ENSAIOS
OPORTUNOS
Sílvio Coelho dos Santos
COPYRIGHT © 2 0 0 7 , S Í L V I O C O E L H O
DOS
SANTOS
D ESIGN E CAPA Renato Rizzaro REVISÃO Renato Tapado
S237e Santos, Sílvio Coelho dos, 1938 – Ensaios oportunos/ Sílvio Coelho dos Santos. – Florianópolis: Academia Catarinense de Letras e Nova Letra, 2007. 192p. – (Coleção ACL; no 29) ISBN 1. Santos, Sílvio Coelho dos Santos. 2 Escritores Brasileiros – Santa Catarina. 3. Ensaios – Santa Catarina . I. Ensaios oportunos. II. Série. CDD: B869.06
ACADEMIA CATARINENSE DE LETRAS Sede na Av. Paschoal Apóstolo Pística, 5600 Centro Integrado de Cultura Professor Henrique da Silva Fontes Agronômica – CEP 88025 202 – Florianópolis, SC CNPJ 78.828.951/0001-40 Fone (48) 333 1733 Fundada em 30 de outubro de 1920, em Florianópolis. Reconhecida de utilidade pública pela Lei Estadual no 1664 de 24 de outubro de 1927. Reconhecida de utilidade pública pela Prefeitura de Florianópolis pela Lei no 870 de 16 de maio de 1968.
DIRETORIA PRESIDENTE Lauro Junkes VICE-PRESIDENTE Norberto Ungaretti SECRETÁRIO João Nicolau Carvalho TESOUREIRO Sílvio Coelho dos Santos
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OPORTUNOS
Sílvio Coelho dos Santos
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Antologia da ACL no 1 (1991) Sylvia Amélia Carneiro da Cunha - Poemas do Meu Caminho Pedro Bertolino - Viagens com Maura Paschoal Apóstolo Pítsica - Palavras e Registros Almiro Caldeira - Taberna do Brigue Velho Edy Leopoldo Tremel - Aprendendo a Viver Júlio Basadona Dutra - Holdemar Menezes: Personagens e Reflexões Carlos Humberto Pederneiras Corrêa - Lições de Política e Cultura: A Academia Catarinense de Letras, sua Criação e Relações com o Poder Júlio de Queiroz - As Permutas e Outros Contos Theobaldo Costa Jamundá - Fala da Cadeira Cinco Hoyêdo de Gouvêa Lins - Histórias para o Entardecer Lauro Junkes - Autoridade e Escritura Hugo Mund Júnior - Poesia Reunida Leatrice Moellmann - Depois do verão Polydoro Ernani de São Thiago - Três Discursos Osvaldo Delia Giustina - Roteiros para o Centro do Mundo Luiz Delfino - Poesia Completa: Tomo I - Sonetos Luiz Delfino - Poesia Completa: Tomo II - Poemas Longos Almiro Caldeira - A Estrela da Tempestade Silveira de Souza - Contas de Vidro Virgílio Várzea - Contos Completos: Tomo I Virgílio Várzea - Contos Completos: Tomo II Antologia da ACL no 2 (2004) Maura de Senna Pereira - Poesia Reunida e Outros Textos Leatrice Moellmann - Sedução (poesia completa) Marcelino António Dutra - Assembléia das Aves e Outros Poemas Altino Flores - Textos Críticos de Altino Flores Artemio Zanon - Pinheiro Neto: o Poeta - o Poema - a Poesia
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Edy Leopoldo Tremel Urda Alice Klueger Moacir Pereira João Alfredo Medeiros Vieira Francisco José Pereira Hugo Mund Júnior Leatrice Moellmann Sílvio Coelho dos Santos João Nicolau Carvalho Júlio de Queiroz Hoyêdo de Gouvêa Lins Edson Ubaldo José Artulino Besen Carlos Alberto Silveira Lenzi Celestino Sachet Alcides Abreu Carlos Humberto Pederneiras Corrêa José Curi Sérgio da Costa Ramos Osvaldo Ferreira de Melo Evaldo Pauli Antônio Carlos Konder Reis Flávio José Cardozo Liberato Manoel Pinheiro Neto Jair Francisco Hamms Sylvia Amélia Carneiro da Cunha Pedro Bertolino Péricles de Medeiros Prade Napoleão Xavier do Amarante Jali Meirinho Walter Fernando Piazza Lauro Junkes João Paulo Silveira de Souza Osvaldo Della Giustina Rodrigo de Haro Iaponan Soares Artemio Zanon Salomão Ribas Júnior Almiro Caldeira de Andrada Norberto Ungaretti
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O homem do Sul Uma viagem para além da Cristandade Notícias sobre os Carijó A modernidade chega pelo trem Encontros de estranhos além do mar oceano A geração hídrica da eletricidade no Sul do Brasil e seus impactos sociais As hidrelétricas, os índios e o Direito Massacre Fric, a Liga Patriótica e os índios Formação universitária e lideranças indígenas na Região Sul Hiroshima ou a ética do genocídio Chernobyl, meio ambiente e burocracia Espera do gado na terceira Cem anos de liberdade e pobreza O panorama sociodemográfico no início do século Sobre as funções da universidade Um discurso pertinente Uma festa da ciência Das coincidências na pesquisa e na produção antropológicas A Ilha: alguns desafios Mais e mais educação
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ocalizando aspectos históricos, culturais, sociais, econômicos, demográficos e étnicos, esta obra representa parte da trajetória intelectual de seu autor. Os vinte e um ensaios reunidos, numa referência explícita ao século que há pouco se iniciou, tratam tanto de temas locais como regionais e universais. Todos têm como base o olhar do antropólogo sobre diversas questões próximas, pertinentes ao nosso cotidiano, e sobre questões mais distantes, explicativas de nosso passado e de nossa realidade sociocultural. O projeto de reunir ensaios publicados tanto em livros como em revistas e jornais começou a tomar forma há algum tempo. Mas a decisão de iniciar o difícil processo seletivo só aconteceu durante uma demorada internação hospitalar. Tal proposta permitiu enfrentar a falta do que fazer e contribuiu decisivamente para manter e ampliar os escassos momentos de lucidez que eu estava vivenciando. Gradativamente, o projeto foi tomando forma, levando-me a meditar sobre a pertinência de minha obra e a eleger,
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preliminarmente, textos em que considerava sua importância e significação para um público novo, ou seja, para uma geração que estava chegando à universidade ou à vida profissional neste início de século. Da avaliação feita imaginariamente à releitura de cada texto ainda durante a convalescença, decorreram alguns meses. Objetivamente, elegi textos curtos. A tarefa de selecionálos não foi fácil. Por isso, tomei como referência a escolha de ensaios que tratavam de temas pouco conhecidos, alguns estigmatizados, outros nem tanto, mas todos de interesse, a meu ver, para uma juventude que clama por oportunidades de realização pessoal, e por uma sociedade mais justa e menos dependente dos modismos de época. Penso que os professores dos Ensinos Fundamental, Médio e Superior também se beneficiarão com esta coletânea, devido à clareza e à objetividade com que os diversos temas foram tratados. Os fiéis leitores de minhas obras também foram considerados, e agora terão acesso a textos que nem sempre eram fáceis de encontrar. Os primeiros ensaios foram apresentados em diversos livrosálbum que tive a oportunidade de organizar e com os quais contribuí. A paixão pela fotografia como documento histórico e sociocultural foi determinante para que esses livros fossem ricamente ilustrados. Outros ensaios apresentados em congressos
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e seminários, além de jornais, têm motivação diferente para publicá-los. Trata-se de ensaios altamente representativos, a meu ver, para a compreensão e a interpretação de nosso cotidiano sociocultural, em particular de suas incongruências. Como não poderia deixar de ser, algumas superposições de informação foram inevitáveis. Peço, assim, a compreensão dos leitores. A preparação dos ensaios selecionados teve a participação decisiva de Márcia Medeiros de Lima, bolsista de apoio técnico do CNPq e secretária do Núcleo de Estudos de Povos Indígenas (NEPI), do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Renato Rizzaro, como em obras anteriores, assumiu a tarefa de formatação e criação da capa. Renato Tapado realizou a revisão final. O CNPq contribuiu com a bolsa de pesquisa e com o “grant”, que têm permitido as atividades de pesquisa do autor. A Academia Catarinense de Letras, com o apoio do governo do Estado de Santa Catarina e da editora Nova Letra, assumiu a tarefa de edição. A todos esses colaboradores, registro meus agradecimentos.
Ilha de Santa Catarina, março de 2007. Sílvio Coelho dos Santos
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HOMEM
DO
SUL
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Tratado de Tordesilhas, firmado entre Portugal e Espanha em 1494, garantiu para os portugueses o domínio de um quinto do Brasil que conhecemos hoje. No Sul, a linha de Tordesilhas passava na altura da cidade de Laguna (SC). Os espanhóis contestavam essa referência, afirmando que a Ilha de Santa Catarina e o litoral fronteiro lhes pertenciam. Mas não foram portugueses ou espanhóis os primeiros que chegaram às terras do Sul do Brasil. A façanha foi realizada por Binot Paulmier de Gonneville, comandante do navio francês L´Espoir, que em 1504 chegou à Ilha de São Francisco, em Santa Catarina. A expedição de Goneville, financiada por comerciantes da Normandia, pretendia chegar às terras austrais com o objetivo de estabelecer uma nova rota de comércio. As expedições ao litoral sul foram diversas. O espanhol Juan Dias Solís, apoiado pela coroa espanhola, chegou ao Rio da Prata em 1512. O objetivo deste navegador era descobrir uma passagem para o Pacífico que permitisse à Espanha dominar uma nova rota para as Índias. Em 1514, dom Nuno Manuel, navegador português, percorreu o Sul do Brasil, atingindo o atual Uruguai. Solís voltou em 1515. Sua expedição fracassou, devido a um encontro malsucedido com os índios na margem uruguaia do Rio da Prata. Alguns sobreviventes dessa aventura acabaram ficando na Ilha de Santa Catarina, em conseqüência do naufrágio de um dos navios. Estes foram os primeiros habitantes europeus das terras do Sul. Em 1524, um desses sobreviventes, Aleixo Garcia, auxiliado pelos índios, chegou até a região onde se situa o Paraguai. Publicado originalmente em Fronteira: o Brasil Meridional. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1996. p. 253-259.
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O navegador português Cristóvão Jacques percorreu também o Atlântico Sul até o Rio da Prata; e Fernão de Magalhães descobriu o estreito que leva seu nome, no extremo da Patagônia, ao realizar a primeira viagem de circunavegação da Terra (15191521). Muitos navegadores se aventuraram pelos mares do sul, ampliando o conhecimento sobre a costa e tentando o encontro de riquezas. Alguns começaram a explorar o Rio da Prata, ambicionando chegar ao Peru. Outros seguiam rumo às Índias, através do Pacífico. O recortado litoral dos atuais Estados do Paraná e Santa Catarina, com magníficas enseadas, era estratégico. Por isso, não é de estranhar que navegantes de diferentes bandeiras por aqui aportassem, ou que muitos náufragos e desertores se deixassem ficar. Afinal, os indígenas habitantes do litoral sul, logo denominados “Carijó”, eram afáveis e receberam bem, pelo menos no início, os estranhos europeus. ÍNDIOS,
MISSIONÁRIOS E CAÇADORES DE ESCRAVOS
À época da chegada dos portugueses, estima-se que o Brasil possuía uma população indígena calculada em 4 a 6 milhões de indivíduos. Esta população era dividida em diferentes povos, que tinham uma larga experiência em relação à natureza. A presença desses contingentes no litoral sul do Brasil remontava há cerca de 5 mil anos. O litoral era domínio dos Tupi-Guarani, mas no interior outros grupos tinham seus territórios tradicionais. Integrantes da Ordem dos Jesuítas, criada por Santo Inácio de Loyola (1534), dedicaram-se à conversão do gentio. Mas o índio foi logo usado como escravo nos empreendimentos econômicos que começaram a surgir. Pouco adiantou o Papa Paulo III, em 1537, ter reconhecido que os índios eram homens que deveriam ser convertidos e respeitados. A fundação de São Vicente, por Marfim Afonso de Souza (1534), no litoral de São Paulo iniciou o processo de exploração das terras da colônia e acelerou a submissão dos indígenas. Não poucas vezes, os padres protestaram, sem êxito, ao rei, contra a violência que praticavam os conquistadores, fossem eles portugueses, fossem espanhóis. | 16 |
No Sul, padres missionaram em aldeias localizadas nas imediações de Paranaguá, São Francisco, Ilha de Santa Catarina e Laguna. Ao mesmo tempo, incrementaram-se as expedições em busca de escravos índios. A disseminação de doenças, como a gripe, a varíola, o sarampo e a tuberculose, tornou-se comum. Entre Cananéia e Laguna, os Carijó desapareceram no primeiro século da invasão européia. O reconhecimento das terras entre o mar e a Serra Geral foi rápido. Além da preação de índios, da exploração de madeiras e produtos agrícolas de domínio indígena, ocorreu a busca de jazidas de ouro e de pedras preciosas. De São Paulo, fundada em 1554, partiram para o interior grupos de aventureiros em busca de riquezas e escravos. Em direção ao sul e ao sudeste, os Rios Tietê, Paranapanema e Paraná assumiram o papel de rotas de penetração. Muitos paulistas que vinham ao Sul capturar índios para vendê-los como escravos nos mercados de São Vicente e Bahia foram se fixando no litoral. A união das Coroas espanhola e portuguesa, entre 1580 e 1640, aboliu os limites fixados pelo Tratado de Tordesilhas. Os aventureiros puderam, assim, explorar livremente o sertão e, quase por um paradoxo, asseguraram a formação do que atualmente é o Brasil Meridional. A
EXPLORAÇÃO DO
PRATA. REDUÇÕES AS VILAS
JESUÍSTICAS. LITORÂNEAS
A Espanha teve enorme interesse em resguardar seu domínio sobre as terras da América. A conquista do México e, depois, do Peru trouxe para a Espanha riquezas incomensuráveis. No sul, os espanhóis entraram pelo Rio da Prata, procurando uma rota mais fácil para garantir o transporte do saque que faziam ao Império Inca. Buenos Aires e Assunção foram fundadas em 1536 e 1537, respectivamente. Os jesuítas dedicaram-se ao trabalho de catequese, reunindo os índios em diversas missões localizadas na margem esquerda do Rio Paraná. A Ciudad Real de Guaíra (PR) foi o principal centro dessa atividade missioneira. A partir de 1628, as missões foram | 17 |
atacadas por bandeirantes paulistas, entre eles Manuel Preto e Antônio Raposo Tavares. Mais de 60 mil índios foram levados como escravos para São Paulo, e em 1674, das 13 missões, 11 estavam destruídas. Os sucessivos ataques dos bandeirantes fizeram com que os jesuítas migrassem com seus catecúmenos para o Sul. Localizaramse nas margens dos Rios Uruguai e Paraná, em território que, em parte, hoje integra o Estado do Rio Grande do Sul. Aí floresceram novas e importantes missões que acabaram, cem anos depois, destruídas pela ação dos bandeirantes caçadores de escravos, acobertados pelos interesses políticos de Portugal e Espanha, que não aprovavam explicitamente as iniciativas dos religiosos. Hoje, subsistem no noroeste do Rio Grande do Sul as ruínas de algumas dessas missões, destacando-se a de São Miguel, fundada em 1632. As investidas dos portugueses no litoral sul aos poucos foram estimulando o surgimento das primeiras povoações. Por volta de 1614, Diogo de Unhate obteve uma sesmaria na Baía de Paranaguá (PR). Havia nessa região uma certa movimentação por parte de faiscadores de ouro, vindos de Cananéia e São Vicente. A Vila de Paranaguá, porém, só surgiu em 1648, quando se elegeu a Câmara Municipal. Em 1658, Manoel Lourenço de Andrade transferiu-se de São Vicente com sua parentela, escravos e agregados para São Francisco (SC). Em 1660, esta povoação foi elevada à categoria de vila. Quase à mesma época (1673), Francisco Dias Velho iniciava o povoamento da Ilha de Santa Catarina, empreendimento este que foi frustrado pela morte do fundador nas mãos de corsários ingleses. Mais para o sul, desde 1676, Francisco de Brito Peixoto, morador de São Vicente, fazia explorações e razias contra os Carijó. Em 1684, fundou a Vila de Laguna. Essas povoações foram bases para a conquista portuguesa no Sul. Ao ocorrer a restauração da Coroa, em 1640, Portugal começou a desenvolver projetos de conquista das terras que se situavam entre o Atlântico e a Bacia do Prata. Deu-se, por determinação real, a fundação da Colônia do Sacramento em 1680, quase defronte a Buenos Aires. O objetivo principal era garantir o acesso português à Bacia do Prata. Nesse contexto, se acentuaram as disputas entre Portugal e Espanha. A ameaça de | 18 |
guerra definiu, num primeiro momento, a Ilha de Santa Catarina como local estratégico para o sucesso dos planos militares portugueses. Mas deve-se entender que, até o final do século XVII, a maior parte do que hoje chamamos Região Sul, na concepção de portugueses e espanhóis, era “terra de ninguém”. E assim ficou, até a designação do brigadeiro Silva Paes como comandante militar e governador de Santa Catarina (1739). A partir desse momento, começava a era do povoamento. OS
CAMINHOS DE TROPA.
A
ESTÂNCIA GAÚCHA.
OS
AÇORIANOS
O século XVIII testemunhou a integração do Sul ao resto da colônia, através do comércio de gado. A exploração do ouro, nos atuais Estados de Minas Gerais e Goiás, valorizou o preço do gado, especialmente das mulas, que eram a base da rede de transportes que se estabeleceu entre fazendas e vilas. Os paulistas perceberam que seria um bom negócio capturar ou comprar o gado que se criava à solta nas pradarias gaúchas, para vendê-lo aos tropeiros de São Paulo e Minas. Ainda no século anterior, Laguna (SC) tornara-se um centro de onde partiram várias incursões para explorar as terras do Rio Grande do Sul. A preação de índios e os assaltos às “vacarias” dos jesuítas sempre traziam resultado econômico. Os interesses de Portugal, no Prata, davam o suporte político. Alguns aventureiros haviam instalado as primeiras estâncias nos pampas gaúchos. Em pouco tempo, Laguna tornou-se um entreposto que viabilizava o embarque de índios escravos, de gado e de charque para São Vicente (SP) e Bahia. O chamado “caminho da praia” seguia de Laguna até Sacramento, permitindo o trânsito das tropas. Em 1728, foi aberto um caminho que ligava o litoral aos campos de Lages (SC), e daí seguia para Curitiba e São Paulo. Por esse novo caminho, o gado gaúcho seguia diretamente para as feiras de Sorocaba (SP). Tal comércio se intensificou. Foram surgindo nos locais de pouso, nos campos de Lages e Curitiba, os primeiros moradores permanentes. Numa extensão da atividade pecuária que se praticava no Rio Grande, apareceram novas fazendas | 19 |
nessas paragens do planalto. A criação e o comércio de gado tornaram-se bons negócios. A procura por terras, para a instalação de estâncias, aumentou. Quem tinha algum prestígio requeria “cartas de sesmaria”. Em pouco tempo, outro caminho foi aberto, ligando a região das missões, no oeste do Rio Grande, aos campos de Lages e Curitiba. A estância definiu o estilo de vida no Rio Grande. Centrada nas atividades de criação, preia e invernações do gado, a estância não necessitava de muita mão-de-obra. No início, o estancieiro e o peão vivenciavam as mesmas duras condições de vida. A escravidão negra foi rara nessa unidade produtiva. O gaúcho, personagem típico dos pampas, foi produto da miscigenação entre índios e brancos, exercendo na estância o papel do peão. Suas relações de lealdade, sua coragem e sua experiência de trabalho livre tornaram-se a base de ação dos caudilhos políticos, em regra, bem-sucedidos estancieiros. O barbicacho, o poncho, a cuia e o chimarrão, com o tempo, acabaram como sinais diacríticos da identidade do gaúcho. Os portugueses perceberam que seus interesses no Prata só seriam viabilizados se existissem bases de apoio para eventuais operações militares. O brigadeiro Silva Paes estabeleceu um plano de fortificação da Ilha de Santa Catarina e implantou, em 1737, o forte Jesus, Maria, José na atual cidade de Rio Grande (RS). Simultaneamente, Silva Paes obteve o aval do rei para promover a emigração de açorianos para a Ilha de Santa Catarina, litoral fronteiro e região de Porto Alegre. A emigração açoriana envolveu cerca de 5.000 pessoas. Localizados em pequenas freguesias, os açorianos marcaram em definitivo a paisagem humana do litoral catarinense e deram enorme contribuição ao desenvolvimento de Porto Alegre. Criaram uma produção agrícola e de pesca, destinada ao abastecimento dos barcos em trânsito e das tropas militares, acantonadas nos fortes. O litoral de Santa Catarina ficou marcado pelas tradições culturais trazidas pelos açorianos, destacando-se as festas do Divino e a farra-do-boi. O confronto de interesses entre Portugal e Espanha se acentuou após a destruição das missões jesuíticas. A fundação da Colônia | 20 |
do Sacramento, defronte a Buenos Aires, havia sido um desafio para a Espanha. As tensões se exacerbavam de parte a parte. Os espanhóis tentaram tomar pela força o forte português, por várias vezes. O Tratado de Tordesilhas não tinha sido respeitado por ambos os países. Acertou-se um novo acordo. Em 1750, foi assinado o Tratado de Madrid, garantindo a Portugal a posse da Colônia do Sacramento. Os fatos, entretanto, não corresponderam aos anseios diplomáticos. Em 1777, a Espanha promoveu a invasão da Ilha de Santa Catarina. Isto levou à assinatura do Tratado de Santo Ildefonso. Portugal perdeu a Colônia do Sacramento. A Espanha ficou com o domínio do Rio da Prata. Portugal, porém, assegurou o Rio Grande e teve reconhecidos seus direitos às terras ocupadas no Mato Grosso e na Amazônia. Afinal, o uti possidetis prevaleceu, embora nos anos futuros ainda muitas disputas viessem a ocorrer. MIGRAÇÕES EUROPÉIAS. GUERRAS NO SUL. A CRIAÇÃO DA PROVÍNCIA DO PARANÁ O primeiro governador gaúcho foi nomeado em 1760. Diversas vilas já estavam estruturadas. Porto Alegre foi elevada à condição de Paróquia e logo passou a sediar o governo. Quase à mesma época (1771), o governador de São Paulo mandou fundar no extremo meridional de sua capitania a vila de Nossa Senhora dos Prazeres de Lages (SC). A vila de Curitiba servia de apoio para o povoamento dos campos de Guarapuava e Ponta Grossa. A Província de Santa Catarina, com seus fortes e portos abrigados, desempenhava seu papel de base militar para a sustentação dos projetos políticos de Portugal no Sul. A população litorânea era essencialmente luso-açoriana. Os indígenas Carijó já haviam sido exterminados quando começaram as primeiras iniciativas de povoamento permanente. Escravos índios não deixaram maiores vestígios de mestiçagem no fenótipo da população. A escravidão negra não foi intensiva, pois aos povoadores faltavam recursos financeiros, e não havia empreendimentos econômicos maiores. Ocorreu uma escravidão voltada para o atendimento das lides domésticas, especialmente nas áreas urbanas. As atividades de | 21 |
pesca da baleia, das salgas e charqueadas utilizaram mão-de-obra escrava, de maneira mais sistemática, razão da presença negra em vários pontos do litoral. Nos campos do planalto e no pampa do Rio Grande, desde o início do povoamento a miscigenação entre brancos e índios foi acentuada. O mameluco paulista já era resultante desse processo; o gaúcho, também. Em alguns lugarejos, percebe-se hoje a presença de traços indígenas na população. Cabelos e olhos negros e uma pele acobreada de rara beleza testemunham o uso da mulher indígena como prazer e como reprodutora da necessária força de trabalho. A tomada da índia como esposa legítima, porém, não foi rara. A escravidão negra também ocorreu. O trabalho escravo foi mais intenso onde havia iniciativas econômicas que demandavam maior concentração de mão-deobra, como nas charqueadas ou nos empreendimentos de defesa militar. O latifúndio, a família patriarcal, a escravidão e o peão agregado foram as bases iniciais da sociedade pastoril escravista que se desenvolveu no Brasil Meridional. Proclamada a Independência, o Brasil passou a favorecer a emigração de europeus. No Sul, os governos provinciais perceberam que o sistema escravocrata era um obstáculo ao desenvolvimento. Apoiados pelo Império, criaram diversas colônias oficiais. Ou fizeram concessões de terras para empresas privadas que assumiram o compromisso de promover a localização de imigrantes. De início, vieram os alemães, estabelecendo-se no Rio Grande do Sul. Os primeiros imigrantes chegaram em 1824 e foram localizados em São Leopoldo. Em Santa Catarina, a colonização se iniciou em 1829, em São Pedro de Alcântara. No Paraná, imigrantes foram localizados no Rio Negro, também em 1829. O fluxo migratório se acentuou nas décadas seguintes. A partir de 1870, começaram a chegar os italianos. Depois, seguiram-se ucranianos e poloneses. Uma nova fronteira estava aberta. Os imigrantes enfrentaram diferentes problemas em seu processo de adaptação. Em muitos casos, as terras eram inadequadas. Muitas colônias não dispunham da infra-estrutura mínima que garantisse o escoamento da produção. A floresta | 22 |
subtropical que cobria as terras da maioria das colônias era domínio dos índios Xokleng. Havia problemas de inadaptação ao clima, devido à umidade, e ao domínio de novas formas de cultivo. Neste contexto, muitos fracassaram, ocorrendo manifestações de desagrado, revolta e desespero, como o célebre “Movimento dos Mucker”, nas imediações de São Leopoldo, nos anos 1873-74. O Sul do Brasil foi teatro de várias guerras. Em 1835, devido a dissensões políticas internas, irrompeu no Rio Grande a Revolução Farroupilha. Os revolucionários intentaram a separação do resto do País, advogando uma estrutura republicana de governo. As idéias libertárias passavam pela constituição de um Estado democrático, que não era de interesse do Império. Durante dez anos correu sangue. A unidade do País, entretanto, prevaleceu. Mas os tempos de guerra não haviam terminado. Lutou-se contra Rosas e Oribe, na Argentina e no Uruguai. Depois, aconteceu a Guerra do Paraguai. Toda essa movimentação armada afetou a Região Sul, em particular o Rio Grande, pelo desenvolvimento de um forte sentimento de nacionalidade. Em 1853, foi criada a Província do Paraná, que até então fazia parte de São Paulo. Curitiba firmou-se como capital e centro irradiador da colonização. O Sul se definia pela consolidação de suas três províncias, contudo, havia muito a discutir em termos de limites entre o Paraná e Santa Catarina. ÍNDIOS,
NEGROS E FUGITIVOS
Os bolsões de floresta, onde os imigrantes começaram a ser localizados, eram território dos índios Xokleng. Mais para oeste, às margens dos campos recém-ocupados por fazendas de criação, os Kaingang e os Guarani exerciam seus domínios. No noroeste do Paraná, os Xetá se mantiveram arredios até metade do século XX. Esses grupos reagiram de diferentes formas à presença dos brancos, conseguindo chegar ao presente. A reação dos Xokleng tornou-se paradigmática do processo de conquista da terra na Região Sul. Esses índios foram envolvidos, simultaneamente, pelas frentes de colonização que | 23 |
se instalaram no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná. Eram nômades, praticantes da caça e coleta. A floresta, com sua fauna e flora, era fundamental à sua sobrevivência. Intensificando-se a colonização, a cada dia mais terras eram tomadas aos Xokleng. À falta de como prover suas necessidades alimentares, os indígenas passaram a assaltar as propriedades dos colonos ou a atacá-los em seus locais de trabalho e de trânsito. A violência cresceu, quando as companhias de colonização e os governos provinciais passaram a subsidiar grupos armados que adentravam o sertão para dizimar os índios. Bugreiro foi profissão criada pelo capitalismo em expansão para afugentar “pela boca da arma” os índios avessos à submissão. Essa tragédia só foi controlada com a criação, em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que logrou a “contatação” de alguns grupos Xokleng. Percebe-se, assim, que a terra foi usurpada ao índio pela força. O imigrante também foi, em muitos casos, vítima. Os governos e as companhias de colonização não tinham interesse em alertá-lo sobre a presença indígena, e quando ocorreram reclamações diplomáticas sobre a insegurança vivida, o Brasil minimizou as queixas e denúncias. Passou, contudo, a criar reservas para o confinamento dos grupos indígenas sobreviventes, liberando em definitivo seus territórios tradicionais. Os índigenas que sobrevivem hoje no Sul do Brasil vivenciam condições precárias de vida. Muitos ainda reivindicam a demarcação de terras de ocupação tradicional. Outros, como os Guarani, em maioria, circulam pelas rodovias vendendo artesanato e trabalhando como “bóias-frias”. A ação indigenista do Estado continua insatisfatória nesse final do século XX. A sociedade escravocrata que se desenvolveu no Brasil impôs uma rígida separação entre brancos, negros e mulatos. O escravo era visto como objeto e vivia sujeito ao seu senhor. Alienados de sua condição social, tiveram poucas oportunidades de reação. Mas elas ocorreram. As fugas para o interior do sertão e a formação de quilombos aconteceram também na Região Sul. Em muitas situações, houve aproximações com indígenas, daí resultando casos de miscigenação. Hoje, alguns grupos remanescentes lutam para lograr a identificação e demarcação das terras que se | 24 |
tornaram de ocupação tradicional. Trata-se de pequenas comunidade rurais, que desenvolveram práticas coletivas de resistência e de sobrevivência. Nas áreas urbanas, como conseqüência da presença escrava nas lides domésticas e em projetos econômicos que necessitavam de mão-de-obra de maneira intensiva, ocorreram dois processos de inserção na nova ordem da sociedade de classes que se instalou no País, após a Abolição. O primeiro compromissou-se com um “ideal de branqueamento”, aceitando o preconceito e as diferenciações sociais entre brancos e negros. O segundo centrouse numa “ideologia de negritude”, denunciadora da espoliação social vivida pelos negros. A exclusão social e econômica explícita das populações negras continua presente, sendo o maior obstáculo para superar a sua alienação social. À margem da ordem escravocrata, gradativamente foram se estabelecendo, em distantes pontos do sertão, fugitivos da lei e dos patrões, desertores dos exércitos em guerra e peões expulsos das fazendas de criação. A sobrevivência desses indivíduos era garantida pela fartura da natureza, que permitia a caça, a pesca e a coleta abundantes. Pequenas roças de coivara e a extração da erva-mate garantiam o resto. A miscigenação com indígenas e negros foi comum. Formaram-se, assim, diferentes redutos habitados essencialmente por caboclos. Esses excluídos sociais, em boa parte, acabaram envolvidos pela expansão colonial que ocorreu no Sul e, mais objetivamente, pelo conflito do Contestado. MODERNIDADE
E GUERRA NO SERTÃO
Ainda no Império, o Brasil projetou uma ligação ferroviária entre São Paulo e o Rio Grande do Sul. Além de motivações militares, havia interesse em articular a malha ferroviária que se construiu no Rio Grande com o centro do País, visando à melhor circulação da produção. Esse projeto foi concluído em 1910, quando o trecho entre União da Vitória (PR) e Marcelino Ramos (RS) foi construído. Uma empresa norte-americana foi responsável pela obra, mediante a cessão pelo governo federal de 15 quilômetros de terras de cada lado do eixo da ferrovia. | 25 |
Nesse último trecho, a estrada seguia o curso do Rio do Peixe, afluente do Uruguai. Tal área, desde a criação da Província do Paraná, em 1853, vinha sendo disputada. O Paraná pretendia que seus domínios ao sudoeste fizessem divisa com o Rio Grande. Santa Catarina contestou e recorreu ao Supremo Tribunal Federal. A discussão se arrastou pelos escaninhos da burocracia jurídica. Em 1904, Santa Catarina obteve decisão favorável a seu pleito no Supremo. O Paraná, porém, opôs sucessivos embargos. Era essa a situação, quando a Brazil Railway Company começou a assentar os trilhos e a expulsar os posseiros das terras de sua concessão. Um corpo de segurança, com cerca de 200 homens armados, fazia valer os interesses da empresa. Uma grande madeireira foi instalada pela companhia para explorar as florestas de pinheiro e imbuia que cobriam a região. Ao final dos trabalhos de assentamento de trilhos, em Marcelino Ramos, a companhia dispensou um grande número de operários que havia trabalhado na obra, sem qualquer indenização. Essa massa de trabalhadores desempregados, junto com centenas de posseiros que haviam sido expulsos de suas terras em função da concessão dada pelo governo transformaram-se no estopim que levou à deflagração da guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). O aglutinador, entretanto, desses elementos foi a crença que se espalhara na região a respeito dos poderes sobrenaturais de um monge identificado como santo, o São João Maria. A presença do monge em Curitibanos provocou a interferência do governo de Santa Catarina, que sugeriu sua transferência e de seus seguidores para o outro lado do Rio do Peixe. Mas o governo do Paraná não concordou. Tropas foram enviadas para expulsar os catarinenses invasores. Ocorreu o combate de Irani, quando o comandante das tropas do Paraná foi morto. Também morreu o monge. A guerra estava começada. O conflito de Canudos, na Bahia, estava presente na memória nacional. No Contestado, circulavam críticas à República. A espoliação dos posseiros pelo governo, em favor de uma companhia estrangeira, era um fato. Nesse quadro, se deu a reação governamental. A resistência cabocla surpreendeu. Ocorreram 13 expedições militares. Pela primeira vez no Brasil, utilizou-se o | 26 |
avião como arma de guerra. Acredita-se que mais de 20.000 pessoas estiveram envolvidas, e alguns milhares perderam a vida. Em 1916, o conflito foi dado por encerrado. Paraná e Santa Catarina definiram um acordo, dividindo quase meio a meio a área conflagrada. A modernidade chegou ao Sul, assim, pelos trilhos da São Paulo — Rio Grande e pelo uso do avião como instrumento bélico. A população cabocla da região foi dizimada. Em seu lugar, ao lado dos trilhos, surgiram novas colônias. A frente pioneira iniciada pelos imigrantes no Rio Grande do Sul, no século anterior, logo começou a se movimentar em direção ao antigo território contestado. Novos imigrantes chegavam. Uma corrida de povoamento se estabeleceu no norte do Paraná, nos anos 1930, tendo por motivo o cultivo do café. Institucionalizou-se a figura do “bóia-fria”, assumida pelo nordestino que vinha ao Sul em busca de trabalho. A modernidade, o desenvolvimento e a miséria se confundiram num único processo. DIVERSIDADE
ÉTNICA E IDENTIDADE
O Sul do Brasil é um mosaico étnico. Sua população, estimada em cerca de 22,5 milhões de pessoas, em 19931, é formada por gente das mais variadas origens. De uma área para outra, notamse diferenças flagrantes quanto aos costumes e maneiras de ser dos habitantes. No litoral, os luso-açorianos dominam a paisagem humana. A pesca, o fabrico de farinha, a renda de bilro, a louça de barro, a farra-do-boi, o barreado e os pratos feitos com frutos do mar são alguns itens dessa caracterização. Nos campos do planalto e no pampa, a população vivencia costumes ligados às atividades de criação de gado. A marca é a “cultura gaúcha”, centrada no uso do cavalo, do churrasco e do chimarrão. Nos vales litorâneos e em diferentes cidades do interior, os alemães marcam sua presença com clubes de tiro, bandas musicais, jardins floridos e inumeráveis festas. O cultivo da videira e o fabrico do vinho são os elementos que mais se destacam nas áreas de 1
Pelo Censo de 2000, a população atingia 25.089.783 habitantes.
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colonização italiana. São famosas a cozinha italiana e a Festa da Uva, em Caxias do Sul (RS). Mas não é só. Descendentes de poloneses, ucranianos, austríacos, sírios, libaneses, gregos, judeus, japoneses, espanhóis e portugueses, entre outros, mantêm sua tradição, seu folclore e sua maneira de ser. Aparecem ainda, nesse mosaico, com marcas bastante definidas, populações negras e remanescentes dos povos Guarani, Kaingang, Xokleng e Xetá. São, pois, diferentes etnias que formam a gente do Sul. Durante a ditadura de Vargas, o Sul vivenciou uma “campanha de nacionalização.” Acusava-se que no Sul havia prosélitos do nazi-fascismo, e que a Alemanha e a Itália pretendiam ampliar sua influência junto à população formada por imigrantes. Escolas comunitárias foram fechadas. Jovens foram recrutados para prestar serviço militar em outras partes do País. Quartéis do Exército foram instalados em diversas áreas, com o objetivo de integrar e nacionalizar. A síndrome dos “quistos étnicos” e o receio de controle do Sul do País pela Alemanha e a Itália espalharamse. A repressão foi forte, e não poucas famílias sofreram agressões físicas e morais, além de perdas materiais. Tudo isso, durante uma ditadura que foi ambígua em relação aos países em guerra, mas que sabia aproveitar a oportunidade para afirmar um Estadonação unitário, monoétnico e culturalmente homogêneo. Daí serem palavras de ordem a integração, a aculturação e a assimilação dos contingentes migrantes que, por razões da própria negligência dos governos federal e estadual, mantinham relativamente intactas suas tradições culturais, sua língua e identidades étnicas. Mas a proposta estatal de homogeneidade não vingou. Quando se fala no Sul, logo se percebe a singularidade de uma região onde prevalece a diversidade de paisagens, tradições, identidades e biótipos. Há fronteiras, geralmente sutis, entre os diversos grupos que protagonizam a vida humana no Sul. Às vezes, os governantes intentam passar a imagem de uma região de “trabalho e festas”, rica e harmônica em termos sociais e econômicos. A realidade não é assim, como bem demonstram o movimento dos “sem-terra”, os cinturões de miséria no entorno das maiores cidades, os “sem-teto” e os “bóias-frias”. | 28 |
O importante é concluir que a diversidade étnica e cultural da gente do Sul é positiva. O local tem seu espaço diante do nacional. O isolamento de muitas comunidades, hoje, está rompido. Os meios modernos de comunicação asseguraram a integração econômica e política de toda a região, sem eliminar por inteiro as diferenças. Esta heterogeneidade étnica e cultural tem sua própria dinâmica, reenfatizando e reafirmando identidades. A identidade do gaúcho é produto de uma construção social, assim como as demais identidades. Estereótipos e preconceitos de um grupo étnico sobre o outro continuam a existir. Imagens positivas e negativas sobre identidades também acontecem. Essa gente, enfim, tem orgulho das suas etnias de origem, das suas tradições culturais e de sua nacionalidade brasileira.
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U MA
V I A G E M P A R A ALÉM DA
CRISTANDADE
N
as últimas décadas do século XV, Lisboa tornou-se um centro de referência na Europa. Navegadores, cartógrafos, agentes de casas bancárias, aventureiros e comerciantes se confundiam nas ruas apertadas da cidade. As notícias sobre os avanços dos portugueses na costa da África circulavam céleres e criavam expectativas no imaginário popular. O projeto dos reis de Portugal de abrir uma rota marítima para as Índias, contornando a África, tornou-se realidade com a viagem de Vasco da Gama (1498). Dois anos depois, a esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral chegava à costa ocidental do Atlântico, ou seja, ao Brasil, daí seguindo para as Índias. O Império português se expandiu rapidamente nas décadas seguintes, tendo como foco o comércio de especiarias com as Índias, e depois com o Brasil. Os avanços da tecnologia náutica fundamentaram as conquistas dos portugueses. A Escola de Sagres, liderada por dom Henrique, treinou navegantes, reuniu cartógrafos, armazenou informações e definiu estratégias para estabelecer pontos de apoio ao longo da costa da África e nas ilhas do Atlântico, especialmente dos Açores, da Madeira e do Cabo Verde. A invenção da caravela e os sucessivos aperfeiçoamentos nos instrumentos náuticos de orientação dos navegadores, como o sextante, a bússola e as “cartas de marear”, além da persistência, garantiram o sucesso desse projeto de expansão marítima. Os reis de Portugal, motivados pelas possibilidades de crescimento do Império e da fé católica, mas também atentos para resultados econômicos Originalmente publicado em: SANTOS, Sílvio Coelho dos et al. (Org.). São Francisco do Sul: muito além da viagem de Gonneville. Fpolis: Ed. UFSC, 2004. p. 21-31.
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concretos, viabilizaram política e financeiramente diversas expedições. As Índias e suas especiarias, tendo como referências as histórias narradas por Marco Pólo e outros viajantes, além das riquezas acumuladas por Veneza e Gênova (Itália), despertavam múltiplos interesses. O Tratado de Tordesilhas (1494), firmado entre Portugal e a Espanha, tendo a intervenção direta do papa Alexandre VI, dividindo as terras descobertas e por descobrir entre os dois Reinos, demonstra o poderio alcançado por Portugal. Os saberes acumulados pelos árabes e judeus, em particular sobre Matemática, Geografia, Astronomia e línguas, indiscutivelmente, contribuíram para o sucesso dos portugueses. Havia muito, Lisboa era uma cidade cosmopolita e aberta para inovações, abrigando muitos especialistas e não poucos aventureiros, originários de diferentes países da Europa. As frotas marítimas e o comércio de especiarias se expandiram rapidamente. A difusão da caravela e o surgimento de barcos com maior capacidade de carga, as naus, facilitaram tanto as expedições em direção às Índias como a exploração das terras da América. No litoral atlântico da França, seguindo velha tradição de domínio dos mares, comerciantes e navegadores de Honfleur, Dieppe e Rouen estabeleceram relações estreitas com Portugal. As idas de embarcações dessas cidades para Lisboa eram freqüentes, visando ao abastecimento dos mercados do norte da Europa com os novos produtos originários de terras distantes. Em troca, os franceses levavam para Portugal as especialidades fabris da Normandia, principalmente tecidos, louças, e armas de fogo e de aço. Navegadores e comerciantes desses países falavam rotineiramente sobre suas aventuras e seus interesses sobre as novas terras e rotas comerciais, que estavam sendo alcançadas por Portugal e pela Espanha. Havia uma atração por esses territórios desconhecidos e exóticos, especialmente sobre as suas possibilidades de negócios e de aventuras. O pretenso direito de Portugal e da Espanha sobre as terras descobertas certamente não era compartilhado por outras casas reinantes na Europa, muito menos por comerciantes e aventureiros. Foi nesse contexto que um pequeno grupo de comerciantes de Honfleur, liderado por Binot Paulmier de Gonneville, resolveu | 31 |
adquirir e equipar um navio para realizar uma viagem comercial às Índias, seguindo a rota aberta por Portugal. Para tanto, entre outras providências, os franceses contrataram em Lisboa dois experientes navegadores portugueses, Bastião Moura e Diogo de Couto, para assessorá-los na arrojada expedição. Concretamente, objetivava-se quebrar o monopólio português sobre a rota estabelecida por Vasco da Gama, razão do sigilo que cercou os preparativos da viagem e seu destino. A expedição que se vislumbrava, entretanto, não despertou o interesse apenas de comerciantes e marinheiros. Voluntários, motivados pela aventura, também se candidataram. Entre esses, Nicole Lefebvre, considerado “pessoa de saber”, que foi aceito com o compromisso de fazer os registros sobre as “curiosidades” das terras que seriam visitadas. No dia 24 de junho de 1503, sob o comando do capitão de Gonneville, o navio L’Espoir partiu de Honfleur tendo 60 homens a bordo. Os navegantes seguiram na direção sul, passando pelas Ilhas Canárias 18 dias depois. Daí rumaram para o Arquipélago de Cabo Verde, parando depois na costa africana para abastecimento. Em 12 de setembro, passaram pela Linha do Equador, entrando no Hemisfério Sul. O Cruzeiro do Sul passava a ser a referência para a orientação do curso do navio, substituindo a Estrela Polar (da constelação Ursa Menor), velha conhecida dos marinheiros europeus. O “mundo da Cristandade” ficava para trás. Os desafios ao “mar oceano”, como era conhecido o Atlântico, ainda estavam por vir. A viagem seguiu demorada, sofrendo a tripulação as conseqüências da falta de alimentos frescos. As mortes por escorbuto foram se sucedendo. Muitos foram os dias sem ventos. Depois, se seguiram fortes tempestades. O rumo do navio, em direção ao extremo sul da África, a certa altura foi perdido. Os ventos e as correntes levavam o L’Espoir na direção sudoeste. Dias depois, os intrépidos navegantes perceberam pássaros indo e voltando na direção sul, e resolveram mudar de rumo, dando às costas para a África. Foi assim que, no dia 5 de janeiro de 1504, se aproximaram de uma grande terra, onde aportaram no dia 6 “num Rio parecido com o Orne”. Nos meses seguintes, a estropiada tripulação do L’Espoir conviveu com a população nativa que habitava aquela terra | 32 |
estranha, recuperando-se dos desgastes físicos sofridos na longa travessia do Atlântico. O navio foi reparado dos estragos sofridos, num trabalho penoso e demorado. Parte da tripulação realizou algumas incursões ao interior e no litoral da nova terra. Muitos registros foram realizados sobre a fauna, a flora e seus amistosos habitantes indígenas. Na Páscoa, ergueram uma cruz num morro próximo ao litoral, marcando a presença dos arrojados franceses. Em julho, depois de consultados os membros sobreviventes da tripulação, o capitão de Gonneville resolveu regressar a Honfleur, desistindo do intento de seguir em direção às Índias. O L’Espoir foi abastecido com água, víveres frescos e muitos presentes recebidos dos nativos. Como convidados, embarcaram um dos filhos do Rei Arosca, o jovem Içá-Mirim (que os franceses registraram como sendo Essomericq), e o índio Namoa, que iriam conhecer as terras de origem dos navegantes brancos, situadas a leste, e que possivelmente foram confundidas pelos nativos com a “terra sem males”, base da sua mitologia. Gonneville comprometeuse em regressar a essas terras austrais, trazendo Essomericq e Namoa, dentro de vinte Luas. Isto, como se sabe, não ocorreu. A viagem de volta foi atribulada. A bordo, ocorreram novas mortes, inclusive a do índio Namoa. Doente, Essomericq foi batizado, recebendo o nome de Binot de seu padrinho e protetor, o capitão de Gonneville. No Nordeste do Brasil, fizeram paradas para abastecimento de víveres e de produtos comercializáveis. Em mais de uma oportunidade, enfrentaram nativos hostis e sofreram novas perdas em homens. Atravessaram a Linha do Equador e tornaram a ver no horizonte a Estrela Polar. Semanas depois, arribaram na Ilha do Faial, no Arquipélago dos Açores. Era 9 de março de 1505. Semanas depois, o L’Espoir tomou o rumo da Normandia. Uma tempestade obrigou uma parada na Irlanda para a realização de reparos no barco. Novamente no mar, nas proximidades das Ilhas de Jersey (Canal da Mancha), foram atacados por corsários, tendo o capitão de Gonneville decidido encalhar seu navio para ter chances de salvar a tripulação. Tudo que estava armazenado foi perdido, inclusive o livro de bordo e os preciosos registros feitos por Nicole Lefebvre. Regressando a Honfleur, o capitão de Gonneville e parte de | 33 |
seus companheiros fizeram uma “declaração da viagem” no dia 19 de junho de 1505, junto aos oficiais do Almirantado da França, no Palácio de Rouen, narrando com relativa minúcia as peripécias da expedição e as perdas sofridas em vidas e mercadorias. Foi dessa “declaração”, conhecida como a “Relação Autêntica”, que selecionamos os fatos acima narrados, tendo como referência a tradução feita por Tristão de Alencar Araripe e publicada, em 1886, na Revista Trimestral do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do Brasil, tomo XLIX, 2º volume1. Araripe realizou seu trabalho a partir da versão divulgada pelo geógrafo Armando d’Avezac, membro do Instituto de França, de um documento localizado na Biblioteca do Arsenal, em Paris, pelo bibliotecário Paulo Lacroix. D’Avezac publicou esse documento, em 1869, nos Annales des voyages, com o título “Relation authentique du voyage du Capitaine de Gonneville ès Nouvelles Terres des Indes publiée intégralement pour première fois avec une introduction et des éclarcissements”. O encontro desse documento eliminou grande parte dos questionamentos que existiam sobre a viagem de Gonneville. Foi d’Avezac que informou pela primeira vez que os normandos haviam aportado no Sul do Brasil, entre as latitudes “de 24º por um lado, e de 27º a 30º por outro”, com a seguinte complementação: “na latitude média entre os dous termos, aos 26º e 10 sul dezembóca o Rio de São Francisco do Sul, no paíz abitado pelos Carijós”2. Araripe, em sua tradução, incorporou a versão de d’Avezac. Foi a partir daí que se disseminaram as informações sobre a presença dos franceses em São Francisco do Sul. Contudo, como qualquer tema de um passado que já se faz distante, persistiram e persistem dúvidas, por parte de diferentes autores, especialmente sobre o local exato do desembarque dos normandos. Com sua extraordinária e penosa viagem, Gonneville e seus companheiros tiveram o indiscutível mérito de ter aberto uma rota comercial em direção ao Brasil. Como sabemos, nas décadas seguintes, as expedições francesas para o litoral brasileiro se 1 2
Há uma versão atualizada da “Relação Autêntica“ publicada por Perrone-Moisés (1992). ARARIPE (1886, p. 323).
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sucederam, em busca, principalmente, de pau-brasil. Por sua vez, a “Relação Autêntica” constitui-se, ao lado da “Carta de Caminha”, num dos documentos fundadores da história de nosso País. A
SAGA DE
ESSOMERICQ
NA
FRANÇA
Binot Paulmier de Gonneville regressou a Honfleur com 28 homens, aí incluídos o próprio capitão e Essomericq. Nos meses seguintes, o capitão tentou convencer seus sócios e outros comerciantes para equipar outro navio e voltar às terras austrais. Seus argumentos, entretanto, foram em vão. A prometida volta à terra de Essomericq (agora Binot) não aconteceu. O capitão, porém, não deixou de proteger seu afilhado. Não se tem dados concretos sobre os primeiros anos da vida de Essomericq (Binot) na França. Presume-se que a proteção do padrinho lhe tenha garantido condições para sobreviver e se adaptar aos costumes da nova terra. Esta trajetória não lhe deve ter sido fácil. Essomericq teve de aceitar as imposições de uma nova cultura, de uma nova língua e, também, de diferentes condições sociais, econômicas e ambientais. Viveu, sem dúvida, uma singular saga. À época, era comum aos navegadores aprisionarem nativos para uso como escravos em seus barcos, ou para levá-los para suas cidades de origem como provas de terem visitado terras exóticas. Há muito, os portugueses promoviam o tráfico de negros para a Europa. Colombo, ao regressar de sua primeira viagem à América, levou uma dezena de nativos para a Espanha. Cabral fez o mesmo, despachando com a carta de Pero Vaz de Caminha diversas amostras das “coisas da terra” e um índio do sul da Bahia para conhecimento do rei d. Manuel. Com os navegadores franceses, aconteceu o mesmo. A diferença é que Essomericq jamais foi tratado como escravo. Na França, sua condição era de um príncipe originário das terras austrais. Certamente, nunca teve de participar de desfiles ou de outras humilhações públicas. Essomericq, por ser apadrinhado de Gonneville e por viver numa pequena cidade da Normandia, acabou conquistando condições excepcionais de sobrevivência no contexto da expansão européia, que nesse momento acontecia. Nesse sentido, sua vida na Europa tornou-se | 35 |
um raro caso de positiva convivência e de tolerância interétnicas. O capitão de Gonneville, em 1521, conseguiu casar Essomericq com uma parenta sua. Deu-lhe também o sobrenome Paulmier e boa parte de seus bens. Binot Paulmier (Essomericq) e sua mulher tiveram quatorze filhos, o que garantiu a presença na França de seus descendentes por diversas gerações. Essomericq viveu até 1583, alcançando mais de noventa anos de idade3. A comprovação da trajetória de Essomericq acabou acontecendo também por meios transversos. Em 1658, descendentes de Binot Paulmier (Essomericq) tiveram de recorrer ao rei Luís XIV para serem isentos do imposto de ádvena, que atingia os estrangeiros residentes na França4. A argumentação dos familiares, entre eles o abade Jean Paulmier de Courtonne, bisneto de nosso personagem, era a de que descendiam de um príncipe originário das terras austrais que fora convidado para vir à França. Na impossibilidade do prometido regresso, seus familiares e descendentes se consideravam convidados do governo francês, e não estrangeiros. Como prova, informavam sobre a existência da “declaração de viagem” depositada no Almirantado, em Rouen, que num primeiro momento recusou lhes fornecer um exemplar do documento. Luís XIV aceitou o pedido, determinando que o Almirantado fornecesse uma cópia da “declaração da viagem” para os requerentes, o que se efetivou em 30 de agosto de 1658. Além da isenção do imposto, o episódio reavivou a memória dos descendentes de Essomericq, garantindo o surgimento de diversos registros sobre a saga do Guarani que se viu levado das terras do Sul do Brasil para a Normandia.
3 4
Perrone-Moisés, op. cit. (p. 114). Ibidem (p. 109).
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NOTÍCIA
SOBRE OS
CARIJÓ
A
s fontes etno-históricas indicam que foram os índios Guarani, depois denominados Carijó1, que socorreram a estropiada tripulação do L’Espoir. Todo o litoral sul, de Cananéia (SP) até a Lagoa dos Patos (RS), os vales interioranos e as margens dos rios da bacia Paraná—Paraguai eram ocupados por esses índios. A denominação Carijó foi dada pelos europeus nos anos imediatos à conquista. Organizados em subgrupos e distribuídos em diversas aldeias, os Carijó tinham vida sedentária e dominavam técnicas de horticultura, caça, coleta, olaria, cestaria e fiação do algodão, além de serem profundos conhecedores de toda a região, do seu relevo, da flora e da fauna. Eles é que recepcionaram os franceses, fornecendo-lhes alimentos e dandolhes condições para se recuperarem da longa travessia do Atlântico. Durante os meses que se sucederam, o capitão de Gonneville e sua tripulação mantiveram uma relação amistosa e respeitosa para com esses indígenas. Na “Relação da Viagem”, aparecem referências resumidas sobre as muitas notas e os desenhos que foram feitos por Nicole Lefebvre em relação ao cotidiano dos índios. Gonneville e sua tripulação fizeram amizades com os nativos liderados pelo cacique Arosca. Ao final da estada em julho, quando iniciaram a volta para a Cristandade, Gonneville conseguiu a autorização de Arosca para levar seu filho, Içá-Mirim (Essomericq), acompanhado de um índio mais velho, Namoa, à França. Publicado em: SANTOS, Sílvio Coelho dos. São Francisco do Sul: muito além da viagem de Gonneville. Florianópolis: UFSC, 2004. p. 40-47. 1 A grafia Carijó e de outros povos indígenas está de acordo com o estabelecido na convenção instituída pela 1a Reunião Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, 1953), cujo texto se acha publicado na Revista de Antropologia, v. 2, n. 2, dezembro de 1954, São Paulo.
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As observações presentes da “Relação de Viagem” sobre os nativos permitem que se tenha idéia de como viviam os Carijó, seus costumes, economia, organização social, festas e atividades guerreiras. Também os índios tiveram enorme curiosidade sobre esses estranhos homens brancos, sobre o enorme barco em que navegavam, e sobre suas armas de fogo e de aço. Muito provavelmente, Gonneville e seus companheiros foram tomados pelos Carijó como heróis míticos, originários da “terra sem males”, tão presentes em sua cultura. A confraternização entre os tripulantes e os nativos não se resumiu à troca de presentes e festas. Poucos, certamente, não foram os casos de relacionamento sexual. Mais tarde, observações de outros navegadores e padres vão ressaltar tantos os costumes como a cordialidade e a receptividade dos Carijó para com os brancos. Os Guarani iniciaram um processo de dispersão e de conquistas a partir da Amazônia por volta de 2.000 anos atrás. Ocuparam, entre outras áreas, a bacia do Paraná-Paraguai. Seguindo alguns dos rios formadores dessa bacia, chegaram ao litoral sul e, assim, à Ilha de São Francisco do Sul. Datações obtidas em sítios arqueológicos no litoral do atual Estado de Santa Catarina indicam a presença dos Guarani há cerca de 1.000 anos, ou seja, quando da chegada dos europeus eles já estavam aqui há pelo menos 500 anos. Há uma extensa bibliografia sobre os Guarani, e parte dela registra as hipóteses relativas ao centro de origem e às motivações para a sua expansão em direção ao litoral. Na maioria, essas hipóteses remetem ao mito da procura da “terra sem males”, que ficaria situada a leste, ou seja, além do Atlântico. Dominando a horticultura e contando com contingentes demográficos expressivos, além de forte motivação religiosa, os Guarani avançaram para o litoral sul, exterminando, dominando ou expulsando outros povos, entre eles, provavelmente, os construtores dos sambaquis e de outras tradições culturais. Cabe aqui um pequeno parêntese para esclarecer que os povos indígenas que se sucederam na ocupação de espaços geográficos como o Sul do Brasil mantiveram disputas fortes entre si, principalmente para alcançar os recursos protéicos existentes, tanto no litoral como no interior. A Região Sul, nesse sentido, era | 39 |
privilegiada por contar com a presença periódica de cardumes em seu litoral. Peixes como a tainha e a anchova, em certas épocas do ano, podiam ser capturados em grandes quantidades. Os moluscos, representados por mariscos, berbigões e ostras, podiam ser coletados o ano inteiro. Baleias e outros animais marinhos de porte tinham presença constante no litoral, e em algumas situações se tornavam bastante vulneráveis à captura. No interior, nas terras altas do planalto, onde as matas de araucária, devido à fartura do pinhão, reuniam extensa e variada fauna, uma outra fonte permanente de proteína estava à disposição de populações especializadas na caça e na coleta. Provavelmente, nesse território do planalto, o domínio foi dos antecedentes dos Xokleng e dos Kaingang, que são referidos na literatura como tendo uma tradição cerâmica que foi denominada pelos arqueólogos como a “tradição Itararé”. As disputas por territórios que tivessem fartura de alimentos, portanto, aconteceram entre diferentes povos, muito antes da chegada dos europeus. Depois de Gonneville, diversos navegadores europeus chegaram ao litoral do atual Estado de Santa Catarina, nas primeiras décadas do século XVI. Essa região logo foi reconhecida pela excelência de seus portos naturais, o que era estratégico para o descanso das tripulações, os consertos das embarcações e o reabastecimento de água e de víveres. A partir de uns poucos registros, sabe-se que os náufragos da expedição de Solís (1515), por exemplo, vivenciaram um relacionamento intensivo com os indígenas. Mais raramente, outros marinheiros desertaram de seus navios ou foram abandonados por seus capitães, e ficaram entre os índios. Os comandantes das diversas expedições que aqui passaram poucas anotações fizeram sobre os habitantes da terra. Como estavam em jogo interesses econômicos das Coroas ibéricas, a maioria das expedições eram rodeadas de um certo sigilo. Essa, talvez, fosse uma razão para a escassez dos relatos. Outras referências foram publicadas por Hans Staden, Cabeza de Vaca e nas cartas dos primeiros padres aos seus superiores. Mas, sem dúvida, foram os Carijó que suportaram os primeiros embates com os europeus, tanto na Ilha de São Francisco como em todo o litoral. Da cordialidade e da curiosidade sobre aqueles | 40 |
estranhos homens barbudos, cobertos com roupas malcheirosas, que desciam de barcos enormes usando estrondosas armas de fogo e portando afiadas lâminas de aço, surgiu nas décadas seguintes o medo devido à violência e à vontade explícita dos recém-chegados em submeter os indígenas. O rapto seguido do trabalho escravo, o abuso sexual das mulheres e o apossamento dos bens indígenas, apesar das convicções cristãs dos conquistadores, tornaram-se rotinas. Simultaneamente, os europeus passaram aos índios diversas doenças até então para eles desconhecidas, como a varíola, o sarampo, a gripe, a pneumonia, a tuberculose e a gonorréia. Assim, as epidemias desarticularam o equilíbrio demográfico das aldeias e a sua organização socioeconômica. Ao mesmo tempo, as crenças religiosas que davam suporte à explicação do mundo em que os carijós viviam passaram a ser desvalorizadas pelos padres que chegaram para catequizá-los. A conquista, portanto, foi violenta, tendo os invasores alcançado resultados rápidos em função do domínio das armas de fogo, do aço e, incrivelmente, dos germes. Trata-se, pois, de um elucidativo exemplo para a compreensão da supremacia de algumas sociedades sobre outras, a partir do exercício da violência. Essa violência foi tal, no caso dos Carijó, que no século seguinte (XVII) já não havia mais aldeias no litoral. Não se pense, entretanto, que a população nativa era pequena. Relatos dão conta de que, entre Cananéia e a Lagoa dos Patos (RS), devia haver cerca de 100 mil Carijó. Diferentes sítios arqueológicos também sinalizam para uma presença numérica significativa de indígenas. Porém, a Arqueologia ainda não tem dados suficientes para fazer uma estimativa demográfica segura dos povos que aqui viveram antes da invasão européia. A motivação da maioria dos navegadores que exploraram o Atlântico Sul nas primeiras décadas do século XVI era a descoberta de uma passagem para o Pacífico que permitisse chegar às Índias, ou seja, ao Oriente, pelo oeste. Nessa busca, primeiro alcançaram o Rio da Prata, que se tornou uma alternativa para chegar às terras do Peru e da Bolívia. Interessavam-se, antes de tudo, pela conquista de riquezas fáceis, e, na falta dessas, foi comum a | 41 |
apropriação de seres humanos, ou seja, de índios, para utilizá-los como testemunhos exóticos da estada em terras estranhas, como objetos sexuais ou como escravos. No relato de Pigafeta sobre a expedição de Fernão de Magalhães em torno da Terra (1519— 1521), há referências sobre um grupo de mulheres índias que teria sido raptado no litoral do Rio de Janeiro para uso da tripulação. Essas mulheres foram simplesmente abandonadas quando da passagem pela Terra do Fogo. Portanto, é possível pensar que, à época, práticas dessa natureza fossem rotina entre as tripulações, e que este poderia ter sido o destino de muitas mulheres Carijó que viviam no litoral. A passagem do adelantado Cabeza da Vaca na Ilha de Santa Catarina (1541) e, depois, sua incursão ao Paraguai seguindo pelo Rio Itapocu (cuja embocadura está próxima à Ilha de São Francisco do Sul), na mesma rota trilhada anteriormente por Aleixo Garcia e seus companheiros, deixaram ligeiras referências sobre os Carijó e sobre os Guarani, que ocupavam o interior, especialmente nas proximidades dos grandes rios formadores da bacia Paraná— Uruguai. Depois, a melhor referência é de Hans Staden, aventureiro alemão que embarcou como arcabuzeiro numa expedição espanhola que se dirigia para a América do Sul. Dele, é a configuração do primeiro mapa da Ilha de Santa Catarina, com destaque para uma aldeia indígena que se localizava no continente fronteiro. As aventuras de Staden foram publicadas em 1557, na Alemanha. Por suas notas, infere-se que os Carijó estavam cada vez mais submetidos aos desígnios dos brancos. Esses tinham crescente interesse na produção indígena para abastecer seus barcos. O papel exercido por aqueles aventureiros que se deixaram ficar entre os indígenas foi fundamental nesse processo, pois, além de aprenderem a língua e servirem de intérpretes, foram eles que estabeleceram relações mais próximas, especialmente aproveitando a instituição do “cunhadismo”, que era comum entre os habitantes da terra. Através do “cunhadismo”, os Carijó costumavam incorporar o estranho à sua família, entregando-lhe, preferencialmente, sua irmã como esposa. Ou seja, os indígenas tinham em sua estrutura social um mecanismo de absorção do estranho através do casamento. Como a poliginia | 42 |
era institucionalizada na sociedade carijó, não é de estranhar que muitos brancos fossem contemplados com várias mulheres e, dessa forma, se tornaram aliados de várias famílias. A partir dessas alianças, esses aventureiros tiveram condições de submeter os indígenas aos seus desígnios. As aldeias eram formadas por famílias extensas, na quais predominavam a exogamia e a reciprocidade nas relações econômicas, ou seja, a circulação dos bens objetivava atender às necessidades de todos, e não apenas de alguns. Praticavam o que se poderia denominar de “economia da abundância”. Líderes religiosos tinham grande importância na organização social e no cotidiano de cada grupo. Uma forte relação com a natureza, fundamentada no aproveitamento dos recursos disponíveis de forma pouco agressiva, e o domínio das técnicas agrícolas, de caça e pesca garantiam um extraordinário equilíbrio com o meio ambiente. Conheciam diferentes variedades de milho, de feijão, de mandioca e de abóbora, que cultivavam em pequenas roças de coivara. Plantavam, ainda, o algodão, o fumo, a cabaça e um número expressivo de plantas medicinais. A começar por Gonneville e seus companheiros, foram os Carijó que passaram para os europeus os saberes fundamentais à sua sobrevivência no espaço geográfico que estavam invadindo. Esses saberes chegaram até nós, absorvidos que foram pela população que acabou dominante. Para ficar apenas em alguns exemplos, lembramos a importância da farinha, do peixe assado na brasa, de ervas, de cipós e de plantas como a mandioca, o feijão e o milho; ou fabrico de balaios, o uso da canoa de tronco, a arapuca, o mundéu, o covo, o bodoque, o arpão, no cotidiano das gerações que se sucederam no litoral sul. Além disso, os Carijó deixaram como testemunho de sua longa presença na Ilha de São Francisco do Sul e adjacências diversos topônimos, entre os quais destacamos como exemplos: Babitonga, Araquari, Itaguaçu, Iperoba, Itapocu, Ubatuba, Tapera, Una, etc. É evidente que os Carijó não desapareceram por inteiro. Dispersos em pequenos grupos, se refugiaram nos pontos mais inacessíveis da costa e do interior. Outros foram obrigados a conviver com o branco na condição de escravos. O nome Carijó | 43 |
foi dado pelos europeus para os Guarani que viviam no litoral sul, como já se disse. Esses índios ocupavam um vasto território, incluindo boa parte do que são hoje o Paraguai, a Bolívia, a Argentina e o Uruguai, além do Brasil. Formavam um grande povo. Nos primeiros séculos da dominação colonial, foram objeto dos esforços de catequese dos padres enviados pela Coroa portuguesa e, também, pelas iniciativas dos jesuítas espanhóis que fundaram as reduções de Guaíra e, depois, os Sete Povos das Missões, entre os Rios Paraná e Uruguai. Foram eles que, em função dos aldeamentos promovidos pelos jesuítas, sofreram as mais intensas razias dos caçadores de escravos paulistas, que os capturaram aos milhares. Foram eles que serviram de mão-deobra para as fazendas que foram se instalando em São Vicente (SP) e, depois, em boa parte do litoral sul. Continuamente foram espoliados e ficaram à margem, em tempos mais recentes, de qualquer política promovida pelos órgãos governamentais, em especial pelo Serviço de Proteção aos Índios ou pela Fundação Nacional do Índio. São eles que, num grau extremo de penúria, têm assombrado a mídia com suicídios de crianças e jovens, em particular no Mato Grosso do Sul. São eles que, num lento e inexorável movimento, têm voltado a circular pelo litoral sul na tentativa de reocupação das terras de seus ancestrais e de uma reaproximação com a “terra sem males”, como acontece com aqueles que estão aldeados no local denominado Laranjeiras (ou Morro Alto), na Figueira (Araçá). São esses índios que, no dia-adia, expõem de maneira exemplar as contradições de nossa sociedade, ao buscarem ganhar alguns recursos financeiros vendendo artesanato ou esmolando, tanto na cidade de São Francisco do Sul como nos centros das maiores cidades do Estado. São eles que continuam, de uma forma ou de outra, a pretender nos mostrar no cotidiano que existem formas alternativas de vida social e de sobrevivência humana que não necessariamente estão baseadas na concentração da riqueza, na exploração agressiva dos recursos da natureza, e numa contínua e inglória disputa de “todos contra todos”, como acontece entre nós. São eles, os mais deserdados entre todos os demais, que clamam por justiça e por definições políticas que lhes assegurem pelo menos área de terras | 44 |
que lhes permitam sua reprodução biológica e cultural, no cenário de um país que pretende respeitar as diferenças culturais e garantir condições de sobrevivência às minorias étnicas.
AGUIAR, Rodrigo. A arte indígena e pré-histórica no litoral de Santa Catarina. Florianópolis: Edição do Autor, 2001. CABEZA de VACA, Álvar Núñez. Naufrágios e comentários. Porto Alegre: L&PM, 1987. DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Rio de Janeiro: Record, 2001. KERN, Arno Alvarez. Antecedentes indígenas. 2 ed. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998. MAESTRI, Mário. Os senhores do litoral. Conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasileiro (século XVI). 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1995. MOREAU, Felipe Eduardo. Os índios nas Cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo: AnnaBlume, 2003. MOSIMANN, João Carlos. Porto dos Patos. A fantástica e verdadeira história da Ilha de Santa Catarina na era dos descobrimentos, 1502—1582. Florianópolis: Estúdio 4 Editora, 2002. PEREIRA, Carlos da Costa. História de São Francisco do Sul. 2. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004. PEREIRA, Carlos C. A viagem da esperança, romance. Joinville, SC: Letradágua, 2002. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vinte Luas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. PIGAFETA, Antonio. Primeira viagem ao redor do mundo. Porto Alegre: L&PM, 1988. ROHR, João Alfredo. Sítios arqueológicos de Santa Catarina. In.: Anais do Museu de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: Imprensa Universitária, 1984. SANTOS, Sílvio Coelho dos. Nova história de Santa Catarina. 4. ed. Florianópolis: Editora Terceiro Milênio, 1998. STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Salvador, Progresso, 1955.
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A
MODERNIDADE CHEGA PELO TREM
A
s primeiras décadas do século XX marcaram profundamente o futuro imediato de Santa Catarina. Os desdobramentos do projeto de modernidade que avassalava o mundo estavam chegando através de uma estrada de ferro. A questão dos limites entre o Brasil e a Argentina, na chamada área de Palmas (ou Missões), estava resolvida, e uma Comissão Mista definia, entre 1900 e 1904, a demarcação da fronteira. Foi nesse cenário de busca do “progresso” e de disputa entre os dois países que foi projetada, ainda no Império, a construção da Estrada de Ferro São Paulo—Rio Grande, objetivando garantir o rápido deslocamento de tropas em caso de um conflito e, paralelamente, assegurar o domínio de imenso território no interior da Região Sul. O Estado-nação unitário e hegemônico tomava sua conformação, definindo seus limites, construindo estradas de ferro e linhas telegráficas, e criando seus símbolos. O esforço vinha do Império e se ampliara na República. Intelectuais como Oliveira Viana, Sylvio Romero, Euclides da Cunha e Rui Barbosa advogavam o progresso e a ordem. Os ideais positivistas também se disseminavam, abalando a visão tradicional de poder que dominava o País. O trem a vapor simbolizava o moderno. As ferrovias haviam possibilitado novas formas de articulação de bens e de capital, em nível mundial. A nova dimensão da velocidade permitia a incorporação de enormes áreas de terra ao processo produtivo, promovendo a reorientação da produção econômica, a exploração de recursos naturais e a relocalização de investimentos. A Publicado originalmente em: SANTOS, Sílvio Coelhos dos (Org.). Santa Catarina no século XX. Fpolis: Editora da UFSC, 1999. p. 13-30.
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expansão da malha ferroviária para os mais distantes pontos da superfície terrestre era uma realidade que interessava a diferentes governos e grupos econômicos. Toda a área compreendida entre os Rios Iguaçu e Uruguai, até a fronteira com a Argentina, foi considerada como passível de apropriação privada. A definição dos limites entre o Paraná e Santa Catarina, até então, vinha sendo postergada, em função dos interesses das elites regionais. A Constituição de 1891 havia outorgado aos Estados a administração das terras denominadas como “devolutas”. A idéia de que a região era um “grande vazio demográfico” prevalecia, despertando a cobiça entre os que podiam tomar decisões e facilitando a distribuição de títulos de propriedade para uns poucos privilegiados. Na falta de recursos financeiros para construir a estrada de ferro, o governo republicano concedeu vantagens para investidores nacionais e estrangeiros. Aos poucos proprietários, aos posseiros e aos indígenas, habitantes tradicionais da região, nada se assegurou. O trem, símbolo da modernidade, também deve ser visto como instrumento do conflito e da dominação, que teve como expressão maior a Guerra Sertaneja do Contestado. A
ESTRADA DE FERRO COMO PROJETO HEGEMÔNICO
Na semana anterior à sua destituição, o imperador Pedro II concedeu ao engenheiro João Teixeira Soares privilégios para a construção de uma estrada de ferro que partia de Itararé, na Província de São Paulo, e chegava até Santa Maria da Boca do Monte, no Rio Grande do Sul. Pouco depois, a concessão foi ratificada pelo Governo Provisório da República. Objetivava-se uma ligação estratégica entre os centros urbanos do País (São Paulo e Rio de Janeiro) com o extremo sul, assegurando-se o rápido trânsito de tropas militares. No Rio Grande do Sul, já havia algumas linhas instaladas, o que possibilitava, inclusive, pensar numa interligação ferroviária com a Argentina e o Uruguai. Ao mesmo tempo, abriam-se perspectivas para a incorporação e o domínio de extensa área territorial através da fixação de imigrantes e seus descendentes. | 47 |
Teixeira Soares criou inicialmente a Compagnie Chemins de Fer Sul Ouest Brésiliens, que a seguir transferiu parte da concessão original para a Brazil Railway Company, empresa sediada em Portland (EUA). Esta empresa já controlava vários trechos ferroviários no Brasil e detinha outras tantas concessões na América do Sul, investindo também na extração de madeiras, indústria de papel, frigoríficos e negócios de colonização, formando um grande conglomerado, administrado pelo megainvestidor Percival Farquhar. Apesar de diferentes recomposições contratuais e acionárias, a estrada tomou ímpeto a partir de 1906, atingindo União da Vitória (PR) em 1908 e Marcelino Ramos (RS) em 1910. Em dezembro desse ano, circulou a primeira composição regular, ao longo dos l.403 km da linha originalmente projetada. Milhares de trabalhadores haviam sido mobilizados na sua construção. Cerca de 30.000:$000 (trinta mil contos de réis), equivalentes ao câmbio da época a três milhões de libras esterlinas, foram gastos. A concessão, através de diferentes ajustes e complementos, garantiu à empresa uma faixa de terra de 15 km de cada lado do eixo da ferrovia, como pagamento pelo investimento. Por isso, a Brazil Railway logo criou a subsidiária Southern Brazil Lumber and Colonization Company, com o objetivo de explorar os recursos florestais disponíveis e proceder à localização de imigrantes. Em Três Barras e Calmon, montou duas serrarias, com capacidade de serrar cerca de 300 metros cúbicos diariamente. As atividades de extração, transporte e serra eram mecanizadas. A madeira era exportada pelos portos de Paranaguá e São Francisco, através de um ramal ferroviário especialmente construído pela companhia. A expansão dos investimentos da empresa aconteceu pelas sucessivas concessões do governo do Paraná e do governo federal, apesar das oposições e dos embargos do governo catarinense. Algumas áreas foram adquiridas de terceiros, próximas a Canoinhas, com o objetivo de ampliar a exploração das reservas de pinheiro-do-paraná. O colosso empresarial dirigido pelo truste Farquhar em poucos anos açambarcou milhares de hectares de terras, devastou a flora e aniquilou de maneira desleal os pequenos proprietários de | 48 |
engenhos de serra, negando-lhes o transporte de sua produção nas ferrovias que dominava. Ao mesmo tempo em que dizimava a cobertura florestal da região, a Brazil Railway investia sobre os posseiros que ocupavam sua área de concessão. Em 1911, começou a colocar para fora de seus domínios todas as pessoas que ocupavam terras e que delas não possuíam títulos de propriedade. Tal iniciativa contrariava o que havia sido estabelecido na Lei de Terras de 1850, que reconhecia o direito de posse. Também não estava de acordo com os textos da concessão e seus aditivos, que reportavam a terras devolutas. Os interesses da empresa, porém, eram defendidos por advogados e políticos ligados ao poder, tanto no Rio de Janeiro e no Paraná como em Santa Catarina, além de um corpo de segurança que contava com cerca de 200 homens armados. Tratava-se de um grande empreendimento capitalista, impondo suas regras sem nenhuma consideração pelas populações locais, nem assumindo responsabilidades em conseqüência da grande mobilização de mão-de-obra. Ao término da construção do trecho que cortava o território de Santa Catarina, acompanhando o curso do Rio do Peixe, foram desmobilizados centenas de operários. Desses, muitos não conseguiram voltar para seus locais de origem e se juntaram à massa de espoliados, ampliando as condições para a instauração do conflito. Assim, junto à pretensão de Farquhar e seus aliados de recompor as estruturas sociais e econômicas locais, objetivando o resguardo de seus interesses, dialeticamente, emergiram a resistência armada e a fúria suicida entre as populações prejudicadas. UMA “GUERRA
SANTA” CONTRA O CAPITAL
A população que ocupava a região que estamos focalizando era formada por uns poucos fazendeiros e seus agregados, pequenos sitiantes, alguns fugitivos da Justiça e negros escapulidos do cativeiro. Além desses, grupos de índios Kaingang, Xokleng e Guarani tentavam manter seus espaços de ocupação tradicional. A mestiçagem estava presente há muito tempo nesse | 49 |
cenário rústico, no qual a mulher era um bem extremamente valorizado, não importando se fosse branca, negra ou índia. O caboclo emerge neste contexto. A passagem de tropeiros com suas cargas e manadas de gado, e de militares e civis envolvidos em guerras, permitia um pequeno escambo e a troca de informações sobre o que acontecia em locais distantes, como São Paulo, Curitiba ou Porto Alegre. A região também era percorrida por beatos, monges e andarilhos. O mais conhecido desses foi João Maria d’Agostinho, um italiano que chegou ao Brasil em 1844. São João Maria, como ficou conhecido, percorreu várias vezes a Região Sul, pregando e receitando remédios no intuito de aliviar os males da população do sertão. Era tido como portador de poderes sobrenaturais, sendo respeitado e procurado por todos os aflitos. Logo foi identificado como santo. Na cidade da Lapa (PR), onde viveu certo tempo numa gruta, deu motivo para que doentes e devotos até hoje visitem o local em busca de cura. Também não poucas são as fontes de água que permanecem na memória das populações locais como sendo milagrosas, em conseqüência de ali ter o santo monge bebido e descansado. Quando morreu, o imaginário popular criou a expectativa do reaparecimento do santo. Seus ensinamentos e conselhos foram preservados, e volta e meia alguém lembrava sobre o seu breve retorno. O século que estava para terminar aguçava especulações sobre o fim do mundo. O salvamento dos puros, dos justos, que viveriam num mundo sem dor e sem fome, delineava os contornos de um novo movimento messiânico. Um dia, apareceu no sertão Anastás Marcaf, que se intitulava João Maria de Jesus, pregando e curando como seu antecessor. Nos anos imediatos à sua morte, que aconteceu provavelmente em 1906, o clima de tensão na região estava se acentuando, devido à questão de limites e aos abusos advindos da construção da estrada de ferro. A população não quis acreditar na morte do novo líder, abrindo condições para o aparecimento do terceiro monge, que se chamava Miguel Lucena. Intitulava-se José Maria d’Agostini e era desertor da polícia do Paraná. Atraindo os injustiçados e os descontentes, ao contrário de seus antecessores, | 50 |
logo passou a ser seguido por uma enorme multidão. Com base em sua experiência como militar e objetivando manter um mínimo de organização da multidão que o seguia, hierarquizou funções e criou um corpo de segurança tendo como base a história dos “doze pares da França”. O cenário para irromper o mais dramático episódio da história da Região Sul estava pronto. A temporária fixação do monge e de seus adeptos numa fazenda em Curitibanos provocou a interferência do governo catarinense, que sugeriu seu deslocamento para o outro lado do Rio do Peixe. Acatada pacificamente tal sugestão, o “santo homem” e seus seguidores despertaram a ira do Paraná, cujo governo interpretou o fato como uma invasão de catarinenses do território que pretendia ser seu. E logo enviou uma força militar para desalojar os atrevidos invasores. Deu-se o combate de Irani, no qual o comandante das tropas do Paraná, coronel João Gualberto, foi morto, bem como o monge José Maria. A guerra estava começando. Corria o ano de 1912. Com base nas noções que José Maria dera, seus seguidores passaram a instalar “redutos”, a formar piquetes para a ação militar e a criar todo um quadro de atividades destinadas a manter ocupadas as tropas legais que contra eles logo foram enviadas. Praticava-se a guerra de guerrilhas. Vários combates foram travados, e os revoltosos, inicialmente, obtiveram diversas vitórias. Depois, com a chegada de tropas em quantidade maior e mais bem equipadas, além do controle efetivo das vias de abastecimento de que se serviam, a sorte começou a pender para as forças do exército republicano. Nos “redutos”, a vida cotidiana se assentava na igualdade e na solidariedade. Dividia-se tudo. O sentimento de irmandade e a possibilidade de chegar a uma ordem social justa, inspirada e protegida pela Divindade, expressavam-se nas rezas e na superação das privações impostas pelos combates, pelas fugas e pela permanente necessidade de implantar novos refúgios. Os atos heróicos também integram este quadro, expressos na crença de que os corpos dos insurgentes estavam imunes às balas do exército repressor e que os mortos ressurgiriam junto com o santo João Maria. Assim, o movimento messiânico remetia a tradições | 51 |
presentes no catolicismo popular do interior do País, como o sebastianismo e o reino do Espírito Santo. A guerra somente chegou ao fim depois de muitos sacrifícios de parte a parte. Acredita-se que mais de 20.000 pessoas nela estiveram envolvidas. Ao liquidar os últimos focos de resistência cabocla, o governo havia enviado 13 expedições militares para a região. Pela primeira vez no Brasil, utilizara-se o avião como veículo bélico. Lutara-se quatro anos. Milhares de pessoas, entre caboclos, militares e civis, foram mortas. A Guerra Sertaneja do Contestado terminou em 1915, quando nos bastidores da República desenhava-se um acordo entre os governos do Paraná e Santa Catarina para pôr fim à questão de limites. Aos poucos sobreviventes, que escaparam do arbítrio da repressão, não sobrou outra alternativa senão a fuga para o mais distante sertão, apostando na invisibilidade para garantir a vida. A crença no monge João Maria foi resguardada até o presente, alimentando expectativas de um tempo de paz e igualdade que um dia chegará. No auge do conflito, o movimento guerrilheiro dos sertanejos promoveu ataques às madeireiras da Lumber e aos trens de Farquhar. A República aparecia aos olhos dos insurretos como promotora da “invasão” estrangeira. Poucos foram os militares que compreenderam isso, e raros os que perceberam a perversidade que o grande projeto moderno contemplava ao desalojar posseiros e desempregar operários. O capitão Matos Costa, (1974, p.101), que foi morto pelos jagunços durante um ataque no município que hoje tem seu nome, objetivamente disse: A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurança. A questão do Contestado se desfaz com um pouco de instrução e o suficiente de justiça como um duplo produto que ela é da violência que revolta e da ignorância que não sabe outro meio de defender seu direito.
A
QUESTÃO DOS LIMITES
A Província do Paraná foi criada em 1853, quando ocorreu o desmembramento da antiga quinta comarca de São Paulo. Na definição de seus limites, os dirigentes da nova província | 52 |
pleitearam estender seus domínios até o Rio Uruguai. A referência para tanto era o fato de a Vila de Lages ter sido fundada por Corrêa Pinto, por ordem do Marquês de Cascaes, governador de São Paulo, em 1771. Em 1820, porém, por expressa determinação de d. João VI, Lages passou a ser administrada pelo governador de Santa Catarina. Devido aos interesses predominantes relacionados à pecuária e à extração da erva-mate, os paranaenses se voltaram para o domínio dos Campos de Palmas, localizados a oeste do Rio do Peixe, afluente do Uruguai, e que haviam sido conquistados pelos criadores de gado de Guarapuava (PR). Desde meados do século XIX, um caminho de tropas unia S. Paulo às coxilhas do Rio Grande, passando por Guarapuava, Palmas e Chapecó. Quando foi resolvida a questão de limites entre a Argentina e o Brasil, após a mediação do presidente Grover Cleveland, dos Estados Unidos, em 1897, o Paraná acentuou suas investidas para o domínio dessa área. Palmas tornou-se uma referência estratégica para a pretendida ocupação. Pouco depois (1902), o governo do Paraná decidiu conceder aos Kaingang, que viviam nas imediações da Colônia Militar Chapecó, a área compreendida entre os Rios Chapecó e Chapecozinho, para assim mantê-los numa situação de confinamento e facilitar a ocupação das terras vizinhas pelos “brancos.” Objetivando o resguardo de seus interesses e tendo como referência o Rio Iguaçu como divisa natural a ser estabelecida com o Paraná, o governo de Santa Catarina recorreu ao Supremo Tribunal Federal. A defesa de Santa Catarina estava centrada no extenso trabalho realizado pelo conselheiro Manoel da Silva Mafra, posteriormente editado, em 1901, sob o título “Exposição históricojurídica por parte do Estado de Santa Catarina sobre a questão de limites com o Estado do Paraná”. O Tribunal, em decisão de 6 de julho de 1904, deu ganho de causa a Santa Catarina. O Paraná, contudo, opôs dois embargos, sendo afinal confirmada a primeira decisão do Supremo em julho de 1910. Mas essa decisão não prevaleceu. As discussões se inflamaram, envolvendo a população e suas lideranças políticas. A inauguração da Estrada de Ferro SP— RS era iminente, assegurando lucros certos para quem tivesse poder de mando na extensa área que se abria para exploração. | 53 |
A Brazil Railway Company pressionou os governos federal e dos Estados do Paraná e Santa Catarina, objetivando ter liberadas as terras que pretendia ser suas para implantar seus projetos de colonização e de exploração florestal. As discussões e os interesses foram muitos. Tanto o Paraná como Santa Catarina, a todo momento, estavam expedindo títulos sobre as terras em disputa, sob o argumento de que a concessão original feita pelo governo central para a construção da estrada de ferro envolvia terras “devolutas”, e essas, desde a Constituição de 1891, estavam sob a jurisdição dos Estados. A polêmica político-jurídica cresceu. Os interesses econômicos se acentuaram. Não poucos pareceres justificaram os direitos da empresa e, também, as ações indevidas do governo do Paraná. Foi nesse contexto, e por interferência direta do governo federal, que os governadores de Santa Catarina e do Paraná estabeleceram um acordo, em outubro de 1916, para a definição dos limites entre os dois Estados na área contestada. Dos 48.000 km² em disputa, Santa Catarina ficou com aproximadamente 28.000 km², e o Paraná, com 20.000 km². Depois de aprovado pelas respectivas Assembléias, ocorreu a homologação do acordo pelo governo federal em 1917. As disputas com as empresas do grupo Farquhar continuaram, pois o Paraná havia expedido títulos de domínio sobre terras localizadas a oeste do Rio do Peixe, que não foram reconhecidos pelo governo catarinense. Simultaneamente, e objetivando administrar a área em disputa que passou para sua jurisdição, Santa Catarina criou, ainda em 1917, os municípios de Mafra, Porto União, Joaçaba (Cruzeiro) e Chapecó. A instalação dessas sedes municipais, com as conseqüentes presenças das comarcas judiciárias, paróquias e unidades escolares, foi a base que passou a fundamentar a conquista do Oeste. Independentemente dos problemas sociais provocados pela implantação da ferrovia, que foram trágicos para uma boa parte da população tradicional, ocupante do planalto e do Vale do Rio do Peixe, este símbolo da modernidade incentivou grandes mudanças em Santa Catarina. Dezenas de colônias foram localizadas na sua área de influência, caracterizando uma nova frente agrícola. Imigrantes ou seus descendentes necessitavam | 54 |
de novas terras e para aí se deslocaram, atraídos pelas facilidades de transporte de bens e mercadorias garantidas pela ferrovia. A mudança sociocultural e o realinhamento do espaço tornaram-se inexoráveis. Algumas demandas relativas à concessão de terras, porém, chegaram até o presente sem terem sido satisfatoriamente resolvidas, em particular quando nessas terras havia a presença de índios. O
PROJETO MODERNO TEM OUTRAS FACES
É necessário esclarecer que a primeira estrada de ferro foi implantada em Santa Catarina ainda no século XIX. Trata-se da E. F. Tereza Cristina, que foi construída no sul do Estado, ligando o porto de Imbituba às minas de carvão. Para a sua construção, foi organizada em Londres a The Donna Thereza Christina Railway Company Limited, que foi autorizada a funcionar em 1876. A construção do trecho Imbituba—minas se iniciou em dezembro de 1880, inaugurando-se o primeiro trecho, com 111 km, e o ramal para Laguna, em 1884. A expansão da rede para Criciúma aconteceu em 1919 e, daí para Araranguá, em 1923. Os resultados financeiros do empreendimento foram desanimadores, obrigando o governo federal a promover a sua encampação em 1903. Em 1910, através de arrendamento, a rede passou para o controle da Estrada de Ferro SP—RS, ficando, assim, sob o mando de Farquhar. Importante é compreender também que os projetos governamentais contemplavam o estabelecimento de uma malha ferroviária, tanto no País como em Santa Catarina. No Vale do Itajaí, iniciou-se em 1906 a construção da ligação ferroviária entre Blumenau e Ibirama (Hammônia), que foi inaugurada em 1910. Essa estrada deveria atingir Porto União, passando por Rio do Sul. O governo estadual também pretendeu estabelecer as ligações Florianópolis—Lages e Florianópolis—Itajaí. E imaginava-se que o ramal S. Francisco—Porto União pudesse chegar até o Peperiguaçu, na fronteira com a Argentina. A estratégia governamental era a de estabelecer concessões para empresas privadas, em troca da cessão de terras e da garantia | 55 |
de empréstimos. As manipulações feitas pelas empresas, objetivando ampliar suas vantagens, não foram poucas. Algumas das propostas jamais saíram da intenção. Contudo, foram muitas as discussões em torno dos “direitos adquiridos”. De qualquer forma, a engenharia do ferro e da máquina a vapor estava chegando ao Estado, garantindo a circulação das pessoas e facilitando o transporte de mercadorias. O projeto de integração do Estado por via ferroviária estava, assim, sendo implantado. A construção da Ponte Hercílio Luz ligando a Ilha-capital com o continente, entre 1922 e 1926, tornou-se também um símbolo da chegada da modernidade ao Estado. A Ponte, com 821 metros de comprimento, foi construída pela empresa norte-americana Byngton & Sundstron, num sistema pênsil estabilizado por duas torres metálicas que suportavam o vão central. Foi projetada para garantir a circulação de pedestres e o tráfego rodoferroviário, além de permitir a passagem de navios no canal que separa a Ilha do continente. Em termos de tecnologia disponível em nível mundial, a ponte representava grandes avanços. Hercílio Luz, o governador que havia planejado e determinado a sua construção, ficou imortalizado com essa obra que se tornou símbolo da cidade. Mobilizando cerca de 1.000 operários, muitos vindos de diferentes pontos do País, e alguns, do exterior, a construção da Ponte provocou diferentes impactos na cidade de Florianópolis, então com cerca de 20.000 habitantes. Houve um realinhamento das vias urbanas em direção à Ponte, e a conseqüente relocalização de uns poucos moradores e do cemitério público. Parte dos operários envolvidos na construção estabeleceram bases associativas para garantir direitos, e alguns deles se organizaram para a difusão dos ideais socialistas. A modernidade assumia, assim, outra de suas muitas faces. É de se lembrar, ainda, que na primeira década do século XX ocorreu a instalação da energia elétrica em Florianópolis, através da construção da usina de Maruhy (1910), no continente. Quase simultaneamente, foram implantados o sistema de abastecimento de água e os serviços de esgoto sanitário, de linhas de bonde e de recolhimento do lixo urbano. Essas iniciativas foram do governador Gustavo Richard, que estava preocupado em dotar a | 56 |
capital com uma infra-estrutura compatível com o século que se iniciava. Richard tinha passado parte da infância e da juventude na França, onde estudou. Viveu de perto as mudanças que estavam ocorrendo em termos de avanços tecnológicos na Europa. Era, pois, um entusiasta da modernização. Foi ainda nos primeiros anos do século que tomou corpo a tentativa de eliminar a violência que dominava os sertões, praticada por bugreiros contra os índios Xokleng, que resistiam à ocupação de suas terras pelos “brancos”. Uma “Liga Patriótica para a Catequese dos Silvícolas” foi criada em 1907, em Florianópolis, sob a liderança de positivistas e maçons. Mais adiante, em 1914, graças aos trabalhos desenvolvidos por integrantes do Serviço de Proteção aos Índios, também de orientação positivista, uma parte dos Xokleng foi atraída ao convívio com “brancos”. Mas a violência que atingia os indígenas não acabou. A essa altura, o automóvel já era uma realidade. As poucas estradas de terra batida que até então serviam ao trânsito de tropas e de carroças começaram a ser adaptadas para o tráfego regular de veículos motorizados. O telégrafo aos poucos ia permitindo a circulação mais rápida das informações. A energia elétrica se disseminava através da implantação de pequenas usinas. Embarcações a vapor de várias empresas faziam escalas regulares em Florianópolis, Laguna, Itajaí e São Francisco, transportando pessoas e mercadorias. No final dos anos 1920, o transporte rodoviário se afirmava, e a Ilha-capital servia de escala técnica para vôos de empresas européias, que ligavam Buenos Aires ao Rio de Janeiro e à Europa. O rádio, o cinema (mudo) e o telefone estavam chegando. O sentimento de integração ao País e ao mundo era uma realidade. A rede escolar pública começava a se expandir, garantindo ensino de qualidade nas vilas e cidades. Em 1917, começou a funcionar em Florianópolis o Instituto Politécnico, primeira experiência de Ensino Superior no Estado. Em 1932, criou-se a Faculdade de Direito, embrião da futura Universidade Federal. A preocupação com o capital humano gradativamente transforma-se numa imposição para os administradores. | 57 |
Na região do Contestado, a E.F. SP—RS propiciava o surgimento de diferentes cidades e atraía descendentes de imigrantes que originalmente haviam se localizado no Rio Grande do Sul, e europeus que, vitimados pelas agruras da Primeira Guerra Mundial, procuravam novas terras para refazer suas vidas. Diversas empresas colonizadoras foram organizadas, com o objetivo de explorar os recursos florestais disponíveis, madeiras e erva-mate e, simultaneamente, comercializarem lotes destinados à fixação de colonos. Logo, a produção de grãos e de suínos cresceu, permitindo o surgimento das primeiras indústrias de laticínios que tinham como referência os mercados consumidores de São Paulo e Rio de Janeiro. Nos vales litorâneos, a economia estava centrada em empresas voltadas para a produção têxtil, madeireira e metalúrgica. No sul, predominava a exploração do carvão. No planalto, a pecuária e a extração madeireira dominavam os espaços das fazendas. No litoral, a produção pesqueira e a agricultura de subsistência estavam entrando em declínio. Emergiam em diferentes regiões do Estado novos atores, como o empresário e o operário. As relações de produção estavam mudando mais rápido, impondo que os trabalhadores encontrassem formas de organização e de reivindicação. As primeiras greves de operários aconteceram. A repressão governamental era forte, tornando-se emblemático o episódio em que os operários Fritz Koch e Georg Sterneck, juntamente com suas famílias, foram deportados para a Alemanha por terem em 1920 incentivado uma greve numa empresa têxtil, em Blumenau. UM
GOVERNADOR VISITA O
OESTE
Em 1929, o governador Adolpho Konder resolveu empreender uma viagem ao Oeste de Santa Catarina. Pretendia conhecer a região e dar seguimento a uma série de iniciativas que objetivavam a sua integração ao Estado. Não poucos correligionários tentaram demovê-lo. O Oeste era visto como uma área bravia, desprovida de infra-estrutura e de segurança. A importância da presença do governador, contudo, foi vista como estratégica. Era momento | 58 |
de o governo se fazer presente e de submeter à sua autoridade alguns milhares de pessoas que viviam quase em completo isolamento e à margem do poder estadual. A viagem implicou cumprir um longo trajeto, pois não havia estradas que chegassem até o Extremo Oeste. Por isso, o governador e sua comitiva viajaram de automóvel, de trem, de barco e a cavalo. Foi quase um mês de viagem. Por onde passavam, eram recepcionados pelos detentores do poder local e por parte do povo, previamente reunido. Em muitos lugares, houve necessidade de escoltas para garantir a chegada ao ponto de destino. A insegurança ainda era a tônica nos ínvios caminhos. A seqüência das peripécias vividas foi descrita com paixão por Othon Gama D’Eça e publicada sob o título Aos espanhóis confinantes, ainda em 1929. Tomado como empreendimento simbólico de exercício da autoridade, a viagem foi um sucesso. O Oeste finalmente estava sendo incorporado. A “bandeira de Konder”, como ficou conhecida a comitiva do governador, em suas andanças resolveu diferentes problemas práticos e, mais que isso, espargiu fartamente os incensos da nacionalidade e da inteireza do Estado. Em Iraí, cidade rio-grandense junto ao Rio Uruguai, Adolpho Konder conferenciou com o também governador Getúlio Vargas, resolvendo problemas de interesse das populações fronteiriças. Significativamente, os governadores eram identificados como presidentes, numa reminiscência que vinha dos tempos do Império e quando os Estados eram denominados Províncias. Ambos estavam afinados com a proposta modernizadora e centralizada do Estado-nação, exercendo suas funções com vistas à afirmação cotidiana dos valores que julgavam fundamentais. Isso não evitou que, mais adiante, viessem a tomar posições políticas opostas. Os discursos, as recepções, os churrascos e as afirmações de lealdade e patriotismo foram muitos. Ao final da inusitada viagem, o exercício da autoridade estava materializado de várias maneiras. Othon Gama D’Eça, significativamente, diz nos últimos parágrafos de seu relato:
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A bandeira regressa com as mãos cheias de esperanças e o coração contente da proeza. Para trás ficaram alguns amigos destemerosos e a terra bravia e linda de que ela tomou posse em nome do Brasil. Caminhara através de serras duras e vales doces. Vira cidades orgulhosas e povoados humildes! Descera, em embarcações fragílimas, um rio violento e espumejante de corredeiras! E, enfim, por trilhos tumultuosos, eriçados de todos os perigos, atingira o extremo esquecido da Pátria.
O
NACIONAL DIANTE DO LOCAL
Os acontecimentos nacionais, em diferentes momentos, repercutiram em Santa Catarina. Assim, e num primeiro exemplo, nos anos 1920 o inconformismo com a estrutura política e socioeconômica do País levou à emergência do “tenentismo”, que aglutinou jovens militares e civis. Foi nesse cenário que aconteceram diferentes movimentos militares, entre eles a marcha liderada por Luiz Carlos Prestes pelo interior do Brasil. A “coluna Prestes”, como ficou celebrizada, atravessou Santa Catarina em 1924, passando por Itapiranga, Mondaí e Descanso, numa busca frustrada de uma alternativa de governo para o País. Dessa sucessão de manifestações, que demonstravam a discordância de certos segmentos da nação, surgiu a Aliança Liberal, que pregava reformas estruturais, entre elas o voto secreto e o repúdio à dominação política exercida pelos Estados de São Paulo e Minas Gerais, denominada, pejorativamente, “café com leite”. A Aliança Liberal foi a base para a tomada do poder por GetúlioVargas em 1930. Santa Catarina participou desse movimento de queda da Primeira República através de expressivas lideranças políticas, entre elas Vidal Ramos e Nereu Ramos. Paradoxalmente, a Aliança propunha o fim dos regionalismos e das oligarquias. Advogava, também, a instituição de novas relações de produção, através da organização sindical e do fordismo. O local parecia estar sucumbindo em favor do nacional. Ainda no cenário das dissensões políticas da Primeira República, em diversos momentos aparecem preocupações com | 60 |
o relativo isolamento das colônias formadas por imigrantes no Sul do Brasil. Em algumas situações, intelectuais e políticos chegaram a falar de “quistos étnicos”, cobrando dos governos medidas que levassem à assimilação desses contingentes. Lauro Müller, expoente político catarinense, explicitou num arroubo nacionalista que “quem nasce no Brasil ou é brasileiro ou é traidor”. Foi nesse contexto que se deflagrou a “campanha de nacionalização”, provocando constrangimentos a muitos imigrantes ou a seus descendentes. As escolas comunitárias foram fechadas. Jovens foram recrutados para prestar o serviço militar em outras partes do País. Quartéis do Exército foram instalados em muitas cidades do Estado com o claro objetivo de integrar e nacionalizar. A repressão promovida pelo governo foi forte, e não poucas famílias sofreram agressões físicas e morais, além de perdas materiais. A expansão do nazismo, o receio de controle do Sul do País pela Alemanha e a deflagração da Segunda Guerra Mundial exacerbaram as perseguições. Alguns imigrantes e seus descendentes chegaram a ser aprisionados. Muitos pais deixaram de falar seus idiomas de origem em suas casas ou abandonaram seus sobrenomes nos registros dos novos filhos. A auto-estima e o orgulho de ser descendente de imigrantes só foram recuperados muito mais tarde, e em particular através da afirmação das “festas regionais”. O projeto do Estado nacional, centralizado e unitário, havia tomado um novo impulso na construção da brasilidade com o golpe protagonizado por Getúlio Vargas em 1937. Pouco antes, os comunistas do País haviam sofrido grave revés após uma tentativa frustrada de conquista do poder. O movimento integralista seduzia intelectuais, políticos, trabalhadores e colonos. A ditadura de Vargas soube manipular as ambigüidades de seu tempo, pretendendo desenvolver uma proposta de governo, simultaneamente, populista, nacionalista, moderna e homogeneizadora. Foi assim que, em março de 1940, Getúlio Vargas visitou Blumenau e Joinville. A intenção era reforçar a presença da autoridade, legitimando o projeto de Estado unitário e | 61 |
progressista. As recepções, os desfiles e as demonstrações de poder foram apoteóticos. Os discursos, dos subalternos e do ditador, foram enfáticos ao ressaltar as qualidades e a dedicação ao trabalho dos descendentes de imigrantes. Os apelos à ordem, o respeito às autoridades constituídas e a paz foram sistematicamente reiterados. A visita era uma forma de ressaltar a estrutura de poder e dos símbolos nacionais, justificando a integração dos segmentos minoritários. Pretendia-se o Estadonação monoétnico,unitário e culturalmente homogêneo. Mas isso não se concretizou, pelo menos da forma como imaginavam seus ideólogos. A implantação do Território Federal do Iguaçu, em 1943, foi mais um arroubo do Estado centralizado. Muitos interesses paroquiais prevaleceram na elaboração da Constituição de 1937, imposta após o golpe. A previsão de criar um Território Federal para administrar a antiga área do Contestado foi um deles. Tanto o Paraná como Santa Catarina foram prejudicados pela iniciativa do poder autoritário. A queda do ditador em 1945 e a restauração do regime democrático, com a conseqüente elaboração de uma nova Constituição (1946), aniquilaram de vez a proposta do Território, recuperando-se os limites estabelecidos em 1917. O Estado de Santa Catarina assumia, assim, em definitivo, a conformação geográfica que conhecemos hoje. O nacional não prevaleceu sobre o local. Santa Catarina conseguiu se definir como um Estado que é um mosaico étnicocultural. Sua população tem múltiplas origens, fazendo coexistir lado a lado as mais diversas tradições culturais e atividades econômicas. Nos 94.442 km² que formam a sua área territorial, prevaleceu a diversidade, e isso aconteceu ao arrepio das intenções e das investidas do Estado centralizado e homogeneizador. Paralelamente, até o final da ditadura Vargas, a modernidade foi assumida por quase todos os setores do cotidiano catarinense, demonstrando que as populações locais sabiam fazer suas escolhas.
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E NCONTROS
DE ESTRANHOS ALÉM DO MAR OCEANO
O
s povos indígenas ocupantes do que é hoje o território brasileiro sofreram impactos terríveis e crescentes com a chegada dos europeus a partir do século XVI. A disseminação de doenças, a escravidão e a desorganização social e econômica aniquilaram muito rapidamente a maioria desses povos, que receberam com curiosidade e amizade os estranhos “brancos” que chegaram ao litoral desta parte do Atlântico. O processo de dominação não foi uniforme e se estendeu pelos séculos seguintes, chegando aos nossos dias. Também não foi diferente do que ocorreu em outras partes da América. Contudo, não se pode deixar de enfatizar que, para algumas populações, foram os primeiros contatos com os “brancos” que determinaram o seu fim. Nesse sentido, se poderia dizer que, no século imediato à chegada dos europeus à América, ocorreu o maior genocídio da história humana. O atual território do México, por exemplo, contava com uma população de 25 milhões de pessoas à época da conquista. Por volta de 1650, contabilizavam-se nesse país cerca de 120 mil “brancos”, 130 mil mestiços e 1 milhão e 270 mil indígenas sobreviventes1. O Império Incaico, que atingia o Peru e partes dos atuais Chile, Bolívia e Equador, tinha uma população de cerca de 20 milhões de indígenas. Dez anos após a conquista de Pizarro (1532), cerca de 4 milhões haviam sido mortos2. Publicado anteriormente com alterações em: Os índios Xokleng: memória visual. Fpolis.: Ed. da UFSC/Univali/FCC, 1997; In: O homem do Sul, Fronteira: O Brasil meridional. RJ. Alumbramento, 1996. Esta versão foi publicada em Etnografia, Revista do Centro de Estudos de Antropologia, Lisboa, Portugal. V. 7, n. 2, 2003, p. 431-438. 1 BARTOLOMÉ, Miguel. Gente de costumbre y gente de razón: las identidades étnicas en México. México: Siglo, 1997. XXI – INI, p.25. 2 SANTOS, Sílvio Coelho dos. Nova História de Santa Catarina. 4.ed. Florianópolis: Terceiro Milênio, 1998. p. 37.
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Como exemplo dessa realidade dramática no Brasil, dou atenção particular ao que aconteceu no que é hoje a Região Sul e, mais especificamente, às relações travadas entre os Xokleng e os descendentes de europeus a partir do século XIX. O S X OKLENG
E A DRAMÁTICA EXPERIÊNCIA VIVIDA COM OS
“ BRANCOS ”
Durante séculos, os índios Xokleng dominaram as florestas que cobriam as encostas das montanhas, os vales litorâneos e as bordas do planalto no Sul do Brasil. Eram nômades. Viviam da caça e da coleta. A Mata Atlântica e os bosques de pinheiros (araucária) forneciam tudo o que necessitavam para sobreviver. Caçavam diferentes tipos de animais e aves, coletavam mel, frutos e raízes silvestres. E tinham o pinhão como um dos principais recursos alimentares. O território que ocupavam não tinha contornos bem definidos. As rotas de perambulação eram freqüentadas de acordo com o seu potencial em suprir, através da caça e da coleta, as necessidades alimentares do grupo. Mantinham uma disputa secular com os Guarani e os Kaingang para o controle desse território. Os Guarani dominavam extensa parte do planalto, as margens dos rios que integram as bacias do Paraná e do Paraguai e o litoral. Os Kaingang eram senhores das terras interiores do planalto. Todos pretendiam o domínio dos fabulosos recursos protéicos representados pelos bosques de pinheiros e a fauna associada ao pinhão. Dessa forma, os Xokleng tinham nas florestas que se localizavam entre o litoral e o planalto o seu território de domínio e de refúgio. Ao norte, chegavam até a altura de Paranaguá; ao sul, até as proximidades de Porto Alegre; ao noroeste, dominavam as florestas que chegavam até o Rio Iguaçu e aos campos de Palmas. Entre excursões de caça e coleta, a vida fluía. Os homens fabricavam arcos, flechas, lanças e diversos outros artefatos necessários ao cotidiano. As mulheres teciam com fibra de urtiga mantas que serviam de agasalho nas noites de inverno; cuidavam das crianças; faziam pequenas panelas de barro e cestos de taquara | 65 |
para a guarda de alimentos; limpavam animais e aves; cuidavam do preparo da comida; colhiam, estocavam e maceravam o pinhão e com ele faziam um tipo de farinha; cozinhavam ou moqueavam peças de carne dos animais abatidos; preparavam bebidas fermentadas com mel e xaxim. Quando o grupo se deslocava, as mulheres carregavam toda a tralha doméstica. As crianças iam sendo socializadas na vida cotidiana do grupo, num processo crescente de aprendizado que lhes deveria garantir a sobrevivência futura. O mundo dos Xokleng não era um paraíso, como muitos podem imaginar. Era um mundo de forte interdependência com a natureza. Os sucessos alcançados eram conseqüência do esforço individual e coletivo, e baseados nos saberes que diversas gerações haviam desenvolvido para aproveitar aquele espaço ecológico que elegeram como o seu hábitat. As doenças eram raras. O frio do inverno e as chuvas eram enfrentados como fatos da natureza. Os acampamentos não passavam da construção de simples pára-ventos, aproveitando ramos de árvores que eram devidamente arqueados e cobertos de folhas de palmeira. Outras vezes, se o tempo era favorável, dormiam ao relento. O fogo, aceso toda a noite, a todos aquecia. Os Xokleng formavam um povo. Tinham língua, cultura e território que os diferenciavam dos outros povos indígenas, tais como os Guarani e os Kaingang. Viviam separados em grupos, que quase sempre mantinham disputas entre si. A família, o sexo, o nascimento de crianças, a vida em grupo, a parceria nas atividades de caça e coleta, a divisão dos alimentos entre todos, as festas, as disputas e a morte faziam parte do cotidiano. Não tinham uma autodenominação específica. Identificavam-se a si próprios como “nós” e a todos os demais estranhos como os “outros”. O nome Xokleng é apenas uma palavra de seu vocabulário pela qual eles foram identificados na literatura antropológica. Regionalmente, continuam a ser os botocudos, em conseqüência do uso pelos homens de um enfeite labial, denominado tembetá, ou os bugres, termo pejorativo também dado pelos brancos3. 3
Além de Xokleng, botocudo e bugre, há na literatura as denominações Xokrén,
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Darcy Ribeiro conta, em seu livro Os índios e a civilização4, que ouviu de Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, responsável pela contatação dos Xokleng no Alto Vale do Itajaí, uma narração mítica de como os índios haviam travado o primeiro contato com o homem branco. Durante uma expedição de caça, alguns índios observaram uma trilha diferente, na qual o mato estava cortado de forma nova e estranha, em relação à prática indígena de simplesmente afastar ou torcer os ramos que dificultam a caminhada na floresta. Curiosos, adiante se depararam com o tronco de uma árvore cortada pelo mesmo processo. Seguiram pela picada acautelados, em direção a uma praia. Ali, observaram rastros estranhos. Algumas pegadas se dirigiam para o mar adentro, enquanto outras acompanhavam a linha da praia. Continuando a investigação, cada vez mais curiosos e sempre protegidos pela vegetação da orla costeira, descobriram ao anoitecer um acampamento. Discutiram sobre quem seriam os estranhos que de longe observavam. Depois de muitas interrogações, decidiram atacá-los para se apropriarem dos instrumentos cortantes, que permitiam enorme facilidade no corte de arbustos e árvores. Durante a madrugada, assaltaram a barraca improvisada e mataram seus ocupantes. A seguir, puseram-se a examinar o que ali havia. Logo, descobriram um machado, alguns facões e umas tantas facas. Ao amanhecer, ansiosos, examinaram detalhadamente os cadáveres daqueles seres cabeludos e barbados. Tiraram suas roupas com cuidado, para observar seus corpos peludos. As botinas, responsáveis pelos estranhos rastros, foram minuciosamente analisadas, bem como suas roupas. Aweikoma e Kaingang para designar este grupo indígena. Nenhuma dessas designações têm fundamento numa autodenominação do grupo. Foram termos consagrados pelos brancos. Xokleng é o termo pelo qual o grupo aparece sistematicamente na literatura antropológica. Botocudo é um termo de designação pós-contato, que é aceito pelos índios. Entretanto, hoje, alguns índios procuram outra autodesignação, preferindo o termo “lacranon”, que quer dizer “povo ligeiro” ou “povo que conhece todos os caminhos”, conforme informações fornecidas pelo professor Namblá Gakrã ao antropólogo Flávio Wiick. Lingüisticamente, os Xokleng filiam-se ao grupo Kaingang e ao macrogrupo Jê. Destaco, ainda, que, por uma convenção estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia, os termos indígenas são grafados somente no singular, como por exemplo, os Xokleng. 4 RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 318-320.
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Colocaram alguns dos mortos de pé, apoiados em alguns paus, e de longe cogitaram sobre a possibilidade de serem esses “outros” seres humanos verdadeiros. A certa altura, se deram conta de questões que não podiam responder. Separaram os instrumentos cortantes e queimaram todo o resto. A seguir, voltaram ao encontro do grupo principal, carregados com os instrumentos de ferro e cheios de novidades. As demonstrações entusiásticas do poder do machado e das facas a todos envolveram. Muitas disputas logo ocorreram por sua posse. E não poucos começaram a incursionar pelo litoral, pretendendo encontrar novos acampamentos daqueles seres estranhos, senhores de preciosos instrumentos cortantes. Os artefatos de ferro chegaram, assim, aos Xokleng, sem que de fato houvesse contato direto entre eles e os novos homens que estavam chegando ao seu território. Diligentes, os indígenas logo adaptaram os instrumentos de ferro dos brancos às suas armas tradicionais. As pontas de flecha feitas com madeira endurecida ao fogo, ou com lascas de pedra, foram em parte substituídas por pontas de ferro. A forma, entretanto, dessas pontas foi mantida. Com as lanças, ocorreu o mesmo. As enormes pontas de madeira foram substituídas por similares de ferro. Foices e outros instrumentos dos brancos foram cuidadosamente reelaborados para alcançarem a forma desejada. Um trabalho paciente para quem não dominava as técnicas de forja e do ferro batido. O resultado, entretanto, era compensador. O ferro deu aos Xokleng, muito tempo antes da “pacificação”, uma nova superioridade, tanto para as atividades de caça como para a guerra. O ferro foi, assim, um atrativo para os índios se aproximarem dos “brancos”. Observá-los a distância, objetivando o encontro de oportunidade para se apropriarem de suas ferramentas, passou a ser uma maneira de os Xokleng “pesquisarem” o cotidiano daqueles seres que, para eles, continuaram sendo muito estranhos e, provavelmente, não humanos. Proclamada a Independência (1822), o Brasil passou a favorecer a imigração de europeus. No Sul, foram criadas diversas colônias oficiais. Também foram feitas concessões para empresas privadas, | 68 |
que assumiram o compromisso de promover a localização de imigrantes. No Rio Grande do Sul, os primeiros imigrantes alemães chegaram a São Leopoldo (1824). Em Santa Catarina, a colonização começou em 1829, em São Pedro de Alcântara, próximo a Florianópolis. No Paraná, imigrantes começaram a ser localizados no Rio Negro a partir de 1829. Os governos provinciais e monárquico estavam interessados na ocupação das terras localizadas entre o litoral e o planalto. Os vales litorâneos, cobertos com exuberantes florestas, e as encostas do planalto até então não haviam sido explorados. Toda essa área era considerada como desabitada, embora há muito se soubesse da presença ali de indígenas. A idéia de um “vazio demográfico” prevaleceu nas decisões oficiais. Toda essa área, em que os imigrantes começaram a ser localizados, era território tradicional dos Xokleng. Esses índios foram envolvidos, simultaneamente, pelas frentes de colonização que se instalaram no Rio Grande, em Santa Catarina e no Paraná. Suas condições de sobrevivência ficaram, assim, ameaçadas. Os imigrantes, por sua vez, enfrentaram diferentes problemas em seu processo de adaptação. Em muitos casos, as terras eram inadequadas. Muitas colônias não dispunham de infra-estrutura mínima que garantisse o escoamento da produção. Ocorreram problemas de inadaptação ao clima, devido ao calor e à umidade, e ao domínio de novas formas de cultivo. Não poucos fracassaram. Outros abandonaram as colônias, indo para os centros urbanos em busca de melhores condições de trabalho. Intensificando-se a colonização em Santa Catarina, com a instalação das colônias Blumenau (1850) e Joinville (1851), a cada dia mais terras eram tomadas aos Xokleng. A partir de 1870, começaram a chegar italianos. Diversas colônias foram abertas também no sul do Estado, como Urussanga e Nova Veneza. A floresta dava lugar às cidades, às estradas, às propriedades de colonos, com seus pastos e roças. Não poucos foram os empreendimentos madeireiros. Os estoques de caça e outros recursos alimentícios que a floresta proporcionava, como o palmito e o pinhão, foram logo disputados pelos recém-chegados. À falta de como prover suas necessidades alimentares, os | 69 |
indígenas passaram a assaltar as propriedades dos colonos. Ou a atacá-los em seus locais de trabalho e de trânsito. Neste contexto, a violência se exacerbou. A terra estava sendo usurpada ao índio pela força. Os governos tinham seus interesses. As companhias de colonização, também. É fácil compreender, portanto, que em muitos casos tanto o índio como o colono foram vítimas. O território tradicional dos Xokleng foi, então, objeto de um plano de ocupação sistemático e irreversível. Os governos e as companhias de colonização estavam em acordo, inclusive, quanto à conveniência de minimizar a presença indígena. Diziam que os índios viviam no distante sertão e que, esporadicamente, faziam incursões às florestas e aos vales litorâneos. Para os colonos, a existência de índios nas terras que estavam adquirindo era mais do que uma surpresa. Era um fator de risco, de insegurança. O cenário para a ocorrência de acontecimentos trágicos, em particular para os índios, estava montado. As notícias sobre a presença dos Xokleng nas áreas que estavam sendo cogitadas para o estabelecimento de imigrantes eram do conhecimento tanto dos governos monárquico e provincial como dos interessados nos negócios da colonização. Em 1808, logo após a chegada de d. João VI ao Brasil, foi emitida uma Carta Régia determinando que se fizesse guerra aos índios que faziam incursões nas cercanias de Lages. Em seguida, em 1814, em Caldas da Imperatriz, nas proximidades de Florianópolis, aconteceu um ataque dos índios aos milicianos do rei que guardavam aquelas termas. O fato foi devidamente registrado numa placa de bronze colocada no local. Depois, em 1836, registrou-se um ataque nas proximidades de Camboriú. Outras notícias sobre conflitos com índios apareceram, nessa época, esparsas em toda a Região Sul. Visando a dar segurança aos colonos que chegavam, o governo provincial criou uma “companhia de pedestres” (Lei n. 28, de 25/4/1836). A iniciativa governamental, entretanto, pouco adiantou. Os indígenas dominavam um extenso território. Os encontros com os brancos eram ocasionais, e não havia como uma pequena tropa assegurar tranqüilidade no sertão. Na verdade, o território indígena estava sendo invadido, e os índios reagiam à presença dos imigrantes. O estabelecimento de critérios que | 70 |
assegurassem aos índios os espaços territoriais de que necessitavam para sobreviver não interessava, evidentemente, aos governos e aos mandatários dos negócios da colonização. Logo após a instalação da Colônia Blumenau, aconteceu um episódio singular e que bem exemplifica como eram difíceis as possibilidades de entendimento entre os índios e os recémchegados. Operários que terminavam a casa do dr. Blumenau, onde hoje é o Bairro da Velha, no dia 28 de dezembro de 1852, foram surpreendidos com a presença de alguns índios nas imediações da residência. Certamente, logo pegaram suas armas e gritaram, em alemão, para que os índios se afastassem. Como tal não aconteceu, pois os índios nada entendiam da língua dos brancos, e estavam muito curiosos e entretidos com as plantações, equipamentos e instalações no entorno da casa, os trabalhadores em seguida deram alguns tiros para assustá-los. Como resultado do “susto”, no dia seguinte um índio foi encontrado desfalecido em conseqüência de ferimento à bala. Logo depois, este índio morreu. Este episódio foi objeto de cartas enviadas ao dr. Blumenau, que neste momento se encontrava na Alemanha, com o registro de que algumas flechas foram encontradas nas cercanias e de que a perseguição aos “bugres” foi interrompida por já ser noite. Informava-se, também, que o índio morto era robusto, tinha aproximadamente 20 anos e usava, no lábio inferior “um pedaço de madeira, característico da tribo dos botocudos”5. Denota-se deste episódio que os imigrantes sabiam da existência dos índios e que a sua segurança era dada pelo uso continuado de armas de fogo, em particular espingardas. À medida que o número de colônias foi aumentando, a reação indígena foi sendo noticiada com maior intensidade. Alguns colonos foram atacados, e uns poucos, mortos. Em contrapartida, aumentou a violência contra os índios. Os colonos reclamavam 5
Essa carta ao dr. Blumenau foi escrita pelo prof. Ostermann (cf. Blumenau em Cadernos, tomo IX, n. 9, 1970). O dr. Fritz Müller também enviou uma carta ao dr. Blumenau, comentando o episódio. Veja-se SANTOS, Sílvio Coelho dos. Índios e brancos no Sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Florianópolis: Edeme, 1973, p. 61-62.
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continuamente da falta de segurança nas colônias e, em certas situações, ameaçam abandonar seus lotes. Em 1856, o presidente da Província, dr. João José Coutinho, em sua “falla” à Assembléia, dizia “que a única maneira realmente eficaz seria obrigar estes assassinos e filhos de bárbaros deixarem a floresta, localizandoos em lugares dos quais não pudessem fugir”6. Ainda nesse ano, o dr. Blumenau reclamava que a Companhia de Pedestres, à época com 70 homens, estava mal equipada. A “tropa” acabou sendo dissolvida em 1879 por falta de verbas para mantê-la. Os governos do Império e da Província também tentaram estimular os trabalhos de catequese dos índios. Em 1868, os padres capuchinhos Virgílio Amplar e Estevam de Vicenza foram comissionados para iniciar trabalhos de catequese em Lages e Itajaí. Em 1885, o Ministério da Agricultura encarregou o frei Luiz de Cimitile, antigo missionário de aldeamentos indígenas no Paraná, para se estabelecer em Santa Catarina. O frei recebeu alguns recursos financeiros concedidos pelo Ministério, mas não teve êxito em sua missão. As tentativas de catequese, entretanto, continuaram. Simultaneamente, outros esforços foram feitos para aldear os índios. Grupos de “batedores do mato” foram organizados em diversas colônias. Em Blumenau, Frederico Deeke, que chefiava uma dessas turmas, foi credenciado pelo dr. Blumenau para procurar e contratar um intérprete que facilitasse o contato com os índios. Este experimentado desbravador conseguiu contratar tal auxiliar, porém contatos amistosos, não conseguiu. Uma outra tentativa de aldeamento foi feita em Papanduva pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes em 1877. Pelo que se sabe, nenhum índio foi atraído. As expedições de vingança ao interior do sertão para revidar ataques cometidos pelos indígenas eram conhecidas no Brasil desde os tempos coloniais. As colônias e o governo provincial logo começaram a organizar e remunerar grupos armados que 6
“Falla” é o mesmo que relatório ou, atualmente, “mensagem” à Assembléia. Neste caso, trata-se da “falla” do dr. João José Coutinho, de 1856, conforme SANTOS, 1973, p. 65.
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adentravam na floresta com o intuito de dizimar os índios em seus acampamentos. A justificativa oficial era afugentar os indígenas para longe dos lugares habitados 7. As palavras “bugreiro”, “caçadores de índios”, “tropas” e “montarias” logo começaram a aparecer nos documentos oficiais e no noticiário dos jornais. Na “falla” à Assembléia de 1876, o presidente da Província, João Capistrano Bandeira de Mello Filho, informava: Em alguns pontos da Província, como na Barra Velha, vila de Joinville, Costa da Serra, Curitibanos e Colônia Militar Santa Tereza, houve diversas correrias dos selvagens, algumas dellas seguidas de funestas conseqüências, sendo elles enérgicamente repellidos, já pelos habitantes, a defenderem o lar das violências que o assaltavão, e já pelo acêrto das medidas empregadas pelas autoridades.
Nessa mesma “falla”, em anexo, o chefe de Polícia da Província apresentava seu relatórios, esclarecendo sobre os indígenas que “na Barra Velha e Villa de Joinville o aparecimento deles, em os mezes de Janeiro e Fevereiro, poz em alarma os moradores desses districtos; saindo, porém, d’entre estes alguns homens mateiros, embrenharão-se nas matas e afugentaram os selvagens 8”. Pouco antes, em 3/1/1874, o jornal Kolonie Zeitung, de Joinville, noticiava que havia partido no dia 28 de dezembro de São Bento a maior expedição aprovada pelo presidente da Província para combater os “bugres” que circulavam nas imediações de Joinville e Blumenau. A expedição era formada por 31 homens e dirigida pelo vaqueano João dos Santos Reis. E em 1880, o governo provincial relatava à Assembléia, com a maior simplicidade, que “para afugentar (os índios) tomei as medidas de costume: recorri aos battedores de matto”9. O noticiário telegráfico do Jornal do Comércio (Florianópolis) do ano de 1883 dá-nos vários exemplos referentes à autorização de despesas pelo governo para o extermínio indígena. Em 22 de fevereiro, 7 8 9
“Falla” do presidente da Província João Tomé da Silva. In: SANTOS, op. cit., p. 79. Ibidem, p. 79. Ibidem, p. 80-81.
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Ao Exmo. Sr. Coronel Vice-Presidente da Província, n. 39, solicitando, em vista do ofício do delegado de Tubarão, que S. Excia. dignou-se enviar a esta chefia [...] autorização para que seja despendida a quantia de 200$000 rs com o serviço de afugentar os indígenas daquela paragem [...].
Dia 23 do mesmo mês, ainda dirigido ao vice-presidente, com o no 41, “propõe esta chefia a S. Excia. se digne autorizar o dispêndio de 300$000 rs [...] no pagamento de vaqueiros que batam as matas e afugentem os selvícolas”. No dia 24, outro telegrama dirigido ao delegado de S. Francisco autoriza despesas com batedores de mato para “garantir a população dos assaltos dos selvagens no Jaraguá”10. E a lista prossegue, dando-nos idéia da chacina que ocorria no sertão. Em 5 de junho de 1904, o Jornal Novidades (Itajaí) comenta matéria publicada no Blumenau Zeitung sob o título “Como se civiliza no século vinte”. Neste texto, o jornal de Blumenau denuncia as atrocidades cometidas pela turma incumbida pelo governo para “afugentar” os índios11. As tropas de bugreiros compunham-se, em regra, de 8 a 15 homens. A maioria deles era aparentada entre si. Atuavam sob o comando de um líder. A quase totalidade dos integrantes desses grupos eram “caboclos”, que tinham grande conhecimento sobre a vida no sertão. Atacavam os índios em seus acampamentos, de surpresa. Às vítimas, poucas possibilidades havia de fuga. O mais conhecido bugreiro em Santa Catarina foi Martinho Marcelino de Jesus, ou Martinho bugreiro. Nascido por volta de 1876, em Bom Retiro, trabalhou em Taquaras na fazenda do major Generoso de Oliveira. Depois do casamento, morou com os sogros na Serra da Boa Vista. A seguir, mudou-se para Caeté, no município de Alfredo Wagner, voltando depois a morar em Bom Retiro, no Distrito de Catuíra. Dedicava-se à criação e ao comércio de gado. Foi nessa condição de criador, isto é, pequeno fazendeiro, que começou a atender a pedidos de particulares e do governo para “afugentar” os índios. Volta e meia, estava em Florianópolis, 10 11
Ver SANTOS, op. cit., p. 84-5. Ibidem, p. 84-85.
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prestando contas ao governo. No início do século, comandou diversas expedições no Vale do Itajaí. Em algumas de suas estadas em Blumenau, foi fotografado com sua turma e suas vítimas. Para dar segurança aos colonos que se fixavam em Ituporanga e Barracão, foi nomeado gerente da Cia. Colonizadora Santa Catarina por seu diretor, coronel Carlos Poeta. Entre 1923 e 1928, Martinho esteve a serviço do agrimensor de terras Carlos Miguel Koerich, que fazia seu trabalho nas regiões de Barracão, Anitápolis, Esteves Júnior, Angelina e Brusque. Participou contra a Revolução Constitucionalista de 1932, oportunidade em que, estando aquartelado em Itararé, deu um depoimento dizendo que em Santa Catarina “tinha liquidado muitos bugres”12. Segundo um depoimento que obtive do bugreiro Ireno Pinheiro, em 1972, na localidade de Santa Rosa de Lima, afugentavam-se os índios ...pela boca da arma. O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparavase uns tiros. Depois, passava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança. Quando foram acabando, o governo deixou de pagar a gente. A tropa já não tinha como manter as despesas. As companhias de colonização e os colonos pagavam menos. As tropas foram terminando. Ficaram só uns poucos homens, que iam em dois ou três pro mato, caçando e matando esses índios extraviados. Getúlio Vargas já era governo, quando eu fiz uma batida. Usei Winchester. Os índios tavam acampados num grotão. Gastei 24 tiros. Meu companheiro, não sei. Eu atirava bem 13.
No sul do Estado, Natal Coral, Maneco Ângelo e um tal Veríssimo, entre outros, tornaram-se famosos como líderes das “batidas” e pela violência com que assaltavam os acampamentos dos índios. Bugreiro ou, mais explicitamente, o caçador de índios foi assim uma profissão criada e necessária ao capitalismo em expansão nesta parte da América.
12 13
Ibidem, p. 89-91. De acordo com o texto de SANTOS, Sílvio Coelho dos. “Bugreiro”, elaborado para a exposição do artista plástico Elvo Damo intitulada, “Xilos”, Curitiba, 1979.
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A violência que acontecia no interior do sertão repercutiu na imprensa, nas áreas urbanas e, também, no exterior. Um longo debate ocorreu. Muitos tinham a opinião de que os índios eram um obstáculo ao progresso do País e que deveriam ser, simplesmente, eliminados. Esses, na verdade, assumiam publicamente uma prática que vinha acontecendo de maneira às vezes camuflada, outras vezes aberta, desde os tempos da Colônia. Isto é, o genocídio indígena. Outros, mais generosos, defendiam o fim da carnificina, da violência. Esses humanistas justificavam sua posição dizendo que os indígenas eram seres humanos e, como tais, tinham o direito à vida e ao convívio com a civilização. Em Santa Catarina, este debate se acentuou no início do século XX, quando foi fundada em Florianópolis, no ano de 1906, a Liga Patriótica para a Catechese dos Selvícolas. A Liga era conseqüência do esforço do então major-engenheiro Pedro Maria Trompowsky Taulois, positivista e maçom, para dar fim à violência contra os índios, tendo o apoio de um pequeno grupo de políticos, humanistas e intelectuais. Gustavo Richard, então governador, foi escolhido seu presidente de honra. A Liga se envolveu forte no debate que acontecia na imprensa, opondo-se às investidas que o jornal Der Urwaldesbote, editado em Blumenau, fazia contra os índios. Ainda em 1906, Taulois convidou o naturalista e etnógrafo tcheco Albert Vojtech Fric14 para assumir a “pacificação” dos Xokleng. Fric fazia a sua terceira viagem à América do Sul e conhecia a violência que era cometida contra os índios pelos governos e companhias de colonização. Era também um humanista. Sua chegada a Florianópolis e, depois, a Itajaí, Blumenau, Curitibanos e Palmas foi devidamente noticiada. O jornal Der Urwaldesbote publicou diversos artigos criticando os objetivos de Fric e da Liga, bem demonstrando o cenário de insegurança que dominava os colonos. Fric resumia seu projeto numa aproximação pacífica com os Xokleng com o apoio de índios Kaingang; na reserva de uma área 14
Fric é grafado corretamente com um pequeno “v” sobre a letra “C”. Deve-se pronunciar “Fritch”, de acordo com STAUFFER, 1960, p.169.
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suficiente para os indígenas terem condições de sobrevivência; na punição das caçadas e negócios de escravos feitos pelos bugreiros; na devolução das crianças capturadas aos seus pais; e na prática da compreensão e da crença no progresso humano. Fric, entretanto, acabou regressando à Europa sem ter colocado em prática seu plano, pois havia sido descredenciado de sua condição de representante do Museu Real Etnográfico de Berlim, e perdeu seu vínculo com o Museu Etnográfico de Hamburgo. Tudo indica que isto aconteceu por pressões exercidas pelas companhias de colonização alemãs que atuavam em Santa Catarina. Foi no cenário do XVI Congresso Internacional de Americanistas, realizado em Viena, em 1908, que Fric reapareceu. Apresentou um extenso trabalho sobre as iniqüidades que se praticavam contra os indígenas no Sul do Brasil em nome da colonização e do “progresso”. Denunciou que a “colonização se processava sobre os cadáveres de centenas de índios, mortos sem compaixão pelos bugreiros, atendendo os interesses de companhias de colonização, de comerciantes de terras e do governo”. E finalizou, solicitando que o Congresso “ protestasse contra estes atos de barbárie para que fôsse tirada esta mancha da história da moderna conquista européia na América do Sul e dado um fim, para sempre, a esta caçada humana”15. As denúncias de Fric repercutiram na imprensa européia. No Brasil, a questão tornou-se motivo de amplo debate, quando o prof. Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, tentou refutar as declarações do etnógrafo tcheco. Ihering disse na ocasião, referindo-se aos Kaingang de São Paulo, que “os índios não representam um elemento de trabalho e progresso” e propunha o seu extermínio16. O nacionalismo embrionário da Velha República, inspirado no positivismo, recolocava a questão indígena como responsabilidade do Estado. A discussão se espalhou pelo País, e o governo da República acabou criando, em 1910, o Serviço de 15 STAUFFER, David Hall. Origem e fundação do serviço de proteção aos índios. In: Revista de História, n. 37 e seguintes. São Paulo, 1959/1960. Neste caso, 1960 169172. 16 STAUFFER, op. cit., p. 177; SANTOS, 1973, p. 116-120.
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Proteção aos Índios (SPI). Os ideais de Fric, de Taulois e da “Liga”, afinal, prevaleceram. Logo após ter sido criado o SPI, o general Cândido Mariano da Silva Rondon designou o tenente José Vieira da Rosa para atuar como Inspetor em Santa Catarina. A idéia era estabelecer a paz no sertão, eliminando-se as ações violentas dos bugreiros. Aos índios, pretendia-se demonstrar que havia intenção do governo em estabelecer um contato amistoso. As dificuldades a vencer eram muitas, e logo o novo Serviço começou a receber inúmeras críticas. Os índios prosseguiam em seus ataques às propriedades dos brancos, em busca de alimentos e ferramentas. As ações deflagradas por Vieira da Rosa mostraram-se insuficientes para conter os indígenas e evitar as pressões exercidas pelas colônias. As representações diplomáticas da Itália e da Alemanha exigiam que o governo brasileiro garantisse a segurança dos imigrantes. A direção do SPI resolveu, então, dar mais atenção à Região Sul, instalando “postos de atração” em diferentes pontos do Vale do Itajaí e na região do Rio Negro (Porto União), onde os índios haviam atacado os operários que construíam a estrada de ferro São Paulo—Rio Grande e ameaçavam imigrantes que estavam sendo instalados ao longo da linha férrea. A equipe de sertanistas foi ampliada, e o próprio vice-diretor do órgão, Manoel Miranda, se deslocou para Ibirama para incentivar os trabalhos e obter das autoridades locais o apoio e a compreensão necessários ao êxito dos sertanistas. Nas vizinhanças do Rio Negro, à época sob jurisdição do Paraná, em 1912, Fioravante Esperança, sertanista do SPI, logrou a aproximação com um subgrupo Xokleng. Poucas semanas depois, entretanto, devido à presença no “posto de atração” de um grupo de fazendeiros que costumava perseguir os índios, ocorreu uma tragédia. Os índios, desconfiados, cercaram os visitantes e a equipe do sertanista, e os massacraram. Fioravante Esperança tentou, inutilmente, demover os índios de seu intento, morrendo sem fazer uso de suas armas. Depois, os indígenas fugiram para a mata e só voltaram a aceitar o convívio com outro grupo do SPI em 1918. No Alto Vale do Itajaí, os trabalhos de atração prosseguiram. | 78 |
Em 1914, uma pequena equipe de funcionárioss do SPI, liderados pelo jovem Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, conseguiu finalmente estabelecer o contato pacífico com os Xokleng. Hoerhan mantinha “postos de atração” nos Rios Plate e Krauel, afluentes do Hercílio. Alguns índios Kaingang e experimentados mateiros colaboravam nas tarefas de atração. Presentes eram colocados em diferentes pontos nas trilhas nas quais a presença indígena era detectada. No entorno dos postos, roças foram feitas visando a oferecer alimentos para os índios. Nas torres de vigia, gramofones tocavam diferentes músicas. Intentava-se demonstrar aos índios que os ocupantes daqueles postos estavam dispostos a um relacionamento pacífico. Finalmente, em 22 de setembro, Hoerhan, num ato de coragem, atravessou nu e desarmado o espaço de uma clareira às margens do Plate e confraternizou com os índios. A “pacificação” estava em marcha, na versão dos brancos. Para os Xokleng, entretanto, eles é que estavam conseguindo “amansar” Hoerhan e seus companheiros. Isto era razão das contínuas exigências que faziam aos servidores do SPI. As ações do SPI não foram estendidas para outras regiões do Estado. No sul, os bugreiros continuaram dizimando os integrantes de um terceiro subgrupo Xokleng. Desse subgrupo, há notícias de que uns poucos sobreviventes arredios ao convívio chegaram até os anos 1970, refugiados nas encostas da Serra Geral e na Serra do Tabuleiro. Em Ibirama, apesar de todos os cuidados de Hoerhan, os Xokleng começaram a vivenciar a trágica experiência do convívio com os brancos. Estabelecido o contato pacífico com os índios, era necessário criar as condições para garantir a sua sobrevivência. Isto não aconteceu. Na verdade, o SPI tinha adquirido experiência de como efetivar a atração. Sabia que a reserva de terras era fundamental, bem como o estabelecimento de um clima de confiança e de apoio para atender os indígenas em suas necessidades mais imediatas. Mas dificuldades de toda ordem dificultaram a compreensão do complexo quadro que se iniciava, quando um grupo indígena estabelecia o convívio com representantes da sociedade nacional. | 79 |
Os ideais positivistas de Rondon e de seus companheiros logo se revelaram insuficientes para atender à realidade crua que emergia do contato. Não existiam conhecimentos científicos, especialmente nas áreas de Antropologia e Biologia, para orientar sobre o que fazer. Hoje, também é relativamente fácil compreender que o SPI havia surgido para atender aos interesses da sociedade nacional, e não dos indígenas17. À época dos acontecimentos de que estamos tratando, porém, esta compreensão era quase impossível. De início, Hoerhan tentou atender os indígenas em suas necessidades mais imediatas. Preocupado com a segurança dos índios, tratou de mantê-los próximos ao posto de atração. Para tanto, precisava alimentá-los. A aquisição de gado, entretanto, dependia de verbas, e essas eram escassas. Para manter os indígenas no local em que ocorreu a atração, na confluência dos Rios Plate e Hercílio, foi necessário iniciar uma longa discussão com o governo do Estado e com a Cia. Colonizadora Hanseática, que havia adquirido tal área de terras do Estado. Paralelamente, a gripe, o sarampo, a coqueluche, a pneumonia, as doenças venéreas, etc., começaram a fazer suas vítimas entre os indígenas. Além da falta de recursos para a aquisição de medicamentos, não havia corpo médico disponível para socorrer os índios. Hoerhan teve que assumir, também, a condição de “prático” nessa área. A alimentação dos índios passou a ser garantida por produtos agrícolas. Isto, certamente, teve graves implicações na sua resistência às doenças endêmicas que atingiam o grupo. As incursões na floresta para a prática da caça, tão a gosto dos índios, foi desestimulada para não deixá-los à mercê de alguma violência praticada pelos brancos que viviam no entorno da reserva. Os rituais de “furação” do lábio inferior dos jovens para a inserção do tembetá, de tatuagem das pernas das meninas e de cremação dos mortos foram proibidos por Hoerhan para evitar as aglomerações que facilitavam a disseminação das doenças endêmicas. A desmotivação de vida e o desespero pela perda dos parentes também afetaram profundamente os sobreviventes. 17
Veja-se, por exemplo, SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.
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Em pouco tempo, a maioria dos indígenas havia morrido. Hoerhan tinha contatado, em 1914, aproximadamente 400 índios. Em 1932, quando o antropólogo Jules Henry começou extenso trabalho de pesquisa entre os Xokleng, só havia 106 índios18. Isto desesperou a tal ponto o pacificador que, certa ocasião, disse: “se pudesse prever que iria vê-los morrer tão miseravelmente, os teria deixado na mata, onde ao menos morriam mais felizes e defendendo-se de armas na mão contra os bugreiros que os assaltavam”19. A miscigenação entre os Xokleng e os índios Kaingang e os brancos também aconteceu. Disto, resultaram inumeráveis hierarquizações internas, contribuindo, em momentos de tensão, para a exacerbação do “faccionalismo” que caracteriza os povos Jê, entre eles os Xokleng. Tudo isto deve ser compreendido como um processo de mudança. Os Xokleng foram levados a passar da condição de caçadores e coletores nômades para a situação de povo sedentário confinado numa reserva. As mudanças da vida cotidiana que vivenciaram não foram pequenas, da dieta alimentar, às roupas, às ferramentas, aos medicamentos industrializados, ao aprendizado de uma nova língua, às pressões religiosas, etc. Sofreram, ainda, a perda de sua autonomia, de sua liberdade de ir e vir, sujeitando-se à tutela do SPI. Mas, por outro lado, revelaram-se bastante capazes para manter o grupo como uma unidade étnica diferenciada. Para tanto, reelaboraram continuamente diferentes aspectos de sua cultura tradicional, ao mesmo tempo em que desenvolveram estratégias para continuar a enfrentar os brancos como índios, como Xokleng. Em 1967, o governo militar resolveu extinguir o Serviço de Proteção aos Índios. Uma série de escândalos recentes, envolvendo, entre outros, a utilização do patrimônio indígena e o uso do índio como mão-de-obra escrava, orientou a decisão do poder militar. Pretendia-se, com essa iniciativa, minimizar a repercussão que tais acontecimentos estavam tendo no exterior. 18
SANTOS, op. cit., p. 181. Ver também HENRY, Jules. Jungle people: a Kaingáng tribe of the highlands of Brazil. N. York: J. J. Augustin Publisher, 1941. 19 RIBEIRO, Darcy, op. cit., p. 316.
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Em substituição ao SPI, o governo criou a Fundação Nacional do Índio (Funai). A este órgão, foram acometidas todas as atribuições de defesa e tutela das populações indígenas no País, visando à sua “integração à comunidade nacional”. Algumas mudanças paliativas logo foram feitas. Funcionários foram demitidos. Outros foram contratados, sendo muitos desses militares da reserva. Também as denominações dos postos indígenas mudaram. Assim, o Posto Indígena Duque de Caxias passou a se chamar Posto Indígena Ibirama e, mais tarde, Área Indígena Ibirama20. Funcionárioss se sucederam na chefia do Posto. Estradas foram abertas no interior da reserva, permitindo a circulação de veículos e pessoas. A população indígena intensificou, assim, seus contatos com a sociedade regional. A exploração dos recursos florestais disponíveis na área indígena foi uma conseqüência imediata. Primeiro, os indígenas foram estimulados a comercializar o palmito, atendendo às ofertas das empresas dedicadas à fabricação de conservas. Depois, gradativamente, as madeiras nobres começaram a ser objeto de diferentes negociações, na maioria das vezes nada honestas. A própria Funai patrocinou muitos contratos, pois entendia que a área indígena integrava o patrimônio da União, cabendo a ela, Funai, administrá-la visando à obtenção de recursos para que o órgão pudesse dar conta de “sua missão”21. CONCLUINDO A experiência de contato com os “brancos” foi altamente negativa para os índios. Populações inteiras foram dizimadas, vítimas de doenças desconhecidas, do trabalho escravo, da desorganização social e de guerras intestinas. A dúvida sobre a condição humana dos indígenas facilitou toda a sorte de violência 20
21
Ver sobre o funcionamento do posto indígena Ibirama em: SANTOS, Sílvio Coelho dos. A integração do índio na sociedade regional: a função dos postos indígenas em Santa Catarina. Florianópolis: Imprensa Universitária/UFSC, 1970. Sobre a exploração florestal na AI., além de SANTOS, 1973, op. cit, ver MÜLLER, Sálvio. Opressão e depredação. Blumenau: Editora da FURB, 1987.
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e espoliação. Mas também aconteceram relações amistosas, motivadas pela curiosidade de parte a parte. Em alguns casos, certas práticas da organização social indígena, como o “cunhadismo”, facilitaram as alianças com os “brancos” e incentivaram a miscigenação. No Sul do Brasil, o processo de submissão dos Xokleng foi tomado como paradigmático. Este processo, paradoxalmente, foi suficientemente documentado, em particular no que se refere às ações de extermínio promovidas por bugreiros. Os poucos indígenas que sobreviveram à experiência de convívio com os “brancos” lutam, hoje, em busca de espaços sociais e políticos que lhes garantam um mínimo de condições para assegurar sua reprodução como grupo diferenciado. Vê-se, pois, que para os povos indígenas a ocupação “branca” do território que hoje forma o Brasil foi uma catástrofe. Catástrofe irreversível, motivada por inovações tecnológicas e por aparatos ideológicos que deram aos “brancos” um falso sentimento de superioridade que, lamentavelmente, chega até os dias do presente.
HENRY, Jules. Jungle people: a Kaingáng tribe of the highlands of Brazil. N. York: J. J. Augustin Publisher, 1941. MÜLLER, Sálvio. Opressão e depredação. Blumenau: Editora da FURB, 1987. SANTOS, Sílvio Coelho dos. A integração do índio na sociedade regional: a função dos postos indígenas em Santa Catarina. Florianópolis: Imprensa Universitária/UFSC, 1970 ____. Bugreiro. In.:A revista do homem, n.9. Rio de Janeiro: abril, 1979. p. 92-94. ____. Índios e brancos no Sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. . Florianópolis: Edeme, 1973, p. 61-62. SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995. STAUFFER, David Hall. Origem e fundação do serviço de proteção aos índios. In: Revista de História, n. 37. São Paulo, 1959/1960. p.169-172.
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G E R A Ç Ã O H Í D R I C A DA E L E T R I C I D A D E NO S UL DO B R A S I L E S E U S I M P A C T O S S O C I A I S
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o Brasil, a geração de energia elétrica é, essencialmente, conseqüência de aproveitamentos hidrelétricos. O potencial instalável ultrapassa 280 GW. Em 1991, a produção bruta total de energia elétrica atingiu 248,6 bilhões de kWh, dos quais cerca de 97% eram de origem hidráulica1. Cerca de 20% da energia produzida é agregada a produtos destinados à exportação, em particular o alumínio. Organizada nos anos 1960, a Eletrobrás (Centrais Elétricas Brasileiras S.A.) desenvolveu políticas voltadas para a implantação de grandes projetos hidrelétricos, dos quais Itaipu Binacional, Balbina, Sobradinho e Itaparica poderiam ser tomados como exemplos. Exercendo seu papel de holding, a Eletrobrás atribuiu às suas subsidiárias as tarefas de execução dos projetos de geração. Em nível dos Estados, as empresas que foram integradas ao sistema em tese deveriam ficar limitadas às tarefas de distribuição de energia. A centralização era assim compatível com as ambiciosas propostas “desenvolvimentistas” impostas pelos governos militares. Novas tecnologias desenvolvidas nos anos 1970 começaram a permitir a implantação de linhas de transmissão a longas distâncias, abrindo perspectivas para o aproveitamento de recursos hidráulicos em remotas regiões. Foi neste contexto que a Eletrosul (Centrais Elétricas do Sul do Brasil S.A.) formulou, ainda nos anos 1970, um projeto para a exploração do potencial energético da bacia do Rio Uruguai, em Conferência proferida no Departamento de Antropologia do ICSTE, Universidade de Lisboa, 2005. 1 Plano Nacional de Energia Elétrica, 1993—2015, Eletrobrás, 1994, vol. l, p. 21.
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seu trecho nacional. Cerca de 22 aproveitamentos foram definidos como interessantes e passíveis de implantação. Era a primeira vez que no Brasil se formulava um projeto para o uso integral de uma bacia hidrográfica. A proposta pretendia racionalizar os aproveitamentos, considerando, entre outras variáveis, a minimização das questões socioambientais. A tônica do projeto, entretanto, continuava baseada no planejamento centralizado e verticalizado. Numa outra perspectiva, os projetos hidrelétricos implantados durante o regime militar tinham tido conseqüências socioambientais desastrosas. Assim, nos anos 1980, com a redemocratização do País, o setor elétrico enfrentou dificuldades para levar a termo projetos que estavam em andamento. Movimentos sociais contra a implantação de hidrelétricas disseminaram-se, tendo como referência a Comissão Regional dos Atingidos por Barragens — CRAB, que emergiu como resistência organizada às barragens da bacia do Uruguai, de interesse da Eletrosul. Conforme dissemos em outro lugar2, pode-se perceber que tais projetos foram e são implantados sem levar em conta as tradições das populações locais e regionais, tampouco suas expectativas e aspirações. As demandas que os justificaram e justificam são de caráter nacional ou internacional. Sua localização é decidida em função de critérios e estratégias complexos, e distanciados das lógicas que presidem o cotidiano local. Acrescente-se, ainda, que nos anos 1980 se estabeleceram claras reorientações dos organismos internacionais de financiamento, em particular quanto às questões socioambientais. O Banco Mundial passou a defender a criação de departamentos de meio ambiente junto às empresas do setor elétrico, além de condicionar seus financiamentos à emergência de legislação ambiental mais adequada em vários países. Como já foi dito, “os projetos do setor elétrico resultam, de fato, de iniciativas complexas e multidimensionais, compreendendo aspectos econômicos, políticos, socioculturais, técnicos e ecológicos, relacionados em um intrincado jogo de 2
SANTOS e REIS, 1993, p.2.
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mútuas interações e condicionamentos”. Dependem também, pelas suas dimensões, de grandes movimentos de capital e mãode-obra. Em conseqüência, produzem profundas alterações em diferentes esferas, que extrapolam seus aspectos meramente econômicos e técnicos3. A legislação ambiental no Brasil surgiu nos anos 1930, com a promulgação do Código de Águas (Decreto 24.643, de 1934) e do estabelecimento do Decreto-Lei 25 (1937), que disciplinou a Organização e a Proteção do Patrimônio Nacional. Nos anos 1960, surgiram o Código Nacional de Saúde (Decreto 49.974, de 1961); a Lei 3.924, relativa à Proteção dos Monumentos Arqueológicos e Pré-Históricos (1961) e o Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 1964). Em 1973, surgiu a Lei 6.001, que estabeleceu o Estatuto do Índio. Nos anos 1980, definiu-se a Política Nacional de Meio Ambiente, através da Lei 6.938 (1981), e criaram-se órgãos federais, coordenados por uma Secretaria com nível de Ministério, para colocar em prática os novos dispositivos legais. Surgiu o Conselho Nacional de Meio Ambiente — Conama, que, através da Resolução 001/86, fixou os requisitos para a avaliação de impactos e para o licenciamento de obras modificadoras do meio ambiente, entre elas, as do setor elétrico. Tornaram-se obrigatórios o Estudo de Impacto Ambiental — EIA e o Relatório de Impacto Ambiental — RIMA. A partir daí, novas disciplinações legais, emanadas do governo federal ou dos Estados, procuraram minimizar os efeitos perversos dos projetos hidrelétricos, tendo como eixo de referência o fato de esses projetos serem essencialmente conduzidos por empresas estatais. Através da Resolução 006/87, o Conama estabeleceu as diversas etapas do processo de licenciamento e, pela Resolução 009/87, garantiu a obrigatoriedade de audiência pública. O art. 2 dessa última Resolução explicita: [...] “sempre que julgar necessário, ou quando for solicitado por entidade civil, pelo Ministério Público, ou por 50 (cinqüenta) ou mais cidadãos, o Órgão de Meio Ambiente promoverá a realização de audiência pública”. Deve ficar claro que essa legislação também atendia aos reclamos da comunidade 3
SANTOS e REIS, 1993, p. 3.
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internacional. Leme Machado (1994, p.49-52) comenta diferentes Declarações e Convenções que antecederam a Conferência das Nações Unidas de Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992. O Brasil teve, pois, de assumir posições cada vez mais favoráveis à preservação ambiental. A Eletrobrás, certamente considerando este quadro, editou 1986 um “Manual de Estudos de Efeitos Ambientais dos Sistemas Elétricos”, que foi sucedido por um “Plano Diretor de Meio Ambiente” (PDMA). Ainda em 1986, criou o Comitê Consultivo de Meio Ambiente (CCMA), integrado por profissionais de diversas áreas de conhecimento e independentes do setor elétrico. Em 1987, constituiu a Divisão de Meio Ambiente (depois elevada à condição de Departamento) e, no ano seguinte, instituiu o Comitê Coordenador das Atividades de Meio Ambiente do Setor Elétrico (Comase). Também estimulou a institucionalização de áreas sociais e ambientais junto às suas concessionárias; promoveu o aperfeiçoamento de quadros técnicos; apoiou a realização de estudos específicos; promoveu a elaboração do “Segundo Plano Diretor de Meio Ambiente (1990—92)”, cuja primeira versão circulou em 1989. Paralelamente, o Plano 2010, aprovado através do Decreto 96.652/88, incorporava essas inovações. Numa perspectiva crítica, é preciso destacar que em 1981 Aspelin e Santos, com a obra Indian Areas threatened by hydroelectric projects in Brazil, alertavam para os riscos e prejuízos concretos que diversos povos indígenas vivenciavam em conseqüência da implantação de hidrelétricas. A literatura sobre o tema ampliouse rapidamente, e o trato das questões sociais decorrentes da implantação de projetos hidrelétricos como “problema ambiental” foi bastante criticado, demonstrando-se objetivamente a inadequação desse tipo de discurso. Conceitos novos acabaram sendo aceitos pelo setor elétrico, pois a dicotomia efeitos diretos/indiretos não dava conta dos diferentes problemas sociais e ambientais. As noções de “área de influência”, de “usos múltiplos”, de “inserção regional” e de “monitoramento” foram incorporadas aos EIA e RIMA. Vários estudos foram encomendados pela Eletrobrás às universidades do País, objetivando o aprofundamento do conhecimento sobre | 87 |
situações específicas. No caso das populações indígenas afetadas por projetos hidrelétricos, o Instituto de Pesquisas Antropológicas do Rio de Janeiro — Iparj realizou uma série de estudos de caso, introduzindo o conceito de impacto global. Por esse conceito, compreende-se que esses tipos de empreendimento causam [...] danos globais, isto é, influência em geral deletéria, em todos os setores da vida de um povo indígena, desde a sua população e as condições materiais de sua sobrevivência, até as suas concepções de vida e visões de mundo. Por sua vez, esses danos raramente são exclusivos a um número populacional, mas atingem como um todo a uma etnia, a uma cultura4.
Mais recentemente, foi elaborado o conceito de externalidade. Drumond, citando Portney, explicita que uma [...] externalidade ocorre sempre que as transações entre duas partes causarem um benefício ou um custo a uma terceira parte e sempre que esse benefício ou esse custo não for levado em conta nos entendimentos entre as duas primeiras partes5.
No âmbito jurídico, surgiu a noção de direito difuso, através da qual se tornou possível o ajuizamento de questões até há pouco impossíveis. Foi nesse contexto de maior atenção do setor elétrico para as questões sociais e ambientais, que os diversos segmentos sociais atingidos, ou ameaçados de serem vitimados por projetos hidrelétricos, e diferentes ONGs (Organizações NãoGovernamentais) voltadas para a defesa do ambiente e dos direitos dos atingidos, bem como instituições científicas, procuradores, etc., desenvolveram suas estratégias no sentido de pressionar as empresas estatais do setor elétrico para assumirem suas responsabilidades. Objetivava-se o encontro da transparência dos projetos hidrelétricos, assegurando-se aos potenciais atingidos e todos os demais segmentos sociais interessados o acesso às informações e a participação no processo decisório. 4 5
IPARJ/Eletrobrás. 1989, p. 33-34 apud SANTOS, 1996, p. 16. PORTNEY, 1982, p. 5, apud DRUMOND, 1995, p. 2.
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Diversas situações concretas têm demonstrado que a implantação de UHs no Brasil provocou diferentes prejuízos para os povos indígenas. Nos últimos dez anos, vários encontros, seminárioss e reuniões acadêmicas propiciaram a discussão dos problemas socioculturais e ambientais conseqüentes à implantação de UHs para as populações atingidas, indígenas ou não. Em conseqüência, diversas conclusões, sugestões e recomendações foram feitas, objetivando reorientar as práticas do setor elétrico no trato da questão. Entre essas, destacamos: 1) [...] a relevância e o significado dramático das perdas dos níveis sócio-organizativos e culturais, que no caso das populações indígenas implica na extinção de experiências civilizatórias alternas que integram o patrimônio da humanidade”; “[...] ser de fundamental importância a participação, em todos os níveis de decisão, das populações atingidas por projetos de construção de barragens”; e “[...] que o modelo energético assumido pelos países latino-americanos está submetido aos interesses urbano/industriais em detrimento de segmentos populacionais rurais e urbanos, marginalizados da sociedade numericamente majoritária, e que arcam também com os custos financeiros desses projetos”6 ; 2) “[...] que os povos indígenas sejam considerados sujeitos de seus próprios destinos e que se evite a realização de tais projetos [de “desenvolvimento”] em suas terras”; “[...] que no caso de serem afetados alguns povos indígenas por tais projetos, se garanta plena participação nos mecanismos decisórios de sua elaboração e implementação, assim como se garantam benefícios expressivos para a melhoria de sua qualidade de vida”; que é necessário “[...] evitar que repartições governamentais encarregadas da questão indígena se apropriem dos recursos dos projetos em detrimento das comunidades interessadas. Os grandes projetos não devem vir a fortalecer as políticas integracionaistas, aculturadoras ou racionalizantes de nossos governos”; que se “[...] garanta nesses projetos consultorias, fiscalização, avaliações independentes e contrastivas, de tal forma que a não consideração das recomendações comprometa a continuidade de execução do programa”7.
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In: Documento sobre “política energética, barragens e populações atingidas”, elaborado em 25/11/86, na UFSC, como decorrência da reunião que congregou antropólogos, sociólogos e outros cientistas para discutir o tema “As Conseqüências Sociais da Construção de Barragens”. 7 Conforme o “Documento Final da Reunião de Trabalho sobre os grandes projetos de desenvolvimento e as comunidades indígenas”, Assunção, Paraguai, 13 a 17/6/ 1989.
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3) que “[...] deve-se considerar os múltiplos interesses que envolvem a implantação de uma hidrelétrica [os quais] interferem, muitas vezes, nos resultados dos levantamentos efetivados para dar suporte ao projeto”; que “[...]é imprescindível a valorização das práticas democráticas que garantam desde o acesso às informações referentes ao Setor Elétrico a todos os interessados, dispondo inclusive de dados pertinentes aos efeitos negativos dos projetos já implantados, até a informação e a discussão com as populações localizadas na área de influência do empreendimento e que por ele será direta ou indiretamente afetada”; que [...]”no plano das relações interétnicas, é necessário considerar que os povos indígenas obtiveram na Constituição o reconhecimento de novos direitos sobre as terras que ocupam, adquirindo condições de se manifestar contrários à implantação de hidrelétricas “; que “[...]é preciso admitir que a discussão dos empreendimentos hidrelétricos deve ser permanente, tanto em nível nacional, como regional e local, antes, durante e depois de sua implantação”8. 4) que deve haver o “[...] reconhecimento e garantia dos direitos das populações locais na concepção e implementação das políticas públicas”; haver “[...] a garantia do livre acesso de pesquisadores aos arquivos dos órgãos públicos e/ou empresas estatais responsáveis pela implementação das políticas públicas”; haver a “[...] incorporação do conhecimento científico acumulado ao processo decisório relativo às intervenções do setor público e/ou empresas estatais da região”; haver “[...] investigação antropológica e monitoramento de demarcação de áreas indígenas e de ocupações especiais (comunidades remanescentes de quilombos, etc.)”; haver “[...] estudos comparativos de situações regionalmente diversificadas, criadas a partir da intervenção do Estado sobre o território, inclusive com reconstituição da história e da dinâmica dos processos sociais”9;
5) numa outra perspectiva, não se pode deixar de destacar os compromissos assumidos pelo Brasil no contexto internacional sobre a questão ambiental. A “Declaração do Rio de Janeiro”, firmada em junho/92 pelos Estados que integram a Organização das Nações Unidas, teve sua origem na “Declaração de Estocolmo”, de 1972, e pode-se dizer que esta última foi o grande marco que levou diferentes países a estabelecerem novos 8
SANTOS, Sílvio Coelho dos. In: SEMINÁRIOS TEMÁTICOS. 1991, Rio de Janeiro, Anais.... Rio de Janeiro: Eletrobrás, Cadernos do Plano 2015, 1991, p. 29-30. 9 A QUESTÃO ENERGÉTICA NA AMAZÔNIA: avaliação e perspectivas socioambientais. 1993, Universidade Federal do Pará, Belém, 1993.
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princípios legais para o trato da questão ambiental. Questão esta que se internacionalizou e se complexificou. Uma nova especialização jurídica surgiu, o Direito Ambiental. Diversos “princípios” foram definidos e assumidos pelos diferentes países, entre eles “a obrigatoriedade da intervenção estatal”; o de “prevenção e de previsão”; e o de “participação”. Este princípio da “participação”, conforme ensina Leme Machado (1994), está integrado na Declaração do Rio de Janeiro/92, em seu princípio 10, que diz: “Tratar de maneira mais adequada as questões ambientais para assegurar a participação de todos os cidadãos interessados, no nível pertinente”. Ainda o mesmo autor destaca que, no Brasil, “[...] a participação pública [...] foi conquistada em dois momentos: na Resolução 001/86 — Conama — e na Resolução 009/87- Conama, respectivamente com uma fase de comentários e outra de audiência pública” (op.cit., p. 40). Em outras palavras, a variável socioambiental do processo de desenvolvimento está globalizada. Assim sendo, não se pode pensar isoladamente, muito menos imaginar o encaminhamento de projetos localizados sem ter em vista tanto as repercussões locais e regionais de sua implantação como seus efeitos mais gerais, isto em curto, médio e longo prazos. Nos anos 1980, o setor elétrico começou a vivenciar nova reorientação organizacional. A Eletrobrás sofria dificuldades crescentes para exercer seu papel de holding, especialmente devido ao fato de ser cada vez mais difícil conseguir financiamentos no exterior. As disputas exercidas pelas empresas estaduais para ampliar suas concessões na área da geração também cresceram. A reordenação econômica mundial avançava, impondo diferentes limitações às empresas estatais. O cenário da privatização do setor começava a ser desenhado. De forma quase ostensiva, o País foi se submetendo às regras de mercado, que tendiam para a globalização e para o esvaziamento do papel do Estado como promotor de empresas estatais. A Constituição de 1988 já impôs um revés inesperado à Eletrobrás, ao impedir a continuidade da cobrança do Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), base do Fundo Federal de Eletrificação (FEE), criado em 1954 (CF art. 155, $ 3º). O fluxo | 91 |
permanente de recursos financeiros para a holding, suas subsidiárias e empresas estaduais de energia estava cortado, trazendo em médio prazo problemas financeiros insanáveis. Provavelmente, a proibição constitucional não foi suficientemente discutida, nem tampouco seus efeitos foram devidamente percebidos à época. O BNDES (antes BNDE), grande aliado que participara de quase todos os projetos da Eletrobrás, também passou a orientar seus investimentos em favor da privatização. O enfraquecimento do monopólio estatal, porém, estava decidido. Tudo seria questão de tempo. Nos anos 1990, aceleraram-se as iniciativas de privatização do setor elétrico. A falta de investimentos para dar seguimento à implantação de diferentes hidrelétricas no País, previstas nos Planos 2000, 2010 e 2020, e suas revisões, elaboradas diligentemente pela Eletrobrás, associado à crescente demanda por energia, faziam prever uma crise de abastecimento sem precedentes. O País estava numa situação de risco para dar continuidade aos seus planos de expansão econômica. Tornou-se inevitável, pois, a aceitação da modelagem do processo de privatização, que contemplava a atração de investimentos externos e estimulava a formação de consórcios nacionais, visando à implantação de novas hidrelétricas e, eventualmente, de termelétricas. As empresas integrantes da holding foram orientadas no sentido de buscarem parceiros privados para dar andamento a projetos que estavam paralisados por falta de recursos financeiros. Também surgiram iniciativas para a reorganização interna dessas empresas, a partir da redifinição de suas atividades essenciais e da redução do número de seus colaboradores. As cisões tornaram-se freqüentes, reordenando especialmente os setores de geração e de transmissão. As empresas estaduais de energia começaram a conviver com processos similares. Quase no final dos anos 1990, na Região Sul, a Eletrosul sofreu um processo de divisão, dando origem às Centrais Geradoras do Sul do Brasil S.A. (Gerasul) e à Empresa Transmissora de Energia Elétrica do Sul do Brasil S.A. (Eletrosul). A seguir, a Gerasul foi privatizada, sendo adquirida pelo grupo belga Tractebel, Electricity & Gas International. Para entender esse quadro, há que se ter claro o contexto | 92 |
econômico internacional, centrado nas políticas de globalização, fundamentadas numa nova versão do liberalismo econômico. As atribuições do governo foram redirecionadas para o exercício do controle das diferentes empresas que passaram, ou estão passando, a atuar no setor elétrico. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o Operador Nacional do Sistema (ONS) e a Câmara de Gestão da Crise de Energia (GCE), popularmente conhecida como o “ministério do apagão”, foram, entre outras, algumas dessas novas agências reguladoras governamentais. O modelo estatal, centralizado e verticalizado de administração e de planejamento do setor elétrico, com idas e vindas, está desaparecendo. Havendo falta de investimentos para a implantação de novas hidrelétricas ou termelétricas, bem como para a ampliação das existentes, conforme definido nos planos da Eletrobrás, associado ao constante crescimento da demanda, o potencial do sistema começou a ser utilizado sem reservas. A crise da escassez de energia não se fez esperar, colocando o País na dependência da abundância de chuvas. Novos dilemas surgiram. Uma revisão da matriz energética se impôs, privilegiando-se projetos termelétricos a gás. O racionamento tornou-se uma realidade, junto com alterações tarifárias. Simultaneamente, a modelagem do processo de privatização do setor elétrico sofreu diversas revisões críticas, tendendo para acentuar a necessidade do aporte de capitais para projetos novos, que efetivamente garantam a ampliação acelerada do sistema de geração e permitam a implantação de novas linhas de transmissão. No âmbito da GCE, foram estabelecidas orientações no sentido da abreviação das análises pertinentes às questões ambientais ligadas aos empreendimentos considerados estratégicos para a superação da crise energética, até então reguladas pelas Resoluções do Conama. No início de 2002, uma nova revisão do modelo foi anunciada pela GCE, acabando com o Mercado Atacadista de Energia (MAE) e desacelerando o processo de privatização, entre outras medidas. Trata-se de uma tentativa, um tanto tardia, de revitalização do papel do estado no setor elétrico, priorizando projetos e investimentos. | 93 |
Resta saber se o governo terá condições de efetivamente exercer os papéis que lhe são atribuídos, concretizando em curto prazo novos projetos de geração e de transmissão, e dirimindo inevitáveis conflitos de interesse das empresas do setor entre si, e entre elas e os consumidores. Tudo isto no cenário de uma sociedade que cada vez mais amplia suas complexidades, aumenta suas demandas, e se conscientiza sobre seus direitos e sobre suas perspectivas de futuro. O PROJETO URUGUAI :
O C A S O DA
UHE M A C H A D I N H O
Ainda nos anos 1970, a Eletrosul definiu que seriam construídas prioritariamente as UHEs de Machadinho e Itá, na bacia do Rio Uruguai (SC/RS). A reação social que se sucedeu ao anúncio público dessa decisão não havia sido prevista. A população regional atingida pelos dois empreendimentos mobilizou-se e conseguiu abrir uma ampla discussão sobre o projeto que a Eletrosul havia construído “intramuros” para o aproveitamento do potencial energético da bacia do Uruguai. Dessa movimentação social dos atingidos, surgiu a CRAB. A grande vitória do movimento ocorreu quando o governo federal, através de decisão do presidente em exercício, Aureliano Chaves, decidiu que a UHE Machadinho não seria mais construída. Essa UHE localiza-se no Rio Pelotas, entre os municípios de Piratuba (SC) e Maximiliano de Almeida (RS). Originalmente, o eixo da barragem foi plotado à jusante do Rio Apuaê (ou Ligeiro), e, em conseqüência, ocorria a inundação de uma pequena parte da Área Indígena (AI.) Ligeiro (RS), ocupada por índios Kaingang. Nos anos de 1978 e 1980, antropólogos da UFSC realizaram duas consultorias para o grupo técnico da Eletrosul, que era responsável pelo “Projeto Uruguai”, tendo como escopo a identificação das áreas indígenas atingidas e a definição de medidas mitigadoras 10. A segunda consultoria foi realizada especificamente na AI. Ligeiro11. 10 11
Projeto Uruguai: os barramentos e os índios, (1978). Projeto Uruguai: conseqüências da construção da Barragem Machadinho para os índios do PI Ligeiro (RS), 1980.
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Efetivamente, a Eletrosul jamais acatou a decisão política do presidente em exercício Aureliano Chaves. A UHE Machadinho foi postergada como prioridade, mas continuou a integrar o projeto global. Nos finais dos anos 1980, a Eletrosul já desenhava uma alternativa para viabilizar Machadinho, através do deslocamento do eixo da barragem à montante do Rio Apuaê. Com esta iniciativa, os técnicos da Eletrosul eliminavam como potencialmente atingidos a população do distrito de Carlos Gomes, hoje município, e também os índios da AI. Ligeiro. É preciso ressaltar que foi exatamente a população de Carlos Gomes que, à época, melhor se organizou em protesto contra a construção da UHE de Machadinho12. Recentemente (1996), a Eletrosul deu andamento à formação de um consórcio privado para a viabilização da UHE Machadinho. Esta UHE terá uma potência instalada de 1140 MW. A geração anual média será de 4.433 GWh. O total do investimento é da ordem de US$ 700 milhões, resultando o custo da energia gerada em US$ 28,00 MWh. O custo de instalação é de US$ 615,00 KW. A área total de inundação deverá ser de 567 km 2. A área do reservatório será de 79 km2. A população afetada é de 1.534 famílias, envolvendo 4.400 pessoas e 1.080 propriedades13. As cotas de participação das empresas consorciadas são as seguintes: Eletrosul, 16,94%; Alcoa Alumínio S.A., 19,72%; Camargo Corrêa lndustrial, 4,63%; Companhia Brasileira de Alumínio — CBA, 9,03%; Indústrias Votorantim, 7,87%; Companhia de Cimento Portland Rio Branco, 7,87%; Valesul Alumínio S.A., 7,28%; Inepar S.A. Indústria e Comércio, 2,89%; Departamento Municipal de Eletricidade — DME, 2,40%; Companhia Paranaense de Energia — Copel, 4,31%; Centrais Elétricas de Santa Catarina S.A. — Celesc, 12,15%; Companhia Estadual Energia Elétrica — CEEE, 4,85%14. Desde a retomada das negociações para a implementação do projeto da UH Machadinho, em janeiro de 1996, ocorreram duas reuniões, objetivando a discussão das questões socioambientais. Apesar das controvérsias existentes protagonizadas por lideranças 12
VIANNA (1992). Dados obtidos através de entrevista na Eletrosul em 14 de setembro de 1997. 14 Eletrosul. Contrato de Constituição do Consórcio Machadinho. Dezembro de 1996. 13
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locais e a CRAB, a Eletrosul obteve do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) a licença de instalação que permitiu o início desta UHE. ENERGIA
ELÉTRICA NA
REGIÃO SUL
A realidade socioeconômica dos Estados do Sul não pode ser compreendida sem a existência de um eficaz sistema de produção e de distribuição de energia elétrica. Este sistema começou com as iniciativas essencialmente locais de alguns pioneiros. Depois, passou a atrair os interesses de empresas e de capitais estrangeiros, que aproveitavam a flexibilidade permitida pela legislação, essencialmente municipal e estadual. Com o passar do tempo, o governo central começou a intervir diretamente nesse estratégico setor da economia, criando uma legislação reguladora das concessões e, adiante, no cenário de políticas centralizadoras, implantando o Ministério de Minas e Energia e a Eletrobrás. No âmbito dos Estados, surgiram as empresas estaduais de energia elétrica, que assumiram a hercúlea tarefa de implantar sistemas de distribuição integrados nos espaços urbanos e rurais, além de fazerem investimentos também na área da geração. Foi assim que, a partir dos anos 1960, a energia elétrica começou a ser disponibilizada de maneira crescente nos Estados do Sul. Essa infra-estrutura começou a garantir a expansão econômica, em todos os seus segmentos. Claro que estamos falando de um processo no qual nem tudo ocorreu de forma harmônica e igualitária. A eletrificação rural, por exemplo, só foi considerada prioritária muito mais tarde. De outra parte, na implantação dos primeiros projetos hidrelétricos e termelétricos de maior porte, não foi dada maior atenção às suas conseqüências negativas, especialmente em termos sociais e ambientais. Os denominados “alagados” pela implantação da UHE Passo Real, no Rio Grande do Sul, nos anos 1960, exemplificam bem a questão. As legítimas reclamações dos atingidos pela formação do lago dessa hidrelétrica foram consideradas equivocadas, pois tratava-se de um projeto de interesse do Estado. O mesmo aconteceu com os expropriados pela implantação da Itaipu binacional. Os planos de reassentamento | 96 |
das populações atingidas e a legislação de proteção ambiental surgiram bem mais recentemente, e ainda não estão totalmente assimilados pelas empresas estatais e privadas do setor elétrico. Nesse sentido, a formulação do Projeto Uruguai pela Eletrosul, nos finais dos anos 1970, teve um papel pedagógico. De um lado, pela primeira vez se desenhou o aproveitamento integral do potencial energético de uma bacia hidrográfica. De outro, motivou o surgimento da Comissão Regional de Atingidos por Barragens (CRAB), que estabeleceu novos parâmetros de organização da população afetada e de encaminhamento de suas reivindicações. Deve-se considerar que a implantação de projetos hidrelétricos implica a consideração da existência de múltiplos atores sociais e de diferentes interesses políticos, econômicos e empresariais. Não se trata só de desafios de Engenharia, tampouco do domínio de novas tecnologias. Cada projeto tem sempre sua especificidade. Mas, em comum, todos apresentam problemas de intervenção na natureza e na vida das populações locais ribeirinhas. Tais constatações são hoje reconhecidas internacionalmente, e necessitam ser cada vez mais internalizadas por todos quantos têm participação nos processos de tomada de decisão referente à implantação de novos empreendimentos. Não basta pensar os projetos hidrelétricos como de interesse da melhoria da qualidade de vida da maioria da população de um Estado ou de uma região. É preciso assegurar àqueles que são prejudicados por tais projetos, devido à desapropriação de suas propriedades, por seu reassentamento forçado, por perda de empregos e de relações de vizinhança, entre outros efeitos negativos, que tenham efetiva oportunidade de reconstituírem suas condições de vida em termos socioculturais e econômicos, O mesmo vale para as questões ambientais, que têm tido normalmente um tratamento superficial e não plenamente satisfatório. Um bom exemplo é a falta de solução adequada até o momento para garantir a circulação das espécies de peixes que necessitam subir os rios para realizar a desova, a conhecida piracema. É necessário, pois, ter clareza que os projetos hidrelétricos que tanto têm permitido a expansão econômica da sociedade como um todo também têm faces sombrias que necessitam permanente atenção e monitoramento. | 97 |
A Região Sul do Brasil, formada pelos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio grande do Sul, tem uma área de 577.214 km², distribuída em 1.159 municípios. Sua população, pelo censo de 2000, era de 25.089.783 habitantes, dos quais 80,94% vivem em áreas urbanas. O crescimento populacional da região foi acentuado: em 1900, contava com 1.796.495 habitantes, eqüivalendo a 10,30% da população do País. Em 1940, o número de habitantes havia saltado para 5.735.305; em 1960, atingiu 11.892.107; em 1980, chegava aos 19.380.126 de residentes. Em 2000, os sulistas representavam cerca de 14,79% da população total do Brasil. No cenário nacional, a região é reconhecida por suas potencialidades econômicas. Em 1998, o Produto Interno Bruto (PIB) atingiu 159.679 bilhões de reais, o segundo maior do País. A renda per capita anual, no mesmo ano, foi de R$ 6.611,00. No ano de 1999, havia na Região Sul cerca de 984.583 empresas, representando 23,5% do total existente no País. O número de estabelecimentos rurais, em 1995, era de 1.003.180. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais elevado do Brasil, em 1996, era o do Rio Grande do Sul, seguido de perto por Santa Catarina e pelo Paraná, revelando condições sanitárias e expectativas de vida bastante razoáveis. Contando com expressiva diversidade étnica, com diferentes tradições culturais, a Região Sul possui recursos naturais de importância, ressaltando-se o carvão mineral, o potencial de suas bacias hidrográficas, os recursos marinhos e florestais. É grande produtora de soja, milho e trigo; de papel e celulose; de frutas de clima temperado; e de café. Ocupa posição de destaque como produtora de laticínios, e de carnes de frangos e de suínos; e na produção de veículos, de motores elétricos, de máquinas agrícolas e industriais, de eletrodomésticos e de tecidos, além da prestação de serviços. No cenário das exportações nacionais, os Estados aparecem nas seguintes posições, em 1999: Rio Grande do Sul, US$ 4,998 bilhões; Paraná, US$ 3,932 bilhões; Santa Catarina, US$ 2,567 bilhões, que representaram em conjunto 23,9% das exportações do País. É neste contexto que se devem entender as diferentes iniciativas governamentais e privadas para dotar a Região com uma infra-estrutura de serviços, envolvendo | 98 |
eletrificação, estradas, portos, aeroportos e comunicações, bem como as crescentes pressões comunitárias para a sua permanente ampliação. É impossível, pois, pensar a Região Sul sem a existência dessa base material que é a energia elétrica, indispensável para a concretização dos mais diferentes projetos econômicos, sociais ou culturais, além de garantia de conforto e de bem-estar às populações dos conglomerados urbanos e rurais. Segundo dados do Anuário Estatístico do Brasil (IBGE, 1999), a capacidade nominal instalada das usinas de energia elétrica na Região Sul, em 1998, era de 8.506 MW. Desse total, 1.505 MW eram decorrentes de geração térmica. A geração hidráulica era predominante, atingindo 7.000 MW. A energia disponível era de 44.692 GWh, sobressaindo-se o Paraná com a disponibilidade de 32.482 GWh. Além de atender às necessidades internas, ocorre a transferência de significativa parcela da energia disponível para outras regiões do País, em particular para o Sudeste, através de grandes linhas de trasmissão. Neste cenário, destaca-se, pelo volume, a energia produzida na UHE Itaipu Binacional. No novo cenário das privatizações que estão em andamento no setor elétrico, cabe ressaltar que o potencial hidrelétrico da Região Sul está em fase final de aproveitamento. Os últimos projetos de importância estão sendo implantados nas bacias do Uruguai ( RS/SC) e do Tibagi (PR). Há disponível o potencial representado pelo carvão mineral, cujas jazidas são significativas para a geração térmica, desde que superado o problema ambiental. No contexto do aproveitamento do gás boliviano, há esforços governamentais para a implantação privada de termelétricas que consumiriam este combustível. Já está instalada a UTE Uruguaiana, de capital privado, aproveitando o gás originário da Argentina. Há também novas experiências de geração térmica por célula a combustível e da utilização da biomassa, além do aproveitamento das fontes de energia solar e eólica. A diversificação da matriz energética, pois, implica também o crescente investimento em pesquisas de fontes alternativas, além da conscientização da sociedade sobre questões como eficiência energética e proteção ambiental. Cabe ainda enfatizar o papel dos setores públicos envolvidos | 99 |
na questão energética, seja definindo políticas, seja decidindo sobre novos empreendimentos. A energia elétrica cada vez mais deve ser compreendida como um bem público, no qual as intervenções dos governos federal e estaduais, com ou sem a participação de segmentos privados, devem sempre visar ao interesse da sociedade. Este parece ser o maior desafio neste momento de mudança do modelo do setor elétrico. CONCLUINDO A decisão da Eletrosul de aproveitar o potencial energético da bacia do Uruguai, em seu trecho nacional, ocorreu num cenário de autoritarismo político (governo militar), e de planejamento centralizado e verticalizado. As populações potencialmente atingidas pelos empreendimentos eleitos como prioritários (Itá e Machadinho) mobilizaram-se através da CRAB e lograram abrir discussões com a Eletrosul. O grupo indígena aldeado na AI. Ligeiro (RS), desde o primeiro momento, reivindicou compensações pela perda de parte de suas terras, de benfeitorias e de parte da estrutura viária. Com o passar do tempo e a postergação continuada do início das obras, a percepção dos índios sobre os efeitos deletérios do projeto da UH ficou mais clara, e não poucos líderes se manifestaram desgostosos e contrários à sua implantação. A privatização do setor elétrico brasileiro, que está em marcha, reorientou as estratégias da Eletrosul para a implantação das UHs de Itá e Machadinho. Os consórcios que foram criados têm a participação de consumidoras que utilizam grandes blocos de energia elétrica, destacando-se empresas de alumínio e de cimento. No caso específico de Machadinho, a Eletrosul alterou o projeto inicial, deslocando o eixo da barragem à montante do Rio Apuaê, objetivando minimizar o número de atingidos, entre eles os indígenas. E na definição do projeto final, como também na formatação do Consórcio, não considerou mais os indígenas da AI. Ligeiro como potencialmente afetados. Em outras palavras, quase 20 anos depois de os índios terem tomado conhecimento | 100 |
do projeto da UH Machadinho; de terem assumido uma posição favorável ao projeto, desde que houvesse compensações significativas para o grupo; e terem, em diferentes momentos, manifestado à Eletrosul suas angústias pelo adiamento continuado do início das obras, a Eletrosul simplesmente os considera como “não mais potencialmente atingidos” e, portanto, não passíveis de quaisquer compensações pela implantação da UH. A realidade do processo de privatização do setor elétrico no cenário neoliberal aparece, assim, por inteiro. As noções de “direito difuso”, de “efeito global” e de “externalidade”, referidas no início do trabalho, não estão sendo consideradas tanto pelos burocratas da Eletrosul quanto pelos novos parceiros privados integrantes do consórcio que vai implantar a UH Machadinho. Tudo indica que, no cenário da privatização que atinge o setor elétrico brasileiro, haverá pouco espaço para discutir os direitos das populações afetadas. Ou seja, estamos diante de perspectivas de retrocesso perante as poucas conquistas obtidas durante o curto espaço de redemocratização do País. Por isto, impõe-se a obtenção de orientações claras do governo federal, através da adequada regulamentação, para que os projetos hidrelétricos estejam sujeitos à observância de uma legislação que, antes de tudo, considere os direitos de cidadania das populações atingidas, com destaque para as minorias étnicas e a transparência da tomada de decisões.
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AS
H I D R E L É T R I C A S , OS Í N D I O S E O
DIREITO
D
esde 1988, quando foi promulgada a nova Constituição Federal (CF), os povos indígenas tiveram garantido o reconhecimento dos “[...] direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (Art. 231). Também foram explicitados na Constituição o respeito à “diferença cultural e lingüística” e a “obrigatória consulta” aos interesses desses povos em caso de aproveitamento de recursos hídricos ou de exploração mineral em suas terras. Tais dispositivos, estabelecidos no Capítulo VII da CF, intitulado “Dos índios”, em seus artigos 231 e 232, entre outros, efetivamente significaram conquistas, pois ficaram delineadas as bases políticas e jurídicas das relações do Estado brasileiro com os diferentes povos indígenas localizados em seu território. Foi, portanto, a CF de 1988 que [...] projetou para o campo jurídico normas referentes ao reconhecimento da existência dos povos indígenas e definiu as précondições para a sua reprodução e continuidade. Ao reconhecer os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, a CF incorporou a tese da existência de relações entre os índios e essas terras anteriores à formação do Estado brasileiro” (PAIVA e SANTOS, 1994).
Conforme já dissemos em outro lugar (SANTOS, 1995), é importante lembrar que a CF foi elaborada e aprovada num contexto de redemocratização do País. Naquela oportunidade, lideranças indígenas de diferentes povos exerceram junto ao Originalmente apresentado no GT 17, Ambiente, População e Cultura/Grandes Projetos e Populações Locais, integrante da programação da XX Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em Salvador, BA, entre 14 e 18 de abril de 1996.
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Congresso Constituinte legítimas pressões reivindicando a explicitação de direitos que assegurassem sua continuidade como etnias. Essa luta esteve centrada no reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas por essas minorias. Diferentes segmentos da sociedade brasileira deram apoio a tais reivindicações, articulado ou não, através de organizações não-governamentais (ONGs) e associações científicas. Antropólogos, juristas, religiosos e indigenistas participaram ativamente deste processo. Assim, o art. 231 da CF explicitou, pela primeira vez, que [...] são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
De outra parte, foi garantido o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (parágrafo 2, art. 231 da CF). Ficou também explícito que [...]o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com a autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei (parágrafo 3).
Esta prévia audiência das comunidades indígenas afetadas por projetos hidrelétricos ou de exploração mineral, conforme já tivemos oportunidade de explicitar (op. cit, 1995, p.88),constituiuse numa inovação legislativa, destinada a assegurar a sua relativa autonomia. Trata-se do reconhecimento de que essas populações têm o poder de vetar tais projetos, ou seja, o Estado não pode simplesmente decidir e impor, como fazia até recentemente. É preciso lembrar, ainda, que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.” (parágrafo 2, art. 231) integram “os bens da União” (item XI, art. 20, da CF). Os índios, pois, não são proprietários das terras que ocupam no sentido que normalmente damos à propriedade. Eles não podem dispor dessas terras para a venda ou para garantir, por exemplo, uma transação comercial. | 104 |
Por isso mesmo, o parágrafo 4 do Art. 231 explicita que “[...] as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. E o parágrafo 5 do mesmo artigo estabelece que [...] é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. No parágrafo 6 do mesmo artigo, fica também explicitado que: [...] são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito de indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
Por fim, o Art. 232 explicita que “[...] os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. As Constituições estaduais promulgadas no ano seguinte (1989), particularmente dos Estados da Região Sul, como não poderiam deixar de ser, reafirmaram os dispositivos estabelecidos em favor dos povos indígenas, e comprometeram os governantes com o respeito e a valorização das diferenças culturais indígenas, bem como com programas de apoio destinados a garantir acesso dos índios à educação, aos sistemas de saúde e para o desenvolvimento de práticas econômicas que lhes garantissem a auto-sustentação. É preciso lembrar que, tornando-se o Brasil independente de Portugal, desde o primeiro projeto de Constituição, elaborado em 1823, já havia preocupações com a “catequese e a civilização “ dos índios (título XIII. art. 254). A Constituição que foi outorgada em 1824, porém, não fez menção aos indígenas. A questão voltou a ser discutida em 1834, com a adoção do Ato Institucional de 1834, quando se transferiu para as Assembléias Provinciais a competência | 105 |
para promover “[...] a catequese e a civilização do indígena e o estabelecimento de colônias” (art. 11, parágrafo 5). Com a Proclamação da República, surgiu uma proposta de Constituição, em 1890, que reconhecia a existência de povos indígenas e lhes assegurava um relacionamento centrado na proteção e na não violação de seus territórios. Por esta proposta, a República no Brasil seria organizada considerando a existência de dois tipos de Estados confederados: os Estados ocidentais brasileiros, que seriam formados pelas populações resultantes da fusão do branco com o índio e o negro; e os Estados americanos brasileiros, constituídos pelas “hordas” indígenas. Esta proposta não prosperou, e a Constituição aprovada em 1891, como a primeira da República, não fez também qualquer referência aos indígenas. Somente em 1934, com a elaboração de uma nova Constituição conseqüente da Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, aparece uma primeira referência aos deveres da União em relação aos índios. Explicitava esta Constituição que “[...] compete privativamente à União” legislar sobre a “[...] incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (Art. 5, XDC.m) e, adiante, no Art. 129, que: “Será respeitada a posse das terras dos silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. Com o Golpe de Estado promovido em 1937 por Getúlio Vargas, nova Constituição foi outorgada à nação. A íntegra do Art. 129, acima referido e integrante da Constituição de 1934, foi mantida. Em 1946, com a redemocratização do País, instala-se um Congresso Constituinte. Novas e interessantes discussões relativas ao relacionamento do Estado com os indígenas ocorreram. Apesar da participação nesse processo de forças políticas progressistas, prevaleceu a idéia da “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (Art. 5, XV, r). Contudo, no Art. 216, ficou, mais uma vez, reconhecido o respeito à “[...] posse dos indígenas sobre as terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não as transferirem”. A ditadura militar que se instalou no País em 1964 promoveu a outorga de uma nova Constituição (1967). Esta Constituição reafirmou o propósito da “[...] incorporação dos silvícolas na | 106 |
comunidade nacional” (Art. 8, XVII). Explicitou, também que as terras ocupadas pelos indígenas integram o Patrimônio da União (Art. 14). E, em seu Art. 186, ressaltou que: “É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam, e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”. O Ato Institucional nº l, de 1969, que promoveu alterações na Constituição de 1967, reafirmou a intenção do Estado na “[...] integração dos indígenas à comunhão nacional” e definiu, em seu Art. 198, que [...] as terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito de usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
O Estatuto do Índio, ainda em vigor (2007), foi aprovado através da Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1971. Por esta Lei, foi definido um conjunto de “Princípios”, “Definições”, “Direitos”, etc., considerados pelo legislador, à época, como de interesse dos indígenas. Regulamentou-se, assim, o Art. 198, da Emenda Constitucional de 1969. O Título III do Estatuto trata “Das Terras dos Índios”. Fica explicitado em seu Art. 24 que: O usufruto assegurado aos índios ou silvícolas compreende o direito à posse, o uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem assim ao produto da exploração econômica de tais riquezas naturais e utilidades.
E, a seguir, no parágrafo l deste Artigo, se esclarece que “[...] incluem-se, no usufruto, que se estende aos acessórios e seus acrescidos, o uso dos mananciais e das águas dos trechos das vias fluviais compreendidos nas terras ocupadas”. No Art. 20 deste mesmo Título, definem-se as condições em que a União poderá intervir nas terras indígenas, “sempre em caráter excepcional,” “se não houver solução alternativa” e dependendo a providência de Decreto do presidente da República. No item “d” do parágrafo l, diz-se que a intervenção pode ser decretada “[...] para a realização de obras públicas que interessam ao desenvolvimento nacional”. | 107 |
Efetivamente, foi com base nesse último dispositivo que, durante o regime militar, diferentes áreas indígenas acabaram objeto de projetos hidrelétricos, justificados como de interesse para o desenvolvimento nacional. Uma das primeiras discussões sobre esta questão ocorreu quando participamos da elaboração do relatório “Projeto Uruguai: os barramentos e os índios” (UFSC/Eletrosul/Funai, 1978). Naquela oportunidade, o dr. Caio Lustosa, a nosso pedido, estudou a questão da ocupação de terras indígenas por hidrelétricas na bacia do Rio Uruguai, explicitando uma interpretação que pretendia garantir aos indígenas a devida indenização, nos casos da irreversibilidade dos projetos. O parecer em causa, ao seu final, consignava: À justa e prévia indenização, peculiar aos casos corriqueiros de desapropriação, corresponde, em se tratando de subtrair os índios às suas terras, uma reparação sui-generis: “área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas”. Não há de se cogitar na espécie, de “quantum” indenizatório; sim de “quid” indenizatório. O que deve se viabilizar é uma sub-rogação real. E o que pretendeu o legislador, bem atento ao que representa para o índio a “sua terra”: a dos seus antepassados, suas lendas, seus mitos. Não hesitamos em vislumbrar que, pré-concebidamente, pretendeu-se obstaculizar, ao máximo, o desenraizamento e o despojamento, mais ainda, de nosso índio, tão espoliado séculos afora (p. 61).
Nos anos 1980, o processo de redemocratização do País ampliou esta discussão. A legislação estabelecida pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), a partir de 1986, obrigou o setor elétrico a rever suas práticas tradicionais relativas à implantação dos projetos hidrelétricos. Em 1987, a Eletrobrás criou um Comitê Consultivo de Meio Ambiente (CCMA) e convidou para integrá-lo um grupo de cientistas ligados às áreas ambiental, jurídica e antropológica. Depois, fez instalar o Comitê de Meio Ambiente do Setor Elétrico (Comase), que [...] articulava as diversas empresas subsidiárias ou concessionárias com vistas à implementação de estratégias que viessem permitir a melhor compreensão das questões socioambientais de interesse do setor elétrico” (PAIVA e SANTOS, 1994). | 108 |
Paralelamente, a Eletrobrás instalou um Departamento de Meio Ambiente e estimulou as demais empresas do setor elétrico para que também criassem setores voltados para o trato da interface socioambiental dos projetos hidrelétricos, recrutando e treinando pessoal especializado. Diversas consultorias foram realizadas por recomentação do CCMA, e, especificamente, sobre o afetamento de indígenas por hidrelétricas, procedeu-se ao resgate das tragédias ocorridas, entre outras, em Tucuruí, Itaipu Balbina e Itaparica. Ficou claro, assim, que os povos indígenas estavam arcando com prejuízos sérios e, em muitos casos, irreparáveis. As discussões que aconteceram durante a Assembléia Nacional Constituinte, os lobbies praticados legitimamente por diferentes lideranças indígenas, cientistas, lideranças civis e ONGs, certamente permitiram a melhor compreensão de toda esta problemática. Entendeu-se que o sentido da terra e do território para os povos indígenas é bem diferente daquele que temos em nossa sociedade. Terra e território têm relação direta com identidade, ethos, cultura, organização social e economia dos diferentes grupos indígenas. Não é possível, assim, pensar a sobrevivência biológica e a reprodução cultural desses grupos sem que se lhes assegure, pelo menos, parte de suas terras de ocupação imemorial, deixando-as livres dos empreendimentos de interesse da nossa sociedade, a começar pelas hidrelétricas. Aliás, esta tem sido uma questão que tem obtido unanimidade na maioria dos seminárioss, e encontros acadêmicos e fóruns de ONGS, realizados no País nos últimos anos: as terras indígenas devem ser preservadas de todo e qualquer empreendimento “desenvolvimentista”. Lembramos como exemplo o documento “Política energética. Barragens e populações atingidas”, resultante de uma reunião que congregou antropólogos, sociólogos e outros profissionais na Universidade Federal de Santa Catarina em 25 de novembro de 1986, e as recomendações conseqüentes do Seminário Internacional “A questão energética na Amazônia: avaliação e perspectivas socioambientais”, realizado em Belém do Pará entre 12 e 15 de setembro de 1994. Um item apenas, referido no primeiro documento, é suficiente para esclarecer sobre | 109 |
a seriedade dos propósitos dos cientistas e sobre a profundidade das suas reflexões, pois destaca: “A relevância e o significado das perdas dos níveis sócio-organizativos e culturais, que no caso das populações indígenas implica na extinção de experiências civilizatórias alternas que integram o patrimônio da humanidade”. Atualmente, está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº. 2.057/91, que trata do Estatuto das Sociedades Indígenas. Uma Comissão Especial da Câmara de Deputados aprovou, em junho de 1994, um projeto substitutivo, cujo relator foi o deputado Luciano Pizzatto. A mudança de governo e de legislatura (janeiro/95), e divergentes opiniões e interesses praticamente paralisaram esta tramitação. O ministro da Justiça, Nelson Jobim, promoveu consulta aos diferentes Ministérios sobre itens específicos do Estatuto, admitindo a aceitação de emendas substitutivas. No momento (janeiro/96), a Funai realizava um esforço para avaliar as propostas ministeriais mais significativas com a intenção de encaminhá-las, através de exposição da Presidência da República, ao Senado. O objetivo seria obter a aprovação final, pelo Congresso, da nova proposta de Estatuto durante este ano. É oportuno lembrar que a nova proposta de Estatuto do Índio começou a ser discutida e formulada logo após a promulgação da nova Constituição (1988). Gradativamente, surgiram três propostas. Uma delas, formulada pela Funai; outra, pelo Núcleo de Direitos Indígenas (NDI); e a terceira, pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). As duas últimas propostas foram intensamente debatidas durante os anos 1990 e 91. Foram incontáveis as reuniões havidas entre lideranças indígenas, ONGs, antropólogos, advogados, religiosos, lideranças políticas e instituições governamentais. Ocorreram dificuldades para a harmonização de alguns pontos controversos entre as propostas originárias do CIMI e do NDI. O substitutivo formulado e aprovado pelo deputado Pizzatto pretendeu superar, pelo menos momentaneamente, tais divergências. Tem-se, agora, a expectativa de que as propostas de emendas sugeridas pelos diferentes órgãos do governo Fernando Henrique Cardoso — que | 110 |
sempre se disse comprometido com as minorias indígenas1 — permitam tanto o refinamento desse texto legal, como a sua aprovação final. O novo Estatuto objetiva regular a situação jurídica dos povos indígenas, com o “[...] propósito de proteger e fazer respeitar sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e todos os seus bens” (Art. l). No Capítulo “Dos Recursos Hídricos”, diz: Art. 101 — O aproveitamento de recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, em terras indígenas deverá ser precedido de autorização do Congresso Nacional, observadas as mesmas condições e o procedimento estabelecidos para a mineração em terras indígenas, através dos órgãos federais responsáveis, especialmente no tocante à elaboração de laudo antropológico e relatórios de impacto ambiental, ao processo licitatório e sua subordinação a contrato escrito entre a empresa interessada, pública ou privada, e a comunidade indígena. Art. 102 — Aplicar-se-á ao pagamento de comissão às comunidades indígenas pelo aproveitamento dos recursos hídricos ou seus potenciais energéticos, no que couber, o disposto nos arts. 84 e 85 desta lei. Art. 103 — Quando o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas implicar a perda da ocupação, do domínio ou posse da terra pelas comunidades indígenas, o Poder Público é obrigado a ressarcir as comunidades afetadas com novas terras de igual tamanho, qualidade e valor ecológico, e a indenizá-las pelos impactos sofridos. Parágrafo único. Quando a perda for de parte da área indígena, a reposição será em terras contíguas às remanescentes.
É oportuno, pois, destacar que o Título V do Estatuto trata “Do Aproveitamento dos Recursos Naturais Minerais, Hídricos e Florestais”, e no Art. 79, há o destaque de que as atividades de 1
A controvérsia foi aberta pelo ministro da Justiça, Nelson Jobim, sobre a inconstitucionalidade do Decreto 22/91. Editado pelo governo Collor com o objetivo de regulamentar os procedimentos administrativos para a demarcação das terras indígenas, e a conseqüente assinatura pelo presidente Fernando Henrique, em 8/1/ 96, do Decreto 1.775 abriram um enorme campo de discussão sobre as reais intenções e compromissos do governo FHC com os povos indígenas. A reação das lideranças indígenas, de ONGs, de indigenistas e antropólogos, neste momento, dá uma idéia da dimensão do problema criado pelo ministro Jobim, ao, intransigentemente, argumentar a necessidade de albergar o chamado “contraditório” no processo demarcatório.
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pesquisa e lavra “reger-se-ão pelo disposto nesta lei e, no que couber, pelo Código de Mineração e pela legislação ambiental”. No Art. 80, enfatiza-se que a pesquisa e a lavra de recursos minerais em terras indígenas só podem ser realizadas mediante autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, sendolhes asseguradas participação nos resultados da lavra”. Os artigos 82 e 83 e seus parágrafos tratam em detalhe da exploração mineral, sempre referindo “à proteção dos direitos e interesses da comunidade indígena afetada”. O Art. 84 adianta que As condições financeiras referidas no artigo anterior incluem o pagamento às comunidades indígenas afetadas de: I - renda pela ocupação do solo; II- participação nos resultados da lavra.
Seguem-se três parágrafos normatizando a participação da comunidade indígena nos resultados da exploração mineral. A seguir, no Art. 85 e parágrafos, trata-se da normalização do uso dos recursos decorrentes da exploração mineral por parte das comunidades indígenas, ressaltando-se, no parágrafo l, que Caberá à comunidade indígena administrar as receitas de que trata este artigo, podendo assessorar-se livremente para elaboração do plano de aplicação referido no caput, cuja implementação será acompanhada pelo órgão indigenista federal.
Detalham-se nos artigos 86 até 100, de forma minuciosa, diferentes procedimentos que regulam a ação dos órgãos de governo e de empresas mineradoras nos processos de habilitação e de implantação de projetos para a exploração de recursos minerais em terras indígenas. Percebe-se, assim, a intenção do legislador quando, ao tratar, no Capítulo II, dos Recursos Hídricos, ter enfatizado no caput do artigo 101 que o [...] aproveitamento dos recursos hídricos [...] em terras indígenas deverá ser precedido de autorização do Congresso Nacional, observadas as mesmas condições e o procedimento estabelecidos para a mineração em terras indígenas2. 2
É conveniente observar que, através da Lei Complementar n° 59, de 1/10/91, o governo | 112 |
Conclui-se, pois, que o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas está sujeito à observância de regras bem definidas, expressas tanto na Constituição Federal, e reafirmadas nas Constituições Estaduais, como no Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 19/12/1973), ainda em vigor. O novo Estatuto das Sociedades Indígenas, em tramitação no Congresso Nacional, por sua vez, articula e detalha esta questão no Título V, quando focaliza o “[...] aproveitamento dos recursos naturais minerais, hídricos e florestais”. Embora ainda não aprovado, o novo estatuto reenfatiza os princípios definidos na Constituição Federal, destacando que, em qualquer hipótese, o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas depende da anuência da comunidade afetada e da autorização do Congresso Nacional.
do Paraná dispôs sobre a repartição de 5% do ICMS aos municípios com mananciais de abastecimento e unidades de conservação ambiental. Trata-se de um royaltie ecológico, que permite compensar e estimular os municípios que têm enquistado em seus territórios terras indígenas, para que recebam recursos específicos, o que permite o desenvolvimento de programas em favor dos índios.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 2057, de 1991, Estatuto das Sociedades Indígenas. Aprovado por Comissão Especial em 29/6/94. Brasília, DF, 1994. FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Legislação. Brasília, DF, 1979. GOVERNO DO PARANÁ. Lei Complementar 59. Curitiba, 1º de outubro de 1991. PAIVA, Eunice e SANTOS, Sílvio Coelho dos. Os povos indígenas e o Setor Elétrico. In:___ Informativo Comase. Rio de Janeiro: Eletrobrás, Ano l, n.3, agosto de 1994, p.6. COMASE, Eletrobrás. A UHE de Cotingo e a questão indígena: relatório apresentado ao CCMA. Rio de Janeiro: Eletrobrás, 1994. Dez./1994. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Auriverde, 1988. RICARDO, Beto e MARÉS, Carlos. Decreto do medo. São Paulo: Jornal Folha de São Paulo, Tendência e debates. p. 1-3. maio/1996. SANTOS, Sílvio Coelho dos. Os direitos dos indígenas no Brasil. In:___SILVA, Aracy L. & GRÜPIONI, Luiz Doniseti (Org.) A temática indígena na escola. Brasília. DF: MEC/MARI/Unesco, 1995. p.87-105. ___. Povos indígenas e a Constituinte. Porto Alegre: Movimento/UFSC, 1989. UFSC/ ELETROSUL/ FUNAI. Projeto Uruguai. Os barramentos e os índios. Relatórios. Florianópolis, 1978.
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MASSACRE “
T
em quase cinqüenta anos que eu moro aqui, moço, e nesse tempo os índios mataram um bocado de gente. Mataram o Balduíno. Mataram o pai do meu tio. Mataram dois imigrantes. Feriram dois ou três brasileiros e um colono. Um dia, ainda no claro, roubaram uma roça de milho de um homem que morava aqui perto. Depois disso, se não fosse alguém atrás deles, eles fariam o que quisessem. Então fomos, eu e o Zé Domingo. Mas mandados pela Justiça. Pra espantar os índios com a boca da arma.” Quem me contava o episódio era um caboclo, Ireno Pinheiro, baixo, cerca de 70 anos, pés no chão, calça remendada, chapéu de palha, camisa de listras. Aparentemente, uma pessoa comum, pobre como tantos outros moradores da encosta da Serra Geral, uma zona de acesso difícil e imprópria tanto para a agricultura como para a criação. Na verdade, porém, por trás da aparência simples, diante de mim estava o único homem que consegui localizar no Sul do Brasil auto-identificado como caçador de índios ou bugreiro, como são geralmente conhecidos tais indivíduos na região. Estimulado por minha atenção, Ireno Pinheiro continuou sua narrativa: “Chegamos perto do acampamento dos índios numa hora feia. Era trovoada e relâmpago que não acabava mais, uma barulhada e um escurão danado. Nós tava tão perto que podia escutar eles falar. Eles tavam reunidos em torno de um fogo, na boca de uma gruta. Nós, por cima, deitados de comprido. Esticando o braço, quase dava para encostar o cano da Winchester na cabeça do mais
Publicado em: Revista do Homem, São Paulo: Abril, 1976. p. 92-94. Ano 1, n. 9 Recebeu o prêmio Abril de 1976 como a melhor entrevista.
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próximo. Aí eu disse pró Zé Domingo: espera eu dar a volta pelo outro lado pra começar o serviço. Assim fizemos. Tomei meu posto, dei sinal pro Zé, e começamos a festa. Pam, pam, pam! Ah, uma coivara com bastante taquara não estourava tanto quanto ali. Eu tava só com a Winchester e o facão, mas eu atirava assim meio bem, segurava uma paca correndo a uns duzentos metros. Sozinho, gastei pra mais de vinte balas. O falecido Zé, não sei quanto gastou. Nem sei quantos morreram. E olha que a gente era só dois, já não era como antigamente, quando os companheiros da tropa eram quinze, vinte...”. Ireno Pinheiro certamente não foi o último caçador de bugres do Brasil, mas era sem dúvida o último do lugar Santa Rosa de Lima, um vilarejo miserável de casas escassas, onde fui parar seguindo uma confusa corrente de boatos. Até a casa de Ireno, eu levara cinco horas, vencendo a pé os 15 quilômetros que a separavam da sede do município. O jipe fora abandonado, inútil, no meio do caminho, à margem de um riacho que engrossara ameaçadoramente, alimentado por uma chuva fora de época. Espicaçando um guia preguiçoso que me fora indicado pelo prefeito, fiz questão de prosseguir. Afinal, durante anos eu vinha coletando informações sobre as matanças de índios no Sul do País, matanças promovidas pelas companhias de colonização para limpar a terra, a fim de negociá-la com os imigrantes que chegavam da Europa atraídos por mil promessas de riqueza imediata. E desde o momento em que eu recebera informações sobre a existência de Ireno Pinheiro, andava obcecado por encontrá-lo. Mais que uma testemunha, Ireno era um ativo participante do fenômeno que eu estudava. E agora, finalmente, lá estava ele, o rosto redondo queimado pelo Sol e pelo vento frio da serra, e onde se destacava, no lugar do olho esquerdo, uma cicatriz que purgava, resultado da explosão do ouvido de uma espingarda de carregar pela boca durante uma caçada, como ele veio a me explicar mais tarde. Ao saber que eu me interessava por objetos índios, interrompera a narrativa e dirigira-se para o interior de sua casa, de onde voltara com um saco nas mãos. Nesse trajeto, notei que usava nas costas, presa à cinta, uma garrucha de dois canos. | 115 |
“Tenho aqui algumas coisas que os índios fizeram. Antigamente, havia muito por aí, isso aqui era um matão de fazer medo. Só vim pra cá com minha mulher, porque a gente tinha que arrumar um pedacinho de terra, e nesse tempo...” Divagava, tornava-se muito dificil arrancar informações que realmente me interessavam, mas resolvi não interromper. “Em cima da serra, só tinha lugar para gente de dinheiro, gente que tinha léguas e léguas de campo e pinheiral. Não sendo dono, pra morar lá tinha que ser como peão. Unha e carne com o patrão. Rio abaixo, era só colono. Brasileiro pobre tinha era que se meter nas brenhas, onde tavam os índios. Eu, por mim, já gostava da vida do mato, das caçadas, já tinha andado por essas bandas com meu pai, meu tio. Daí que arrumei mulher e vim botar meu rancho aqui. Não tivemos família. A mulher morreu faz mais de vinte anos. Mordida de cobra. Eu fui ficando, peguei gosto daqui, assim, sozinho...” Suas pausas me preocupavam. Parecia querer dar o assunto por encerrado, olhava em volta incomodado, atento a algum ruído no mato que eu não era capaz de ouvir. Voltei à carga. E os índios, Ireno? Como foram seus primeiros contatos com eles? “De princípio, vez ou outra eu via algum vestígio. Um barulho. Um assobio. Mas ver, não via. Só sabia que eles andavam por aí. Mas, aí, um dia, fui atirar num macuco no poleiro, pertinho de casa. Disse pra mulher: ‘Faz um fogo, que eu vou buscar o macuco. Peguei a espingarda e fui, já sabia do poleiro dele fazia dias. Era tardinha. Vi o bicho, fiz a mira devagarzinho e atirei: pam! Senti o estouro no chão. Arriei a espingarda e fui ajuntar, mas onde? Procurei, procurei, e nada. Pensei que o cachorro tivesse ajuntado. Gritei pra mulher, perguntei se o cachorro tava solto. Não tava. Aí escutei um assobio, que nem macaco, logo em cima da grota. Vi que o malvado do bugre é que tinha pego. Arreneguei. Gritei: ‘Vem cá, filho do cão!’. Outro assobio, e mais outro. Ah, mandei chumbo na direção e vim pra casa. De noite, foi um inferno... O que choveu de pedra no rancho! E eu mandando tiro. Mais pedra, mais tiro, assim a noite toda. De madrugada, houve um berreiro enorme do lado deles, mas nem sei se acertei algum, eles sumiram. Aí jurei que índio nenhum ia me tirar dali.” | 116 |
“Peguei a mula e fui com a mulher até Santa Rosa. Lá é que soube da morte do irmão do meu tio, pela mão dos bugres, dois dias antes. Parece que eram os mesmos, atiraram no falecido Zé Bráulio de flecha, primeiro no braço e depois na barriga. Nessa, ele caiu, e os bugres vieram buscar a flecha. Aquilo tem farpa, gancho, foi puxar, e os bofes saltaram fora, coitado... Ah, fiquei danado. Falei, então, com o chefe da colônia e com o delegado. Eles me deram uma Winchester 44, uma garrucha e munição, e disseram pra eu não sair de onde tava. Se os índios voltassem, era pra afugentar eles, assim não assustavam mais os colonos mais embaixo nem roubavam as roças. Foi aí, isso antes da Revolução de 30, que mandei buscar o Zé Domingo pra morar comigo. Ele era meu parente, e juntos começamos a socorrer os colonos quando os índios apareciam. Pra isso, agente estava sob ordem, os empregados da companhia chamavam a gente. Ou, então, o delegado. Mas a gente só fazia aquele espanto, não fazia outro mal. Tinha gente que pegava uma bugrinha e judiava. Nós, não. Além do que, no nosso tempo, eles já eram poucos, o grosso já tinha acabado com os ataques das tropas montadas pelo governo e pelas companhias. Até meu pai teve numa dessas...” Orgulhoso do passado da família, agora Ireno fala sem parar, emendando casos, mas sempre atento aos ruídos no mato. “Numa batida que o meu pai deu com a turma do Martinho bugreiro, tinha mais uns trinta, metidos ali pela Vargem Grande, onde tinham sumido umas reses de um colono. Os índios andavam por ali, mas o que eles queriam era o acampamento maior. No fim de uma semana de marcha, o Martinho fez a tropa parar e seguiu à frente, sozinho. De tardinha, voltou, sabendo ao certo do acampamento. Pela madrugada, mandou atacar. O pai contava que o berreiro era dos infernos. As crianças se agarravam com as mães. Os homens, atordoados, não conseguiam sair do lugar. A turma não tinha nem tempo de carregar as armas de novo. Iam de facão mesmo, subindo e descendo, cortando. O pai lembra de uma meninota que saiu correndo pro mato, quando o primo dele agarrou ela pelos cabelos e desceu o facão. O aço desceu pelo ombro até as partes. Cortou que nem bananeira. Depois, tacaram fogo nos ranchos. Sobraram só uma mulher e | 117 |
três crianças, mas a mulher morreu logo, diz que de judiaria que fizeram com ela. As crianças, mandaram pra capital, o governador batizou elas na catedral, foi uma festa daquelas, o Martinho de herói e tal... Agora, as crianças, não sei que fim tiveram. Aqui na serra, conheci muito fazendeiro que pegava no laço os índios pequenos. Os que não morreram logo não deram em nada. Viviam bêbados, nenhum deles casou, todos morreram cedo. São uma gente ruim, esses desgraçados.” Acaba o caso com ódio, os olhos varando o mato. Perguntolhe, então, de outros bugreiros, tento arrancar-lhe o máximo da memória. “O Martinho limpou a região até pros lados de Curitiba. Mas pro sul, pro Araranguá e fronteira com o Rio Grande, já tinha outros. Era o Natal Coral, o Maneco Angelo, o Veríssimo. No Rio Grande, mesmo, não conheci ninguém, mas sei que tinha. E pro lado de São Paulo, soube de gente de uma estrada de ferro que passava os domingos passarinhando os bugres. Muita gente começou cedo e ganhou muito dinheiro. Besteira foi o que fez o Natal Coral. Quando voltava de uma batida, trazia as orelhas dos índios na salmoura, só pro riso. Mas depois os colonos só queriam pagar com a prova das orelhas, e ele se aborreceu, parou até, que os índios já estavam ficando cada vez mais raros.” Já começa a escurecer, o guia me cutuca para que voltemos enquanto há luz, mas não ouso interromper Ireno, truncar o seu depoimento. “Teve um alemão aqui, o Wandresen, que cismou de entrar no mato atrás dos bugres, queria também a sua orelha pra provar sua macheza. Matou um, mas no que tava tirando a orelha, pimba!, pulou outro bugre por cima dele. Rolaram, o Wandresen se defendeu na faca, mas saiu ferido. Depois dessa, ficou com tanto medo da vingança dos outros índios, que até se mudou pra cidade. Fez bem, porque os índios vingam mesmo. Eu, por mim, não ando nunca desarmado, sei que ainda tem uns deles por aí, tou sempre preparado. Pedi ao prefeito pra me arrumar uma garrucha de cano grosso. Fizeram esta aqui. É cano de espingarda 28, carrego sempre bem socada, cada cano até o meio. Já enxergo pouco do olho que tenho, por isso prefiro chumbo grosso. Assim, | 118 |
não tem como errar. Não se pode facilitar, os bugres vingam, são gente como nós, decerto também têm paixão pela família. A gente assusta, assusta eles, mas algum sempre sobra, não esquece. Aí, se facilitar, ele mata mesmo.” A escuridão em torno de nós vai aumentando aos poucos, o guia ameaça me abandonar, caso não voltemos imediatamente. Contrariado, acabo finalmente concordando, mesmo porque Ireno me parece cada vez mais preocupado com o ruído que cresce do mato à nossa volta e endossa a urgência da nossa partida. Na despedida, ele me estende a mão calosa e parece pedir desculpas por sua situação atual, a casinha de tábuas mambembes, onde mal cabe o seu catre. “O senhor devia ter conhecido isso aqui tempos atrás, quando tudo era mato e não faltava caça. Agora, tudo é colônia, só ficou a serra. A caça é pouca. Tudo é difícil. Os índios já não metem mais medo, por isso ninguém precisa mais de mim. Pouca gente vem me visitar, e eu até já perdi o jeito de contar os casos, de falar. Mas esse sertão aqui, quem limpou fui eu, Ireno Pinheiro. O pessoal sabe disso. O prefeito sabe. Os índios também. Por isso, desculpe se não lhe acompanho até o rio. Não posso facilitar.”
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F RIC ,
A
L IGA P ATRIÓTICA
E OS ÍNDIOS
A
ocupação dos vales litorâneos em Santa Catarina por imigrantes europeus, no século XIX, foi articulada num contexto de afirmação de um Estado nacional que tivesse por base uma população “branca”, se não em termos numéricos, mas certamente em termos econômicos e ideológicos. Sendo assim, a idéia de “vazio demográfico” dominou as ações governamentais referentes às negociações das terras destinadas à colonização. Os Xokleng eram os tradicionais ocupantes das terras localizadas entre o litoral e a borda do planalto, desde a altura de Paranaguá até quase Porto Alegre. Este povo indígena estava dividido em diversos subgrupos, e tinha na caça e na coleta a base de sua reprodução biológica e sociocultural. A ocupação dos Campos de Lages e Curitibanos por criadores de gado, no século XVIII, já havia tirado dos indígenas largas parcelas de seu território tradicional e, em conseqüência, as fontes de recursos protéicos representadas pelo pinhão e a fauna associada. A Mata Atlântica, que cobria as serras e os vales litorâneos, ficou, assim, como último refúgio para esses índios. Com o estabelecimento dos núcleos coloniais, a partir de São Pedro de Alcântara (1829), inicia-se um novo ciclo de tomada aos indígenas de seu território tradicional. Agora, não havia mais para onde recuar. O litoral e o planalto estavam ocupados. No Rio Grande do Sul, a colonização desenvolvia-se em direção às fronteiras com Santa Catarina. No Paraná, o mesmo processo avançava também em direção à Província catarinense. Os indígenas, portanto, estavam confinados. Publicado originalmente em: CONGRESSO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE SANTA CATARINA. Anais... 4 a 7 de setembro de 1996. Fpolis: IHG-SC, 1997. p. 704-714.
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Não é de estranhar, pois, que diversos atritos ocorressem entre os índios e os colonos. Ambos eram vítimas de um processo de tomada de decisões alheio aos seus interesses. Os colonos tiveram de descobrir que, na realidade, as terras que pretendiam dominar tinham como ocupantes um aguerrido grupo indígena. As reclamações dos colonos quanto à sua insegurança teve como resposta governamental a criação de uma “patrulha de pedestres” para proteger as colônias. Mas a efetiva “limpeza do sertão” foi encomendada às “tropas de bugreiros”, que dizimaram a maior parte dos Xokleng. Na medida em que as colônias se afirmavam e se expandiam, um quadro cada vez mais trágico se instalava no sertão. O agravamento desta situação, no início do século XX, provocou diferentes manifestações de protestos, seja da imprensa, seja de uns poucos, porém, ativos, humanistas, livres-pensadores e maçons.
A LIGA PATRIÓTICA Em 4 de dezembro de 1906, foi fundada em Florianópolis a Liga Patriótica para a Catechese dos Silvícolas. A Liga era conseqüência de intenso esforço do então major-engenheiro Pedro Maria Trompowsky Taulois, positivista e maçom, para dar fim à violência contra os índios, tendo o apoio de um pequeno grupo de políticos, humanistas e intelectuais. Sua diretoria ficou assim constituída: Presidentes de Honra — Coronel Gustavo Richard (governador) e Abdon Baptista (vice-governador); Presidente: Raulino Horn; vice-presidente, Emílio Blum; Primeiro secretário: León Eugênio Lapagesse; Segundo secretário: Clementino Brito; Tesoureiro: José Pedro da Silva; Oradores: cônego Manfredo Leite e Henrique Valgas. A instalação pública da Liga ocorreu no Palácio Municipal, tendo na ocasião o cônego Manfredo Leite feito incisivo pronunciamento. Informa o Jornal A Reforma (6/12/1906) que Pedro Maria Trompowsky Taulois formulou uma proposta aos participantes, definindo os objetivos da “Liga” e comprometendo seus membros “para a efficaz catechese dos nossos silvícolas, | 121 |
demonstrando ser iníqua a pratica até agora seguida do extermínio do bugre”. Finalizava com um encaminhamento de organização da diretoria, que é bastante esclarecedor quanto aos fundamentos ideológicos que presidiam seus esforços, conforme vemos: A Liga será presidida por uma administração, cujos deveres serão discriminados em regulamento especial, não esquecida porém, a Mulher, a Providência do Lar, na phrase de A. Comte, a quem será confiada à missão da caridade, tributo que a “Liga” presta à Mulher na sua tríplice missão social de Filha, Esposa e Mãe.
Ainda segundo a mesma notícia, foi organizada uma Comissão de Propaganda envolvendo os jornais O Dia, Reforma, A Fé e O Ideal. Imediatamente, se iniciaram os trabalhos de divulgação dos objetivos da Liga. Em 22/12/1906, o Jornal Comercio de Joinville dava uma notícia sobre a sua fundação, destacando que “À Liga Patriótica ofereceram os Srs. Otero Gomes & C., de Porto Alegre, a quantia de 1:000$000 [um conto de réis] para auxílio de sua nobre missão”. Uma carta circular foi encaminhada para diferentes autoridades e líderes municipais. O Jornal Novidades, de Itajaí (10/ 3/1907), noticia o conteúdo desta mensagem, destacando que: Em nome desta Liga e mormente em nome dos princípios de humanidade, apelamos para os generosos sentimentos de V. Exa., no sentido de envidar todos os esforços para o fim de evitar o extermínio dos bugres que habitam as nossas selvas.
Em resposta a esta circular, ocorreram manifestações de apoio e de adesão que foram publicadas nos jornais nos primeiros meses de 1907. Quase simultaneamente, acentuaram-se as manifestações críticas àqueles que pretendiam a defesa dos indígenas. A polêmica criada permite-nos compreender tanto o quadro político e ideológico dominante como o esforço realizado pelo pequeno grupo que acreditava em outras formas de relacionamento entre brancos e índios1. Ainda na mesma circular, esclarecia-se: 1
Em 1890, os positivistas apresentaram uma proposta de Constituição para o Brasil, garantindo espaços territoriais para os povos indígenas que formariam um conjunto de “Estados Americanos Brazileiros confederados”. Esta proposta não prosperou.
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[...] o que a “liga” ardentemente deseja é que se estabeleça uma corrente de sympathia em favor do pobre silvícola brasileiro; que, em vez de acossá-lo por toda parte e obrigá-lo a passar uma vida de miséria no interior das matas, se lhe proporcione meios de catechese e civilização.
Neste mesmo início de ano (1907), publica-se em Curitiba um folheto de autoria de Pedro Trompowsky Taulois sob o título As matanças de bugres e o Urwaldsbote, onde o autor tece duras críticas à posição assumida pelo jornal que se editava em Blumenau em favor do extermínio indígena, além de fazer a defesa dos objetivos da Liga. Ainda no início de 1907, convidado pela Liga, através de Pedro Trompowsky Taulois, para “pacificar” os índios, circula em Florianópolis, Itajaí, Blumenau e Curitibanos o naturalista e viajante tcheco Albert Vojtech Fric2. É preciso destacar que a polêmica não era nova. Vieira da Rosa, em obra publicada em 1905 (p. 309), acusava: “E falavam das barbaridades, das depredações praticadas pelos silvícolas, censuram-n’os e perseguem-n’os a tiros de fuzil, mas não se lembram que assim procedendo tornam-se mais ferozes que os próprios índios”.
Também é preciso compreender as circunstâncias que trouxeram Fric a Santa Catarina. Tudo indica que Toulois havia se aproximado do positivismo ainda na Escola Militar. Aderiu com entusiasmo à Campanha Abolicionista e participou da Revolução Federalista, fiel ao governo de Floriano Peixoto, integrando a coluna que adentrou o Paraná por Itararé (TREVISA, 1980, p. 34). Engenheiro militar, fez carreira atingindo com a reforma, em 1923, o posto de generalde-brigada (arquivo IHGSC). Sabe-se, também, que em 1902 foi um dos fundadores da Loja Maçônica Ordem e Trabalho, em
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O “Apostolado Positivista do Brazil”, tendo “A princípio, a Ordem por baze, o Progresso por fim”, teve uma ação intensa em favor dos índios na República. Em 1894, por exemplo, o “Apostolado” publicava o livreto de J. Mariano de Oliveira Indígenas brazileiros. Fric é grafado corretamente com um pequeno “v” sobre a letra “c”, pronunciando-se “Fritch” (STAUFFER, 1960 p.169).
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Florianópolis 3. Em 1906, participou do Congresso do Livre Pensamento e Maçônico em Buenos Aires. Nesta ocasião, através de Dario Vellozo, outro humanista entusiasta da maçonaria que vivia em Curitiba, conheceu Albert V. Fric. Foi por iniciativa de Fric que os participantes do Congresso aprovaram moções favoráveis aos índios (TREVISAM, op. cit., p. 34). As teses positivistas dominaram o encontro, e Fric logrou passar para os presentes todo o quadro de violência e selvageria que dominava as relações entre brancos e índios na América do Sul, em especial, no Brasil. Como positivista e livre-pensador, Fric assumia posições logo tomadas como anticlericais. Segundo Trevisan (op. cit, p. 34) na Revista Acácia, editada pelo Instituto Neo-Pitagórico de Curitiba (1910, Tomo III,p. 273), há uma pequena biografia de autoria de Dario Vellozo sobre Pedro Maria Trompowsky Taulois, dizendo: “Em 1906, [...] após as resoluções do Congresso Maçônico de Buenos Aires, o ilustre engenheiro militar fundava em Florianópolis a Liga em prol dos índios. “Fric encontrava-se no Paraguai, quando recebeu de Taulois o convite para vir a Santa Catarina e assumir, em nome da Liga, as tarefas de “pacificação”. É de Fric o seguinte depoimento: Cheguei a esta capital cheio de entusiasmo, crendo encontrar aqui condições para romper o preconceito que se tem de que o índio é indomável, crendo encontrar aqui terra onde as sementes de humanismo e amor ao próximo, plantadas por meus amigos, haveriam de florescer e dar frutos que se reproduzissem em todo o Brasil, em toda a América do Sul. Fiquei um tanto desiludido, mas ainda não perdi a esperança de que estas idéias triunfarão (Cf. TREVISAN, op. cit., p. 34).
FRIC,
O
CONGRESSO
DE
AMERICANISTAS
EM
VIENA
E A CRIAÇÃO DO
SPI
Nascido em Praga em 1882, Fric chegou ao Brasil pela primeira vez em 1901. Havia interrompido na Escola Técnica Superior o 3
A Fé (12/12/1906) traz uma notícia que ilumina um pouco as relações entre a maçonaria e o clero catarinense. Diz a notícia: “Em função de sua nomeação para cônego [Manfredo Leite] na Catedral do Rio, Pedro M. Trompowsky Taulois e todos os membros da sede da maçonaria catharinense teceram louvores e felicitações pela mais estimada pessoa de quem se trata e o cargo obtido”.
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curso de Engenharia Civil, decidido que estava em viajar para a América do Sul. Segundo Trevisan (op. cit., p. 19), Fric referiu-se mais tarde a esta viagem dizendo: Em 1901, pelo mês de maio, cheguei pela primeira vez a este País (Brasil), a passeio, e cheguei como todo estrangeiro, cheio de idéias preconcebidas, considerando inferior tudo que não fosse de origem estrangeira e sem nenhum conhecimento da língua nativa. Entrei pelo sertão adentro, atravessando o Estado de São Paulo e descendo o Tietê, até o Mato Grosso.
Trevisan (op. cit., p. 19) informa ainda sobre esta viagem, dizendo que “ao fim de seis meses, em lastimável estado físico, retornou à casa de seu compatriota, em Vila Mariana, na capital paulista. Dali, outros amigos levaram-no até o porto de Santos, de onde regressou à Europa”. Fric realizou outras três viagens ao Brasil, percorreu outros países da América Sul, tomando-se um etnógrafo, naturalista, e viajante experimentado e conhecido. Diversos museus da Europa e Estados Unidos se interessaram por suas reproduções etnográficas. Foi um dos primeiros pesquisadores a fazer uso da máquina fotográfica para o registro etnográfico e tornou-se um conferencista de sucesso. A lista de suas obras é extensa, conforme Trevisan (op. cit., p. 20-21). Faleceu em 1944 em Praga. Foi na sua terceira viagem que Fric esteve em Santa Catarina. Recebeu da Liga Patriótica O título de “pacificador dos índios”. A seguir viajou de Florianópolis para Itajaí e Blumenau. A reação à sua presença, especialmente em Blumenau, foi enorme. O jornal Der UrwaIdsbote publicou diversos artigos e notas criticando Fric, seus objetivos e seus companheiros da Liga. O jornal Novidades (17/3/1907), de Itajaí, simpático à causa indígena, noticia: “No Max [nome de uma embarcação], vindo de Florianópolis, esteve nesta cidade o Sr. Alberto Fric. O Sr. Fric é representante do Museu Real Etnográfico de Berlim e assistente do Museu Etnográfico de “Freie und Haustadt”, Hamburgo. Além desses títulos que lemos no seu cartão de visita, tem o de pacificador dos índios de Santa Catarina. Nesse caráter o dr. Fric seguiu, no mesmo dia, para Blumenau. Os nossos votos são para que algum bem, em favor dos infelizes aborígines, resulte do seu empreendimento generoso e que se conserve sobranceiro às amarguras que há de encontrar em sua missão.
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Conforme já dissemos em outro lugar (1973, p. 124), “[...] o tratamento que recebeu em Blumenau foi o menos acolhedor possível”, levando-o a publicar no Novidades, em 24 de março, um artigo sobre a indiferença com que a população de Blumenau tratava a questão indígena. Fric viaja então para Palmas (PR) com o objetivo de obter o concurso de alguns índios Kaingang à tarefa que se propusera executar, a pacificação dos Xokleng. Resumia seu projeto, segundo Trevisan (op. cit., p. 36), da seguinte maneira: [...] garantir aos índios uma reserva suficiente, com possibilidade de sobreviverem, proibindo-se e punindo-se as caçadas, os negócios de escravos, e devolvendo-se as crianças capturadas aos seus pais, pois pai nenhum existe, mesmo índio, que não intente retirar seu filho da casa do inimigo, no caso de não ter conseguido vingar-se.
Com tal estratégia, apoiado pela Liga, conseguiu do governo estadual uma área de 30.000 ha, tidas como devolutas, no Alto Vale do Itajaí. Isto provocou a ira dos grupos interessados nos negócios da colonização. As manifestações contra seu projeto não ficaram apenas nos limites dos jornais. Segundo Trevisan (op. cit., p. 37), Fric foi dispensado de sua condição de enviado dos museus de Hamburgo e Berlim, tendo sofrido sério revés financeiro. Aborrecido com tais fatos, Fric não tentou mais concretizar a proposta de “pacificação “dos Xokleng. A Liga Patriótica também desapareceu do noticiário jornalístico nos meses seguintes. A luta de Fric, entretanto, prosseguiu. Foi no cenário do XVI Congresso Internacional de Americanistas, realizado em Viena, em 1908, que ele reapareceu apresentando um extenso trabalho sobre as iniqüidades que se praticavam contra os indígenas no Sul do Brasil, em nome da colonização e do “progresso”. Conforme já dissemos (1973 p. 118) e tendo como base Stauffer (1960, p. 169-172), Fric demonstrou que [...] no sul do Brasil a colonização se processava sobre os cadáveres de centenas de índios, mortos sem compaixão pelos bugreiros, atendendo os interesses de companhias de colonização, de comerciantes de terras e do governo. E finalizou, solicitando que o Congresso[...] protestasse contra estes atos de barbárie para que fosse tirada esta mancha da história moderna da conquista européia na América do Sul e dado um fim, para sempre, a esta caçada humana. | 126 |
As veementes declarações de Fric repercutiram na imprensa européia. Na Alemanha, alguns jornais (STAUFFER, 1960, p.172) chegaram a levantar a hipótese de que Fric estava tentando deter o fluxo de emigração para o Sul do Brasil. Interesses políticos da Alemanha diante do Império Austro-Húngaro contextualizavam a reação contra as denúncias de Fric. No Brasil, a questão tornou-se motivo de um amplo debate, quando o prof. Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, tentou refutar as declarações de Fric. Com efeito, em outubro de 1908, no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Ihering, quando fazia seu pronunciamento por ter sido eleito sócio honorário, prometeu falar na sessão seguinte sobre a situação dos índios no Sul do Brasil. Anteriormente, Ihering manifestara opinião sobre o indígena como “um frio objeto científico”. Nesses primeiros dias de outubro, circulou em São Paulo trabalho de sua autoria contendo referências bastante estereotipadas sobre os índios. Foi Sílvio de Almeida, intelectual nacionalista, que publicou no Estado de São Paulo, em 12 de outubro, um extenso artigo contestando Ihering. O texto de Ihering que mais alarmou Almeida era o seguinte: “[...]os actuais índios do Estado de São Paulo não representam um elemento de trabalho e de progresso”. Como também nos outros Estados do Brasil, não se pode esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados e, como os Caingangs selvagens, são um empecilho para a colonização das regiões do sertão que habitam, parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão, senão o seu extermínio (Cf. SANTOS, 1973, p.119, e STAUFFER, 1960, p.177).
O debate cresceu. Jornais, institutos de História e Geografia, museus, academias de ciência começaram a discutir sobre a vida e o destino do indígena. O papel do Estado como agente responsável pela proteção foi ressaltado. A discussão foi alimentada pela disposição de Ihering em afirmar e reafirmar suas posições antiindígenas. O nacionalismo embrionário da Velha República, inspirado no positivismo e apoiado na maçonaria, recolocava o indígena como objeto da responsabilidade do Estado. | 127 |
E foi Rondon, numa conferência, que objetivamente sintetizou: [...] Há vinte anos que trabalho no meio deles, e até hoje os tenho encontrado por toda parte de peito aberto aos nobres sentimentos da humanidade; de inteligência lúcida e pronta a apreender tudo quanto se lhes quer ensinar; invencíveis às fadigas do mais rude labutar; amigos constantes e fiéis dos que os tratam com bondade e justiça. Não preciso repetir o auxílio que eles prestaram [...] para emprender-se o quanto é injusta a acusação levantada contra eles de serem indolentes e inúteis [...] RONDON, referido por SANTOS, op.cit., p. 119-120).
Como conseqüência dessa discussão que se espalhou pelo País, e objetivando pôr um fím ao quadro de violência que se havia instalado contra os índios, o governo da República criou, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios4. O SPI teve forte inspiração positivista, e Rondon foi seu primeiro diretor. Diferentes grupos indígenas foram atraídos, nos anos imediatos, ao convívio com a sociedade nacional, entre eles os Xokleng de Santa Catarina. Os ideais de Fric, de Taulois e da Liga, afinal, prevaleceram.
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Foi efetivamente criado com a nominação de “Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais”, cuja sigla era SPILTN. __________ SANTOS, Sílvio Coelho dos. Índios e brancos no Sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Florianópolis: Edeme, 1973. Porto Alegre: Movimento, 2.ed. 1988. STAUFFER, David Hall. Origem e fundação do Serviço de Proteção aos Índios. In: Revista de História, n. 37 e seguintes. São Paulo, 1959. TAULOIS, Pedro Trompowsky. Carta de Palmas (Santa Catharina) ao dr. Alberto Fric. Florianópolis: Typ. da Livraria Moderna, 1907. TREVISAN, Edilberto. Vultos tchecos no Brasil e no Paraná. In: Boletim do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense, v. 37, ano 1980. Curitiba, 1980. VIEIRA DA ROSA, José. Chorografía de Santa Catharina. Florianópolis: Typ. da Livraria Moderna, 1905. Reforma; O Ideal; A Fé; O Dia; Novidades; O Pharol (Itajaí); Commercio (Joinville); Vanguarda (Campos Novos); Der Urwaldsbote (Blumenau); .
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FORMAÇÃO
UNIVERSITÁRIA E LIDERANÇAS INDÍGENAS NA REGIÃO SUL
O
desenvolvimento do ensino bilíngüe entre as populações Kaingang e Xokleng, a partir do anos 1970, associado ao incremento da presença das Igrejas Pentecostais e do Conselho Indigenista Missionário provocaram a emergência de novas lideranças indígenas na Região Sul. Professores monitores indígenas assumiram diferentes funções e, em alguns casos, chegaram à condição de pregadores, administradores ou caciques de áreas indígenas. Diferentes conselhos indígenas foram criados, tanto por iniciativa dos índios e ONGs como de órgãos de governo. Neste cenário, o ingresso em cursos universitários começou a ser uma aspiração para muitos indígenas, seja para melhor exercerem suas funções, seja para assegurarem condições para disputar as novas oportunidades de trabalho que passaram a surgir no interior das Terras Indígenas, no seu entorno e na própria Funai. Movimentos indígenas não são fenômenos recentes no Brasil. Contudo, nesta comunicação tomaremos como referência situações ocorridas a partir dos anos 1970. A reunião que ocorreu em Barbados, em 1971, quando um grupo de antropólogos latinoamericanos denunciou o genocídio e o etnocídio de que eram vítimas as populações indígenas, responsabilizando as sociedades nacionais por tais práticas, é um marco de referência para a compreensão do que ouso chamar de “novos movimentos indígenas”. A repercussão da chamada “Declaração de Barbados” (GRÜNBERG, 1972) influenciou uma tomada de posição por parte Apresentado na mesa-redonda “O diálogo intercultural como espaço e instrumento da nova cidadania”. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 24, Recife, 2004.
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da Igreja Católica. A criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a promoção de diversas Assembléias Indígenas, num momento em que as praticas indigenistas governamentais eram extremamente autoritárias, foram estratégicas para a conscientização, formação e envolvimento de diferentes líderes. O mesmo aconteceu com a criação das primeiras organizações civis (ONGs) de apoio aos índios, tais como a Associação Nacional de Apoio ao Índio (Anaí), criada em Porto Alegre (RS) em 1977, e as Pró-Índio de São Paulo e Rio de Janeiro, fundadas também nos anos de 1977 e 1978. Numa outra perspectiva, na Região Sul cabe destaque a iniciativa promovida pelo Summer Institut of Linguistics (SIL), com o apoio da Funai, sob a orientação da lingüista e missionária Úrsula Weisemann, que instalou em Guarita (RS) uma escola de preparação de professores monitores bilíngües. Esta iniciativa permitiu a reunião de diversos jovens Kaingang que eram originários de diferentes TIs em torno de um projeto escolar. Mais tarde, alguns jovens Xokleng foram também envolvidos. Foi a primeira vez que no Sul do Brasil jovens indígenas, com diferentes experiências, puderam conviver e discutir a realidade de seus povos. Embora tendo uma motivação religiosa, o desenvolvimento dessa proposta abriu novas perspectivas e certamente influiu na formação de novos líderes. Durante alguns anos, esta proposta habilitou cerca de 20 a 30 jovens e logrou alocálos como professores monitores em diferentes TIs. Esses monitores foram contratados pela Funai, e, rapidamente, se tornaram privilegiados observadores das práticas exercidas pelos funcionários desta instituição. Sobre vários aspectos, os professores monitores tinham vantagens em relação aos antigos caciques para o exercício da mediação entre os funcionários e os indígenas. Assim, muitos logo alcançaram uma condição diferenciada no interior das comunidades que estavam a servir. Foi, entretanto, durante o movimento que levou à expulsão de arrendatários e posseiros do interior das TIs, nos finais dos anos 1970, que novas lideranças indígenas emergiram e se afirmaram. Em Mangueirinha (PR), o jovem cacique Cretã assumiu inconteste posição de destaque, denunciando abusos praticados por | 130 |
políticos, e empresários locais e regionais contra os indígenas e sobre o patrimônio florestal da TI. Sua morte, algum tempo depois, em condições em que o acidente ou o ato criminoso ficaram mal explicados, teve repercussão nacional. Em Nonoai (RS), em processo semelhante ao ocorrido em Mangueirinha e outras TIs, emergiu o cacique Nelson Xangrê. A situação dessa TI era trágica. O governo do Rio Grande do Sul somente se submeteu à autoridade do SPI, como órgão federal responsável pela política indigenista do Estado brasileiro, nos finais dos anos 1950. Diferentes governos incorporaram diversas terras de ocupação tradicional indígena ao patrimônio do Estado gaúcho. Os indígenas atingidos pelo arbítrio governamental foram transferidos e incorporados às TIs remanescentes. A TI de Nonoai foi sucessivamente dividida. Metade foi transformada em parque florestal estadual. Depois, já no governo Brizola, uma parcela do parque foi loteada e distribuída para colonos “sem terra”. Uma terceira área foi apropriada por um fazendeiro. O pouco que sobrou de terras nessa TI ainda estava arrendado ou ocupado por posseiros. Foi aí que os indígenas liderados por Xangrê se movimentaram logrando a expulsão dos arrendatários e posseiros. A reação da sociedade regional, entretanto, não demorou. O cacique acabou deposto e passou a viver refugiado, temeroso por sua vida. Entre os Xokleng, a situação era outra. O número de intrusos na TI não era significativo. Porém, neste momento, exacerbavam-se as pressões regionais para a exploração do patrimônio florestal controlado pelos índios. Tradicionalmente, o cacicado era exercido por índios Kaingang que haviam sido localizados na reserva pelo “pacificador”, com o objetivo de facilitar os trabalhos de atração e submissão dos Xokleng. A cooptação pela agência de proteção desses caciques era objetiva. Outros líderes Xokleng foram envolvidos, e, em conseqüência da falta de condições para sobreviver, a exploração florestal se incrementou fortemente nos finais dos anos 1970, pois a ameaça da formação de um lago de contenção no interior da TI, em conseqüência da implantação da Barragem Norte, era uma realidade. Entre outros fatos, destacamos que, nesse momento, um grupo de líderes Kaingang e Xokleng pleiteou à Funai a | 131 |
cessação da tutela. Simultaneamente, as informações disponíveis dão conta de que a maioria dos indígenas que apareciam como líderes formais estava de acordo com a exploração intensiva dos recursos florestais da TI. Tradicionalmente, entre os Xokleng, a liderança era momentânea, e a organização social não tinha mecanismos para estimular formas mais intensivas de cooperação entre os membros do grupo. O importante era o indivíduo que tinha waikayú, isto é, que tinha coragem, lutava com as onças, matava brancos e era o mais bravo entre os bravos (HENRY, 1941, p.114-118). A mitologia Kaingang também relaciona bravura e coragem com a onça. No caso, não se trata de matar a onça, e sim de ter a onça como uma espécie de guia. O autoritarismo e a concentração de poder, bastante visíveis entre os Kaingang, poderiam ser assim relacionados com quem tem força e astúcia, ou seja, com quem se identifica e é identificado como tendo uma relação especial com a onça. Mas adianto que este é um ponto que merece maior aprofundamento. O fato a ressaltar é que alguns dos líderes Xokleng e Kaingang são temidos e tolerados, provavelmente, por serem bravos. O movimento indígena no Sul do Brasil tomou novos ímpetos com as discussões que antecederam a elaboração da Constituição Federal. Depois, em torno de questões ligadas às elaborações das Cartas Estaduais e do Estatuto do Índio, além da luta pela demarcação das terras indígenas, este movimento se consolidou. Foram criados Conselhos Indígenas Regionais, Conselhos de Caciques Estaduais e Conselhos de Líderes Locais, além de Conselhos Estaduais com participação de lideranças, e de representantes de órgãos estaduais e federais. Os monitores bilíngües se articularam. Outros funcionárioss indígenas dos quadros da Funai passaram também a ter participação ativa nas mais diferentes discussões. Tornaram-se comuns as candidaturas de indígenas a postos eletivos nos municípios onde estão localizadas as TIs. Movimentos localizados visando, por exemplo, à reintegração das terras do Parque Estadual à TI Nonoai; a indenização dos prejuízos causados pela Barragem Norte, em Ibirama; a demarcação das terras do Toldo Chimbangue (SC); a indenização pelo asfaltamento de estradas no interior na TI | 132 |
Chapecó; a luta pela recuperação das terras do Toldo Iraí, etc., tornaram-se freqüentes. Também passou a acontecer uma discussão mais profunda em torno da ocupação de funções de chefia no âmbito da Funai, em particular nas Administrações Regionais da Funai — ADRs e nos Postos Indígenas. Líderes indígenas formais acabaram controlando esses processos, de tal sorte que aquelas características de bravura associadas à onça, parece, fizeram silenciar muitos burocratas “brancos”. A substituição do administrador regional da ADR—Chapecó, em 1992, foi paradigmática. O PMDB indicou um político local sem maior expressão para o cargo. A falta de experiência do indicado no trato com a questão indígena era flagrante. As lideranças indígenas que acompanhavam o processo aceitaram a indicação, desde que fossem aceitos três indígenas como assessores do novo administrador. Como essas indicações não se concretizaram no prazo estabelecido, numa reunião entre as lideranças e o administrador, alguns líderes o assustaram tanto, que este achou melhor abandonar o cargo. Logo em seguida, esses mesmos líderes apresentaram ao presidente da Funai o nome de um indígena, também líder, para ocupar a função de administrador regional. E justificaram: “este pelo menos é índio e é bravo”. O novo administrador logo designou outros indígenas, parentes seus, como assessores imediatos. Colocou outros parentes na chefia de postos da região. Prestigiou ou elegeu caciques de sua confiança. Na TI Ibirama, depois de uma intensa disputa eleitoral para a Câmara Municipal, com acirramento do “faccionalismo interno”, dois líderes indígenas, de partidos diferentes, assumiram as funções de vereador. Logo em seguida, um deles foi escolhido para assumir a chefia da TI, com o aval do administrador regional. Em conseqüência dessa escolha, uma única família passou a controlar todas as funções de mando formal na TI. Foi dessa forma que o novo administrador regional obteve a confiança da quase totalidade dos novos integrantes do Conselho Indígena. Mister se faz lembrar que as TIs sempre tiveram um grupo de servidores “brancos” que, bem ou mal, faziam a mediação entre a sociedade regional e os indígenas. Em tese, este grupo estava à disposição dos indígenas para orientá| 133 |
los e socorrê-los. Ou seja, a infra-estrutura das TIs (outrora chamadas de Postos Indígenas ou Áreas Indígenas) estava ao dispor dos índios. Conforme já demonstramos em outro lugar (SANTOS, 1970), a realidade não era essa. A exploração do patrimônio da TI sempre esteve na mira dos mandatários da agência oficial de proteção, em particular após 1964. Não se deve, pois, estranhar que o salutar exercício do poder por parte de indígenas esteja permanentemente ameaçado de contaminação decorrente da avidez do processo econômico. As terras e os recursos naturais existentes nas TIs têm valor e são disputados pela sociedade regional. Daí decorrem, quase sempre, o envolvimento de líderes indígenas e a conseqüente apropriação individual daquilo que deveria ser, e é, um bem coletivo. Notese, ainda, que, neste processo, o absenteísmo da Funai, como agência responsável pela prática do indigenismo oficial, é flagrante. Segundo pesquisa recente realizada na jurisdição da ADR Chapecó (SC) sabe-se da existência de 45 alunos Kaingang freqüentando cursos de Ensino Superior. A Funai tem apoiado parcialmente esses estudantes. Existe uma Associação de Alunos Universitários Kaingang e Guarani, sediada em Chapecó (SC), para facilitar a obtenção de apoio e recursos financeiros que garantam a manutenção dos estudantes. CONCLUSÕES Apesar do que está expresso na CF referente aos povos indígenas, o Estado brasileiro continua a manter práticas indigenistas ultrapassadas. A burocracia instalada na agência de proteção oficial tem nítidas posturas corporativistas. O que interessa a uma parte dessa burocracia é ter possibilidade de assumir o controle dos recursos financeiros alocados a projetos de suporte a certos grupos indígenas, impactados por projetos de “desenvolvimento”. Ou, então, o resguardo de suas condições salariais. O indigenismo oficial, assim, é destituído de objetivos e não está voltado para a salvaguarda dos interesses dos povos indígenas assistidos. Está longe, muito longe, de se concretizar a | 134 |
idéia de Roberto Cardoso de Oliveira de traduzir a sigla Funai como Fundação das Nacionalidades Indígenas, fazendo esta o papel de um ministério do exterior no interior. Não é pequeno o distanciamento dos antropólogos desse indigenismo desenvolvido por indigenistas exclusivamente preocupados com sua sobrevivência funcional. Por outra parte, à sombra dos burocratas do indigenismo oficial, desenvolveu-se uma situação muito particular. Diversos líderes indígenas assumiram funções nos quadros da Funai. A maioria desses líderes está cooptada pelos detentores de mando na agência oficial de proteção e pela sociedade regional, costumando se apropriar por si, ou por suas famílias e facções, das diferentes vantagens que os cargos lhes asseguram. Isto tem criado diferentes tensões no interior de diversas TIs e, certamente, será motivo de graves conflitos no futuro. O encaminhamento adequado dessas questões passa, certamente, pelo estabelecimento de novos pactos entre o Estado e os povos indígenas. Uma nova política indigenista deve ser delineada e praticada. A presença crescente de indígenas nas esferas de decisão do órgão oficial de proteção deve ser ampliada, desde que centrada numa participação mais igualitária e responsável. Assim sendo, qualquer discussão sobre os projetos de futuro de uma TI passa, necessariamente, pelo envolvimento dos líderes não formais que, em regra, estão mais afinados com os interesses de suas comunidades. Entre esses, certamente, os indígenas que estão freqüentando cursos de Ensino Superior.
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GRÜNBERG, Georg (Cord.). La situación del indígena en América del Sur. Montevideo: Tierra Nueva, 1972. HENRY, Jules. Jungle people: A Kaingang Tribe of HighIands of Brazil. New York: Augustin Publisher, 1941. MORIM, Françoise. Indio, indigenismo, indianidad. In: Indianidad, etnocidio, indigenismo en América Latina. Organizado pelo Instituto Indigenista Interamericano. México, 1988. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. A crise do indigenismo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1988. RAMOS, Alcida. O índio hiper-real. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: 1995, p.5-14. PAIVA, Eunice e SANTOS, Sílvio Coelho dos. Os povos indígenas e o Setor Elétrico. Boletim Comase. Florianópolis: Eletrobrás, 1994. SANTOS, Sílvio Coelho dos. Indigenismo e expansão capitalista. Faces da agonia kaingang. Cadernos de Ciências Sociais, vol. 2, n.2, 1981. ____. Indigenismo, lideranças e exploração do meio ambiente em Áreas Indígenas: casos comparativos. Projeto Integrado. Florianópolis: DCSO/UFSC/CNPq, 1993. ____. Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975. ____. A integração do índio na Sociedade Regional: a função dos Postos Indígenas. Florianópolis: Imprensa Universitária/UFSC, 1970. SILVA, Priscila Ligniéres Ludovico da. Seu futuro depende de você, estude. Florianópolis: UFSC (Trabalho de conclusão de curso em Ciências Sociais). Florianópolis: UFSC, 2004.
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HIROSHIMA
OU A É T I C A DO G E N O C Í D I O
S
etenta e cinco mil pessoas mortas. Milhares de homens, mulheres e crianças com lesões graves, necessitando até o fim de suas vidas dos mais variados auxílios de aparelhos, medicamentos e atenção médica. Milhares de esterilizados, homens e mulheres. Milhares de condenados a não se reproduzirem por receio de gerarem deficientes. Milhares de horrorizados. Milhares de descrentes da condição humana. Tudo isto conseqüência da primeira explosão atômica realizada como ato de guerra e tendo como alvo uma cidade. Hiroshima. Este nome, sem esquecer Nagasaki, deve estar sempre presente entre todos aqueles que lutam pela paz, pelos valores humanos, pela vida. A violência da ação norte-americana em Hiroshima ultrapassou em muito todos os atos de guerra conhecidos. As justificativas alinhavadas até hoje não convenceram ninguém, a não ser aquelas pertinentes a um ato que pretendia justificar a hegemonia estadunidense em nível mundial. Para tal objetivo, pouco significado teria a população civil de Hiroshima. Tampouco milhares de mortos e de mutilados. A ética que prevaleceu foi a do genocídio. Que diferenças há entre as vítimas de Hiroshima e a dos campos de concentração nazistas? É de estarrecer o que os chamados aparelhos de Estado e suas burocracias podem decidir e realizar. Mais ainda, as burocracias militares. A bomba lançada sobre Hiroshima foi ato muito bem planejado. Nada falhou. E atrás da cidade em chamas, o mundo inteiro se submeteu aos interesses das potências nucleares. Claro, Publicado no Jornal O Estado, Florianópolis, em 11 de agosto de 1985.
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as experiências atômicas prosseguiram, e os estoques de ogivas se acumularam. Estoques para explodir a Terra uma centena de vezes, se necessário. Os esforços para entrar no clube atômico também prosseguem. E até o Brasil não vê a hora de reinvidicar seu ingresso. Desgraça. Sim, talvez para nós, civis não comprometidos com o autoritarismo, com o colonialismo e com a chamada ordem mundial vigente. Para outros, não tanto. Afinal, já não somos uma nação produtora e exportadora de armas em larga escala? A violência, quando promovida e estimulada pelo Estado, não encontra limites. A guerra é apenas uma manifestação organizada dessa violência. Há múltiplas outras formas não tão explícitas de violência. Destaco a exploração das nações ricas sobre as nações pobres; a imposição de uma ordem social injusta, baseada em privilégios; a violência da dominação étnica e racial. Já vai longe a época em que as forças em luta se desfrontavam homem a homem, oportunizando desafios e condições de sobrevivência para os contendores mais ágeis. Muito mais distantes também estão práticas tribais como as dos Tupinambá, que se enfrentavam em guerras para capturar vivos os mais valentes guerreiros, sujeitos a posterior sacrifício. A guerra que conhecemos é cada vez mais praticada por homens dominados pela máquina, pela técnica, pela ciência. Hiroshima e seu pesadelo são um fardo para toda a humanidade. Fardo que deve ser cotidianamente pesado, a fim de que seja sempre lembrado. Isto, porque a catástrofe atômica não é algo intangível. Ela esta aí, ameaçando-nos a todos. Como defesa, temos muito pouco. Por isso, é fundamental uma consciência crítica sobre o fenômeno da militarização crescente das nações, associada a uma visão clara dos papéis nefastos que em nome do Estado podem exercer as burocracias, militares ou não.
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CHERNOBYL,
MEIO AMBIENTE E BUROCRACIA
O
desastre de Chernobyl e as conseqüências imediatas da nuvem radioativa que se espalhou pela Europa merecem uma ampla reflexão nesta semana do meio ambiente. Fui testemunha involuntária e vítima potencial desta desgraça. Circulava na Europa, em países atingidos pelo aumento da radioatividade, coincidentemente ou por azar, desde o dia do desastre, 25 de abril. Inicialmente, o que me impressionou foram as notícias desencontradas e mesmo a falta de informações. As populações não sabiam o que se passava. O cotidiano das cidades não foi alterado. O comércio, a indústria, os bancos, as escolas funcionaram normalmente. Os turistas iam e vinham sem quaisquer limitações. Posteriormente, obtive informações com amigos sobre reações ocorridas em diversos pontos da Europa. Disto, depreendi que o medo e as preocupações maiores eram manifestos entre as pessoas já conscientizadas sobre os limites da natureza diante das ambições desenfreadas dos homens. Nesse sentido, não foram poucos os professores e intelectuais que em diversos países proibiram seus filhos de sair à rua para brincar ou mesmo para ir à escola nos dias imediatos ao desastre, numa vã tentativa de lhes resguardar a saúde. As manifestações de protesto organizadas pelos movimentos ecológicos, sociedades civis e partidos políticos comprometidos com a preservação da natureza e, portanto, interessados na defesa do homem não chegaram a ter a magnitude esperada. Em alguns casos, essas iniciativas foram mesmo insignificantes, diante da dimensão presente e futura do desastre. Publicado em: Jornal O Estado Florianópolis, 6/jun./1986.
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Além da crença generalizada das benesses da ciência, a explicação deste quadro envolve, a meu ver, tanto interesses econômicos como políticos. Em tese, parcela ponderável da produção agrícola européia está comprometida. O mesmo ocorre com a produção de laticínios. Não foram poucos os comentários da imprensa sobre a contaminação do leite decorrente do fato de estarem as vacas expostas às chuvas radioativas, ou absorverem quantidades de radioatividade através das pastagens. Também é de se lembrar que a Europa tem necessidade crescente de consumir energia elétrica. O aproveitamento ou não da energia nuclear pode alterar substancialmente a economia européia. Outrossim, a questão política tem que ser entendida acima de seus limites ideológicos. O silêncio inicial imposto pela URSS sobre o desastre não deve ser compreendido como decorrente de uma oposição ideológica ao Ocidente. O que transparece, em meu entender, é o poder das burocracias. Não importa que essas burocracias sejam objetivamente estatais ou privadas, autoritárias ou não. Tanto assim, que os países do Ocidente europeu também não se manifestaram de forma clara e necessariamente contundente sobre o desastre e suas conseqüências. Tampouco houve maiores divulgações sobre os acertos de cúpula, visando, em princípio, a resguardar os prejuízos econômicos sofridos de maneira manifesta por alguns setores do processo produtivo, em particular aqueles ligados à agropecuária. A preocupação de todos quando se manifestavam, entretanto, era a de transmitir uma idéia de eficiência no controle das conseqüências possíveis do desastre, assegurando, afinal, que “não havia maiores riscos para ninguém”. Por sua vez, a mídia eletrônica se deteve em intermináveis debates científicos sobre a catástrofe. Nesse sentido, não se pode alegar falta de informações. Contudo, ao promover mesasredondas e discussões científicas sobre a questão com o natural hermetismo dos cientistas convidados para tais debates, as televisões acabaram afastando o público. Objetivamente, achamos que as populações não foram suficientemente informadas sobre o que acontecia. Acrescente-se, ainda, o fato | 140 |
de ser a radioatividade algo insidioso, que atinge as pessoas sem maiores alardes. Isto, evidentemente, criou uma forte desconfiança popular para aqueles informes e protestos mais contundentes. Neste quadro, portanto, cabe uma reflexão maior. O desastre de Chernobyl foi apenas um exemplo da agressividade com que o homem está ocupando o espaço terrestre. Agressividade, evidentemente, que não foi, nem é, única. Agressividade que, efetivamente, está sendo patrocinada pelas burocracias particulares e governamentais, tanto do leste como do oeste. Agressividade que é tanto mais sofisticada quanto mais ricos os países ou as empresas que patrocinam os grandes projetos econômicos. Projetos que, objetivamente, tentam resguardar os privilégios já obtidos, ampliando-os. Projetos que também, claramente, interessam aos privilegiados que gozam do poder de decisão e as benesses decorrentes. Por isso, cabe ampliar cada vez mais os grupos civis que se preocupam com o meio ambiente. Cabe apoiar as iniciativas desses grupos. Cabe contribuir para a crescente afirmação dos defensores do meio ambiente nos processos de tomada de decisão. Ou seja, cabe uma ação forte no sentido de discutir o meio ambiente a partir de uma visão política cada vez mais crítica. Por fim, cabe esclarecer que não há dúvida alguma sobre as ameaças ecológicas que pesam sobre os países do Terceiro Mundo. A internacionalização da economia e os interesses dos países ricos atestam isto de forma inequívoca. Aos países ricos, interessam o domínio tecnológico e o controle do capital financeiro. Basta isto para justificar a aglutinação dos esforços dos diversos grupos que estão hoje engajados na defesa do meio ambiente, dos direitos do homem e na luta contra os privilégios, em particular os privilégios das burocracias estatais e privadas, objetivamente autoritárias ou não.
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E SPERA
DO GADO NA
T ERCEIRA
A
ngra do Heroísmo, cidade de 25.000 habitantes, capital da Ilha Terceira, Açores. Alto das Covas, um bairro central, dia 24 de junho, domingo. Integrando as “festas joaninas”, que acontecem anualmente entre 23 e 29 de junho, eis que ocorreu logo após ao meio-dia, como parte da programação festiva, a “espera do gado”. Ou, em termos catarinenses, realizouse a “farra-do-boi”. A “espera do-gado” em Angra é única nos Açores e só acontece durante as festas de São João. Meia dúzia de touros, especialmente criados para tal fim, são soltos em ruas e praças previamente escolhidas e anunciadas. Caminhões estrategicamente colocados nas bocas das ruas impedem que os animais tomem rotas imprevistas. Ao mesmo tempo, servem de plataforma para os muitos assistentes. As sacadas do casario colonial, declarado patrimônio mundial pela Unesco, ficam apinhadas. Homens, mulheres e crianças, jovens e velhos da cidade, do interior da Ilha, das ilhas vizinhas, do continente, além de turistas, todos querem ver as brincadeiras. No centro da praça e nas ruas onde vai acontecer a “farra”, homens jovens e maduros preparam-se para a chegada dos touros. Nas árvores da praça e nos muros das residências, muitos procuram abrigo seguro. Outros desfilam sozinhos ou em pequenos grupos. Não poucos olhares, sorrisos e até palavras são dirigidas para as muitas jovens que estão posicionadas nas sacadas e abrigos. A ocasião é também propícia para a aproximação entre os dois sexos. Não poucos namoros começam aí. As lojas, os jardins e Publicado originalmente em O Estado. Florianópolis, 11/set./1990. Republicado em Diário Catarinense com o título “A farra nos Açores”, em 19/ago./1990.
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frentes das casas mais vulneráveis estão protegidos por tapumes de madeira não inferiores a l,50 m de altura. A animação é geral. À medida que o momento da soltura do gado se aproxima, as expectativas aumentam. A movimentação se intensifica entre os que estão no meio da praça ou nas ruas. Não poucas mulheres e homens idosos tomam lugar nas sacadas e sobre os caminhões. À uma da tarde, um foguete assinala que os animais foram soltos. A gritaria aumenta, na medida em que os animais se aproximam da praça, numa carreira perigosa. Muitos se apressam em buscar lugar seguro. Ao chegarem à praça, os touros se dispersam, correndo para um lado e outro, à procura de uma saída que não existe. Este é o instante em que os riscos são maiores para os “farristas”. Uma distração pode ser fatal. Os animais, pressionados, em todos tentam investir. As provocações são muitas por parte dos improvisados toureiros. A cada correria, um frenesi. A multidão grita, manifestando medo ou crítica àqueles mais temerosos que, logo ao aproximar dos animais, correm apavorados em busca de um refúgio seguro, nem sempre possível. As situações de ridículo causadas pelo medo parecem alegrar os observadores. Uma avaliação contínua dos atores, sejam participantes, sejam expectadores, está ocorrendo. Os animais também são considerados em função de sua maior ou menor agressividade. A multidão exige cada vez mais dos improvisados toureiros e dos touros. A intenção é aumentar as correrias e as demonstrações de coragem e ousadia. Volta e meia, um dos animais leva vantagem e pega um desavisado. Situações fatais, porém, são raras. Duas horas depois, tudo acabado. Dois foguetes assinalam o final da “farra”. Os animais são capturados e encerrados em gaiolas especiais e, depois, transportados para as fazendas de criação, à disposição de novas “corridas”. Aqui, não se matam os touros. Desarmam-se as barreiras feitas com os caminhões e as proteções às casas. A população debanda. Risos e comentários sobre o acontecido se fazem ainda ouvir. Mas é fim de festa. As posturas municipais são rígidas, e há que observá-las. A esperafarra acontece uma vez por ano, em horas e locais determinados. | 143 |
A sensação é de envolvimento total da população. Uma alegria, dizem todos. Na Ilha Terceira, este tipo de “corrida” é única. Só ocorre no dia de São João. No resto do ano, entre abril e outubro, entretanto, acontecem as corridas de touro na corda. Neste caso, um único touro é colocado a correr, também em ruas e praças, preso por uma corda de 50 a 100 metros. Este cabo é seguro por um grupo de homens, que controlam o espaço em que o animal pode fazer suas investidas. Na Ilha Terceira, esta é a forma mais comum de “brincar” com o touro. Somente em 1989, ocorreram, devidamente autorizadas pelos conselhos locais, mais de 250 corridas. Todas também com horários para começar e terminar. E para evitar que muitos ilhéus abandonassem o trabalho para participar das corridas de touro na corda, as autoridades da Ilha determinaram este ano que tais corridas só poderiam ter início após as 18 horas, encerrando-se duas horas depois. A “espera do gado” em Angra, porém, por suas características e envolvimento, aparece como expressão maior deste ritual de enfrentamento entre homem e touro. Por isso, merece ter horário especial. Sempre acontece dia 24 de junho, por volta das 12 horas. Nao é por outra razão, também, que é nesta data que o turismo encontra seu auge na Ilha.
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CEM
ANOS DE LIBERDADE E POBREZA
E
stamos comemorando o centenário da abolição do escravagismo no Brasil. Maio, 13, ano de 1888. A princesa assinou a Lei redentora. A liberdade estava dada. O País ficava livre de uma chaga social. Ficava também modernizado, pois deixava de ter castas: a dos homens livres e a dos homens escravos. Definitivamente, se instalava uma nova ordem social. Ano e meio depois, a democracia chegava propondo ordem e anunciando progresso, com a República. Será que, efetivamente, isto aconteceu da maneira como a história oficial transmite nos livros didáticos de História e OSPB? Quais as forças que levaram ao Império assumir sua própria autodestruição? Não pretendemos falar das contribuições do negro à cultura e à sociedade brasileiras. Nem do Carnaval, do futebol, da música, da dança, dos cultos afro, etc. Queremos apenas focalizar alguns pontos para uma reflexão que estimule o resgate da verdade histórica. Creio que devemos isto, neste momento, ao homem negro. Lembro, primeiro, que o Brasil foi um dos últimos países da América a acabar com a escravidão. A luta abolicionista no País, apesar de seus heróis, foi, na verdade, diminuta. As teorias sociais que haviam fundamentado a Revolução Francesa, de 1789, e os ideais de liberdade e igualdade tiveram pouca repercussão entre nós, simplesmente porque a maioria absoluta da população era analfabeta. Segundo, a burguesia que dominava a Colônia e, depois, o Império, era essencialmente agrária, totalmente dependente do trabalho escravo e voltada para o mercado europeu. Neste contexto, podem se entender as resistências às iniciativas
Publicado originalmente em O Estado. Florianópolis, 13 maio de 1988.
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anti-escravagistas e a forte repressão aos movimentos libertários conduzidos pelos próprios negros, como por exemplo, os quilombos. Mas não é por esse caminho que se podem explicar medidas legais como as leis do ventre livre e cessação do tráfico negreiro. Na verdade, ontem, como hoje, para entender o que acontece no Brasil é preciso estar atento para o contexto externo. No século XIX, a Inglaterra se afirmou como senhora do mundo colonial. Um forte surto industrial ocorreu na Europa. A importação de matériasprimas mantinha em atividade uma enorme frota de barcos a vela. Barcos que faziam as rotas metrópole-colônia vazios, porque não havia consumidores nas colônias. Isto se modificou no século XIX ou um pouco antes. Na ida, agora iam migrantes para as colônias. A Europa havia descoberto uma forma de se desfazer de seus excedentes populacionais; de aproveitar a capacidade ociosa das embarcações; e de criar condições para a implantação de economias monetárias nas áreas coloniais. O passo seguinte foi o de dar um fim à escravidão. Isto era um imperativo para a expansão das economias monetárias e alargamento dos mercados consumidores de manufaturados. Por isso, a Inglaterra assume posições, ditas humanitárias, para fazer cessar o tráfico negreiro no Atlântico Sul. Por isso, também, o Brasil vai incrementar a imigração. Emprego, escolas, saúde, acesso à terra, etc., após o 13 de maio, nem pensar. O negro, efetivamente, passou a ser livre, porém não alcançou a cidadania. Continuou um indivíduo de segunda classe, sem direitos, sem destino e sujeito ao preconceito do branco. Sua luta por ascensão social tem sido dura e destituída de facilidades. Facilidades que não são favores, e sim direitos. Compreenda-se, por fim, que o Brasil é um país negro. Apesar do IBGE, a população negra e mulata é majoritária. Ela também é majoritária como população subempregada, mal nutrida e analfabeta. O negro só é minoria quando se pensa sobre o número de negros que têm acesso aos centros de poder ou a padrões sociais e econômicos mais elevados. O negro, pois, continua vítima de uma estrutura social perversa. Uma estrutura madrasta que, entretanto, tem sabido se manter rechaçando alternativas para a plena cidadania das maiorias deserdadas. | 146 |
O
PANORAMA SOCIODEMOGRÁFICO NO INÍCIO DO SÉCULO
S
egundo o recenseamento realizado em 1900, a população de Santa Catarina era de 320.289 pessoas, sendo l6l.558 homens e 158.731 mulheres. Anteriormente, em 1872, data do primeiro censo, a população atingia 159.802 pessoas. Depois, em 1890, quando ocorreu o segundo levantamento populacional, os dados apontam 283.769 residentes. A confíabilidade desses dados deve ser relativizada, pois não poucas eram as dificuldades para a realização de um levantamento populacional no interior, onde as estradas não passavam de trilhas e a população rural era bastante rarefeita. A referência básica eram os assentamentos existentes nas paróquias. Nesses primeiros levantamentos censitários, não aparecem indicações quanto à idade, à cor, à escolaridade e, muito menos, à situação econômica dos moradores. Em 1900, o Estado de Santa Catarina contava com 25 municípios. Blumenau e Florianópolis apareciam como as cidades mais povoadas. No Planalto, Lages apresentava-se como o principal núcleo urbano. O Oeste inexistia, e no Sul, Laguna começava a ceder espaço para Tubarão, Araranguá, Urussanga e Criciúma. É de se compreender que, nesse momento, Santa Catarina ainda não tinha a conformação territorial que conhecemos hoje. A definição da fronteira com a Argentina havia ocorrido em 1897, quando, através da mediação do presidente Grover Cleveland, dos Estados Unidos, o Brasil acertou suas divergências com o país vizinho, na assim denominada área de Palmas (ou Missões, Publicado em A realidade catarinense no século XX. Fpolis.: IHG/SC, 2000. p. 105-120.
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para os argentinos). Entre 1900 e 1904, uma Comissão Mista demarcou a fronteira, abrindo picadas, levantando coordenadas geográficas, desenhando mapas e fixando marcos em pontos estratégicos. A tarefa foi executada essencialmente por militares, envolvendo a definição dos limites ocidentais (Oeste) dos atuais Estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. De outra parte, desde 1853, quando foi criada como Província, políticos do Paraná reivindicavam estender seus limites até o Rio Uruguai. Essa pretensão teve, como sabemos, vários desdobramentos políticos, jurídicos e socioeconômicos, além da Guerra do Contestado. Guerra que trouxe à tona faces da organização do Estado brasileiro, em particular, da hierarquia de poder assentada na força militar e nos interesses econômicos, internos e externos, e num verdadeiro desprezo pela realidade social das populações subalternas. A definição dos limites de Santa Catarina com o Paraná só aconteceu em 1916, quando, por pressão federal, foi estabelecido um “acordo” entre os dois Estados. Santa Catarina adquiriu, assim, os contornos geográficos que apresenta hoje, se não considerarmos o episódio do Território do Iguaçu (1943—46). Foi ainda no contexto da definição dos limites com o Paraná que, em 1917, o governo de Santa Catarina criou os municípios de Mafra, Porto União, Joaçaba (Cruzeiro) e Chapecó. O objetivo era administrar a área que, até então, estava em disputa. A instalação dessas sedes municipais, com as conseqüentes presenças das comarcas judiciárias, paróquias e unidades escolares, foi a base que passou a fundamentar a conquista do Oeste. ETNIAS
E TRADIÇÕES CULTURAIS
Na passagem do século, a população luso-açoriana era majoritária nas cidades e vilas do litoral. Na região dos campos de Lages, que incluía Curitibanos e Campos Novos, predominavam os descendentes de paulistas. Essa população tinha suas raízes em Portugal, nos Açores e na Madeira, e em São Paulo. A mestiçagem estava há muito tempo presente, envolvendo os indígenas da terra e os negros, importados como escravos da África. | 148 |
Como sabemos, em Santa Catarina primeiro aconteceu a ocupação do litoral, no cenário da estratégia portuguesa de expandir seus domínios em direção ao Rio da Prata. Depois, no século XVIII, a região de Lages acabou sendo ocupada por paulistas interessados em manter o “caminho de tropas”, que ligava o Rio Grande às feiras de Sorocaba, em S. Paulo. No litoral, os luso-açorianos marcaram a paisagem praticando a pesca, explorando pequenas propriedades agrícolas, construindo fortalezas e atuando na incipiente burocracia do Império e, depois, da Província. Na região dos campos de Lages, a população se identificava com a economia pastoril, com a fazenda de criação. Como dissemos em outro lugar (SANTOS, 1971), os hábitos de vestir, com bombachas, botas e esporas, com o tradicional chapelão e seu barbicacho, e o poncho usados nos dias frios; a maneira de falar com regionalismos peculiares, e o modo de agir deram à população serrana uma identidade à gaúcha. Mas esta identificação é apenas aparente. As raízes da “gente da serra” estão em São Paulo, e não no Rio Grande do Sul. Foram os paulistas que fundaram Lages, estabelecendo as primeiras fazendas e fixando as bases do domínio que, mais tarde, vieram a dar motivo às reivindicações do Paraná sobre seus limites ao sul. Embora tendo trajetórias históricas diferentes, essas populações tinham em comum a língua, a religião e a noção de pertencimento à embrionária identidade nacional. A base cultural era a mesma, de origem portuguesa, enriquecida pelas contribuições indígena e africana. A família tinha uma organização centrada no domínio paterno, exercendo a mulher, quase sempre, um papel secundário. A mulher ideal era aquela que paria muitos filhos; que vivia reclusa no lar, ocupada com os trabalhos domésticos; que se encarregava da educação dos filhos. As famílias, sob alguns aspectos, se aproximavam daquilo que em Antropologia chamamos de “famílias extensas”. Festas do Divino, do Santo Padroeiro, as disputas políticas e, às vezes, as guerras movimentavam tanto as pequenas cidades como as áreas rurais. Poucos eram os que tinham recursos mais expressivos, representados por propriedades e dinheiro. A maioria vivia da produção de subsistência, com eventuais vendas de excedentes. | 149 |
O trabalho braçal era a tônica. O transporte de mercadorias era assegurado pelos barcos a vela, pelos “vapores” que ligavam os portos do litoral ao resto do País, por umas poucas linhas de trem e pelas tropas de muares. Na capital e em algumas cidades, circulavam alguns jornais, geralmente servindo de instrumento para o controle político da população. As condições sanitárias eram precárias, pois na passagem do século ainda não havia redes de água encanada e de esgotos. A eletricidade somente chegou a Florianópolis e Blumenau na primeira década do século XX. As doenças endêmicas grassavam, e a expectativa de vida girava em torno de 50 anos. Nas principais cidades, poucos eram os leitos hospitalares disponíveis; raros eram os médicos; escassos eram os estabelecimentos de ensino, públicos e privados. Na zona rural, em particular nas fazendas de criação, as primeiras letras eram ensinadas pelos próprios pais, quando esses eram alfabetizados. Mais raramente, quando se tratava de ricos proprietários, eram contratados professores itinerantes para proceder à alfabetização da meninada. Os incentivos governamentais à imigração facilitaram a localização de alemães e italianos, inicialmente nos vales litorâneos do Itajaí, Cachoeira e Tubarão. Esses imigrantes marcaram a paisagem com a exploração familiar de pequenas propriedades rurais e a instalação, junto às sedes das colônias, de pequenos empreendimentos industriais. Em algumas dessas colônias, com o apoio dos países de origem, foram instalados escolas, igrejas, bandas, clubes de tiro, etc. Ainda no século XIX, jornais em língua alemã começaram a ser editados em Blumenau e Joinville. Na passagem do século, diversos núcleos coloniais estavam consolidados como cidades. As atividades econômicas garantiam tanto o abastecimento local como a exportação de diversos produtos; e começava a se esboçar a participação de imigrantes, ou de seus descendentes, no processo político estadual e nacional. A maioria dos imigrantes foi inicialmente localizada em áreas rurais, objetivando a exploração agrícola. Os lotes de terras tinham cerca de 25 ha. Pressupunha-se que este era o módulo ideal para uma família. Em regra, os imigrantes eram jovens. Assentados em seus lotes, tendo parentes ou amigos como vizinhos, tratavam de desbravar a terra, para logo realizarem as primeiras culturas. | 150 |
As administrações das colônias asseguravam uma certa base para garantir a sobrevivência dos recém-chegados. Muitos imigrantes foram envolvidos na abertura de estradas ou de outras obras, com o objetivo de lhes assegurar alguns ganhos. O crédito para a aquisição de ferramentas, sementes, armas e munição também existia, na maioria dos casos. Os países de origem dos imigrantes também asseguravam uma certa assistência. Por tudo isto, muitos imigrantes tiveram sucesso. Novas colônias, oficiais e privadas, gradativamente, foram sendo abertas para abrigar os descendentes que careciam de novas terras ou para atender às novas levas que chegavam. Numa perspectiva da Antropologia, se poderia dizer que esses imigrantes formavam uma “frente agrícola” que se expandia gradualmente pelos vales acima a cada 20 anos, ou seja, quando da formação de uma nova geração. Efetivamente, se tomarmos o Vale do Itajaí como referência, percebemos que a Colônia Blumenau, criada em 1850, teve sua expansão marcada pelas fundações de Timbó e Indaial, por volta de 1870; Ibirama, 1890; e Rio do Sul, 1910, aproximadamente. Nas colônias, as relações sociais tinham dinâmicas um tanto diferenciadas daquelas que predominavam no litoral e na serra. A agressividade das relações econômicas era mais intensa, pois o imigrante chegava com o objetivo explícito de melhorar suas condições de vida, isto é, de obter sucesso econômico. Poder-se-ia dizer, lembrando Max Weber, que o espírito do capitalismo estava marcadamente presente nessas relações. A valorização do trabalho, a engenhosidade e a abertura para a adoção de novas tecnologias, o gosto pelas atividades culturais, eis algumas características que logo passaram a ser reconhecidas como próprias da maioria, dos imigrantes. A indústria apareceu e se afirmou em muitas colônias, num contexto que deve incluir as experiências vividas pelos imigrantes ainda na Europa; a existência de um mercado consumidor; a possibilidade de importação de máquinas e de tecnologia; a existência de capitais entre os imigrantes; e as possibilidades de exportação da produção excedente. Ainda em termos de relações sociais, poderiam enfatizar práticas de cooperação para o alcance de metas econômicas ou | 151 |
para a concretização de obras que eram de interesse comum, como por exemplo, a construção da escola ou da igreja. De maneira genérica, e talvez por todos estarem vivenciando experiências novas, pode-se dizer que as relações sociais eram relativamente intensas nas áreas coloniais. As festas aconteciam motivadas por casamentos, batizados, inaugurações de igrejas e clubes. As visitações aos parentes, nessas ocasiões, eram comuns, especialmente quando esses viviam em comunidades vizinhas. Daí, decorram, talvez, as motivações que vieram a permitir as programações das festas, que hoje marcam o calendário de muitas cidades do Estado. De outra parte, muitos núcleos coloniais mantinham estruturas de poder que os fechavam em torno de si mesmos. Nesse sentido, a noção de pertencimento estava voltada para o próprio “umbigo”, isto é, para a própria colônia, ou, ainda, para o país de origem. Essa situação, com o decorrer dos tempos, e especialmente após a malconduzida “campanha de nacionalização”,e a Segunda Guerra Mundial, se alterou. Mas, na passagem do século, tudo indica que as identidades e lealdades tinham como referências primeiras os países de origem e as próprias colônias. O Estado de Santa Catarina e o Brasil, para a maioria, parece, eram referências secundárias e um tanto estranhas, para não dizer distantes. NEGROS,
CABOCLOS E ÍNDIOS
O Brasil foi o último país da América a declarar o fim da escravidão. Em Santa Catarina, o movimento antiescravagista teve maior expressão na capital e em algumas cidades do sul. O número de escravos não era muito elevado (cerca de 10.000, em 1881, segundo CABRAL, 1968), pois a base econômica, devido à imigração, já estava assentada no trabalho livre. Isto, entretanto, não minimiza as agruras vividas pela população negra nem desonera a dívida social que temos, ainda hoje, para com seus descendentes. Na passagem do século, alguns grupos de ex-escravos e seus descendentes já formavam pequenas comunidades em locais periféricos às cidades ou vilas. Em alguns casos, ocupando terras | 152 |
cedidas por particulares ou tolerados pelas autoridades, no caso de terras públicas. Em alguns poucos casos, terras devolutas em áreas rurais ou glebas doadas por beneméritos cidadãos permitiram uma ocupação comunitária. Mas não há dados confiáveis que permitam estimar o número dessa população, identificada hoje como afro-brasileira. O fato a registrar é que essa população se encontrava, em maioria absoluta, nos escalões inferiores da pirâmide social e não tinha quaisquer perspectivas de ascensão. A sociedade escravocrata que se havia desenvolvido no Brasil impôs uma rígida separação entre brancos, negros e mulatos. O escravo, durante séculos, fora visto como objeto e vivia totalmente sujeito a seu senhor. Alienados de sua condição social, os escravos tiveram poucas oportunidades de reação. Mas elas ocorreram. As fugas para o interior do sertão e a formação de quilombos também aconteceram. Em muitas situações, houve aproximações com indígenas, daí resultando casos de miscigenação. Hoje, alguns grupos remanescentes lutam para lograr a identificação e a demarcação das terras que se tornaram de ocupação tradicional. Trata-se de pequenas comunidades rurais, que desenvolveram práticas coletivas de resistência e de sobrevivência. Nas áreas urbanas, como conseqüência da presença de escravos envolvidos nas lides domésticas e de outros subordinados a projetos econômicos que necessitavam de mão-de-obra de maneira intensiva, ocorreram dois processos de inserção na nova ordem da sociedade de classes que se instalou no país após a Abolição. O primeiro se compromissou com um “ideal de branqueamento”, aceitando o preconceito e as diferenciações sociais entre brancos e negros. O segundo centrou-se numa “ideologia da negritude” denunciadora da espoliação social vivida pelos negros. A exclusão social e econômica explícita das populações negras continua presente neste final de século, sendo o maior obstáculo para superar a sua alienação social. À margem da ordem escravocrata, gradativamente foram se estabelecendo em distantes pontos do sertão fugitivos da lei e dos patrões, desertores dos exércitos em guerra e peões expulsos das fazendas de criação. A sobrevivência desses indivíduos era | 153 |
garantida pela fartura da natureza, que permitia a caça, a pesca e a coleta abundantes. Pequenas roças cultivadas nas “coivaras” e a extração da erva-mate garantiam o resto. A miscigenação de “brancos”, indígenas e negros foi comum. Formaram-se, assim, diferentes redutos habitados basicamente por “caboclos”. Essa população era essencialmente pobre. Raramente algum indivíduo era alfabetizado. O pouco que conseguiam como excedente na produção permitia a aquisição do essencial em termos de roupas, ferramentas, munição e sal. Esses excluídos sociais, em boa parte, acabaram envolvidos pela expansão colonial que ocorreu em Santa Catarina. Serviram como agregados nas fazendas; participaram de diversas guerras, em lealdade aos patrões; foram mateiros e guias dos serviços de agrimensura; serviram como mão-de-obra nas tarefas de instalação das colônias; exerceram o ofício de “caçadores de índios”, ou seja, de bugreiros, por imposição do sistema governamental; finalmente, como seguidores dos monges, acabaram envolvidos na Guerra do Contestado. Os bolsões de floresta, onde os imigrantes começaram a ser localizados nos vales litorâneos, era território dos índios Xokleng. Mas para o Oeste, às margens dos campos que estavam sendo ocupados por fazendas de criação, os Kaingang e Guarani exerciam seus domínios. Esses grupos reagiram de diferentes formas à presença dos “brancos”, conseguindo chegar ao presente. A reação dos Xokleng tornou-se paradigmática do processo de conquista da terra na Região Sul. Esses índios foram envolvidos, simultaneamente, pelas frentes de colonização que se instalaram no Rio Grande, Santa Catarina e Paraná. Eram nômades, praticantes da caça e da coleta. A floresta, com sua fauna e flora, era fundamental para a sua sobrevivência. Intensificando-se a colonização, a cada dia mais terras eram tomadas aos Xokleng. À falta de como prover suas necessidades alimentares, os indígenas passaram a assaltar as propriedades dos colonos. Ou a atacá-los em seus locais de trabalho e de trânsito. A violência cresceu quando as companhias de colonização e os governos provinciais passaram a subsidiar grupos armados que se adentravam no sertão para dizimar os índios. Bugreiro foi | 154 |
profissão criada pelo capitalismo em expansão para afugentar “pela boca da arma” os índios avessos à submissão. Essa tragédia só foi parcialmente controlada com a criação, em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que logrou a “contatação” de alguns grupos Xokleng. Não se pode esquecer, neste momento, a luta travada por aqueles que se opunham ao extermínio indígena. Em 1906, por exemplo, foi criada em Florianópolis a Liga Patriótica para a Catechese dos Selvícolas, numa exitosa iniciativa do majorengenheiro Pedro Maria Trompowsky Taulois. A Liga teve como presidentes de honra o governador Gustavo Richard e o vicegovernador Abdon Baptista. No ano seguinte, a Liga comissionou o viajante e antropólogo tcheco Albert Vojtech Fric para realizar trabalhos de atração dos Xokleng no Vale do Itajaí. A tarefa de Fric não era fácil, e ele foi hostilizado por órgãos de imprensa e por autoridades locais. Por trás dos objetivos da Liga, estavam propostas progressistas defendidas por positivistas e maçons, nem sempre aceitas ou compreendidas. Fric acabou sem condições de executar seus planos, mas não abandonou o propósito de contribuir para salvaguardar os interesses dos indígenas. No XVIII Congresso Internacional de Americanistas, realizado em Viena em 1908, ele denunciou as violências que se cometiam no Sul do Brasil, em particular em Santa Catarina, contra os índios com o objetivo de liberar as terras para os imigrantes. Essa denúncia provocou o repúdio da Alemanha e, no Brasil, de Hermann von Ihering, cientista de origem alemã que dirigia o Museu Paulista. Ihering aproveitou a oportunidade em que recebia o título de “sócio honorário” do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo para fazer um pronunciamento rebatendo as críticas de Fric. O debate tomou vulto, e desse confronto de idéias emergiu a necessidade de o Estado assumir a ação protetora, o que aconteceu através da criação do Serviço de Proteção aos Índios, anteriormente referida. Percebese a importância do debate e o poder das idéias. Percebe-se, também, que tanto na capital como no interior, havia uma elite intelectual capaz de assumir pontos de vista diferentes e conseqüentes com as divergências político-ideológicas do mundo de então. No Oeste, desde o século XVIII, quando da abertura de um | 155 |
outro “caminho de tropas” que cortava os “Campos de Palmas” ligando a região das Missões, no Rio Grande, às feiras de Sorocaba, em São Paulo, os índios Kaingang e Guarani sofriam os impactos da convivência com os “brancos”. Com a instalação da Colônia Militar Chapecó, onde hoje se situa a cidade de Xanxerê, em 1882, os Kaingang aldeados na região se sentiram animados para solicitar ao governo uma área de terras onde pudessem viver sossegados. Há muito, experimentavam toda a sorte de violências, destacandose a prostituição das mulheres e o trabalho compulsório (escravo) dos homens, imposto por tropeiros, ervateiros e pelos primeiros donos de fazendas na região. Foi atendendo aos reclamos desses indígenas e, ao mesmo tempo, já pretendendo a liberação de terras para a colonização, que o governo do Paraná, em 1902, criou uma reserva indígena entre os Rios Chapecó e Chapecozinho. Essa reserva, hoje denominada TI Chapecó, é formada por terras remanescentes daquela que o governo do Paraná criou, sob a justificativa de ter jurisdição sobre a área. Quantos indígenas havia em Santa Catarina em 1900? Esta é uma questão difícil de ser respondida. Sabe-se que o extermínio dos Xokleng estava em pleno andamento. E os Guarani e Kaingang estavam submetidos às mais diferentes violências praticadas pelos “brancos”. O fato importante que deve ser destacado é aquele relacionado à presença indígena em todo o território de Santa Catarina. É temerário falar em números, mas certamente não se pode continuar a pensar que o Estado antes e depois da chegada dos “brancos” era desabitado, implícito na expressão “vazio demográfico”, que aparece em diferentes discursos e textos oficiais. Percebe-se, assim, que a terra foi usurpada ao índio pela força. O imigrante também foi, em muitos casos, vítima. Os governos e as companhias de colonização não tinham interesse em alertá-lo sobre a presença indígena. E quando ocorreram reclamações diplomáticas sobre a insegurança vivida, o Brasil minimizou as queixas e denúncias. Passou, contudo, a criar reservas para o confinamento dos grupos indígenas sobreviventes, liberando em definitivo seus territórios tradicionais. Os indígenas que sobrevivem hoje em Santa Catarina vivenciam condições precárias de vida. Muitos ainda reivindicam | 156 |
a demarcação de terras de ocupação tradicional. Outros, como os Guarani, em maioria circulam pelas rodovias vendendo artesanato e trabalhando como “bóias-frias”. A ação indigenista do Estado continua precária, para dizer o mínimo, neste final do século XX. MODERNIDADE
E GUERRA NO SERTÃO
Ainda no Império, o Brasil projetou uma ligação ferroviária entre São Paulo e o Rio Grande do Sul. Além de motivações militares, havia interesse em articular a malha ferroviária que se construiu no Rio Grande com o centro do País, visando à melhor circulação da produção. Esse projeto foi concretizado em 1910, quando o trecho entre União da Vitória (PR) e Marcelino Ramos (RS) foi concluído. Uma empresa norte americana foi responsável pela obra, mediante a cessão pelo governo federal de 15 quilômetros de terras de cada lado do eixo da ferrovia. Nesse último trecho, a estrada seguia o curso do Rio do Peixe, afluente do Uruguai. Tal área, desde a criação da Província do Paraná, em 1853, vinha sendo disputada. O Paraná pretendeu que seus domínios a sudoeste fizessem divisa com o Rio Grande. Santa Catarina contestou e recorreu ao Supremo Tribunal Federal. A discussão se arrastou pelos escaninhos da burocracia jurídica. Em 1904, Santa Catarina obteve decisão favorável a seu pleito no Supremo. O Paraná, porém, opôs sucessivos embargos. Era essa a situação, quando a Brazil Railway Company começou a assentar os trilhos e a expulsar os posseiros das terras de sua concessão. Um corpo de segurança, com cerca de duzentos homens armados, fazia valer os interesses da empresa. Uma grande madeireira foi instalada pela companhia para explorar as florestas de pinheiro e imbuia que cobriam a região. Ao final dos trabalhos de assentamento de trilhos, em Marcelino Ramos, a companhia dispensou um grande número de operários que havia trabalhado na obra, sem qualquer indenização. Essa massa de trabalhadores desempregada e centenas de posseiros que haviam sido expulsos de suas terras em função da concessão dada pelo governo se transformaram no estopim que | 157 |
levou à deflagração da Guerra Sertaneja do Contestado (1912— 1916). O aglutinador, entretanto, desses elementos foi a crença que se espalhara na região a respeito dos poderes sobrenaturais de um monge identificado como santo, o São João Maria. Quando morreu, o imaginário popular criou a expectativa de seu reaparecimento. Logo, surgiu outro monge, intitulando-se João Maria de Jesus, e que faleceu por volta de 1906. E, depois, o terceiro, que se identificava como José Maria d’Agostini. Suas pregações atraíam o povo, dando-lhe esperanças do surgimento de um mundo melhor, mais justo, mais humano. A presença de José Maria em Curitibanos provocou a interferência do governo de Santa Catarina, que sugeriu a sua transferência e a de seus seguidores para o outro lado do Rio do Peixe. Mas o governo do Paraná não concordou. Tropas foram enviadas para expulsar os “catarinenses invasores”. Ocorreu o combate de Irani, quando o comandante das tropas do Paraná foi morto. Tambem morreu o monge José Maria. A guerra estava começada. O conflito de Canudos (Bahia) estava presente na memória nacional. No Contestado, circulava também uma indisposição contra a República. A espoliação dos posseiros pelo governo em favor de uma companhia estrangeira era um fato. Neste quadro, se deu a reação governamental. A resistência cabocla surpreendeu. Ocorreram treze expedições militares. Pela primeira vez no Brasil, utilizou-se o avião como arma de guerra. Acredita-se que mais de 20.000 pessoas estiveram envolvidas, e alguns milhares foram mortos. Em 1916, o conflito foi dado por encerrado. Paraná e Santa Catarina definiram um acordo, homologado pelo governo federal em 1917, dividindo quase meio a meio a área conflagrada. A modernidade chegou a Santa Catarina, assim, pelos trilhos da São Paulo — Rio Grande e pelo uso do avião como instrumento bélico. A população cabocla da região foi dizimada. Em seu lugar, ao lado dos trilhos, surgiram novas colônias. A frente pioneira iniciada pelos imigrantes no Rio Grande do Sul, no século anterior, logo começou a se movimentar em direção ao antigo território contestado. Novos imigrantes chegavam. A modernidade, o desenvolvimento e a miséria se confundiram num único processo.
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PODER
AUTORITÁRIO E VIOLÊNCIA
É ilusório pensar que o Brasil é um “país cordial”. A violência sempre esteve presente no cotidiano das relações sociais e, em particular, como maneira de afirmação dos detentores do poder. Proclamada a República, com a queda de Deodoro, vimos explodir aqui no Sul a Revolução Federalista. Os revolucionários gaúchos e seus seguidores, alcunhados de “maragatos”, bem como as tropas legais, apelidadas “pica-paus”, praticaram não poucas iniqüidades contra a população civil nos Estados do Sul. As praticas da “sangra” e do fuzilamento foram comuns, de parte a parte. Na Ilha de Anhatomirim, próxima a Florianópolis, foram fuzilados a mando de Moreira César, preposto de Floriano Peixoto, diversos militares e civis. Em seguida, Hercílio Luz, governador nomeado, promove a mudança do nome da cidade capital do Estado. Desaparece Desterro. Surge Florianópolis. Tudo decidido arbitrariamente, embora tenha havido manifestação do “Congresso Representativo”, isto é, da Assembleia Legislativa, que aprovou por unanimidade a Lei nº 111, de lº de outubro de 1894. Detalhe importante a destacar: neste momento, não havia oposição no Congresso. Floriano, o vice-presidente que assumira arbitrariamente poderes ditatoriais, estava sendo homenageado não pelo povo catarinense, mas sim por uma parcela da elite que chegava ao poder. Parcela que fora responsável, pouco antes, pela eliminação física e o silenciamento, pelo medo, da facção oponente. É de se compreender, portanto, que durante a Guerra do Contestado muita violência fosse cometida. Os caboclos em guerra, crentes das profecias dos monges e desesperançados com a justiça dos poderosos, viram cair sobre si a força da repressão oficial. Civis armados pelo Estado fizeram o trabalho sujo, matando quem tinha e quem não tinha envolvimento com a guerra. A degola foi comum, mesmo daqueles que se aproximavam das tropas legais em busca de proteção. Por sua vez, os caboclos não deixaram de dar o troco, embora o número de militares vitimados na guerra tenha sido infinitamente menor. É de se compreender, também, que por trás da repressão oficial | 159 |
estava o projeto de criação de um Estado nacional unitário, sob o ponto de vista étnico e cultural. O Brasil estava em construção. Construção como Estado republicano, centralizado e autoritário. Estado que concentrava, ou pretendia concentrar, o monopólio da violência através de suas forças militares e policiais. Em Santa Catarina, a noção do Estado nacional levou os governos locais a incrementarem ações voltadas para a criação de um sentimento de pertencimento, isto é, a construção de uma identidade catarinense. No primeiro governo de Hercílio Luz (1894—98), foram instituídos o brasão de armas, a bandeira e o hino do Estado. Também foi definido o primeiro mapa do território catarinense. Logo em seguida, em 1896, foi criado, com o apoio governamental, o Instituto Histórico e Geográfico. O Instituto aparece como uma instituição não-governamental, mas assumiu incumbências de definir a trajetória da formação do povo catarinense, e de justificar e valorizar os aspectos simbólicos da trajetória do povo e de suas lideranças políticas, fundamentais para a aceitação da idéia de pertencimento. Quase ao mesmo tempo, intelectuais ligados ao governo e ao Instituto elaboraram as primeiras versões da história estadual. Mais tarde, já na década de 1920, a Academia Catarinense de Letras vai assumir outras tarefas nesse contexto de afirmação de um projeto de construção da nação, à qual, em tese, todos deveriam pertencer. Paralelamente, no início do século, iniciava-se a ampliação da rede escolar pública; melhoravam-se os sistemas de transporte, com a implantação de ferrovias e estradas; estendiam-se as linhas telegráficas e telefônicas. A modernidade e o Estado pareciam se confundir, tendo como horizonte o progresso e a ordem, expressos na vontade dos que detinham o poder. Poder que se manifestava sempre de forma autoritária, como por exemplo, no episódio ocorrido em 1920, em Blumenau, quando os operários Fritz Koch e Georg Sterneck, juntamente com suas famílias, foram deportados para a Alemanha, por terem se envolvido num movimento de greve numa indústria têxtil.
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DIVERSIDADE
ÉTNICA E IDENTIDADE
Santa Catarina, hoje, apresenta-se como um verdadeiro mosaico étnico. Sua população, nesta passagem do milênio, estimada em cerca de 5,5 milhões de pessoas, é formada por gente das mais variadas origens. De uma área para outra, notam-se diferenças flagrantes quanto aos costumes e maneiras de ser dos habitantes. No litoral, os luso-açorianos dominam a paisagem humana. A pesca, o fabrico de farinha, a renda de bilro, a louça de barro, a farra-do-boi e os pratos feitos com frutos do mar são alguns itens dessa caracterização. Nos campos do planalto, a população vivencia costumes ligados às atividades de criação de gado. A marca é a “cultura gaúcha”, centrada no uso do cavalo, do churrasco e do chimarrão. Nos vales litorâneos e em diferentes cidades do interior, os alemães marcam sua presença com clubes de tiro, bandas musicais, jardins floridos e inumeráveis festas. O cultivo da videira e o fabrico do vinho são os elementos que mais se destacam nas áreas de colonização italiana. São famosas a cozinha italiana e a Festa da Uva em Urussanga. Mas não é só. Descendentes de poloneses, ucranianos, austríacos, sírios, libaneses, gregos, judeus, japoneses, espanhóis e portugueses, entre outros, mantêm suas tradições, seu folclore e sua maneira de ser. Aparecem, ainda, neste mosaico, com marcas bastante definidas, populações negras e remanescentes dos povos Guarani, Kaingang e Xokleng. São, pois, diferentes etnias que formam a gente catarinense. Durante a ditadura de Vargas, o Estado vivenciou uma “campanha de nacionalização.” Acusava-se que aqui, como em todo o Sul, havia prosélitos do nazi-fascismo, e que a Alemanha e a Itália pretendiam ampliar sua influência junto à população formada por imigrantes. Escolas comunitárias foram fechadas. Jovens foram recrutados para prestar o serviço militar em outras partes do País. Quartéis do Exército foram instalados em diversas áreas onde a presença de imigrantes era acentuada, com o objetivo de integrar e nacionalizar. A síndrome dos “quistos étnicos” e o receio de controle do Sul do País pela Alemanha e pela Itália espalharam-se. A repressão foi forte, e não poucas famílias | 161 |
sofreram agressões físicas e morais, além de perdas materiais, tudo isso, durante uma ditadura que foi ambígua em relação aos países em guerra, mas que sabia aproveitar a oportunidade para afirmar um Estado-nação unitário, monoétnico e culturalmente homogêneo. Daí serem palavras de ordem a integração, a aculturação e a assimilação dos contingentes migrantes que, por razões da própria negligência dos governos federal e estaduais, mantinham relativamente intactas suas tradições culturais, línguas e identidades étnicas. Mas a proposta estatal de homogeneidade não vingou. Quando se fala em Santa Catarina, logo se percebe a singularidade de um Estado onde prevalece a diversidade de paisagem, de tradições, de identidades e de biótipos. Há fronteiras, geralmente sutis, entre os diversos grupos que protagonizam a vida humana nesta parte do Brasil. Às vezes, os governantes intentam passar a imagem de uma região de “trabalho e de festas”, rica e harmônica em termos sociais e econômicos. A realidade não é assim, como bem demonstram o movimento dos “sem-terra”, os cinturões de miséria no entorno das maiores cidades, os “sem-teto” e os “bóias-frias”. O importante é concluir que a diversidade étnica e cultural da gente catarinense é positiva. O local tem seu espaço em relação ao nacional. O isolamento de muitas comunidades hoje está rompido. Os meios modernos de comunicação asseguraram a integração econômica e política de toda a região, sem eliminar por inteiro as diferenças. Esta heterogeneidade étnica e cultural tem sua própria dinâmica, reenfatizando e reafirmando identidades e comportamentos sociais. A identidade do gaúcho é produto de uma construção social, assim como as demais identidades. Estereótipos e preconceitos de um grupo étnico sobre o outro continuam a existir. Imagens positivas e negativas sobre identidades também acontecem. Esta gente, enfim, hoje, tem orgulho das suas etnias de origem, das suas tradições culturais, da sua nacionalidade brasileira e da sua identidade catarinense.
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CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina. Florianópolis: Secretaria da Educação e Cultura, Plano Estadual de Educação, 1968. DEPARTAMENTO DE CULTURA (SC). Atlas histórico do Estado de Santa Catarina. Florianópolis: Edição do Departamento de Cultura, SEC,1970. IBGE. Repertório Estatístico do Brasil. Quadros Retrospectivos. Série Estatísticas Retrospectivas, vol. l. Rio de Janeiro: IBGE, 1986. LAGO, Paulo Fernando. Santa Catarina, dimensões e perspectivas. Florianópolis: Edição do Autor, 1978. ____.A terra e o homem. In: Santa Catarina no século XX. SANTOS, Sílvio Coelho dos. (Org.) Florianópolis: Editora da UFSC e FCC Edições, 1999, p. 61-90. PIAZZA, Walter Fernando. Santa Catarina: sua história. Florianópolis: Editora da UFSC e Editora Lunardelli, 1983. SACHET, Celestino e SACHET, Sérgio. Santa Catarina: 100 anos de história. Florianópolis: vol. l, 1997. SANTOS, Sílvio Coelho dos. Nova história de Santa Catarina. 4. ed. Florianópolis: Editora Terceiro Milênio, 1995. ____. A modernidade chega pelo trem. In: Santa Catarina no século XX Florianópolis: Editora da UFSC e FCC Edições, 1999, p. 13-30. ____. Contribuição para o delineamento de subáreas culturais em Santa Catarina. In: Povo e tradição em Santa Catarina. Florianópolis: Edeme, 1971, p. 53-63. ____. O homem do Sul. In: Fronteiras, o Brasil meridional. Rio de Janeiro: Edições Alumbramento,1996, p. 253-275. ____. Os índios Xokleng: memória visual. Florianópolis: Editora da UFSC e Univali, 1997.
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SOBRE
AS FUNÇÕES DA UNIVERSIDADE
S
ão múltiplas as funções da universidade. Lembrando Merton, podemos dizer que algumas dessas funções são manifestas, enquanto outras aparecem como latentes. Contradições não faltam para ser arroladas. A questão fundamental, parece-me, é estabelecer alguns parâmetros que permitam a visualização da universidade que desejamos. Ou seja, que a universidade deve ser pública, gratuita, autônoma (tanto sob o ponto de vista pedagógico quanto administrativo e financeiro), democrática, crítica, competente e criativa. Se todos estamos de acordo com uma universidade que contemple esses objetivos básicos, por que não temos essa instituição à nossa disposição? Visto que, para muitos integrantes da comunidade universitária, tais proposições podem ser identificadas como “velhas aspirações.” Lembro Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Anísio Teixeira e seus escritos sobre a universidade. Ou, então, por que não decidimos logo construir a universidade que queremos e que, efetivamente, contemple esses parâmetros fundamentais? Claro está que a questão não é simples. Não se trata de contar com o entendimento de alguns segmentos e assim concretizar suas aspirações, com passes de mágica. No real, a luta é dura, desigual, com forças bastante fortes no sentido de manter a universidade como instituição comprometida com a reprodução do status quo, ou seja a ordem social vigente. Daí a importância do enfoque dado ao seminários organizado pelo DCE. É preciso desmitificar a universidade, e Publicado com alterações na coletânea Questionando a universidade que temos. Fpolis.: UFSC, 1986. Republicado em Educação Brasileira. Revista do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras. Ano. 8, n. 17, Brasília, 1986. p. 127-157.
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para isto é urgente entender suas funções na organização social da sociedade mais ampla. A universidade destaca como seus objetivos a formação superior do homem; a promoção do desenvolvimento da sociedade; o estímulo às atividades culturais; a busca do conhecimento científico e a disseminação de tecnologia. Para tanto, propõe-se a concretizar de forma integrada o trinômio ensino, pesquisa e extensão. Apesar dos esforços de muitos, e de alguns exemplos positivos, a pesquisa e a extensão não têm logrado alcançar os espaços que deveriam ter. Tampouco essas atividades têm conseguido envolver, efetivamente, a sociedade. Isto porque somos um país dependente das conquistas científicas e tecnológicas feitas pelos países dominantes. Isto é, somos consumidores de bens científicos, culturais e tecnológicos produzidos fora de nosso país. Por trás disto, há interesses econômicos e políticos bastante claros. É nesse contexto que devemos valorizar as universidades autárquicas federais e suas lutas para não serem apenas “universidades-ensino”. Lutas que não cessam, devido à abnegação e à tenacidade de muitos de seus alunos e professores. As condições para desenvolver ensino, pesquisa e extensão são precárias e se agravaram com a crise. O orçamento de 1985 da UFSC, por exemplo, representa l6% do orçamento disponível na mesma rubrica em 1981. Um professor visitante em 1980-81 era contratado com o salário médio mensal de 1.600 dólares. Neste ano, em média o mesmo salário deverá ficar em torno de 500 dólares. O mesmo acontece com o valor de bolsas de pós-graduação, tanto para o País como para o exterior. O número de pretendentes a essas bolsas tem, proporcionalmente, diminuído, obviamente por falta de condições de sobrevivência. Mesmo assim, a UFSC conta com um corpo docente que está qualificado em cerca 60% com cursos de mestrado e doutorado. Pode-se falar do subaproveitamento desse potencial. Pode-se falar da inércia da instituição, da burocracia. Mas é preciso sempre avaliar com objetividade as condições efetivas em que o trabalho docente e de pesquisa se realiza. Nesse sentido, o saldo da UFSC é positivo. É claro que a “universidade-ensino” é reconhecida peIa | 165 |
sociedade como necessária. Afinal, ela, em tese, forma os recursos humanos de que a sociedade necessita preparar de maneira mais sofisticada. A tradição brasileira de valorizar títulos e não competência acaba sendo o grande suporte desse tipo de universidade. Por trás disto, convém destacar os valores das camadas privilegiadas da sociedade e como eles são reproduzidos. Refiro-me ao tráfico de influências, ao apadrinhamento, tão comuns na hora de o formando obter seu emprego. Refiro-me às celebres “reservas de mercado” instituídas pelo poder público a partir dos interesses das corporações profissionais. Refiro-me à própria reprodução dos interesses dessas corporações. Neste quadro, é preciso interrogar onde ficam os objetivos da universidade, em particular aquele pertinente à promoção do desenvolvimento da sociedade? Há que aduzir uma palavra sobre quem freqüenta a universidade. Em tese, ela é uma instituição aberta a todos que tenham vocação e competência para estudos superiores. Na prática, uma forte seleção econômica discrimina quem entra e quem não entra. Esta seleção não se dá apenas no vestibular. Ela começa a ocorrer já no processo de gestação, acentua-se na escola de 1º grau e prossegue implacável no 2º grau. De tal forma que, para uma população de 130 milhões (1986), temos apenas 1,5 milhão de estudantes universitários. E desses, apenas 300 mil em universidades federais. O modelo econômico cultuado no Brasil a partir da decada de 1960 certamente exigia a preparação de recursos humanos para a promoção da chamada modernização do País. O crescimento do número de vagas na universidade brasileira pós-reforma certamente atendeu a esta variável. Contudo, também atendeu aos anseios da burguesia nacional, que vislumbrou ampliar seus privilégios. Na fase áurea do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, a conivência das camadas média e alta da sociedade é flagrante para a ampliação das vagas nas universidades. Mas não em universidades que, efetivamente, estavam querendo fazer ensinopesquisa-extensão, com seriedade e competência. Não em universidades públicas e gratuitas. A expansão se deu, como sabemos, sobre a “universidade-ensino”, expedidora burocrática | 166 |
de títulos e atenuadora de tensões sociais. E para não haver maiores embaraços para o sistema, decidiu-se estimular a localização de instituições de Ensino Superior longe dos grandes aglomerados urbanos (lembram-se do Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, das passeatas estudantis para o aumento das vagas nas universidades federais?). Em paralelo, acelerou-se a implantação dos campi universitários. Implantou-se um sistema de matrícula por créditos, que aniquilou com a identidade da turma. Impessoalizou-se o sistema de matrícula, através do computador. Semestralizou-se o ano letivo, etc. As funções da universidade são múltiplas. Não há como desligar a universidade da sociedade mais ampla. Esta sociedade de uns poucos privilegiados e uma maioria de despossuídos que esta aí. Uma sociedade de classes, com muito poucos canais de ascensão social. E, entre esses, apesar de tudo, o mais democrático ainda é a universidade. Neste quadro, o desafio que se impõe é o referente à conquista de uma universidade que, efetivamente, atenda aos interesses da maioria da população. Uma universidade comprometida com o desenvolvimento social como um todo. Uma universidade na qual o ensino seja conseqüência também das atividades de pesquisa e de extensão. Uma universidade que esteja a serviço da conquista da independência econômica do País e altamente preocupada com a responsabilidade social que deve ser assumida por seus professores e estudantes. Uma universidade que não pretenda ser agência exclusiva da mudança social, mas que saiba de seus papéis e de suas limitações. Uma universidade, enfim, que não pode deixar de valorizar a competência, a seriedade, o trabalho e a dedicação de seus estudantes e professores.
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UM
DISCURSO PERTINENTE
N
a última sexta-feira, fui duplamente surpreendido. A administração superior da Universidade, através do próreitor Dilvo Ristoff, certificou-me que meu nome estava entre os professores e servidores técnico-administrativos que seriam homenageados pela passagem do trigésimo quinto ano da criação da nossa universidade. E, ao mesmo tempo, transmitiu-me um convite do reitor para que eu aceitasse ser o porta-voz dos agraciados. Certamente, a tarefa que me estava sendo delegada não era fácil. Entre os homenageados, estão diversas pessoas que bem poderiam se desincumbir da tarefa com maior competência e segurança. Não adiantaram, porém, as ponderações feitas ao prof. Dilvo. Por isto, estou aqui tentando transmitir da melhor maneira os sentimentos que entendo serem dos homenageados, da nossa comunidade universitária, de familiares, amigos, companheiros, colegas e admiradores. O grupo que tenho a honra e a satisfação de representar tem em comum o fato de ter dado o melhor de suas vidas e de suas competências para a Universidade. Como servidores técnicoadministrativos e como professores, sempre se houveram com dedicação em suas atividades diárias. Para alguns, a vida profissional começou no mesmo momento em que a Universidade se instalava entre nós. Ano 1960. O presidente Juscelino Kubistchek, num contexto de um projeto de mudanças no País, entre outras, criou a Universidade Federal de Santa Catarina. A instalação da nova instituição ocorreu em março de 1962. À sua frente, num trabalho simultâneo de relações públicas, de diplomata, de político e de
Proferido no Centro Integrado de Cultura, Florianópolis, em dezembro de 1995, por ocasião do 35º aniversário da UFSC.
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educador, estava o prof. Ferreira Lima, nosso primeiro reitor. Outras ilustres pessoas aqui estão também sendo lembradas, não por terem sido professores ou servidores, mas por serem beneméritos. Nossa universidade surgiu pela reunião de diferentes faculdades que existiam na cidade e que já representavam um esforço significativo de um denodado grupo de profissionais para oportunizar aos jovens o acesso à escolarização superior. Neste começo, nada era fácil. Instalações físicas limitadas e dispersas pela cidade; falta de recursos financeiros; falta de equipamentos; de bibliotecas; de laboratórios. A Trindade, onde havia sido instalada, pelo esforço e visão do prof. Henrique da Silva Fontes, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, era um distrito distante e acanhado, com ônibus de hora em hora. O prof. Fontes encaminhou a solução parcial do problema de transporte, adquirindo um ônibus, dirigido pelo inesquecível Vando, que transportava alunos, professores e servidores no começo e no final de cada manhã. As demais unidades continuavam instaladas no centro da cidade. Discutia-se e rejeitava-se a hipótese de criar na Trindade um campus que reunisse todas as unidades. A Reitoria foi instalada na Rua Bocaiúva, numa belíssima residência senhorial. A administração universitária se consolidava, sob o comando do prof. Ferreira Lima. A Universidade Federal de Santa Catarina começava a despontar. Adquiria uma identidade e se afirmava no cenário nacional. Administradores, professores, funcionários e alunos demonstravam dedicação, garra, criatividade, vontade de crescer e de se afirmar. A Universidade adquiria contornos próprios, demarcava seus espaços e crescia em credibilidade. Os anos 1960 foram, portanto, dos “heróis fundadores”, fossem eles administradores, professores ou servidores técnicoadministrativos. “Heróis fundadores” conhecidos e reconhecidos, uns, desconhecidos e anônimos, outros. Certamente, o número desses últimos é bastante elevado, o que amplia o sentido dessa homenagem e aumenta nossa responsabilidade, pois alguns desses nossos companheiros inclusive já não estão mais entre nós. Nos anos 1970, acontece a consolidação da Universidade. O campus na Trindade torna-se uma realidade. Implanta-se a reforma | 169 |
universitária, que estimulou maior integração entre unidades e departamentos. A universidade se expande. Criam-se novos cursos de graduação. Começa a pós-graduação. A comunidade universitária “descobre” o que é uma universidade. Alunos, servidores técnicoadministrativos e professores articulam-se em torno de objetivos comuns: são aulas; são pesquisas em laboratório e no campo; são experimentos; são trabalhos de extensão; são competições esportivas; são exposições artísticas e peças teatrais; são as apresentações do Coral; são angústias; são vitórias e também são derrotas. Criou-se, assim, uma “cultura” universitária. Nos anos 1980, ventos fortes sacudiram a instituição. São tempos de redemocratização do País, de anistia, de greves, de longas e sofridas greves. A redescoberta da democracia transforma-se num processo penoso. Até então, cada um sabia onde estava. O governo era controlado desde 1964 por militares. Era fácil encontrar referências neste contexto dicotômico. Ou se estava a favor ou contra. Agora, havia diferentes partidos políticos. Apareciam diferentes opções e distintas interpretações. A referência dicotômica tão fácil, tão cômoda, desapareceu. Era necessário aprender a lidar com a realidade democrática que se consolidava no País. Aprendizado difícil. Em certos momentos, a Universidade correu o risco de se confundir com uma Prefeitura do interior, no que se refere às suas disputas políticas internas. Felizmente, os espaços acadêmicos, já conquistados, impediram que houvesse algum retrocesso. A Universidade crescia nos laboratórios; nas salas de aula; nas pesquisas de campo; nas teses e dissertações de seus professores e estudantes; com a participação séria e dedicada de um crescente número de servidores. E chegamos aos anos 1990, redescobrindo com o velho Marx que “Toda ciência seria supérflua se a aparência e a essência das coisas se confundissem”. Assim, tomamos consciência de que a simples acumulação de fatos não conduz ao conhecimento científico. E, repetindo Bachelar, aprendemos que “antes de tudo é preciso saber colocar problemas. Os problemas não se colocam por si mesmos. Todo conhecimento é uma resposta a uma questão.Onde não há indagação, não há conhecimento científico. Nada vai por si. Nada é dado. Tudo é construído”. | 170 |
Por isso, há que questionar, neste momento, as ameaças que pairam sobre as universidades federais. Há indicações claras de um processo de desmonte, iniciado com Collor e que se estende aos dias do presente. Incentiva-se uma campanha de descrédito, apresentando-se a instituição universitária, seus estudantes, servidores e professores como privilegiados por benesses indevidas. Nesta última semana, foi divulgada pela mídia uma lista de supostos marajás proposta pelo Ministério da Administração. Entre dez servidores que lideravam o ranking de remunerações, nove eram professores. Evidente que a intenção dessa lista não foi de coibir abusos, como se propaga. O alvo principal, foi, sem dúvida, a instituição universitária federal. Caso contrário, provada a ilegalidade dos atos administrativos que levaram essas pessoas a receberem salários não admitidos em lei, a providência competente seria a responsabilização civil e penal das autoridades que admitiram tais salários, além do ressarcimento à União dos pagamentos indevidos. Mas, é óbvio, não é o caso. E, também, por isso, neste mês de dezembro, estamos todos vivendo uma nova violência sendo exercida pelo Ministério da Administração, através do Siape. Além dos cortes indevidos nos salários, humilham-se os profissionais das universidades federais, sejam eles ativos, sejam inativos. Todos têm que sair atrás de informações sobre as razões dos cortes, para logo descobrirem que outra coisa não se pratica senão o arbítrio. Magnífico reitor, professor Antônio Diomário de Queiroz, em nome dos homenageados, nesta oportunidade, agradeço esta manifestação de carinho e apreço que a Universidade Federal de Santa Catarina demonstra ter por todos nós, seus professores e servidores técnico-administrativos. Esta homenagem, no momento em que a Universidade comemora seus 35 anos de criação, é um testemunho para nossos contemporâneos e nossos descendentes de que passamos por esta vida lutando e trabalhando para criar uma instituição competente, séria, consciente e comprometida com os valores maiores da humanidade, entre eles a ciência, a cultura e as artes. Por isso, a nossa Universidade tem todas as condições para superar as ameaças próprias dos “modismos de época”.
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UMA
FESTA DA CIÊNCIA
E
ntre 16 e 21 de julho do corrente ano (2005), acontecerá no campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) a 58 a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O tema do encontro não poderia ser mais oportuno: Semeando a interdisciplinaridade. Como em encontros anteriores, realizados em diferentes capitais e cidades do País, prevê-se a presença de 12 a 15 mil participantes. A Comissão Organizadora está viabilizando a transmissão por TV das principais conferências, e haverá cobertura pela mídia e pela internet de todo o evento. Mesas-redondas, workshops e apresentação de painéis, além de conferências, estão previstos, envolvendo pesquisadores, estudantes de pós-graduação e de graduação, e professores das diferentes redes de ensino que são esperados no encontro. Essa será a segunda vez que a SBPC promove suas reuniões anuais no Estado. Em 1966, em Blumenau, aconteceu a 18ª Reunião Anual. À época, esse encontro teve enorme repercussão e, decisivamente, contribuiu para o surgimento da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). Nessa cidade, funcionava apenas uma Faculdade de Ciências Econômicas. Tanto a presidência da SBPC quanto diferentes conferencistas cobraram das elites locais a criação de uma universidade. Em 1985, a SBPC promoveu uma reunião regional em Blumenau sobre o tema “Condições da vida humana na Região Sul”, congregando um público de mais de duas mil pessoas. Na oportunidade, foram reconhecidos os avanços alcançados pela FURB, ressaltando-se a Publicado em Jornal da Ciência, Rio de janeiro: SBPC, 2006. p. 3. ano 20, n. 568; A Notícia, Joinville, 7/fev./2006.
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importância do papel da universidade para a melhoria da qualidade de vida da população local e seu potencial de contribuição no desenvolvimento regional. Uma outra reunião regional aconteceu em Florianópolis, em 1996, focalizando o tema “Ecossistemas costeiros: do conhecimento à gestão”. Esse evento criou condições para a discussão das áreas costeiras como ambientes complexos e fundamentais para a reprodução da vida. Mangues, baías, estuários e sua degradação foram amplamente discutidos, bem como o seu potencial para a produção intensiva de proteínas na forma de criação de moluscos e de pescados. Não poucos projetos em desenvolvimento na UFSC e em outras universidades do litoral foram apresentados, com destaque para a produção de sementes de ostras, de mariscos e de vieiras em laboratório. No caso, como pano de fundo estava a valorização da população litorânea que vive do mar. Como sói acontecer quando pesquisadores, professores, estudantes e administradores se encontram, o debate sobre os problemas do País e, especialmente, sobre as políticas governamentais de ciência, tecnologia e inovação (CTI) deverão recrudescer, neste ano em que também ocorrem eleições gerais. A escassez de recursos financeiros para promover o desenvolvimento científico é a tônica. Apesar dos avanços na formação de novos pesquisadores, do surgimento das fundações de apoio e dos editais para financiamento de projetos, há muito que fazer para que tenhamos na ciência uma base para garantir a melhoria da qualidade de vida da população como um todo. Basta lembrar que o País tem 180 milhões de habitantes e um número muito restrito de pesquisadores e de estudantes em nível superior. A educação básica está entre as mais deficientes do mundo. E a profissão de professor é extremamente desvalorizada. A SBPC tem realizado seu papel como organização voltada para o incremento da ciência no País. A crítica faz parte do dia-adia de seus membros participantes, em particular, de seus presidentes, diretores e secretários regionais. No passado, não poucos sócios foram enquadrados como subversivos porque lutavam por mais educação, mais ciência, mais competência, mais | 173 |
recursos financeiros, além de mais liberdade, mais ética e mais seriedade no trato da coisa pública. Hoje, essas bandeiras continuam animando o cotidiano dos sócios e dos dirigentes da entidade. Temos certeza de que a 58a reunião, a ser realizada num grande clima de festa, será um marco para a conquista de novos compromissos da sociedade, do Estado e do País com a ciência, a tecnologia e a inovação.
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D AS
COINCIDÊNCIAS NA PESQUISA E NA PRODUÇÃO ANTROPOLÓGICAS
A
Antropologia no Brasil teve grande incremento a partir da implantação dos Programas de Pós-Graduação, nos finais dos anos 1960. Os campos tradicionais da pesquisa etnográfica, focalizando povos indígenas e populações rurais e urbanas, se diversificaram rapidamente. Minha trajetória como pesquisador inclui, principalmente, investigações com indígenas no Sul do Brasil, abordando temáticas como contato interétnico, educação, direito de minorias e conseqüências sociais de projetos de desenvolvimento. Nesta comunicação, quero destacar que alguns dos projetos que desenvolvi foram começados em circunstâncias não previstas inicialmente. As decisões que tive de tomar entraram mais no terreno das coincidências do que no cenário das escolhas programadas. Foram, portanto, fruto de circunstâncias. Quero exemplificar com duas temáticas que trabalhei intensivamente e que não foram escolhas realizadas inteiramente sob o meu controle, como pesquisador. Trata-se, parodiando Norberto Bobbio, das muitas coincidências, azares e incertezas que regem a nossa vida e que nos fizeram chegar até aqui como profissionais da Antropologia.
Apresentado na mesa redonda “Trajectorias y Diversidad – Las Estrategias en Investigación Etnográfica” In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL 6. – Montevidéu, Uruguai, 16/18 de novembro de 2005.
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SOBRE
A
EDUCAÇÃO INDÍGENA
Em 1972, obtive o grau de doutor na Universidade de São Paulo com a tese Índios e brancos no Sul do Brasil: a dramática experiência dos Xokleng. Tratava-se de um longo estudo de “fricção interétnica”, focalizando a trajetória dos indígenas Xokleng, tradicionais habitantes do Sul do Brasil, em seu relacionamento com os brancos. O contexto da violência praticada pelas frentes de expansão, que se incrementou com a imigração européia nos meados do século XIX, foi amplamente ressaltado neste trabalho que, diga-se, foi produzido no auge do autoritarismo imposto pela ditadura militar (1964—84). A defesa da tese, as críticas da banca e depois do público, pois a obra foi publicada em 1973, levaram-me a pensar num novo trabalho voltado para a análise dos grupos de extermínio dos indígenas, os bugreiros, que em regra eram formados por brasileiros mestiços, denominados caboclos. Esse mesmo contingente deu o suporte inicial às empresas de colonização e aos colonos, como força de trabalho e como fonte de informação para o necessário domínio do meio ambiente. Aproveitaria, para tanto, boa parte do material bibliográfico e de campo que havia fundamentado minha pesquisa anterior. Os obstáculos, entretanto, para concretizar esse projeto foram muitos, em particular os financeiros. Depois de meses de tentativas frustradas para obter financiamento, nada estava resolvido. Por meios transversos, tive notícia de que a Fundação Ford estava abrindo um processo seletivo para projetos na área de educação. Como eu tinha tido alguma experiência como alfabetizador de adultos e como professor de curso Primário, resolvi propor um pequeno projeto de levantamento da situação das escolas que funcionavam nas áreas indígenas no Sul do Brasil. Com surpresa, meses depois, tomei conhecimento de que a proposta fora aprovada e que os recursos financeiros para a sua execução estavam garantidos. Foi com esse projeto que logrei realizar um survey nas diferentes áreas indígenas do Sul do País. O projeto inicial foi bastante ampliado. As políticas praticadas pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e, depois de 1967, pela Fundação | 176 |
Nacional do Índio (Funai) em relação aos índios foram mais bem avaliadas. Os recursos da fotografia foram utilizados para demonstrar a degradação das reservas indígenas, e pude oportunizar iniciação em campo de diversos estudantes. Da proposta inicial, resultou o livro Educação e sociedades tribais (Porto Alegre: Movimento, 1975). Dei especial atenção nesse livro: (1) às relações de subordinação dos indígenas à sociedade regional; (2) à falácia dos projetos econômicos implantados pela Funai em terras indígenas; (3) às possibilidades e aos limites da educação. Além disso, realizei uma avaliação da única experiência de ensino bilíngüe que se desenvolvia na área abrangida pela pesquisa, por iniciativa de uma instituição religiosa. Fiz incluir, ainda, um apêndice onde focalizava os índios que viviam fora de suas aldeias, na periferia das cidades ou servindo como mão-deobra em propriedades rurais. Outrossim, dados dessa pesquisa serviram para fundamentar dezenas de palestras e debates em torno da temática da educação indígena. Numa época em que a educação não era um tema explorado pela Antropologia, este livro acabou pioneiro. Ao mesmo tempo, me impôs a temática indígena como recorrente. Mas não só, nos anos seguintes a produção da obra O homem índio sobrevivente do Sul (Porto Alegre: Garatuja, 1978), de que falarei no item seguinte, teve por base a documentação fotográfica e os dados de campo obtidos nessa pesquisa. APROXIMAÇÃO
COM OS ADVOGADOS
Logo depois da conclusão de meu doutorado, a área de ensino jurídico da minha universidade começou a organizar um curso de mestrado. Num certo momento, fui convidado para colaborar com esse projeto devido ao fato, creio, do número insuficiente de professores doutores na instituição. Ao aceitar o convite para lecionar as disciplinas “Metodologia da Pesquisa” e “Antropologia do Desenvolvimento”, o que fiz por três anos, pretendi colaborar com a iniciativa e, ao mesmo tempo, vivenciar uma rara oportunidade de atuar no primeiro curso da área de | 177 |
Humanidades da universidade. Nesse momento, a possibilidade de implantar um curso de pós-graduação em Antropologia ainda estava distante. Essa vivência com a área jurídica permitiu saber que a temática indígena não integrava o currículo do curso de graduação, tampouco era atraente para os alunos de pós-graduação. Alguns estudantes chegaram a me questionar, informalmente, da relevância de alguém dedicar seu tempo a essa temática. Esse desconhecimento, aos poucos, foi me colocando diante da falta de comunicação entre as diferentes áreas do conhecimento na universidade. Deixei de atuar no Programa de Pós-Graduação em Direito para organizar e coordenar um curso de especialização de Ciências Sociais, com opções em Antropologia Social e Sociologia, que foi implantado na UFSC em 1976. As relações com os profissionais do Direito, entretanto, não foram abandonadas. Gradativamente, tomei consciência de que era necessária uma aproximação crescente entre antropólogos e advogados, com vistas à defesa dos direitos dos povos indígenas. Ao preparar os originais do livro O homem índio sobrevivente do Sul, já referido, utilizei como epígrafe artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, com o objetivo explícito de ressaltar os direitos das minorias. Esse livro foi conseqüência do seminário “O índio sobrevivente do Sul”, organizado em Porto Alegre, no ano anterior, por diversas entidades civis, e que se realizou na Assembléia Legislativa daquela cidade. Foi a primeira vez que, durante o regime militar, um número expressivo de antropólogos, advogados, religiosos, indigenistas e lideranças indígenas e civis se reuniu para explicitar e defender os direitos dos povos minoritários. Desse seminário, resultou a fundação da Associação Nacional de Apoio ao Índio (Anai), entidade para a qual doei os direitos autorais do livro acima referido. Logo em seguida, ainda como efeito positivo desse encontro, surgiram as Pró-Índio de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na luta pela afirmação dos direitos dos povos indígenas, em 1980 organizamos uma reunião entre antropólogos e advogados, intitulada “O índio perante o Direito”. Esse encontro teve o apoio | 178 |
da Cultural Survival Inc. através do professor David MayburyLewis, da Harvard University (EUA). O professor Maybury-Lewis conseguiu uma dotação financeira para viabilizar a reunião e logrou publicar uma versão compacta em inglês dos documentos conclusivos (Occasional Paper 5, Cultural Survival, Cambridge, EUA, 1981). Da mesma maneira, a Revista Ciência e Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência — SBPC, deu divulgação a essa versão compactada sob o título “Os índios perante o direito” (1981, 33 (2): 161-166). A repercussão desse encontro foi expressiva. A SBPC, em sua 33ª Reunião Anual, realizada em junho de 1981, abrigou uma mesa-redonda sobre o mesmo tema, e a Pró-Índio de São Paulo, em parceria com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) promoveram um encontro denominado O índio e os direitos históricos. Ao final do encontro em Florianópolis, foram aprovados os seguintes documentos: l) sobre terras indígenas; 2) sobre a tutela e a integração dos povos indígenas; 3) sobre a construção de barragens e os direitos dos povos indígenas; 4) sobre parques nacionais em áreas de parques indígenas; 5) sobre o trabalho dos antropólogos e a Funai; 6) sobre o projeto Rondon e as áreas indígenas; 7) proposições e recomendações. A Editora da UFSC publicou a coletânea dos trabalhos apresentados, o rol de participantes (23 antropólogos, dez advogados e 11 convidados especiais), e os documentos conclusivos no livro O índio perante o Direitos: ensaios, que foi organizado por mim, em 1982. Em outubro de 1983, logramos efetivar, com o apoio do CNPq, uma segunda reunião, agora denominada Sociedades indígenas e o Direito: uma questão de direitos humanos. Participaram 21 antropólogos, nove advogados e sete observadores especiais. Os textos das comunicações apresentadas, os documentos finais dos grupos de trabalho e as moções aprovadas foram reunidas no livro Sociedades indígenas e o Direito: uma questão de direitos humanos, que teve como organizadores Sílvio Coelho dos Santos, Denis Wernner, Neusa Bloemer e Aneliese Nacke. A publicação foi feita pela Editora da UFSC em co-edição com o CNPq em 1985. Destacase, na apresentação, que a reunião objetivou a discussão de dois problemas fundamentais: “[...] o primeiro refere-se à realidade | 179 |
pluri-étnica e multi-societária do Brasil, em confronto com a ideologia tradicional, porém vigente, de Estado uninacional, consagrada na Constituição”. O segundo “[...] remete à formulação de estratégias que permitam cada vez mais aos integrantes das sociedades indígenas terem assegurada a assistência jurídica, com vistas a garantir seus direitos junto à sociedade nacional envolvente”. Com certeza, essas duas reuniões foram altamente estratégicas para fundamentar as discussões que se sucederam nos anos seguintes relacionadas à elaboração de uma nova Constituição, fato que se concretizou em 1988. Nessa nova Carta Magna, o capítulo “Dos Índios” assegurou aos indígenas direitos relativos ao reconhecimento pelo Estado brasileiro da sua existência como povos, garantindo-lhes sua perpetuação biológica e cultural, assistência à educação e à saúde, e direito às terras de ocupação tradicional. Um outro livro de minha autoria, Povos indígenas e a Constituinte (Porto Alegre: Movimento/UFSC, 1989), sintetiza os avanços que se pretendia alcançar no relacionamento dos povos indígenas com o Estado, incluindo outras reuniões e encontros que ocorreram no País sobre essa temática. Certamente, os legisladores não incorporaram todas as reivindicações na Carta Magna, porém há que reconhecer que consignaram alguns avanços. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, na qual foram delineadas novas relações entre os povos indígenas e o Estado brasileiro, o tema dos direitos dos índios passou a ser tratado por várias organizações governamentais e nãogovernamentais. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) teve várias iniciativas para aprofundar as questões relacionadas a essa temática, sempre contando com a participação de advogados. De minha parte, continuei participando de debates, realizando palestras e produzindo textos sobre a questão dos direitos dos povos minoritários, em particular os índios. O tema continua, assim, no meu dia-a- dia. Poderia dizer, a esta altura, que o que foi produto de situações não previstas virou tema permanente de meu cotidiano. | 180 |
Concluindo, vou apenas citar Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, certamente um dos maiores expoentes da literatura brasileira, destacando o diálogo em que Riobaldo, seu personagem, diz: Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo!— só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar num rio a nado, e passa: Mas vai dar na outrabanda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do que primeiro se pensou.
BOBBIO, Norberto. O tempo da memória: de senectude e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987. NÚCLEO DE DIREITOS INDÍGENAS. Textos clássicos sobre o Direito e os povos indígenas. Curitiba: Juruá/NDI, 1992. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Auriverde, 1988. ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965 SANTOS, Sílvio Coelho dos Povos indígenas e a Constituinte. Porto Alegre: Movimento/Edusfc, 1989. ____ (Org.) O índio perante o Direito. Florianópolis:Edufsc, 1983. ____(Org.). Sociedades indígenas e o Direito: uma questão de direitos humanos. Florianópolis: Edufsc, 1985. ____. O homem índio sobrevivente do Sul. Porto Alegre: Garatuja, 1978. ____ Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975.
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A ILHA:
ALGUNS DESAFIOS
C
omo todos sabemos, não são poucos nem pequenos os problemas que sob o título deste painel (Desafios Urbanos) poderiam ser arrolados. O que designamos como urbano tem uma linguagem, que se expressa por ruas, avenidas, parques, praças, edifícios, lojas, trabalho, mão-de-obra, riqueza, pobreza, cultura, atividade social, etc. Em resumo, o urbano é uma expressão do ser humano, com suas congruências e paradoxos. Paradoxos que, no nosso caso, de cidadãos partícipes de uma cidade capital de Estado, localizada numa ilha, e inserida no contexto brasileiro e latino-americano, em tempos da pósmodernidade, se exacerbam de maneira extraordinária e, por vezes, se tornam incompreensíveis. Poder-se-ia dizer, em outras palavras, que nossa cidade tem muitas máscaras e que não é fácil pretender descobri-las todas. Poderíamos tentar desvelar algumas dessas máscaras, centrando nossas atenções no movimento urbano; no barulho; no transporte; na vida noturna; na verticalização; nas favelas; nos aparatos de saúde e de educação, na coleta e destino do lixo; na poluição; no abandono social de crianças, adultos e velhos; na miséria; na ostentação da riqueza, etc. Vou tentar, aqui, focalizar apenas duas questões que julgo essenciais considerar. A primeira delas refere-se aos excluídos sociais, que dia a dia se multiplicam. A segunda remete ao aparato burocrático e legal que conta a cidade para resolver seus problemas. No que se refere à primeira questão, é necessário ter claro que uma área urbana, como a da nossa cidade, está inserida num
Apresentado no painel “Desafios Urbanos”, integrante do seminário “Fpolis. Século XXI – um projeto de vida para a cidade”, que ocorreu entre 6 e 10 de novembro de 1995.
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contexto mais amplo e, nesse sentido, seja em termos ambientais, seja em termos sociais ou econômicos, é necessário considerar sempre o local sem perder de vista a nossa inserção no planeta. Em tempos de pós-modernidade, de economia globalizada, de altas tecnologias, o problema da exclusão social se acentua e se agrava. Desempregados, sem-teto, crianças de rua passaram de um hora para outra a estar presentes em nosso cotidiano. É preciso lembrar que, nos anos 1950, Florianópolis não tinha mais que 50 mil habitantes. O núcleo urbano não tinha mais que 25 mil pessoas. Poder-se-ia compreender a hieraquização social da cidade, caminhando-se das favelas vizinhas à Prainha (localizadas junto aos morros do Mocotó e Mariquinha) em direção ao centro da cidade, passando pelas Ruas Bulcão Viana e Tiradentes, Praça XV de Novembro e Chácara do Espanha, locais de residência da classe média, e daí chegando à Avenida Trompowsky e à Rua Bocaiúva, onde se localizavam as vivendas dos poderosos. Ricos, remediados e pobres se encontravam na praça, no mercado, na igreja. A pobreza existente, tanto na área urbana como na zona rural do Município, era “administrável”. Nos anos 1960, primeiro com a instalação da Universidade Federal, depois com a transferência da Eletrosul, a área urbana começou a mudar. O poder exercido pelos militares, centralizado e autoritário,deslanchou políticas públicas que levaram ao êxodo rural, à implantação de uma malha viária, à instalação de meios de comunicação, à concentração da renda e, lógico, à expansão urbana. Florianópolis cresceu. Melhorou sua infra-estrutura. Tornou-se uma referência para todos que procuravam qualidade de vida. Foi redescoberta em suas belezas. Implantou-se uma indústria turística. Diversas obras públicas aconteceram, e a cidade perdeu aquele ar provinciano. Nos anos 1980, com a redemocratização do País, começaram-se a perceber alguns dos (des)caminhos percorridos: especulação imobiliária, exclusão da maioria da população local dos benefícios conseqüentes das mudanças; atração de mão-de-obra para empregos transitórios; favelização; etc. Vale lembrar que, tradicionalmente, a cidade foi administrada por prefeitos designados pelo governo do Estado. Esses, também, | 183 |
muitas vezes, designados pelos ditadores “de plantão”. O clientelismo político, centrado no cabo eleitoral, sempre foi a tônica da administração do Município. Podemos estender isto para um passado mais distante, que nos permitiria compreender as relações das populações de tradição luso-açoriana com as esferas de poder. Poder, na maioria das vezes, distanciado, mas ao qual, às vezes, era preciso recorrer. Uma parte dos excluídos sociais de hoje, na verdade, são pessoas que perderam aquelas conexões tradicionais da estrutura social luso-brasileira para chegar aos detentores do poder, centradas no parentesco, no compadrio, no cabo eleitoral, no patrão, quando a tônica da relação eram a fidelidade e a submissão, e a contrapartida, o paternalismo. Para esses excluídos sociais, ampliados em número continuamente pela realidade econômica perversa conseqüente da globalização crescente da economia, a cidade necessita estabelecer políticas públicas claras que objetivem a reintegração social desses contingentes. A base dessas políticas devem ser a educação, a saúde, a cultura, o esporte, a formação profissional e os programas de habitação. Cada vez fica mais claro para todos que a qualidade de vida não pode ser reservada para uns poucos privilegiados. Nesse sentido, os excluídos não podem se relacionar com o Estado somente pela sua face repressiva. Em outras palavras, não será viável pensar, por exemplo, a cidade de Florianópolis como um pólo de serviços e um centro de excelência turística, sem equacionar objetivamente a questão dos excluídos sociais, num contexto inclusive que ultrapassa as esferas de decisão do Município em si. Ou seja, é preciso haver articulação crescente entre a cidade com a área imediatamente conurbada, com a região, com o Estado, com o País. Hoje, nada se pode considerar de forma isolada. É sempre preciso pensar na “mão invisível” do mercado, dando atenção para os efeitos difusos e perversos da mudança. Nesse sentido, os recursos naturais, por exemplo, que durante largo período eram entendidos pelas populações nativas (isto é, luso-açorianas) como de “propriedade comum”, onde se concentravam recursos estratégicos de interesse de todos, | 184 |
passaram a ser tomados por um número crescente de “novos consumidores” como de acesso livre, gratuitos, de uso ilimitado, e, em muitos casos, passíveis de apropriação individualizada. Exemplo, a Lagoa da Conceição, ontem, com seu potencial de pesca, e hoje, a Lagoa como local para uso intensivo e livre por parte de proprietários de lancha, jet-sky, etc. Deve ficar claro, ainda, que entre os excluídos sociais estou considerando largas parcelas da população nativa da Ilha. Essas pessoas pouco ou nada se beneficiaram da instalação, por exemplo, da UFSC ou da Eletrosul, nos anos 1960, na cidade. Também pouco se beneficiaram da implantação do turismo como atividade econômica. Aqui aparece o segundo ponto que quero destacar. Trata-se de um grande desafio para a máquina administrativa municipal e se resume em como encontrar solução para esses e outros problemas, articulando objetivamente respostas que interessam tanto aos segmentos excluídos como aos demais cidadãos. Sabemos que nossa cidade nasceu à sombra dos interesses hegemônicos portugueses no Atlântico Sul. De uma parte, havia um projeto de transformar a Ilha num baluarte estratégico. Daí as muitas fortalezas construídas por Silva Paes. De outro, os imigrantes açorianos eram simultaneamente submissos e arredios às decisões da Coroa. Saltando para os anos 1980, também percebe-se que as possibilidades de exploração pura e simples dos recursos naturais da Ilha se esgotaram, junto com a crise do modelo concentrador de riqueza, bem apelidado de capitalismo selvagem. O sonho do emprego para quem vinha do interior acabou. O sonho de investimento com retorno rápido também ruiu para as camadas média e alta. A máquina administrativa municipal, claramente, está defasada em relação tanto aos novos tempos como a esses novos desafios. A divisão municipal em Distritos e a correspondente administração através de Intendências, desaparelhadas de tudo, não atendem à realidade da cidade. O peso da burocracia não é pequeno no orçamento deste ou de qualquer outro município brasileiro. Mas aqui há a tradição de sermos um centro | 185 |
administrativo por excelência. Não tenho dados numéricos, mas, certamente, Florianópolis se aproxima, proporcionalmente, da cidade do Rio de Janeiro, em sua dependência, em termos de emprego, no Serviço Público. No caso do Município, certamente, se comparamos o número de funcionárioss com os de outras cidades de tamanho similar, no Sul do País, vamos certamente concluir que Florianópolis tem uma relação funcionários/número de habitantes mais elevada. Nem por isso a burocracia municipal está preparada para enfrentar os desafios que a cidade vive. Há que acrescentar, ainda, os problemas conseqüentes do corporativismo burocrático, do tradicionalismo político e da legislação municipal, complexa e casuística. A cidade entrou, como sabemos, há alguns anos no cenário mundial, não só por seu potencial turístico, mas também como opção para investimentos especulativos, quando não para a “lavagem” pura e simples de recursos financeiros de duvidosa origem. Tudo isto, no dia-a-dia, é vivenciado pelo administrador interessado em encontrar as melhores soluções para a nossa cidade. O importante, entretanto, é compreender que o aparelho municipal, tal como está estruturado em termos de legislação e de organização administrativa e fiscal, tem limitações enormes para fazer valer os interesses do cidadão não privilegiado, especialmente no que se refere à coleta de tributos. Também tem limites para impor a legislação. Muito mais dificuldades encontra para criar novas leis, novas normas, destinadas a manter sob controle o espaço territorial do Município. Os conflitos não são poucos nem desconhecidos. Certamente, essas questões necessitam, antes de tudo, de uma maior visibilidade para todos nós. Não se pode mais aceitar a Ilha como sendo domínio de poucos, com o aval das burocracias submissas às oligarquias. Conscientização crescente dos problemas da cidade, de maneira integrada; treinamento e responsabilidade profissional do servidor; respeito pelo cidadão; refinamento constante da legislação; descentralização administrativa; definição democrática dos objetivos da administração pública; são, entre outros, alguns caminhos que devem ser cada vez mais e mais perseguidos e ampliados. | 186 |
MAIS
E MAIS EDUCAÇÃO
J
unto com as comemorações do Dia Nacional da Educação, em abril, apareceram dezenas de artigos na imprensa, e ocorreram audiências públicas na Câmara Federal e em Assembléias Estaduais, além de seminários em universidades, discutindo a situação da educação no Brasil, em particular o Fundeb, e a questão das ações afirmativas em favor de índios e afro-descendentes. Também as carências da educação oferecida nas escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio foram ressaltadas com vigor, tendo como referência um estudo divulgado pela Unesco, informando que, em 2002, da primeira à quarta séries, a taxa de reprovação no Brasil atingiu 21%. Ficamos atrás de apenas 15 países, a maioria localizados na África e no Caribe. Esse índice de reprovação era igual ao de Moçambique e superior ao do Haiti (16%) e de Ruanda (19%). Um vexame, e, apesar dos desmentidos oficiais de sempre, pouco mudou até o presente. Por isso, a empresária Milu Vilela, embaixadora da Boa Vontade da Unesco, disse que “[...] não podemos mais suportar ver a educação colocada em segundo plano no debate político, como ocorre há décadas” (Folha de SP, 4/5/06). No dia anterior, o educador, escritor e professor emérito da Unicamp Rubem Alves disse no mesmo jornal que “[...] a escola é chata porque está nas mãos de burocratas”. E, mais de dez anos atrás, o mestre Darcy Ribeiro dizia, referindo-se às escolas públicas deserdadas em termos de políticas governamentais, falta de autonomia e baixos salários dos professores, que, desiludidos, os docentes faziam que ensinavam e os alunos fingiam que aprendiam.
Publicado em A Notícia, Joinville, em 30 de maio de 2006.
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Foi nesse contexto que lembrei do mestre George Agostinho da Silva, que atuou na antiga Faculdade Catarinense de Filosofia, colaborou com a implantação da UFSC e atuou na Universidade de Brasília. Num folheto escrito em Lisboa, em 1974, dizia, depois de fazer extensa crítica à situação da educação, que “[...] os gênios de que se orgulha a humanidade são simplesmente crianças que conseguiram sair ilesas dos sistemas de escola”. Aqui em Santa Catarina, nos anos 1960, foi implantado junto à Faculdade de Educação da Udesc um Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais (Cepe). Com suporte financeiro fornecido pela Secretaria do Plano de Metas do Governo (Plameg), várias pesquisas foram realizadas por uma jovem equipe de pesquisadores. Os resultados alcançados permitiram a elaboração do 1º Plano Estadual de Educação. Junto com a expansão da rede escolar, previam-se a reciclagem do corpo docente, remuneração adequada e uma proposta pedagógica centrada no estudante. Na prática, com mudanças oriundas do acordo MEC—Usaid, promovido pelos militares que haviam assumido o poder em Brasília, pouco foi cumprido. Anos depois, novas tentativas foram realizadas para estabelecer o planejamento da educação. A mobilização dos professores foi forte, porém os avanços necessários foram parcamente alcançados. O partidarismo político se acentuou, influenciando negativamente o desempenho escolar, tanto de professores como de estudantes. Felizmente, algumas experiências pedagógicas e de organização escolar foram implantadas mais recentemente, em particular junto às áreas periféricas, reservas indígenas e áreas urbanas degradadas, testemunhando que, havendo vontade política como objetivo do Estado e dos governos, a escola pública pode funcionar plenamente. Falta ampliar essa vontade, definindo-se metas educacionais objetivas e práticas tendo como base, principalmente, recursos financeiros suficientes; a implantação da carreira docente; a adoção da escola em tempo integral nas áreas de risco; a inclusão digital; a eliminação da repetência e da evasão; e a aproximação crescente com as famílias dos alunos e com a comunidade como um todo. Só assim eliminaremos as grades que, de maneira torpe, guarnecem portas e janelas, separando as escolas do entorno social, em particular nas comunidades deserdadas economicamente. | 188 |
Criação da capa e formatação desta obra realizados em São Leonardo, Alfredo Wagner, Santa Catarina, julho de 2007. www.riodasfurnas.org.br