depois que o sol baixa eu brilho sob a luz daquele satélite que muda de forma ao som de meus uivos.
nos meus um metro e meio de altura herdados por uma genética física cabem a força de uma genética invisível que mora na história de cada mulher que carregou meu sobrenome
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então, entenda: não é porque não alcanço o pacote de arroz de cima do armário a não ser com a ajuda de um salto alto ou um breve banquinho significa que você possa me encobrir com as suas sombras são só sombras
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7.
e paramos com essa coisa de apenas sobreviver
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à medida que minha mão te avança encontra reentrâncias básicas não há uma espinha uma verruga que atravanque a viagem fluida de minha palma escorrego-a mas escorrego-a suave em veludo não despenco como em um toboágua volto aos sentidos ao chegar na nuca de cabelos ralos que me recuperam a memória de quando a morte não venceu tua quimioterapia junto os dedos com os restos entrelaçados pelos meios puxo a cabeça para fazer-te acordar e saber: estás em gozo e viva.
os pés de meu filho levantam voos incríveis um passo rápido na frente do outro para chegar às pressas até o meu corpo na saída da escola um pé para cima para o subir no sofá em busca de um abraço que encaixe melhor sua altura na minha os pés do meu filho me levam aos céus. •
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cansada de tirar o lixo seco o orgânico os restos todos desta coisa chamada cozinha onde a barriga molha na beira onde esquenta na beira e passa outras fomes
a vontade de amar como a vontade de um cigarro de uma batata frita a vontade que não seguramos de ir aos pés nos lavarmos devidamente e cair aos teus e trocar o cigarro pelo falo
exausta de chorar a cebola descartar miolos impor às folhas que se rasguem cair em hálito ruim saliva ácida de um sexo oral às pressas acontecido numa outra casa
a vontade de amar é essa afoita foice que me corta o trabalho a paz e uma cama de lençóis limpos
se vê na entrega do degelo louca para negar a sobremesa insossa as taças de vidro com vinhos baratos ontem ele bebia em cristais caros orgasmos
• apaga a luz da coifa esfrega os panos de prato no suor do corpo sob o avental não há mais vestido •
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Agradecimentos
Ligia Schroeder, que incentivou minhas publicações desde sempre. Guilherme Dable, o primeiro a mostrar que a poesia havia me escolhido. Pedro Gonzaga, que fez com que eu ouvisse mais nitidamente minha voz poética. Lucia Verissimo e Juarez Fonseca, que disseram sim, isso é um livro. Carlos Henrique Schroder, que não só disse que era um livro como foi fundamental para que ele existisse. José Luís Peixoto que, gentilmente, escreveu a apresentação. Quem me engrandece todo dia: Theodoro, parte deste corpo. Aos que estão, de alguma forma, em versos neste livro: o companheiro, a família, a Lise Bing, o Luis Fernando Verissimo, todas as amantes. 125
Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP) S381p Schroeder, Claudia As partes nuas / Claudia Schroeder. – Rio de Janeiro : Livraria Francisco Alves Editora, 2021. 128 p. ; 14cm x 18cm. ISBN
978-65-994417-0-7
1. Literatura brasileira. 2. Poesia. I. Título. 2021-1239 CDD CDU
869.1 821.134.3(81)-1
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira : Poesia 869.1 2. Literatura brasileira : Poesia 821.134.3(81)-1
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