Passeando por Paulo Leminski

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Passeando por Paulo Leminski

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(A CONTRADIÇÃO QUE O CONGRESSO NÃO RESOLVE: )


4 Constituição Federal: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Artigo 20 do Código Civil: Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.


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(CONTRACAPA: ) Pinheiro do Pilarzinho Paulo Leminski, passei pelo Pilarzinho Tomei o velho caminho fui até a tua casa A vida tem suas leis que nós chamamos destino Madeira vira carvão como o carvão vira brasa agora vira memória a vida vira história mas não tem nada não aquele pinheirinho virou um pinheirão


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(EPÍGRAFE: ) Toda jóia um dia já foi lava, todavia condensou-se e lapidada cada faceta irradia sua luz poliedra: pedra que se fez poesia

FACETAS:


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O Poliedro O Mestiço O Noviço O Anfitruão O Polivivente O Polinguista O Anarquista O Estrategoista O cerebrelétrico O Estóico O Mito

O POLIEDRO


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Em 1964, em Londrina, um rapazola lê com espanto e encanto artigo de um tal Paulo Leminski na revista concretista Invenção. Alguns anos depois, o londrinense conhecerá o curitibano Leminski e, depois de algumas rusgas e rugas, serão amigos, tratando-se como Polaco e Pé Vermelho. Pé Vermelho novamente se espantará com Leminski, ao saber que ele é mistura de polonês com mulata, neto de negro e índio e português. E também se encantará com sua poesia, mistura de cult e pop, truques concretos e resquícios românticos, artifícios formais e caprichados relaxos coloquiais, doce amargura e cáustica alegria, erudição e simplicidade, maluquice e mágica. Polaco e Pé Vermelho se encontrarão muitas vezes, em Florianópolis, Curitiba, Londrina e São Paulo, amarrando uma amizade de três décadas e dezenas de garrafas. Mas Pé Vermelho deixará de procurar o Polaco quando passar por Curitiba, não mais conseguindo ver como ele foi destiladamente se matando. Então Pé Vermelho estará em Porto Velho, Rondônia, e verá Leminski na tevê do restaurante. Que será que o Polaco está inventando, pensará, aumentando o volume para ouvir que ele consumou o que chamara de “minha última obra”. Pé Vermelho fica com raiva do Lelé, como também chamava o Polaco. Um ano depois, em mesa redonda no evento Perhappiness, homenagem a Leminski em Curitiba, Pé Vermelho não conseguirá falar e passará todo o tempo chorando, para espanto de Haroldo de Campos a seu lado.


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Duas décadas e meia depois, uma editora convida Pé Vermelho para escrever biografia de Leminski, e imediatamente o fantasma do Polaco aparece: - Biografia é muito convencional, eu não mereço algo melhor? Pé Vermelho então lembra daquele primeiro artigo que leu de Leminski, uma misturança de gêneros e gênesis, idiomas e gírias, signos e sacadas. Como ele era mistura de raças. Como sua literatura era mistura de erudição e sacação, Português e Inglês, tensão e relaxo, carne e espírito. Pé Vermelho dorme pensando nisso, e sonha que faz uma sopa com Leminski. Acorda, liga ao editor: - Biografia do Polaco já foi feita. Outro livro sobre ele tem de ser mistura de informação e romance, erudição e conversa, realidade e sonho, água e pedra, história e festa, uma lifestory! O editor discorda, Pé Vermelho diz que assim mesmo fará o livro desse jeito, desliga o telefone e pensa em voz alta: - Espero estar certo, Polaco. Ribomba um trovão, tremelicam os copos da cristaleira, Pé Vermelho entende: - Não gostou, é? Então me ajuda! Daí olha sobre a mesa uma pedra catada em riacho há décadas, concavamente cinzeiro rústico usado apenas por raras visitas fumantes. Mas Leminski fumava, e gostava de pedras, tratou delas em vários poemas. E toda pedra é, mesmo que rusticamente, um poliedro, multifacetada como foi o poeta do


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Pilarzinho. Pé Vermelho resolve que o livro será um passeio pelas facetas poliédricas de Leminski. Então, como ele fazia, rabisca num guardanapo: “toda jóia já foi pedra um dia”... O Polaco, lá quando leu o primeiro livro de poesia de Pé Vermelho ainda nos anos 70, um volume mimeografado na onda da chamada “geração marginal” (Conversa Clara, 1974), sentenciou: - Não está ruim, mas você faz uma poesia aforismática. - Pois é – Pé Vermelho retruca 40 anos depois – E o livro que vou escrever sobre você, cara, começará com uma poesia aforismática... Começa a escrever enquanto cai a tempestade, lembrando do amigo a olhar pela vidraça alisando os bigodões: - Acho lindo tempestade, é o tempo em alta voltagem! Como foi Paulo Leminski.

O MESTIÇO Ego sum Paulo Leminski, nome de santo e de imigrante polonês, mestiço até nisso, e acabo de fazer levantar da cama um amigo que não vejo desde que viajei para virar mito, para me fazer mais uma vez renascer, quando o danado já estava


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pensando em abandonar o navio, jogar a toalha, pedir arrego, dexistir, virar excrevedor de mim, mas eu lhe apareci de novo em sonho e falei não, os galos garganteando como se falando por mim, nãããããoooo, cara, nããããããããoooooooo, você vai levantar, ligar aquela sua maquininha que eu nunca tive o sortilego de usar, e ligar principalmente esses seus velhos neurônios que estão precisando brincalhar e, sem nem tomar café como eu fiz tantas vezes, tocado só pelo fogo da criação, antenado nas estrelas para falar de uma estrela, você vai dizer, entredantes, que eu não tenho culpa de ter/em me transformado em estrela, como ninguém de nada tem culpa nem desculpa para não fazer o que manda o coração e a alma comanda, obedecer a voz da vocação como quem segue um mestre de milênios, sorteado pela loteria genética com todas as delícias e os martírios do que chamam de dom, palavrinha que também está em Dominus, Senhor, Deus, palavreta inventada para expressar nossa estuperplexidade diante dos mistérios do Infinito, da Eternidade e do seu momento mais gostorioso, que é a existência de vida num planetinha coberto de água mas chamado Terra, portanto mestiço também, e os invejosos, os maldosos, os raivosos, estes sim carreguem a culpa de seus suicidegos, pois quem inveja mata a própria vida, quem amaldiçoa a si mesmo se peçonha, quem com raiva fala é se mordendo, mas tristinsistem em falar que o povopop me endeusa demais (como se pudesse ser de menos o que vem


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de Deus), que não tenho realmente leitores mas fãs, no inútil e deblátil afã de diferenciar trigo de pão, como se pudesse também haver um povo-cult, um bestpovo a quem eu criticalizado me dirigisse reverente e cordeirizado em sacrifício ao certo, ao útil, ao bem, ao correto e ao moderado também, em vez de me dirigir ao grande público que sempre me ouviu, que sempre me orientou e me aplaudiu, e que é essa multidão em mim, os mil egos que sumus, como bem disse Mário, eu sou mil, sou mil e quinhentantos, todos esses eus em uníssumus que, desde eu menino poetando já aos oito, sempre me garantiram que eu estaria certo de seguir seus concilhos, como quem se encilha e investe tudo em si, de modo que investi todas as fichas em ser único e, enfim, virei o que desde o começo Deus quis fazer de mim, já a partir de meu mestinascimento. Linhás (é um aliás noutra linha), só pra ilustralegrar, um dia alguém me disse que, conforme a antropologia, os mestiços são a raça do futuro, o que me fez proclamar em voz alta como sempre: - Então eu já nasci futurista! Agora, se importa ou abre alguma porta o dia em que nasci, 24 de agosto de 44 (para viver também 44), aí está a data, como carimbo astrológico para dizerem que sou Virgem ou Macaco, o que me faz rir lembrando de você, Pé Vermelho palhaço que um dia me disse não acreditar em signos porque isso é próprio de Leão, então


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vamos em frente para trás, lembrando que meu pai me deu seu nome, Paulo Leminski (Filho, que eu graficivilmente degolei) e também me deu sua mansa compreensão para minha estrelação. Fique este ponto aí a significar o dia, a hora e o minuto em que minha mãe Áurea (já mestiça de português com negro e carijó, e com esse nome a reluzir como miçanga de português para encantar índio) encontrou-se com aquele filho de poloneses pobres (outro pleonasmo imbecil, pois que polonês rico veio para o Brasil?), encontraram-se na Rua XV, no centro de Curitiba, onde tanto me encontrei rabiscando poemas em guardanapos e dando de encontro comigo mesmo em divagações a esmo, encontraramse como se saídos de um labirinto genético, ela filha do português Fernando Pereira Mendes, que teve três filhas com minha avó Inocência, nome de romance do Visconde de Taunay, que governou Curitiba seculantes e criou o Passeio Público, veja como a vida é um novelo, e, como eles se conheceram passeando pela Rua XV, preassumo que, antes da afeição, foi pela feição que se atraíram, como em química opostos se atraem, o europeu sentindo o genético chamado negríndio para uma fusão forjando material mais resistível, o polonês resistente e o índio flexível, entre eles o negro entrando com a forçancestral da mais antiga das raças, que porém não me legaria traço nenhum na pele branca e nos cabelos lisos, mas no suor um cheiro inconfundível, a marcar


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vidafora quem, como eu, herdou de algum macaco muito arbóreo um desgosto por água e seu antropilógico derivado, o banho. Acredito que o nascimento é cósmico, regido por todos os acasos, circunstâncias, coincidências, imprevistos, desastres e detalhes que se orquestraram em diferentes tempos, como numa multifonia, num enredamento de acontecimentos confluentes para que um dia, numa hora e num ponto do planeta, alguém nasça filho de quem é e quaquaneto de quem foi, inegavelmente portador de um ego mas herdeiro de uma

multidão,

instintivamente tanto dependente de si como culturalmente descendente de tantos, a quem deve servir com seu dom, senhor de si mesmo e escravo da Humanidade, essa prisão de semelhanças aberta às diferenças. Esclareça-se, aclarando essa fusão de raças, que minha mestiçagem não é só de sangue, mas também de mente, pois desconfio que herdei do avô Fernando Pereira Mendes a chama da poesia, que ele escrevinhava em redondilhas em contraponto à reta profissão de capitão do Exército, enquanto meu pai também era militar, sargento do mesmo Exército brasileiro que tanto combateu o nazismo como massacrou Canudos, militariedade que, de certa forma, renasceu em mim, tão apaixonado pela arte marcial como pela chamada arte da guerra, a trama de táticas e estratégias que tanto se parece com a arte da escrita, com sua trama de alinhavar sintaxe em eixo narrativo, embora essa mentalidade não me tenha impedido de manter os pés no chão, olhar em volta mesmo diante do mais belo poente,


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ouvir comumente a fala da gente comum, o batuque do samba e o ritmo do rock, herança negríndia que nunca rejeitei nem escondi, de modo que, escrevaí, sou etnicamente correto nesta incorreção genética, talvez tenha direito a alguma bolsa-mestiça, não? O humor, de quem a gente herda o humor? O meu talvez venha não só herdado mas também adqui-rido, com perdão do trocadilho, que Bernard Shaw dizia ser a forma mais indigente de humor, mas ele era inglês e os ingleses, você sabe, conseguem gostar de torta de rim e jogar cricket apaixonadamente. Talvez afanei meu humor dos poemas-piada de Drummond e Bandeira, e afinei com os de Osvald, que me revelaram ser a poesia brincável, em vez de apenas solene como tantos poetofres fazem, poesia de quem sofre para quem gosta de sofrer. Poeta pra ser bom tem de sofrer, escreveu Vinicius, mas sofrimento na vida a gente não precisa pedir nem esperar, vem e acontece como chuva chove, enquanto alegria é roupa que se veste como se despe por querer. Tia Luiza lembra, na biografia que o Toninho fez de mim1 (veja nota de rodapé), que o primeiro desenho que lhe mostrei era de um fogão que chamei de Miséria, porque sem lenha e com panelas vazias. Ainda bem que não me enfiei por essa trilha de ver o pior do mundo como se isso pagasse alguma dívida, esse sentimento de culpa que tantos intelectuais cultivam e que em mim, dali por diante, passou como a chuva a resvalar pelas penas dos pássaros, sem penetrar nem impregnar, três tocs no 1 2

O Bandido Que Sabia Latim, Toninho Vaz. Na tradução de Oldegar Vieira, em Oku, de Carlos Alberto Verçosa, Empresa Gráfica da Bahia, 1995:


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pinho. Tanto que meu primeiro poeminha, lá pelos nove anos, diz a tia que tinha o título de O Sapo, a lembrar o ironicoso poema de Bandeira e, também, a prenunciar minha paixão pelo haicai, a partir de Bashô e seu famoso sapo que na lagoa pula e o silêncio ondula2..., considere uma onda cada pontinho da reticência. Certo é que quando Pedro, meu irmãozinho, começou a engatinhar pela casa, me refugiei no alto do guarda-roupa, meu primeiro refúgio de tantos que fiz, erguendo-me em torres de silêncio lendo, procurando cantos onde me enfurnar em mim, em contraponto ao falador que também me fiz, famoso por filosofar em voz alta até arfar, filosarfando portanto, o que me fazia suspirar tão fundo que confundiam com ansiedade, não era, era só e já saudade de tudo que eu quis ser e sabia que não ia conseguir vivendo tão pouco, em medida de tempo, como vivi, embora em medida de vida acredito que tenha excedido. Mas eis que, junto com Pedro, bato continência a nosso pai quando o sargento Leminski sai de casa fardado para o quartel, sinal explícito de minha tendência para a disciplina, esteio da minha construção. E, para essa construção de mim, que é que somou o sargento ser transferido e a gente ter morado em Itapetininga? Talvez apenas o indício de meu futuro caminho, já nesse nome tupi-guarani, “ita” significando “pedra”, que tantas vezes aparece em minha poesia, e “petininga” sendo “caminho seco”, 2

Na tradução de Oldegar Vieira, em Oku, de Carlos Alberto Verçosa, Empresa Gráfica da Bahia, 1995: Ploc! Um sapo pula / no silêncio da lagoa / e o silêncio ondula.


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trilha entre as pedras secas, como a que percorri, com minha poesia enxuta e minha prosa compactadora de palavras. Também que importa o sargento Leminski ser novamente transferido e a gente morar em Santa Catarina, num posto militar chamado Quilômetro 34? Mas eis que ali fui matriculado em escola pública, aos cinco anos, indício de mais um ingrediente no meu bolo mitobiográfico, a precocidade (tem fã que jura ter seu avô me ouvido falar Latim já nessa época, o que obviamente não é verdade, como não é crime crer...). Certo novamente é que ali naquele posto militar eu continuava a buscar refúgios, me punha no alto de árvores ou em sótãos, porém atento ao chão do cotidiano, como depois lembraria num de meus poemas mais pés-no-chão: “Minha mãe dizia: / - ferve, água! / - frita, ovo! / pinga, pia! / E tudo obedecia”. Também anote-se que ali no Quilômetro 34, nome prosaico e quilométrico como seria minha prosa no Catatau, vi que meu pai fazia o que depois eu repetiria em alta dosagem, beber uma água ardente tão apreciada pelos poloneses como pelos negros e índios que em mim observavam aquilo esperando vez. E pronto, já rabiscando poeminhas em papéis soltos como faria vidafora, lá estava eu mestiçamente nascido e encaminhando para minhas artes, ofícios e sacrifício, quando o pai foi novamente transferido, de volta a Curitiba, em Tupi “terra de muitos pinhões”, das pinhas que caem da árvore em forma de taça, como em taças e copo e no gargalo eu tanto beberia ali.


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E aqui e por enquanto, Pé Vermelho, te passo agora o bastão neste cultorneio de revezamento para contar minha história de vida, ou contar com vida minha história, alertalhando que história de vida é pleonasno, pois história pressupõe vida como vida pospõe-se em história, então que seja um pleorgasmo duplo, dever e prazer de gozar juntos sem intenção nem plano, só intuição, ação e pronto, pegue o bastão com as duas mãos e o coração. Em junho de 2013 em Curitiba, o editor Samuel Ramos Lago convida Pé Vermelho para escrever biografia de Leminski, no mesmo Mabu Hotel onde Pé Vermelho e Leminski um dia beberam o frigobar olhando da janela a copa de um pinheiro com pinhas. Pé Vermelho fica de pensar na proposta, o editor se vai e ele fica lembrando daquele dia, quando falou que belo pinheiro – e Leminski imediatamente corrigiu cortante: - Não é um pinheiro! É uma pinheira! Se tem pinhas, é pinheiro fêmea, pinheira. O machismo atinge até a botânica! Pé Vermelho volta para Londrina com aquilo rodando na cabeça, um livro sobre Leminski, quem diria. Em casa, sonha com Leminski, falando e gesticulando enquanto caminha meio de lado por causa do fígado inflamado pela cirrose, como no poematestamento Dor Ambulante: “um homem com uma dor / é muito mais elegante / caminha assim de lado / como se chegando atrasado / andasse mais adiante”.


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Pô, diz Pé Vermelho no sonho: - Você vai se matar até morrer, né? - Mas conto com você, cara, pra escrever que eu não morri de tanto me matar, morri de tanto viver, lembra? Pé Vermelho acorda, tateia o criado-mudo, acha a caneta, mas cadê papel. Levanta e vai à cozinha pegar papel e novamente escreve em guardanapo, enquanto um galo canta na vizinhança, como que alertando, e o olhar pousa no calendário na parede, que então ele olha e... vê que é 7 de junho, o dia da morte de Leminski! Mas o que isso quererá dizer? Que deve aceitar a proposta de reviver Leminski, escrevendo sobre sua vida, ou será sinal para deixar o morto em paz? Pé Vermelho volta para a cama, não consegue mais dormir pensando nisso, lembrando cenas de Leminski que começa a anotar. Mas escrever o que sobre a vida dele? Já teve uma biografia bem feita, já virou mito, já teve exposição na mídia e até em museu3, o Catatau foi reeditado, Toda Poesia virou best-seller, VIDA, seu quadrivolume de biografias será reeditado, o que mais escrever sobre Leminski?! Na noite seguinte, Pé Vermelho volta a sonhar com o Polaco. Na casa no Pilarzinho, cozinham no piso da sala, fazendo sopa num caldeirão sustentado por três pedras sobre um fogareiro a álcool (tudo simbólico, verá Pé Vermelho depois: pedras, que aparecem tantas vezes na poesia de Leminski, daonde virá a idéia

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Múltiplo Leminski, exposição curada por Alice, Áurea e Estrela Leminski.


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de escrever sobre suas facetas feito poliedro; e um fogareiro a álcool...). Pé Vermelho mexe a sopa com colher de pau, vendo que é sopa de legumes com cogumelos e costelinha de porco defumada, coisa eslava. Leminski bica copo de vodka e brinca enxugando com os dedos os bigodões: - Álcool serve até pra cozinhar, hem... Na campanha da Rússia, os alemães passaram fome porque as rações congelavam e eles não tinham fogo. - Onde você leu isso? Ou tá inventando agora? - Eu?! – batendo as mãos no peito, depois suspirando tão fundo que os bigodes ruflam com o jorro de ar – Eu não minto, cara, eu recrio! Riem. Leminski diz que, para a sopa não ficar rala, também é preciso criatividade. - Vamos botar pinhão aí. Descascam pinhões cozidos mas, frios, é difícil descascar. Leminski diz que é assim mesmo: - O difícil é sempre melhor. Picam os pinhões descascados sobre uma tábua, despejam no caldeirão fumegante, e Leminski saca do bolso um papelote, Pé Vermelho reage: - Guarda isso, a gente vai comer! - Não é o que você pensa, cara! – Leminski sorri matreiro – É páprica!


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Despeja o pó vermelho na palma da mão e, com dois dedos, vai polvilhando na sopa. - Pra sopa pop, tempero fino! Pé Vermelho acorda, suado na noite fria. Que diabo quis o Polaco

dizer

com

aquilo?

Leminski

salta

da

memória

proclamando: - Pra Freud tudo é sexo, pra Jung tudo é símbolo, então prefiro Jung pra analisar meus sonhos, porque sexo eu mesmo faço! Então Pé Vermelho tenta analisar simbolicamente o sonho. A sopa é a história da vida de Leminski, que devem escrever juntos, o escritor e seu fantasma, como juntos faziam a sopa no sonho.

Os legumes são o trivial, a vida do dia a dia de

Leminski, o menino a brincar de poeta, o poeta a brincar de menino. Costelinha defumada é ingrediente eslavo e negro ao mesmo tempo, a parte do porco que os nobres rejeitavam por ter ossos, assim ignorando o gosto delicioso por isso mesmo. (Mas porque costelinhas defumadas? A simbolizar toxicidade? O a trucagem de embutir na carne o gostinho e o cheirinho da madeira ancestral? Trucagem, claro, há de ser uma história criativa, ou não será de Leminski). Os pinhões, claro também, são o Paraná, os pés na terra, no aqui, no barro que pode tomar a forma que a gente quiser; como os pinhões também são a língua do povo, as raízes na forma de frutos, Deus em tudo, a plantação da nossa vida em nosso chão.


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E aquele pozinho, a páprica, tempero tão pouco usual na cozinha popular, seria o que? Pirlimpimpim! A dar gosto na sopa, a injetar mágica no caldo! As pitadas de erudição, o charme na carne, o Latim no latão do caldeirão! Pé Vermelho abre o Catatau e relê o começo em Latim: Ego sum... Amanhecendo ainda, liga a um amigo e conta: - Acorda e abre os ouvidos. Vou escrever um livro sobre o Leminski. Mas não vai ser uma biografia, nem mesmo um livro convencional. Sem isso de começo, meio e fim enfileiradinhos certinhos feito soldadinhos de letras. Vai ser pra qualquer caboclo entender, mas vai ter o tempero da invenção, da criação, da trucagem e da brincadeira, como ele gostava, ou melhor, como ele gosta. Que é que você acha. Acho que vou continuar dormindo, diz o amigo desligando. Alguns dias depois, pescando no lago urbano de Sertanópolis, vem a Pé Vermelho um haicaipira: Pensamentos vem e vão – ventos também, não? Vê que esqueceu caneta, não há como anotar. Cata então uma pedra e escreve o haicai na terra, para lembrar de memorizar entre um gole e outro do vinho à espera dos peixes. Com a pedra na mão, lembra de Leminski, que tantos poemas tem tratando de pedras ou por pedras passando. Pedras. Todas foram lava um dia, lava que se condensou, fragmentou, virou pedra, ou melhor até,


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virou esmeralda, ametista, turmalina, água marinha, mas, para resplandecer, teria um dia de ser lapidada e... Saltou da pedra o título do primeiro capítulo a escrever sobre Leminski: Poliedro. Vento espaventa as árvores na beira da lagoa. Pé Vermelho entende: - Nem precisava agradecer, cara, você fez por merecer. O NOVIÇO Retomo o bastão, só eu mesmo posso contar porque resolvi ser noviço de monge, o que agora, visto de longe, parece apenas um teatro, noviceatro, para continuar a irritar os puristas que detestam trocadilhos e neologismos e brincadagens, levando a língua tão a sério que ela se chateia e eles depois não sabem porque ninguém os ouve, falando sozinhos sua mesmilingua. Sempre achei muito chique aquelas minibiografias de famosos que foram, ou disseram que foram “lenhador, boxeador, motorista de caminhão” (como Elvis), embora nunca tenha lido que algum tenha sido “açougueiro, pedreiro, sitiante, dono de bazar ou vendedor de porta em porta”, atividades sem a rusticidade ou malaventurança precisas para conferir glamour ou revestir de pop-glacê o bolo biográfico. Então, quando percebi que se espantavam de eu ter sido judoca e professor de cursinho (só professor, não, não tem o charmestilismo de professor de cursinho), passei a cultivar esse facetismo acrescentando novas faces: jornalista, poliglota, com a derivação


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tradutor, além de, claro, poeta, um conjunto perfeito para embasbacar biografãs. Ter sido noviço então, candidato a monge, seria ingrediente perfeito. Mas, quando quis me tornar monge, nem pensava em me biografitar, acho que botei um pé no convento como quem pula amarelinha, um pé aqui, outro já ali, até acabar ladiante com os dois pés noutro quadrante. O primeiro pulo foi a família mudar de volta para Curitiba. O segundo pulo foi estudar no Colégio Paranaense, onde aos onze anos, na primeira série, na reclusão diurna do semi-internato tão propício ao estudo para quem gosta de estudar, conheci minhas primeiras paixões, em ordem alfabética (e em maiúsculas, acho que idiomas merecem): Francês, Latim e Inglês, além do já amado Português. Puro sexo oral, mental e emocional, através de Camões, Homero, Antero de Quental, e o Euclides de Os Sertões, que meu pai militar me apresentou. Também continuei a cultivar outra paixão paralela pelos dicionários e enciclopédias. Tudo que eu poderia querer da vida parecia estar ali, nos livros, embarcações para epopéias, ônibus onde cabem todas as palavras, as eruditas sentadinhas em ordem alfabética, ao lado das gírias e até dos palavrões, enquanto você viaja passando por todas do ananás ao zênite. E passei a decorar poemas, me espantando ao saber numa aula que decorar vem do Latim “cor”, coração, decorar é portanto guardar na memória depois de passar pelo coração. As palavras conseguem ser ordinárias e, ao mesmo tempo, paranormais.


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Ao saber de Leminski que decorava poemas na préadolescência, quando nem os pelos nem o pênis ainda cresceram o bastante para outras novidades, Pé Vermelho novamente se espanta com a similaridade: - Também decorei poemas aos onze anos, de tanto ler! Os pais se separaram, o pai fechando a barbearia e passando a tocar a Pensão Alto Paraná, em Londrina, que do outro lado da Rua Maranhão era tocada pela mãe; e ela foi morar com os filhos em Assis, SP. Lá, o menino começaria a ler intensamente, ao descobrir, na casa que a mãe alugou, duas pilhas de revistas O Cruzeiro e Manchete, deixadas pelo pintor que pintou a casa, para proteger o piso contra respingos. O menino descobriu assim Millor Fernandes, quando ainda assinava Vão Gogo, Rachel de Queiroz, com sua crônica na última página, e a dupla David Nasser e Jean Manzon, repórter e fotógrafo que, por exemplo, chegaram a encher páginas acompanhando o dia a dia de um cachorro de rua. As revistas encantaram tanto o menino que passou a esconder no guarda-roupa as ainda não lidas, para o caso do pintor voltar para buscar. Leu todas, e continuou escondendo para reler, mas o pintor nunca voltou. Então o menino já descobrira outras fontes de leitura, os livros juvenis – As Viagens de Gulliver, Robinson Crusoé, os contos dos Irmãos Grimm, como, também, as fábulas contadas por um escritor analfabeto e escravo, Esopo, que seus ouvintes decoraram e outros escreveram. A


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poesia veio em seguida, e se tornou paixão com Castro Alves e seus poemas abolicionistas, dando ao

coração do rapazola a

beleza da arte e a comoção política. Um dia, no Instituto de Educação Monsenhor Bicudo, a professora Stela disse que daria um ponto a mais na média do mês para quem decorasse um poema e declamasse na frente da turma. Acaso, perguntou, alguém sabia de cor um poema? O rapazola levantou o braço. A professora perguntou que poema ele sabia. Vários, respondeu ele. - Diga o título de um. - Navio Negreiro. Ela sorriu entre espantada e descrente: o longo poema de Castro Alves? Sim, o rapazola assentiu. Ela foi até sua carteira: verdade? Não estava brincando? Não, ele garantiu, sabia o poema de cor. Ela suspirou fundo olhando o janelão que dava para a avenida, até que decidiu esclarecer aquilo, e mandou outro buscar o livro de Castro Alves na biblioteca, continuou a aula. Chegou o livro, ela abriu no poema, dizendo ao rapazola que podia começar então, ali na frente da turma. Ele levantou, foi ficar de costas para o quadro-negro, mirando a parede do fundo da sala para evitar os olhares dos colegas, e começou o poema. Lá pela terceira ou quarta estrofe, a professora mandou parar, falou verso do meio do poema, ele continuasse a partir dali, e ele continuou. Ela mandou parar depois de mais umas estrofes, foi para as estrofes finais, ele continuasse dali. Ele continuou e jamais esqueceria aquelas estrofes finais:


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Auriverde pendão da minha terra que a brisa do Brasil beija e balança... Leminski

interrompe

para

dizer

que

esses

versos,

precisamente, são interessantes pela aliteração, mas Castro Alves é poeta muito romântico, e seu tão exaltado estilo condoreiro é tedioso por isso mesmo, uma poesia feita em tom de discurso, tão altissonante quanto solene, galeria de figuras históricas e deuses citados em cascatas retóricas... - Prefiro Sousândrade. - Mas decoraria algum poema dele? Leminski olha de soslaio, cofiando os bigodões, daí ri. - Deixa pra lá. Importante, cara, é que você passou pela mesma fase de decoração poética que eu! Pé Vermelho, então, passa a declamar o começo da Eneida de Vergílio: Arma virunque cano, Troiae qui primus ab oris Italian, fato profugus, Laviniaque venit litora, multum ille et terris iactatus et alto vi superum saevae memorem Iunonis ob iram... Leminski arregala imensos olhos: - Você sabe de cor a Eneida, cara?! Pé Vermelho ri, conta que o professor de Latim no Curso Clássico do Instituto Filadélfia em Londrina, professor Antonio Rosinski, deu como tarefa para a turma decorar os 60 primeiros versos da Eneida, para a próxima aula. Pé Vermelho e seu amigo Carlos Barbosa não fizeram a tarefa mas, na hora, vendo que a


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chamada para a tarefa não era por ordem alfabética mas salteada, resolveram tentar decorar à espera de ser chamados. Carlos foi chamado primeiro. - Não decorei, professor. Zerrro, anotou o polonês Rosinski, que fora prisioneiro em campo de concentração nazista e se dizia neurrrrótico de guerra. Em seguida, deixando de chamar por nomes salteados, chamou o próximo da lista: - Senhorrr Domingos! Pé Vermelho tinha decorado apenas os quatro primeiros versos, e pensou em fazer a graça de falar fluente e rapidamente até suspirar ao fim do jorro latino e

dizer “não sei mais,

professor”. Fez isso, e, quando suspirou para encerrar, o professor mandou sentar: - Parrrabéns! Nota dez! Carlos Barbosa nunca se conformaria, e Leminski ri ouvindo a história, daí sibila: - Cara, só com isso, sabendo usar, você consegue fama de poliglota, sabia? Magister dixit, responde Pé Vermelho. Mas quando entrei no Colégio São Bento dos monges beneditinos em São Paulo, cara, não pensava em aprender Latim nem sonhava que iria conhecer Grego, queria mesmo era ser monge, num surto sazonal de adolessência. E então, ainda em Curitiba, como quem pesquisa a origem de um boato ouvindo


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boateiros, pesquisei vidas de santos, a Ordem dos Beneditinos, a vida monasterial, que eu antevia cercada de livros antigos, manuscritos deixados por escribas há séculos mortos, a ser ressuscitados por traduções preciosas, parecia mais atraente que a caverna dos ladrões para Ali Babá, naquilo eu queria me enfurnar. Mandei carta ao diretor da escola, tão pia e fervorosamente convincente que me aceitaram para a terceira série do curso ginasial em internato. Mas me alertaram que ainda não seria um noviço mas um dos oblatos, aqueles ainda sem idade para o noviciado. Bem, já estarei no caminho, pensei, e falei para a família que iria fazer a mala, ou melhor, a maleta, um oblato não precisaria de muita coisa num mosteiro e, além disso, o que faltasse ficaria a cargo de Deus, não? Não, meu pai nem quis acreditar mas, como militar, aceitou o fato como a chuva que cai durante uma marcha, fazer o que? Minha mãe tentou com palavras o que depois tentou com choro, mas eu fiquei firme como Paulo partindo para pregar pelo Mediterrâneo. E aos 13 anos, com os pelos aflorando na cara e o coração inchado de convicção, fui para o mosteiro como quem vai nu para uma festa a fantasia, totalmente aberto e pronto para tudo. Na biografia O Bandido Que Sabia Latim, Toninho Vaz lança a certeira hipótese de que é ali, no monastério, que Leminski adota uma parte de seu estilo de vida, simples,


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desapegado, estudioso e frugal, que ele mantinha na rotina diária, especialmente em casa. A outra parte seria o Leminski beberrão, fumante, dispersivo entre anotações e rabiscos em guardanapos pelos bares, em discussões ou monólogos altissonantes, comendo qualquer coisa com o apetite ora afogado e ora assanhado pelo álcool. E é também ali no monastério que conhece Grego, o que lhe permitirá depois, para a biografia Jesus, traduzir os textos evangélicos diretamente dos originais gregos (ou pós-originais, já que os originais mesmo, em aramaico, foram convenientemente perdidos pela Igreja). Ali também começa a aparecer outro traço de sua personalidade, o sono a qualquer hora, obedecendo ao cansaço mental, em qualquer lugar. O decano da turma, encarregado da disciplina, estranhando sua ausência na cama na hora de dormir, vai encontrar Leminski dormindo atrás do piano. Também ali começa a adotar como norma evitar banho. E, como em contraponto a esse desleixo, aplica-se mais nos estudos, biografando santos e lendo sobre outras religiões, o budismo e o zen-budismo, este lhe iniciando na visão zen que tanto marcaria sua poesia. Com os pelos e o pênis já crescidos, as usinas hormonais a todo vapor, começa também a se interessar por aquilo que faria com que abandonasse o mosteiro: o sexo ou, como ele diria um dia, “a mulher”.


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Em 1985, Pé-Vermelho muda de Londrina para São Paulo, onde morará três anos, seis meses dividindo apartamento com a também londrinense Neusa Pinheiro. Leminski liga, pedindo hospedagem, Neusa concorda, curiosa de conhecer o poeta já tão falado de Curitiba. Leminski chega de táxi da rodoviária às sete da manhã, com Alice, Áurea mocinha, Estrela menininha e uma garrafa de conhaque faltando um dedo para secar. Alice irritada com “a outra”, a garrafa. Mas vai dormir um pouco com as meninas, Leminski abre a primeira das quatro cervejas da geladeira. Pouco depois das oito horas, as quatro garrafas secaram e ele convida Pé-Vermelho para buscarem mais no bar da esquina. Lá, toma vodka dupla e volta mascando bala de hortelã, “por via das dúvidkas”. Chega Itamar Assumpção, que no apê de Neusa quase todo dia ensaia vocais da banda Isca de Polícia, amigo desde Londrina e festivais. A conversa rola elétrica e Leminski vai elevando a voltagem. Lá pelas dez horas, quando ele pega de novo as quatro garrafas para buscar mais cerveja, Pé-Vermelho mostra que tem outras oito garrafas vazias na área de serviço, pelo rolar da corredeira será melhor levar logo ao bar a dúzia toda, mas Leminski sai ligeiro com a sacola só com quatro garrafas. No bar, emborca outra vodka dupla e pergunta se PéVermelho quer “jogar contra”, não vê que de quatro em quatro loiras ele pode tomar uma branca dupla? No apê, Itamar canta, chega Elizabel Jordão, a Bell, namorada de Pé-Vermelho, e ri


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tanto com Leminski que logo lhe bota apelido de Lelé. Neusa faz macarrão e, depois do almoço, sai com Alice e as meninas, Bell também se vai, e Itamar conta uma piada, Leminski outra, e lá pelas tantas uma piada é sobre “sexo oral, vaginal e anal”. Leminski então, em alta voltagem, discursa em pé com voz estridente e gestos teatrais: - Sexo anal é sujo, mas o sexo por trás da mulher, vaginal mas por trás, é o que elas mais gostam! Porque o sexo bifrontal não é o ancestral, só surgiu depois que os hominídeos inventaram a cama! Macaco só faz sexo por trás! Esse negócio de transar olhando nos olhos é mais cultural que animal, e a mulher sente prazer em voltar ao estágio animal penetrada por trás! Depois da fase romântica, de olho-no-olho e “eu te amo” pra cá, “eu te amo” pra lá, ela se sente livre das amarras culturais, ela pode gozar como a macaca goza, e o sexo traseiral também dá ao homem ilusão de poder, de domínio, porque ela fica de quatro diante dele, como que subjugada, embora ela saiba que ele não está sobre ela, ele também está ajoelhado atrás dela! O sexo frontal inventou a família, mas o sexo traseiral recupera a animalidade ancestral e mantém os casamentos! Itamar olha boquiaberto e apenas balbucia: - Nossa, eu nem imaginava que sexo pudesse ter tanta teoria! No meio da tarde, todos estão sonolentos, zonzos de tanta bebida, mas Leminski continua elétrico. Alice volta com as


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meninas, chama de lado, falam baixo e ele ergue os dedos como escoteiro: - Só bebi cerveja, amor! À noite, quando eles saem para um show, Pé Vermelho cai na cama e simplesmente dorme um sono vizinho do coma alcoólico. Na manhã seguinte, Alice reclamará com Leminski que ele traiu o trato, bebeu destilados no show e no jantar e no encontro com os amigos depois, e ele repetirá que foi só para compensar afinal: - Só bebi cerveja o dia inteiro! Caminhando reto entre porres que deixariam qualquer outro torto, naqueles anos 70 ele parece se divertir com a morte que ceva dia a dia - mas, às vezes, passa a mão na barriga crescente, com certo ar de preocupação, que porém logo dissipa com mais um trago e um papo, um poema ou um discurso sobre uma idéia repentina. Como dirá Itamar um dia: - O Leminski não é gente, é uma usina!

Ainda no mosteiro, porém, com 13 anos e corpo de homem, Leminski consegue colecionar fotos de vedetes e atrizes em poses sensuais, recortadas de revistas e jornais e, a bem do sigilo, caprichosamente encartadas em álbum. Ambivalentemente como sempre, continua também a estudar Grego e Latim, traduzindo, pesquisando, com o gosto monástico do estudo que levaria pela vida.


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E, a indiciar que o mosteiro já era pequeno para ele, anda pelos telhados à noite com um colega. Qualquer aspirante a psicólogo verá logo que aquilo de andar pelo telhado do mosteiro de madrugada, que zorra, só podia ser sinal e símbolo de fuga. O animal perseguido procura os espigões, o alto dos vales, por onde fugir com visão das rotas possíveis, evitando o cerco enfurnado nos grotões dos baixios. Não terá sido diferente com o escravo em fuga, Zumbi montou seu palmares num morro com espinhal à frente e precipício ao fundo. Então lá estava eu no alto do mosteiro, entre as telhas e as estrelas, transgressor transcendental, em prova cabal de confiança em Deus. Depois de andar pelo telhado reprimindo o riso, sentávamos ali a olhar o céu, onde nunca procurei Deus, como jamais falei em Deus olhando para o alto, ora, basta uma noção elementar de Geografia para saber que, sendo a Terra redonda, o alto está em todas as direções, isso incluindo o chão abaixo dos pés, onde vivemos entre o cosmos e as minhocas. Quando lesse sobre física quântica e o Tao, anos depois, me convenceria de que Deus é tudo, da bactéria às galáxias, e o Infinito é tão imenso nas grandiosidades como minúsculo no universo de cada átomo, sendo portanto incompreensível, tanto quanto a Eternidade, daí não haver atitude mais racional, diante desses absolutos mistérios, do que subir em telhados, trepar em árvores, nadar em


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riachos, pular amarelinha ou dançar mentalmente durante a missa. O certo, certo mesmo, é que tudo é incerto, e se de noviço não caminhei para monge, achei caminho melhor nos livros do mosteiro, no silêncio noturno, na procura da ponte entre o antigo e o novo, o Latim e o gibi, o pergaminho e a pornografia, os versículos e a poesia.

Na última vez em que conversam na casa do Pilarzinho, nos anos 1980, depois de contar que os direitos autorais são uma decepção e precisa dar um jeito de ganhar a vida sem se matar em agência de propaganda, Leminski revela a Pé Vermelho: - Na verdade, sabe o que eu gostaria mesmo de ser? Assim profissionalmente, pra ganhar a vida fazendo uma coisa gostosa... eu gostaria de ser redator de humor de Globo! Fazer rir é uma arte difícil! E ri arteiro, meio constrangido da revelação. Essa ficará para Pé Vermelho a imagem mais reveladora de sua identidade: um menino a brincar entre o mundo pop e o universo cult, a tudo olhando com olhar encantado de criança.


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O ANFITRUÃO Na primeira vez que Pé Vermelho vê o bigodudo, ele agita um cartaz numa cerimônia do saudoso Concurso de Contos do Paraná nos anos 1970. O cartaz só tinha três palavras: O CONTO MORREU! Anos depois, ele elogiará um conto de Pé Vermelho, que lhe diz ué, mas você não pregava que o conto morreu? - Naquele tempo, mas renasceu. Até eu ando fazendo contos!


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Essa naturalidade em cultivar a contradição, tão rejeitada pelos intelectuais amantes da coerência, será o caminho para Leminski moldar sua identidade artística.

O Catatau é

continuação justamente de um conto seu inscrito no concurso do Paraná, e que ele estende longamente, como palavrósico delírio do protagonista Renato Cartesius depois de fumar maconha à beiramar. Leminski

se

desentendeu

publicamente

com

Vermelho, através de polêmica série de artigos no jornal O Estado do Paraná, em 1974, em seguida ao lançamento da coletânea Quatro Poetas. Hamilton Faria, Raimundo Caruso, Reinoldo Atem e Pé Vermelho fundarão uma Cooperativa de Escritores, misto de editora e entidade de resistência à ditadura, como outras na época, inspiradas na Cooperativa de Jornalistas de Porto Alegre. A cooperativa chega a associar vinte poetas de vários Estados e publica mais alguns livros, cada um custeado pela renda do anterior, mas o tom socio-político de muitos desses poemas incomoda Leminski, já defensor da poesia como inutensílio. A polêmica, através de artigos de página inteira, estende-se por semanas, divertidamente acompanhada por quantos acham que o polaco metido a gênio deve mesmo levar umas guascas, outros achando que

os quatro poetas merecem levar umas

guascas já por serem quatro contra um. Depois, Leminski integrará a comissão julgadora do Concurso Nacional de Poesia, em 1976, promovido pela


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prefeitura de Florianópolis, e Pé Vermelho será um dos selecionados para a antologia resultante do concurso. Na 1ª Semana Nacional de Poesia, num gelado julho, Leminski mostra que guardou quente rancor pronto a ser lançado. É admirador dos concretistas Augusto/Haroldo de Campos e Décio Pignatari, de quem sempre fala entusiasmado, enquanto para os quatro poetas a poesia concretista tem muito mais teoria que poesia, ilha de arte humanamente vazia. Num auditório com coordenação de Lindolf Bell, Décio Pignatari fala, enquanto Leminski, sentado ao lado de

Alice,

dorme abraçado com uma garrafa de conhaque, que mamou “por causa do frio”. Quando acorda, Pé Vermelho está comentando a palestra de Décio, elogiando, mas Leminski presume que só pode estar refutando e criticando, e levanta de pulo e dedo em riste: - A poesia concretista é arte refinada de vanguarda, vocês são a retaguarda aguada e requentada que não leva a nada! A revolução na arte se dá antes de tudo pela forma, como mostrou Maiakovski, e não só pelo chamado conteúdo, que pode ser até reacionário se fica no quadradismo das estrofes e da métrica fazendo quadras como caixões funerários da poesia! Enquanto isso, Alice lhe puxa a ponta da camisa, sussurrando e enfim falando tão alto que todos ouvem: - Paulo, ele não estava falando mal do Décio, estava falando bem! Quando percebe que se excedeu sem razão, Leminski senta, seguindo-se um daqueles silêncios onde só os pigarros falam,


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depois Pé Vermelho continua falando entre sussurros e risadas abafadas. Nas férias de verão, encontrará Leminski e Alice numa praia, na ilha de Florianópolis, e, num quintal de rala grama com descuidada fogueira, discutirão azedamente até Pé Vermelho revelar: - Eu não sou contra os concretistas, cara, e pra mim também poesia de protesto geralmente não presta. Gosto, por exemplo, de O Operário em Construção, do Vinicius, justamente porque tem uma construção poética, não só intenção política. Leminski fica piscando atarantado, até que estende a mão. Depois do aperto de mãos, Leminski fala tá, então aparece lá em casa quando passar por Curitiba.

Pé Vermelho aparece na casa do Pilarzinho, a primeira, com sótão. Sílvio Back está lá e, na sala apertada onde falta conforto embora abundem almofadas, a conversa rola pela tarde entre cervejas e

vodkas. Para tira-gosto, apenas umas bolachas

muchibas. Sílvio se vai, Pé Vermelho fica, convidado para uma janta parca, que depois de várias visitas descobrirá ser regra monastérica da casa, ou, conforme Leminski num poema, “esta sopa rala que mal dá para dois”. Depois da janta, o anfitrião oferece pouso: - Já dormiu em sótão? Pé-Vermelho aceita a oferta por curiosidade, desde menino tem fascínio por sótãos, tão presentes nos gibis do Pato Donald,


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de Bolinha e Luluzinha, criações do hemisfério Norte onde as casas tem sótãos. Anos depois, visitará a Europa e se desencantará com sótãos, até escrevendo haicaipira: Sou tão infantil / sempre quis morar em sótão / ainda bem que não tem sótão no Brasil. Naquela noite, porém, mal consegue ver como é o sótão sem luz onde dorme num colchonete, tão cansado quanto bêbado, só conseguindo vislumbrar pilhas lacradas de livros em redor, como Leminski anunciou: - Você vai dormir cercado por uma obra-prima! De manhã, Pé Vermelho vê que são as pilhas da primeira edição de Catatau, que Leminski irá distribuindo ao longo de anos. Dará um a Pé Vermelho, que lerá as primeiras páginas e depois páginas salteadas, enfim desistindo, para comentar numa próxima visita: - O começo é interessante, o europeu deslumbrado com a natureza tropical, daí fumando maconha e despirocando naquele palavrório sem fim. Mas, narrativamente, é uma solução fácil, além de tanto trocadilho acabar enchendo o saco, por mais cultos que sejam. Seu Catatau é só sintagma4, cara, não tem paradigma, feito construção sem esteio, não pára em pé! É um anarquétipo de romance! Leminski rebate de pronto: - Mas não é construção, é caminho! Não pretende chegar a lugar algum, só encantar, divertir, intrigar, como quem passeia 4

Grassava a febre do estruturalismo, tornando moda chamar de sintagma e paradigma os parágrafos e o enredo.


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por uma estrada da palavras e sensações! Eu não quero ensinar nada a ninguém, coisalguma propor, criar um ciclo de eventos se encaixando para um fecho final, porque acho que nada fecha, tudo se abre, tudo é flor o tempo todo morrendo e renascendo! O Catatau não é para ser lido por quem quer chegar ao fim, mas por quem entende e sente que não existe fim nem começo, a vida é um acidente contínuo sujeito a virar o direito pelo avesso! Você quer uma direção, um, como dizem, sentido? Bem, o Catatau é uma festa para os cinco sentidos, a audição, a visão, o olfato, o paladar e o tato, sim, é só ler sem preconceito que você entra na festa, se quiser entrar pra dançar e se divertir com as palavras, mas, se quiser entrar pra sair casado com uma ideologia ou uma visão do mundo, tiao! Leve meu livro para um sebo que será achado por quem gostar de um passeio turbicanabinado por uma floresta signífica! Quem quiser lógica e coerência e seqüência e moral da história, vai achar tanta graça no Catatau como em minhoca subindo num pau-de-sebo debaixo de um sol de derreter o sebo do pau! Pé Vermelho, três décadas depois, lembra apenas do sentido geral e de algumas palavras inesquecíveis do discurso de Leminski, mas dessa imagem lembra perfeitamente, a minhoca tentando subir num pau-de-sebo a se derreter ao sol. Como não esquece o último jorro de palavras do Polaco naquele fim de tarde:


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- História com começo-meio-fim, mesmo que não nessa ordem exatamente, muitos já escreveram desde Lucas, Mateus e Marcos, mas eu sou mais o João do Apocalipse! Mas cofia os bigodões, suspira fundo e fala que respeita a opinião: - Tem quem gosta de biscoito fino e tem quem gosta de papa grossa. - Me parece mais angu de camarão – retruca Pé Vermelho Os ingredientes podem ser finos mas não deixa de ser angu. Leminski ordena de dedo em riste: - Então diga o que é para você um grande livro! - Os Sertões, de Euclides da Cunha. Leminski volta a suspirar fundo. - É, é um grande livro. Gosto muito da primeira parte, A Terra. Pé Vermelho nem acredita: - Você gosta da primeira parte? Aquele palavrório geológico? É a parte chata, aliás chatíssima!! Para você, diz Leminski: - Você leu só as informações, procurando ação, mas as ações da Terra são pouco perceptíveis. O planeta gira e a gente nem percebe. Eu li o ritmo das palavras, aquele intrincado verbal quase mineral de tão áspero. É a prosa mais densa da literatura brasileira e, por isso mesmo, rejeitada por tantos e apreciada por poucos – conclui sorrindo para o copo, bebe e bate o copo na mesa, encerrando assunto. E nunca mais falarão do Catatau.


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(Três décadas depois, escrevendo este livro, Pé Vermelho resolve ler um pouco do Catatau para os netos Caetano, de seis anos, e Pietro, de cinco anos, na cama antes de dormirem. Abajur na cabeceira, eles ouvem a corrente de palavras, perguntando que palavra é esta, e esta outra. Pé Vermelho diz que são palavras diferentes, que ninguém usa, só o escritor do livro, palavras que querem dizer o que a gente quiser que cada palavra diga. Eles ouvem, rindo muito a cada nova “palavra esquisita”. Pé Vermelho lê o final: bêbado, quem me entenderá? - e eles gargalham, pedem mais, Pé Vermelho volta a ler trechos salteados, até que eles dormem. É, pensa Pé Vermelho, o Catatau funciona, ao menos como sonífero... Mas, na noite seguinte, os netos, mal deitam na cama, em vez de escolher um dos muitos livros infantis empilhados no criado-mudo, pedem já olhando o teto onde a imaginação desfila suas imagens: - Lê o Catatau, vô... - ...do bêbado engraçado. Ficam em respeitoso silêncio enquanto o avô, feito uma criançona, não consegue ler com os olhos molhados.)


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Na segunda casa no Pilarzinho, voltam a se encontrar várias vezes, e ali Pé Vermelho verá que o casal Alice-Paulo pratica uma mágica e simples hospitalidade. Pouco tem eles a oferecer. O conforto na sala continuará dependendo de almofadas. A quem ligar avisando de visita, Leminski pedirá para trazer bebida. Quem já conhecer o esquema da casa, levará também comida. Mas sempre encontrará o casal sorrindo, a porta da sala aberta para

um deque de ripinhas

treliçadas onde, nos dias nublados, ele senta na posição de lótus para ler poemas para os visitantes ou, simplesmente, fumar falando sobre o que lhe vier à cabeça. Relaxa / tempo não tem / taxa – Leminski ri muito quando Pé Vermelho lhe fala este haicaipira, dizendo ser inspirado pela sua pensação/falação em alta voltagem. - Fico honrado - diz Leminski – e feliz por você começar a fazer poesia de verdade em vez de discurso político rimado. Alguns anos depois, Pé Vermelho contará que fez haicaipira respondendo ao dístico de Leminski: Ameixas / ame-as ou deixeas (que funcionou como antídoto ao lema publicitário da ditadura, Brasil – ame-o ou deixe-o). - E você sabe seu haicai de cor? – Leminski ironiza, Pé Vermelho finge que se esforça por lembrar: Ameixas são como amêndoas: / tendo-as, deixa-as / não tendo, te queixas. Leminski ergue o copo: - Lindo! Brindo!


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Nas visitas à casa do Pilarzinho, Pé Vermelho presenciará cenas típicas da, para usar um inevitável lugar-comum, “personalidade ímpar” de Leminski. Quando não está trabalhando em agência de propaganda, ele acorda tarde, passa o dia lendo, escrevendo, ouvindo música – e também bebendo, claro - para, no começo da noite, quando começa o telejornal na tevê, bocejar diante do mundo e, se enrolando feito bicho ou criança nas almofadas sobre o tapete da sala, dormir mesmo diante de visitas. Acordará lá pela meia-noite e voltará a ler ou escrever. Alice se desculpará para o visitante: - Ele é assim.

Passa carteiro, que Leminski vai atender curioso feito guri, volta com envelope na mão, gritando para Alice: - É da editora! Pega faca lambuzada de manteiga, lambe a manteiga, abre o envelope com a faca, dá uma olhada e grita para Alice que continua no fundo da casa: - É o contrato! Mal passa os olhos pelo

contrato de apenas uma folha

frente/verso, pega caneta para assinar sobre uma estreita bancada que separa a sala do escritório. Suspira fundo antes de assinar, e Pé Vermelho, vendo que é contrato para edição de livro, pega-lhe a mão da caneta:


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- Você não vai ler antes de assinar? Leminski sorri: - Seja o que Zeus quiser. E assina.

A biografia de Trotsky torna Leminski simpático a um partido trotskista, que o convida para animar uma convenção em Curitiba, e lá vai ele com o violão e a verve. É aplaudido, abafa, é paparicado. Ano seguinte, convidam de novo e ele vai respondendo a pedidos insistentes, dizendo que não, não vai de novo, não, não mesmo, até que estrila: - Não vou e querem saber porque? Porque dessa brincadeira já brinquei! Conta isso a Pé Vermelho numa das visitas à casa do Pilarzinho, divertindo-se feito menino arteiro. Também gosta de contar o dia em que Caetano Veloso e Gal Costa chegaram à primeira casa do Pilarzinho, para conhecer o poeta, e ele estava caminhando sobre o muro, num exercício de equilíbrio. Saltou do muro, Gal Costa assustou, e ele sempre concluiria seu relato meninamente : - Esperavam o que? Que eu estivesse sentado atrás duma escrivaninha com caneta numa mão e dicionário na outra, retrato de Machado ao fundo?!


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Nas visitas, Pé Vermelho vai descobrindo que Leminski, ao contrário dos que bebem e ficam agressivos, fica doce, meigo, afetivo e emotivo. Um dia, depois de toda uma tarde falando sobre arte militar, de Leônidas a von Klausewitz, Pé Vermelho diz que é hora de voltar ao hotel, pega a mochila em que trouxe vinhos e Leminski abraça, pegando pela nuca: - Gosto de você, cara. Se fôssemos gregos, lutando nas Termópilas, gostaria de lutar a teu lado. Pé Vermelho pensa que é brincadeira mas, saindo do abraço, vê que o polaco está com os olhos úmidos.

Quase sempre quando Pé Vermelho passa por Curitiba, é caminho do litoral, em férias ou para fins de semana na Ilha do Mehl, mas Leminski está trabalhando, fazendo tradução de livro ou frilas para agências de propaganda, às vezes passando textos de anúncios por telefone. Mas ao telefone diz venha, venha, eu vou enganando e a gente vai conversando. Pé Vermelho chega, abre o primeiro vinho e começam a conversar, de vez em quando Leminski caça papel para anotar alguma coisa. Meio da tarde, toca o telefone, é uma agência, querendo texto para out-door, ele anota os dados. Fim da tarde, toca o telefone, é a agência querendo o texto , ele fica procurando o papel das anotações. - Pois é, eu ia agorinha mesmo ligar pra vocês, passei a tarde pensando nisso.


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Dá uma olhada nas anotações, solta um suspiro fundo ganhando tempo, aí fala o texto de poucas palavras para o outdoor. Explica porque, enquanto alguém anota do outro lado da linha. Desliga. - Tim-tim! Dinheiro na caixinha! E voltam a conversar. Pé Vermelho pergunta porque ele não atende de bate-pronto os pedidos das agências. - Ah – ele passa a mão no bigode - Se não demorar, eles não dão valor, pensam que é fácil – e pisca molecamente.

Às vezes se encontram noutros lugares. Pé Vermelho chega a Curitiba, liga, Leminski marca encontro no Largo da Ordem. “No bebedouro”, diz, e Pé Vermelho pergunta se é um bar com esse nome, mas Leminski já desligou. No Largo, Pé Vermelho vê um antigo bebedouro de cavalos, que se tornou patrimônio histórico depois de carroças e cavaleiros deixarem de transitar por ali. Leminski chega, acenando de longe, e vem sorrindo para o abraço. Depois enfia a mão em concha no bebedouro e sorve um gole. Pé Vermelho estranha: - Essa água não faz mal? - Não para quem tem saúde cavalar. Várias vezes ouvirá Leminski proclamar orgulhoso: - Nunca fui a um médico! – emendando sussurrante: Quando for, é pra morrer.


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Confirmará isso num poema: “Fiz um trato com meu corpo. / Nunca fique doente. / Quando você quiser morrer, / eu deixo.” E Pé Vermelho irá descobrindo que não é apenas poesia: é uma estratégia.


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O ESTRATEGOISTA Para quem dele só conhece um poema ou outro, ou identifica a figura sem conhecer a obra, os bigodões são marca visual de identidade. Leminski explica os bigodões a Pé Vermelho, num dia em que se dedica a matar rapidamente uma garrafa de vodka enquanto Alice não chega da cidade onde foi trabalhar; ele faz traduções em casa enquanto ela é redatora de agência de propaganda. - Estes bigodões são homenagem a Lech Walesa, cara. Não só porque ele liderou o movimento Solidariedade, mas porque foi o primeiro movimento realmente organizado contra o império soviético.

As

Tchecoslováquia,

revoltas

anteriores,

na

Hungria

e

na

foram desorganizadas, os russos chegavam

com soldados e tanques e botavam ordem nas ruas. Mas como sufocar um movimento entranhado na sociedade e no próprio sistema de produção tão caro aos soviéticos? Pé Vermelho então comenta que, adolescente, leu numa velha Seleções reportagem sobre a revolta da Hungria em 1956. Um maestro sai de ensaio no teatro, onde sua orquestra vai se apresentar, e vê na rua a polícia atacando os estudantes revoltados. De repente, num assomo, chuta na calçada um tabique de propaganda da própria orquestra, e se junta aos estudantes. A cena ficaria inesquecível para o adolescente que lia receituários de


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guerrilha e sonhava derrubar a ditadura militar como Castro e Guevara derrubaram a ditadura de Batista, e daí instalar no Brasil a ditadura do proletariado... até começar a desconfiar que não seria boa coisa trocar uma ditadura de direita por outra de esquerda. Em 1968, a Primavera de Praga, outra revolta contra o império soviético, abriria de vez os olhos de Pé Vermelho. Leminski, ouvindo isso, ri afagando os bigodões: - Bem, cara, eu nunca me enganei com revoluções. São bonitas, são empolgantes, mas, como são feitas por gente, logo viram monstros. Trotsky foi morto no México pela mesma revolução que queria instalar no mundo todo... Mas logo ri, novamente afagando os bigodões para cobrir a visão dos dentes estragados. - Mas se eu tivesse de escolher uma revolução ou guerra onde lutar, pela História afora, não seria nas Termópilas, não, aquela chatice de 300 ficarem lutando contra milhares. Sabia que os defensores das Termópilas, tão decantados como heróis pelo machismo vigente, eram na maioria gays? É, o homossexualismo era tolerado e até convencional na Grécia, como seria em Roma, e muitos formavam casais para lutar juntos, um defendendo o outro, já que o sistema da coorte grega era mesmo cada um defender com seu escudo o companheiro ao lado! Cada um lutava por dois! Pé Vermelho lembra:


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- Um dia, cara, você me disse que, se a gente fosse gregos e lutasse nas Termópilas, você gostaria de lutar a meu lado... Então a gente seria um casal...? Leminski ri, depois fala sério: - Não havia só gays nas Termópilas... Novo suspiro, novo

afago nos bigodões, novo jorro de

palavras: - Eu queria ter sido, isto sim, um daqueles cavaleiros polacos que investiram contra os tanques nazistas! Consta que alguns, investindo de repente e de surpresa, chegavam a vergastar o tanque com o sabre, antes de ser derrubados, claro, os tanques tinham metralhadoras além de canhão... Mas que linda imagem, um cavaleiro dando de sabre num tanque feito de aço! Não era uma atitude militar inteligente, era um gesto de superioridade moral! Fica olhando longe com olhos faiscantes, depois pega o copo e bebe de um gole a vodka com limão-rosa, mistura mestiça de bebida eslava com fruta tropical. Lacrimeja, trocando um olhar de você-me-entende. Pé Vermelho ergue o copo de vinho, não tem coragem nem gosto de se matar com bebida destilada, mas Leminski renova o próprio copo, espremendo o limão e lambendo os dedos sumarados, depois recomeça: - A Polônia tem toda uma história de apanhar dos dois lados. De um lado, da Alemanha. Do outro lado, da Rússia. Na Segunda Guerra, foi invadida pela Alemanha, depois libertada pela Rússia, que transformou a libertação em ocupação. Pobre Polônia, disse


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muita gente, inclusive Churchill, mas com o Solidariedade a Polônia ergueu a cabeça. Com bigodes que ninguém pode ignorar!

Noutras conversas sobre arte militar, porém, Pé Vermelho irá percebendo a predileção ou fascinação de Leminski pelo “recurso extremo”, o uso da própria vida como arma, a resistência até a morte, o suicídio letal para o mártir e também para o inimigo. Décadas depois, ainda ouvirá o Polaco a

dissertar

estridente sobre as façanhas heróicas dos suicidas históricos.

Mas não foi mesmo admirável, cara, aqueles russos pararem os alemães em Stalingrado com coquetéis Molotov? Uma arma tão simples, uma garrafa cheia de gasolina, tampada por um trapo que, umedecido pelo próprio líquido da garrafa, veja que funcionalidade, torna-se também estopim de incêndio quando a garrafa lançada se quebrar, praticamente então explodindo pela combustão repentina, lançando chamas vários metros em redor. E, claro, vertendo gasolina em chamas pelos orifícios e frestas do tanque, pingando na tripulação, que, se abria a portinhola para sair com as vestes em chamas, podia ser alvejada, ou por ali também se podia jogar uma granada, explodindo de vez o tanque.


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É claro, sim, que a maioria daqueles russos, que surgiam diante dos tanques de repente, brotando de buracos e túneis cavados na neve, eram mortos pela metralha antes de conseguir jogar seu coquetel Molotov - mas se um conseguia, era um tanque a menos no arsenal nazista, por um preço barato, pois o que os alemães tinham pouco os russos tinham de sobra, soldados pra sacrificar! Pelo foco contrário, os russos também causaram muitas baixas nos alemães com os snypers, os atiradores de

longa

distância, com fuzis de longo alcance e mira telescópica. Alguns mataram dezenas de alemães, e um chegou a matar centenas! Um fuzil com luneta, um bom atirador num ponto elevado e pronto, os alemães tinham de se mover rastejando para não aumentar a lista de baixas. Sim, sim, claro que a maioria dos snypers também acabou do mesmo jeito, alvejados por tiros de snypers alemães ou mesmo liquidados por projétil de tanque, depois de localizado o ponto de onde atiravam, mas isso só acontecia depois de já terem atingido vários alvos. Eram suicidas competentíssimos!

Pé Vermelho diz que o cerco de Stalingrado foi rompido não só porque os russos usaram suas garrafas e suas lunetas, mas principalmente porque, na retaguarda, as fábricas produziam milhares de tanques e canhões e veículos e armas para contratacar, enquanto a população da cidade era dizimada pela fome. E também os alemães passaram fome, porque os russos,


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como tinham feito com Napoleão, foram queimando tudo conforme recuavam, não deixando um grão ou uma galinha. Os alemães tinham de ter todos os suprimentos vindos da Alemanha, através de uma linha de abastecimento cada vez mais longa, e assim, a falta de centeio combaliu o exército alemão, que não resistiu com a dureza de sempre diante do contrataque russo. Os russos comeram ratos em Stalingrado, mas dali não recuaram mais, e os alemães, quando lhes faltou centeio, começaram a recuar... Leminski ouve e concorda: pode ser, diz, pode ser. Mas o cerco de Stalingrado lhe lembra outro cerco heróico e também suicida, no Gheto de Varsóvia. Pé Vermelho dirá que também leu Mila 18, de Leon Uris, que narra a resistência dos judeus no gheto cercado, sem comida e sem água, civis lutando com armas leves contra tanques e tropas profissionais.

E o pior é que só resolveram lutar quando restava um décimo dos 200 mil judeus sitiados no gheto! O resto foi aceitando o envio para os campos de concentração, querendo crer que não seriam mortos, contra todas as evidências! Mas a minoria que se organizou pra lutar, umas poucas centenas, conseguiram causar 300 baixas nos alemães, e, melhor que isso, desviar tropas das frentes de batalha para controlar o gheto!


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Geralmente morriam nas emboscadas e ataques, mas foram os suicidas mais produtivas da história das guerras, com exceção, claro, dos kamikaze...

Como sempre, um assunto puxa outro para Leminski, que lembra de outro cerco a judeus, pergunta se Pé Vermelho conhece Massada. Não conhece Massada? Era

uma fortaleza judaica, ali

naquelas terras secas e rochosas perto do Mar Morto. Lá pelos anos 70, tornou-se o último foco de resistência aos romanos, que tinham todas aquelas armas de cercar e aniquilar fortalezas: catapultas para lançar projéteis incendiários, aríetes para romper muralhas, balistas para lançar chuvas de flechas, além das tropas mais treinadas e aguerridas da Antiguidade! Mas Massada era num platô inacessível, com muralhas inalcançáveis lá no alto, e poderia resistir durante anos, com armazéns cheios de cereais e azeite, além de água captada das rochas e armazenada em cisternas. Os romanos então construíram uma rampa, usando escravos judeus para cavar e mover terra, assim evitando que a construção fosse atingida por projéteis da fortaleza. Quando puderam colocar suas máquinas de guerra lá no alto, usaram os aríetes para derrubar a muralha, descobrindo que a fortaleza tinha outra muralha interna, feita de pedras intercaladas com


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madeira, justamente para absorver os impactos dos aríetes! Mas madeira queima, e os romanos eram mestres em usar o fogo como arma. Quando os judeus viram que a segunda muralha seria rompida, resolveram que não se tornariam escravos. Eram poucos menos de mil, com mulheres e crianças. Então cada um matou a própria mulher e os filhos, e, depois, tiraram a sorte para escolher dez que matariam todos os outros. Por fim, os dez tiraram de novo a sorte, para escolher qual mataria os nove. Depois, o último se matou jogando o corpo contra a própria espada, e, quando os romanos entraram na fortaleza, deram com a derrota moral de nada conquistar. Aquilo abalou Roma mais que uma derrota militar.

Das intensas conversas com Leminski sobre a chamada arte da guerra, Pé Vermelho sempre lembrará de algumas de suas tiradas.

Portugal, apesar de se manter neutro na Segunda Guerra, teve importância fundamental para o Dia-D, mesmo contribuindo com apenas um homem já morto quando entrou na guerra! Os alemães, esperando a invasão, tinham transformado todo o litoral da França numa barreira de terrenos minados, cercas de arame farpado, obstáculos para lanchas de desembarque, fossos e


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casamatas com metralhadoras pesadas e artilharia - mas mesmo assim ainda procuravam prever onde seria o desembarque, para posicionar ali as divisões de tanques Panzer que poderiam até rechaçar o desembarque, liquidando a infantaria precursora. Então os aliados arranjaram nalgum necrotério um cadáver em bom estado, morto por afogamento, sem que a família reclamasse o corpo, que vestiram bem, colocando nos bolsos documentos reveladores de que a invasão seria noutro ponto, não na Normandia suspeitada pelos alemães. Um submarino lançou o cadáver

numa

praia

francesa,

os

alemães

recolheram,

examinaram e concluíram que devia ser de algum agente britânico enviado para coordenar a Resistência Francesa. E enviaram as divisões Panzer para o outro ponto, desguarnecendo a Normandia, onde os aliados teriam muito mais baixas se não fosse o português. Gostaria de ter contado isso a meu avô português! No começo da guerra, a máquina bélica nazista parecia invencível, com aquelas blitzkrieg conquistando países um depois do outro como se derrubasse dominós, até acuar os franceses e ingleses na praia de Dunquerque, quando os aliados começaram a reverter a guerra com uma retirada ordeira. Então a Inglaterra ficou ali adiante feito ilha trincheira, última barreira antes da América do Sul, que Hitler certamente invadiria depois de conquistar aquela ilha, conquistando em seguida as outras ilhas do Atlântico, Açores, Madeira etc, que funcionariam como


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escalas para invasão do Sul do Brasil, onde imigrantes alemães já estavam preparados para dar apoio, no Paraná, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ali seria formada a cunha para invasão posterior do continente inteiro, cercando os Estados Unidos pelo Sul, enquanto pelo leste era cercado pelo Atlântico infestado de submarinos nazistas, e pelo oeste pelos japoneses dominando o Pacífico. Mas a ilha trincheira, a Inglaterra, resistiu graças a um discurso, uma nova tecnologia e uma velha máquina. O discurso foi de Churchill, dizendo a Hitler que os ingleses lutariam nas praias, nos campos, nas ruas, “nunca nos renderemos”; então Hitler, em vez de lançar um ataque pelo Canal da Mancha, como os aliados fariam em direção inversa em 44 no Dia-D, Hitler resolveu esperar para se fortalecer e enfraquecer a Inglaterra com ataques aéreas. Mas só se enfraqueceu, porque os ingleses estavam inaugurando o radar, a nova tecnologia que permitia agrupar e direcionar seus poucos aviões para interceptar os ataques da Luftwafe, naquela temporada que ficou conhecida como A Batalha da Inglaterra, a primeira batalha aérea da História. Nunca tantos deveram tanto a tão poucos, diria Churchill sobre os pilotos dos caças que decolavam sempre sabendo que alguns não voltariam, mas sabendo também que derrubariam muitos aviões alemães, ceifando tanto a Luftwafe que um dia Hitler acharia melhor parar com os ataques aéreos para preservar os aviões que ainda tinha para defender a Europa a ser invadida no Dia-D...


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Mas, antes disso, no Atlântico a esquadra naval nazista dizimava os comboios de suprimentos que vinham dos Estados Unidos, de que a ilha trincheira precisava como um baionetado precisa de transfusões de sangue. Os submarinos e navios alemães se comunicavam pelo código Enigma, que a criptologia inglesa tão competente não conseguia decifrar. Até o dia em que os ingleses conseguiram entrar num submarino alemão bombardeado e abandonado pela tripulação e, antes que afundasse, capturaram uma máquina de escrever com teclas embaralhadas, era o código. Dali por diante, os ingleses passaram a saber de todos os movimentos da esquadra alemã, usando a velha máquina para decodificar cada mensagem capturada pelo rádio, e a guerra no mar foi revertida. Um discurso, uma nova tecnologia e uma velha máquina impediram que a Inglaterra caísse e os nazistas viessem ao Brasil conhecer chimarrão, pinhão, pinga e coquetel molotov feito com álcool de cana, porque você acha que os gaúchos não iam resistir?

Tivemos umas 1.500 baixas na Segunda Guerra, dois terços nos navios mercantes afundados no Nordeste, levando o povo a exigir a entrada do Brasil na guerra, contra a vontade de Getúlio Vargas, que simpatizava com o nazismo de

Hitler e

principalmente com o fascismo de Mussolini! Das mais ou menos


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500 baixas militares, uns 80 por cento foram na conquista de Monte Castelo, onde os cadáveres de novo foram decisivos. A FEB perdeu ali 400 pracinhas, metade das baixas na Itália, num só dia, porque a tropa resolveu perder a cabeça e tomar coragem, depois que os alemães, descendo do monte à noite com macacões brancos para se camuflarem na neve, colocaram minas nos brasileiros mortos nos ataques durante o dia, para explodirem matando o pelotão que depois foi resgatar os corpos. Aí, ah, aquilo tomou de assalto a alma dos nossos rapazes, aqueles moços que até então viam a guerra como uma aventura, acreditando que estavam todos abençoados por Nossa Senhora da Aparecida, e então, mesmo contrariando ordens, subiram aquele morro com garra e com gana de agarrar alemães pelo pescoço e lhes enfiar tripas adentro baionetas de ódio, desculpe o rompante, eu sou assim graças a Deus, mas enfim, depois de conquistado o monte e contados os mortos, o Alto (ironia) Comando somou um avanço de centenas de metros, subtraiu centenas de baixas, dividiu culpas e multiplicou glórias, e, no fim das contas, um tenentinho matreiro respondeu ao pensamento em voz alta de um general: porque morreram tantos? Porque, general, o inimigo estava no alto. Mas também é verdade que os ataques foram tão cegos de ódio que foram também suicida, mesmo que lá na fortaleza a guarnição alemã era de jovens soldados e veteranos semi-inválidos, pernetas e manetas, reconvocados para completar os regimentos alemães castigados por uma retirada combatente, lutando por cada palmo de terra,


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sabendo que depois do Vale do Pó só teriam a Áustria entre os aliados e a Alemanha... Aqueles veteranos e aqueles novatos estavam lá para permitir que as tropas duras montassem defesas mais ao norte. Nossos pracinhas, mesmo lutando contra uma fortaleza no alto, subiram o morro com garra porque perderam o medo de morrer. Os mortos comandaram o ataque! Sua predileção pelas táticas suicidas era, no entanto, para os kamikazes japoneses.

Os pilotos kamikaze decerto ajudaram os Estados Unidos a decidir por liquidar a guerra

lançando bombas atômicas no

Japão. O Alto Comando deve ter pensado poxa, se algumas dezenas de pilotos conseguem fazer tanto estrago, destruindo navios inteiros com apenas um aviãozinho e uma bomba, o que não farão as tropas japonesas para defender o solo japonês? Os americanos tiveram 100 mil baixas em toda a guerra, uma micharia comparada com os 17 milhões de mortos russos, mas podiam perder mais 100 mil para conquistar o Japão cidade por cidade, aldeia por aldeia, casa por casa. Então preferiram matar 170 mil civis em Hiroshima e Nagasaki, usando a lógica que é sempre fria. O mais interessante é que o kamikaze sintetizava toda a cultura nipônica. Primeiro, na opção pelo suicídio digno, um


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haraquiri glorioso, servindo à pátria de forma retumbante, tirando muitas vidas com a própria vida, dando à vida um sentido último, além e acima da carne e do tempo. Além disso, o kamikaze optava pela niponicamente típica simplicidade com eficiência, pilotando o menor avião da aviação japonesa, mas direcionando sua queda para o convés do navio alvo, se possível entrando pela chaminé, para causar impacto interno fatal para o navio. E o kamikaze também simbolizava despojamento, já no próprio nome do avião, um caça Zero, que era despojado de tudo que não servisse para sua última e estrita missão. O próprio piloto tirava as botas, raras e valiosas naquele final de guerra miserável, para serem usadas por outro piloto. Amarrava ritualmente um lenço na testa, como os antigos samurais. E orava em silêncio antes de entrar no seu avião bomba, simbolizando a sublimação almejada pelo budismo. Cada Zero era o Japão encapsulado em espírito e ação, como é o golpe samurai!

Numa dessas conversas sobre a “arte” da guerra, discutirão sobre Guevara, depois que Pé Vermelho revela: - Eu tinha 17 quando ele morreu, estava entrando em partido clandestino, sonhando ser guerrilheiro. Ele era meu ídolo. Nosso grupinho no Instituto de Educação Monsenhor Bicudo, em Marília, acompanhava todo dia o noticiário nos jornais sobre o cerco a sua guerrilha na Bolívia. Torcíamos para ele continuar despistando as tropas bolivianas que, diziam o jornais, eram


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orientadas por rangers ianques, como a gente dizia. Quando ele morreu, choramos na salinha do grêmio estudantil, uma verdadeira roda de choro sem cavaquinhos... Mas depois, conta Pé Vermelho, leu o Diário da Guerrilha de Che, em jornal, e começou a desconfiar da competência militar do guerrilheiro: - Ele quis exportar a fórmula da guerrilha cubana para o Congo, e não deu certo, porque era outra realidade, que ele desconhecia. Então quis exportar para a Bolívia, e aconteceu a mesma coisa. Não recebeu apoio do Partido Comunista Boliviano porque o partido sabia, ora, que aquilo não podia dar certo. Não recebeu apoio dos camponeses porque são gente pacífica, que não acredita em transformações à força, simplesmente isso. Então ficou lá, rodando pela selva, desenterrando latas de lei em pó, fugindo em círculos até ser cercado, claro. Leminski diz que o Che era um dos “santos” marxistas, que dedicam a vida à revolução e à libertação da massas trabalhadoras. Pé Vermelho rebate: - E liderou pessoalmente os pelotões de fuzilamento em Cubia, depois a criação de campos de concentração para opositores sem julgamento e até para homossexuais! Leminski diz que revoluções são sinônimos de excessos, é quando a rotina e a realidade tida como normal e certa são viradas pelo avesso. E dá no que dá, volta a rebater Pé Vermelho: - Ditaduras, genocícios, censura, fracassos econômicos, distribuição de miséria para muitos e privilégios para poucos!


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Leminski cofia os bigodões, suspira fundo e diz que, infelizmente, tem de concordar, mas ao menos numa coisa o Che foi muito efetivo: - Sabia criar slogans como ninguém. Era um mestre do agitprop! Um, dois, três, muitos Vietnãs! Endurecer, mas sem perder a ternura. Os dólares da Aliança para o Progresso não bastam para custear nem as latrinas de que precisa a América Latina. Por mais rosas que os poderosos matem, não conseguirão impedir a primavera. Ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição genética! De derrota em derrota, até a vitória final! - No caso dele, tornar-se mito foi a vitória, né... Leminski concorda e fica pensando...

O

último encontro dos dois será num restaurante em

Curitiba, pouco antes de Leminski se mudar para São Paulo. Já está bem barrigudo, o que não é surpresa; surpresa será bater a mão em sua coxa, numa daquelas risadas explosivas de reencontro, e sentir que entre a pele e o osso quase não há mais carne. Leminski quer pedir vodka, Alice fala você prometeu, e ele solta um suspiro fundo, lança a ela um olhar amoroso e fala tá bom, cerveja então. Mas, quando ele vai ao sanitário, PéVermelho, indo atrás, vê que ele faz sinal ao garçom, que escolado pega garrafa de vodka e bota dose dupla num copo atrás


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do balcão. Leminski, num ponto cego para Alice, vira o copo em duas goladas, solta seu suspiro de funda satisfação e vai urinar. Os dois urinando juntos a olhar os azulejos em frente, PéVermelho conta que, no colégio, alguém escreveu com esmalte nos azulejos: O futuro do Brasil está em tuas mãos – e Leminski solta sua risada meio embutida. Pé-Vermelho então fala que aqueles azulejos ali são brancos, como de hospital, de necrotério... - ...e, cara, você vai morrer se continuar se matando assim. Leminski fica balançando a cabeça a olhar os azulejos, daí dá neles três pancadinhas como quem bate em madeira e diz bem, se eu não sofrer já será bom. Depois encara sorrindo com o olhar doce de quando bem embebido em vodka, e fala a frase com que Pé Vermelho várias vezes sonhará: - Mas não vou morrer de tanto me matar, não, eu vou morrer de tanto viver! Volta para o salão, antes parando no balcão para pagar a vodka e, “pra não perder a viagem”, toma mais uma dose dupla. O melhor da vodka, diz entredentes caminhando para a mesa, “além de ser eslava”, é que não deixa cheiro, e senta ao lado de Alice dando-lhe um beijo no pescoço, ela ri feliz. Pé-Vermelho se promete não procurar mais o amigo de passagem por Curitiba “para não ver aquele suicídio em vida”, como dirá em São Paulo a Itamar Assumpção, que retrucará: - Você vai perder muitas risadas...


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Depois, folheando livros de poesia de Leminski, Pé Vermelho perceberá que a fascinação de Leminski pelas ações guerreiras suicidas é evidência da sua estratégia de, com a própria morte, criar uma lenda. Como Kerouac, como Rimbaud, como Mallarmé, como... Jesus! Em vez de

mártir dos pobres e

oprimidos, mártir da arte, ritualizando em cirrose, dose a dose, a dedicação suicida à sina da criação. A luz sobre essa estratégia bate em Pé Vermelho ao ver, na página 137 de Caprichos e Relaxos, o foto-poema de Leminski vestido com quimono, prancheta de escrita nas mãos, acima do trocadilho KAMI QUASE. Na página 136, outro poema é sintomático: apagar-me / diluir-me / desmanchar-me / até que depois / de mim / de nós / de tudo / não reste mais / que o charme. Os médicos bem sabem que o alcoolismo é uma doença que se pega bebendo, que se cultiva bebendo e que só se abandona quase morrendo, quando o corpo e a família já sofreram tanto que o sujeito encara o sacrifício da abstinência. As recaídas são muito mais numerosas que a total recuperação do alcoólatra (sim, medicamente correto seria escrever “alcoólicos”, focando como doença e não como vício, mas Leminski decerto não gostaria disso, rejeitando a idéia da doença, que não deixa opção, enquanto o vício tem a dupla face consciente e conseqüente da delícia e da destruição). E a recuperação, também na maior parte dos casos, não se dá por tratamento médico, mas pela psicoterapia de grupo, quase sempre através das ARAs, as associações de recuperação dos alcoólatras.


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Já pensou eu numa daquelas reuniões de regadas a arrependimentos e remorsos, cara? Imagine o Polaco esperando vez para falar, sem poder debater, sem poder soltar o verbo como Deus nos deu, ora doce e ora irado, ora lírico e ora hilário, ora no gênesis e ora no apocalipse? Talvez eu ganhasse uma sobrevida que seria uma antemorte. Castro Alves talvez escrevesse poeminhas fúteis se chegasse à meia idade. Álvares de Azevedo então, na velhice, talvez escrevesse “ah, eu morri ontem, minha irmã / quando deixei pra viver amanhã”. E Noel Rosa, se também não tivesse morrido aos 24 depois de fazer 300 sambas, quantos mais faria, três ou treze mil? O que a gente faria com tanto samba?

Pé Vermelho, quando deixa de procurar o amigo, já desenvolveu a escalada da cerveja para o vinho, mas rejeitando os destilados e sua dura cobrança através de descontrole hoje e ressaca amanhã. No entanto, sempre viu que Leminski tem uma extraordinária capacidade de absorção do álcool sem maior descontrole que o volume da voz e os jorros retóricos. Entretanto, hospedando Leminski em São Paulo, verá lençóis com manchas de sangue, vertido pelas hemorróidas do amigo, e aquilo ficará como indício aberrante do suicídio lento (e prenúncio dos jorros


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de hemorragia esofágica que anos depois será a causa mortis oficial). Fazer o que? Pé Vermelho pergunta a amigo psiquiatra, especializado em drogados, que confirma: só quem pode fazer pelo alcoólatra é ele mesmo, com a ajuda duma ARA. Mas quem conseguiria convencer disso aquele cérebro elétrico?

O CEREBRELÉTRICO Leminski falava alto, aumentando o conforme a quantidade de doses bebidas.

volume da voz Algum amigo ou

conhecido passava diante de um dos bares do centro ou ali no entorno do Largo da Ordem, ouvia a voz estridente do Polaco, entrava para ver/ouvir sua falação altissonante e candente, mesmo que fosse para defender seu sempre original ponto de vista sobre um grafite, uma quizila política ou uma questão artística. - O Barão Vermelho não é mais o mesmo sem Cazuza! Sua antenagem com o mundo pop, de mistura com sua erudição cult, tornava suas falações ao mesmo tempo atraentes e enigmáticas para os ouvintes, na alta voltagem entre fundos goles e profundos suspiros, um espetáculo ambulante, não só porque andava de um bar para outro quando estava no centro da


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cidade, como também porque falava andando, em círculos a representar as idas e voltas do pensamento, às vezes cofiando os bigodões em pausas que sucediam e antecediam novos rompantes, iniciados geralmente com advérbios – mas, porém, contudo, embora, todavia, entretanto – antes do jorro de palavras, sempre acompanhadas de gestos. Essa performance retórica e gestual era temperada pelo sotaque curitibano, que ele não disfarçava nem quando em São Paulo ou Rio. - Meu sotaque é minha marca fonêmica registrada, informando de

onde vim, geográfica e geneticamente, minha

identidade lingüística, que não renego, não disfarço e da qual me orgulho! O Brasil é uma colcha de retalhos fonética, que infelizmente as redes nacionais de televisão vão padronizando mas, no que depender de mim, o curitibês vai continuar sendo o sotaque mais gaúcho-polonês do Brasil! Se alguém reclamava que falava alto, pedia perdão mas emendava que, sendo um defeito, não tinha jeito: - Senão seria como pedir a Nelson Gonçalves para não ser gago e a Nelson Ned para não ser anão, ou querer que Elis Regina não fosse baixinha, como Garrincha era um boboca praticamente aleijado,

ao passo que o Aleijadinho, bem, o

próprio nome já diz... E Roberto Carlos é perneta, Tim Maia obeso como Churchill, que jamais conseguiria ficar duas horas com o braço levantado no palanque diante das paradas militares, como ficava o abstêmio e vegetariano Hitler, mas quem ganhou a


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guerra foi o obeso bêbado em parceria com o cadeirante Roosevelt!

Essa capacidade de performatizar voz, gestos e idéias em alta voltagem seria, na realidade, sua identidade social: quem conhecia Leminski, não esquecia, e sabia que não conheceria mais ninguém semelhante. Certa vez – Deus sabe quando e em qual hotel de Curitiba – ele e Pé Vermelho ficam horas conversando em alta voltagem, sobre literatura, música popular, política e arte militar, enquanto Leminski esvazia as garrafinhas do frigobar, também bicando uma garrafa de vodka que trouxe embutida no casaco. Já é no tempo em que as entidades convidantes de escritores, para palestras ou eventos, não custeiam mais frigobar, mas Pé Vermelho faz questão de oferecer as poucas garrafinhas de uísque e as cervejas em lata do frigobar, que Leminski metodicamente vai matando, enquanto Pé Vermelho toma vinho comprado num mercado próximo, certos detalhes não se esquece (sim, “não se esquece”, em vez da norma gramatical burra “não se esquecem”). O

cartunista e designer César Marquesini, que trabalhou em

agência de propaganda em Londrina com Pé Vermelho, a tudo ouve bicando seu copo, até que Pé Vermelho se toca: - Pô, César, desculpe, a gente aqui falando tanto e você aí só ouvindo, quer falar? César apenas balança a cabeça e sussurra:


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- Cara, vocês não param de pensar! Diante disso, vou falar o que?! Leminski dá um golaço, solta um daqueles suspirões e arremata: - E nem tudo que a gente pensa, consegue expressar! (Só depois de Leminski fazer sua estrategóica viagem é que Pé Vermelho, ao ser convidado por Toninho Vaz para dar depoimento à biografia O Bandido Que Sabia Latim, ficará matutando sobre essa cena. Porque, se teve tantas conversas elétricas com Lelé, é essa que vem à cabeça com intensa nitidez, porque? E porque não lembra de nada que falaram naquela noite, só lembra da cara espantada de César? Por causa das vodkas, claro, em vez do vinho usual, a bebida destilada passando um apagador nos neurônios. E a cara espantada de César é expressão daquilo de que só então Pé Vermelho percebe nitidamente: que só com Paulo Leminski manteve conversas tão entretentes e intensas, o único intelectual com quem podia conversar de ikebana a tae-kon-do, de haicai e heráldica, de política à poesia, de arte da guerra à guerra dos egos nas artes, o Leminski egocêntrico que, porém, esquecia de si ao falar de algum ídolo, tomado de paixão feito moinho de braços e bigodões a se agitar ao vento do entusiasmo pela diversidade, pela genialidade, pela excentricidade, como também pela simplicidade, para ele a expressão mais fina da beleza, como disse um dia com olhos úmidos.


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Pé Vermelho também percebe a dádiva de ter convivido e conversado com um cérebro tão coração, sem a prudência típica dos bem pensantes, tanto que podia misturar sacadas sísmicas com disparates brilhantes e continuar impávido, tudo parecendo loucamente coerente. Então Pé Vermelho escreve o depoimento para Toninho, e depois pensa ufa, Lelé, acho que enfim me livrei de pensar que devo algo a você. Leminskengano.) Leminski não portava um cérebro impositivo como (vamos nos ater a seus ídolos) Trotski, nem também um cérebro iluminado como Jesus, nem o auto-apreciativo cérebro de Cruz e Sousa, o singelético cérebro de Bashô. Seu desempenho cerebral parecia é mistura disso tudo, e ele simplesmente parecia se divertir com a própria mente e suas misturanças. Era espetáculo usual e inesquecível a alta voltagem de seu cérebro, sempre pronto a encadear seqüências de raciocínios desconcertantes e, no entanto, sempre lógicos, sustentados por argumentação sólida embora sempre no viés do pensamento convencional. A neurologia já demonstrou que o cérebro funciona eletricamente,

as

milhões

de

circuitagens

neuroniais

gastam/geram energia, como a física quântica demonstra que a matéria também é, em análise atomíntima, energia em transformação permanente, portanto dizer que Leminski tinha cérebrelétrico é pleonasmo. Mas, como ele diria, pleonasmo


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também se expressa, e quem o conhecia acabava concluindo que ele tinha mesmo um cerebrelétrico.

Exemplo. Roda na internet vídeo em que ele, falando a pequeno auditório, conta que a revista Quem, editada por Rosirene Gemael em Curitiba nos anos 70, pediu para ele indicar sua preferência na “área de poesia” naquele ano. Com o pullover que veste naquele inverno inteiro, e sempre com cigarro na mão, mesmo sem tempo de fumar entre os jorros de palavras, ele diz que o destaque poético do ano é um grafite, sim, um grafite. - Vejo o grafite como aquelas expressões que vem do fundo das coisas, do fundo das pessoas, e de repente adquirem aquela consistência de um grito. O grafite está para o texto como um grito está para a voz! O grafite é um berro! E passa a historiar: - O grafite surge quando, no Brasil, toda uma geração foi amordaçada, estrangulada, e o grafite, além de expressão, continha uma marginalidade nos anos 70, o crime de conspurcar uma parede, uma propriedade privada que alguém pintou direitinho e, de repente, alguém escreve lá buceta! A câmera mostra o auditório constrangido, mais mulheres que homens. Ele “conserta”: - Esqueci de esclarecer que buscesta - é a pronúncia certa - é um tipo de ônibus cheio de pobres metidos a besta, como boceta,


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com o, é bolsinha de couro para guardar fumo, embora com feição de órgão sexual feminino, daí também este, em algumas regiões mais pornográficas de nosso santo país, ser conhecido como boceta, que na fala popular tornou-se buceta mesmo e pronto. Dá uma tragada no cigarro e prossegue sacando já outro atalho para seu passeio dos pensamentos antes da conclufusão: - Podemos

pensar na cidade moderna como prisão!

Foucault mostra como escolas e prisões e empresas e instituições são a seu modo prisões, mas estamos presos pelas próprias cidades! Então o grafite surge com seu berro de liberdade, e a parede é como a página em branco das antigas literaturas, página agora aberta a todos os passantes! O grafite ancestral foi o coração trespassado pela flecha, riscado a canivete no tronco da árvore, mas parede é muito melhor! Rabisca a giz no quadro-negro o grafite “destaque poético do ano”: PQNA VOLTE! E apaixonadamente conta que um gênio desconhecido pintou isso em dezenas de paredes e muros de avenidas a caminho da rodoviária – e, também, em paredes e muros visíveis para quem retorne da rodoviária para a cidade. - Esse gênio ( e espero que, se for um de vocês, não se identifique para não quebrar a magia) usou a cidade como livro, as paredes e muros página a página, para verter seu amor na pele da cidade, seu apelo para que volte a sua pequena que partiu, e, se voltar, não erre o rumo de casa... E, aqui entre nós, devia ser uma pequena e tanto, hem? O auditório ri, ele solta fumaça e conclui:


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- Esse foi para mim o poema do ano em Curitiba! Em seguida, revela que também já fez grafites na vida, dois. Um, quando trabalhava em agência de propaganda e, elétrico, andava para lá e para cá criando os textos, o chefe implicava, queria que ele trabalhasse sentado. Então grafitou o muro diante da agência: Sentado não tem sentido - O segundo grafite foi quando começaram a falar muito de deficientes físicos, campanhas promovendo a

inclusão e tal,

então resolvi colaborar com o seguinte: O torto tem direito!

Essa impressão elétrica de Leminski é, certamente, devida também

à paixão com que fala, defendendo ou

atacando isto ou aquilo, mas sempre com envolvimento emocional, jamais apenas professorando ou diletantemente discorrendo. Miguel Sanches Neto lembra da impactante impressão que Leminski lhe causa na primeira vez em que esteve próximo dele: - Foi numa mesa-redonda na Biblioteca Pública do Paraná, o assunto era tradução e ele dividia a mesa com dois professores. A apresentação dos professores era aquela


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leitura monocórdia de textos bem pensados e bem pesados. Mas, quando Leminski começou a falar, iluminou-se aquele ambiente escuro. Ele se expressava de uma maneira absolutamente eufórica. Não importava muito o que ele estava dizendo, mas a intensidade daquilo que dizia. Havia um domínio total de palco, e ele dissertava sem seguir um texto ou anotações, numa espontaneidade assustadora. Como sempre também, o cérebrelétrico despejou uma de suas espanteorrias, teorias feitas para você ficar entre o espanto e o riso: - De uma coisa não me esqueci de sua palestra. Ele disse que havia aprendido alemão geneticamente. O pai, na juventude, namorara uma alemã, incomunicável fora desse idioma, e se vira obrigado a estudá-lo. Leminski dizia que, como o pai manejara esse código com intenções amorosas, ele tinha uma propensão genética para aprender a língua de Goethe. Não importa a veracidade dessa história e a eficácia desse método, e sim o fato de que para o poeta uma língua e uma cultura só se entregam num estado de paixão.

Em longa entrevista ao jornalista curitibano Aramis Millarch5, Leminski – ao som de pedras de gelo tilintando no copo – conta que em evento no Othon Hotel, em São Paulo, “já 5

Outubro de 1982.


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nervoso por viajar de avião”, depara com mesa redonda formal, “quatro horas de gravação, com estenógrafas!”: - E pensaram que eu ia ficar sentadinho que nem professor da USP ou da PUC, respondendo perguntas bestas para respostas óbvias. A certa altura, não agüentei mais e fui para o bar tomar mais uma birita, mas uma sujeita da promoção foi lá, e me pegou tão forte no braço que deixou marca, para me dizer que aquilo não era um hapenning e eu devia voltar para a mesa. Voltei, mas bati na mesa e falei olha, qualquer bar de Curitiba às nove da noite tem um nível mais alto que esta mesa redonda! Perguntado sobre as rusgas com Pé Vermelho, diz que são coisas do passado, declara amoroso afeto e, depois, respondendo a rodadas de perguntas, exibe sua faceta frasista ao molho de seu colossal egocentrismo entremeado por ternura: - Por parte da família de minha mãe, tem mais violonistas por metro quadrado do que qualquer outra, inclusive sou primo do Valtel Branco. - Sempre fui o primeiro aluno da turma, sempre tive esse vício. - Alice é meu eu mulher. - Meu pai era uma figura excepcional. Com ele aprendi a admirar a arte militar. Se me pedirem os planos de qualquer grande batalha, reproduzo aqui agora nesta mesa.


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- Fui um piá de passar o dia inteiro no mato, lá no Quilômetro 34, até minha mãe chamar no fim da tarde. - De 70 a 78, treinei violão umas quatro horas por dia! A música é o destino natural do ser humano. Minha utopia particular é que todos os seres humanos serão músicos um dia. Este planeta vai ser o mais musical do sistema solar, o resto é silêncio em Marte, na Lua, em Vênus. Comecei a gostar de música com o canto gregoriano no mosteiro, não existe nada mais bonito que canto gregoriano, que não tem ritmo mas nada pode ser mais melódico. Deve ser por isso que sou um grande melodista. Valeu, Mudança de Estação, Se Houver Céu, Verdura, é tudo não só letras mas também músicas minhas. - Sou profundamente religioso, inclusive em certas crenças que compartilho com a esquerda. - O primeiro poeta que me marcou? Fagundes Varela. Mas depois tantos: Drummond, Cabral, Vinicius, Cassiano Ricardo... E a mulher! Pra mim, a descoberta da mulher foi também a descoberta da poesia. - Com o Catatau eu quis fazer

uma arte sofisticada,

requintada, exigente, para poucas pessoas. Mas também a Teoria da Relatividade, quando foi concebida por Einstein, foi entendida só por meia dúzia de cientistas, e hoje é ensinada no colegial! Não vamos subestimar a coisa difícil!


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Sim, eu tenho um cérebro e ele trabalha, não como os cérebros que batem ponto e só trabalham a serviço de alguma coisa, o salário, a empresa, a cantada, a política, não, o meu cérebro trabalha o tempo todo porque é, ué, um tipo de cérebro como são as usinas, que não podem ser desligadas. Dizem os neurexperts que o cérebro nunca para de funcionar, processando milhares de pensamentos por dia, mesmo dormindo, enquanto sonha desdobrando outra realidade, que nem por não ter peso pode ser chamada de irreal, basta ver como se movem os olhos da pessoa sonhando, espírito e carne tão transados como ar e água, pois não é vapor dos oceanos e rios e orvalhos que faz as nuvens que faz as chuvas que faz os riachos que fazem os rios que fazem o mar? Sim, eu tenho um cérebro que é como o planeta, só que o planeta no tempo em que o mar ainda não era salgado, e fervia esquentado pelo mar interior de lava, e assim formavam-se nuvens tão imensas que chuvas torrenciais lavavam as terras que afloravam, cobertas de salinas, que enxurraram-se para o mar, que se salgou, enquanto florestas de árvores também imensas cresciam nessas terras, com árvores muito mais grossas do que as que conhecemos hoje, florestas tão gordas e altas e densas que, quando foram soterradas por espasmos do planeta espreguiçando ou bocejando, formaram o que chamamos de poços de petróleo. Era um planeta muito mais animado, ainda sem placas tectônicas, que só vieram depois do resfriamento,


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como armadura rochosa para conter o calorão interior e permitir o ajardinamento posterior, isso que chamamos de florestas e são apenas os musgos sobre a rocha Terra, como o musgo parece sob a lupa parece floresta em miniatura. A Terra há três ou quatro bilhões de anos, assim é meu cérebro, não esse planetinha calmo de hoje, que tanto nos espanta apenas com alguns terremotos. No princípio, não era o Verbo, era o vérbero, o planeta querendo se expressar, se moldar através das águas e do ar e do fogo, para enfim fazer essa camadinha fina de terra de onde tiramos o sustento, como eu tiro meu sustento do cérebro, produzindo camadas de textos, entenda como quiser, só essa comparação com a Terra parece à altura do meu cérebrego, finalmente uma palavra tetroxítona.


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O POLINGUISTA Naquela mesma longa entrevista a Aramis Millarch, Leminski fala sobre sua propalada poliglotice, começando com enganosa modéstia: - O tempo de uma vida é muito curto para se dominar uma única língua. Vou morrer sem conhecer direito o Português. Mas eu domino, assim de saber ler, escrever e falar, o Inglês... (pausa longa), o Italiano, o Espanhol, né, que é apenas uma variante do Português... (pausa; ouve-se o gelo), o Alemão... o Hebraico, o Japonês... o Russo... e o Polonês não posso dizer que domino mas sei a estrutura gramatical. E o Latim, claro, além do Grego. E saco Tupi pra caralho! Provavelmente um fragmento dessa fala é verdadeiro: “sei a estrutura gramatical”. Pode-se avaliar quanto de verdade existe em sua poliglotagem ouvindo o depoimento de Jaime Lerner num disco institucional, gravado depois da pós-viagem de Leminski (e que Pé Vermelho teve e descartou quando surgiram os CDs...): o prefeito de Curitiba conta ter ficado muito impressionado com o poeta, em seu primeiro encontro com ele no Passeio Público, ao ouvir o poeta falar em Hebraico. Alice ri e emenda: - E decerto, Jaime, aquela era uma das poucas frases que ele sabia em Hebraico! Lançar frases noutro idioma, de repente, é recurso de Leminski que, intencionalmente ou não, lhe firma a fama de poliglota. O poliglota de oito línguas certamente tinha uma


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extraordinária habilidade para captar a estrutura funcional de um idioma, além de uma memória que já espantava seus colegas de mosteiro e sempre deslumbraria seus interlocutores ou suas platéias. Não só lia dicionários como memorizava as palavras, conseguindo assim munição para suas tiradas poliglotas. Mas decerto não “dominava” tantas línguas, embora pudesse perfeitamente traduzir delas haicais, poemas, trechos ou mesmo obras inteiras, como fez, competentemente. O conto Giacomo Joyce6, de James Joyce, começa assim: Who? A pale face surrounded by heavy odorous furs. Her movements are shy and nervous. She uses quizzing-glasses. Yes: a brief syllabe. A brief laugh. A brief beat of the eyelids. Leminski traduz assim: Quem? Um rosto pálido circundado por pesadas peles perfumadas. Os movimentos dela são tímidos e nervosos. Ela usa um monóculo. Sim: uma sílaba breve. Um riso breve. Um breve bater de pálpebras. Sai-se bem, embora diagramando doutra forma as frases, até porque o idioma Português não é sintético como o Inglês. Mas o importante é que o ritmo é mantido e as aliterações não são descartadas, como em breve bater de pálpebras, onde as repetições de b, r, e, a e p reproduzem foneticamente a imagem. 6

Editora Brasiliense, 1985.


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O segundo parágrafo: Cobweb handwriting, traced long and fine with quiet disdain and resignation: a young person of quality. Leminski traduz: Teia de aranha sua caligrafia, traçado longo e fino com tranqüilo desdém e resignação: uma garota de categoria. O tradutor matuto ou automático traduziria jovem pessoa de qualidade. Vamos para o final: Unreadiness. A bare apartment. Torbid daylight. A long black piano: coffin of music. Poised on its edge a woman´s hat, red-floweredm and umbrella, furled. Her arms: a casque, gules, and blunt spear on a field, sable. Envoy: Love me, love my umbrella. A tradução de Leminski: Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta luz do dia. Um grande piano preto: túmulo da música. Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher, com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado. Seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo, preto. Dedicatória: Me ame, ame meu guarda-chuva. A ressaltar, túmulo de música, que o tradutor automático traduziria por caixão de música, perdendo a preciosa ressonância


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dos três u e a seqüência de duas palavras proparoxítonas. Mas é na nota de rodapé que o tradutor expressa sua competência: É em linguagem heráldica, com signos mortos, que Joyce fecha, melancolicamente, sua história de um amor impossível. A partir do trocadilho “her arms”, ao mesmo tempo “seus braços” e “seu brasão, suas armas”, Giacomo desenha um cômico brasão de armas, carregado de significados sexuais: o capacete vermelho, uma metáfora da glande, a lança de ponta quebrada, um símbolo fálico evidente, o hieroglifo de um tesão para sempre frustrado. No Inglês medieval da linguagem heráldica, “gules” é a cor vermelha no esmalte dos brasões (em Português, “goles”), e “sable”, o preto (embora eu desconfie que, aqui, Joyce joga também com o Francês “sable”, “areia”, expressando assim a esterilidade de seu “affair”. Com o polilingue Joyce, nunca se “sable”... Há que ressaltar, ainda, que o conto de Joyce é sobre um amor defunto, um idílio morto-vivo, a paixão platônica de um professor maduro por uma jovem aluna. No Catatau, o protagonista canabisticamente “mata” a razão, a consciência, em favor do delírio. No conto de Joyce, quem se apresenta morta é a possibilidade de um amor “normal”, pois o professor parece amar mais à retórica em torno do amor do que o próprio amor ou o ser amado. Parece mais um indício do fascínio de Leminski por variantes de morte em vida ou lenta imolação.


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Bem, por falar em morte, ele também traduz Malone Morre (Malone Dies), de Samuel Beckett, que começa com o protagonista narrador se apresentando doentiamente, lembrando muito a situação aguda vivida por Leminski em seus últimos anos: I shall soon be quite dead at last in spite of all. Perhaps next month. Then it will be the month of April or of May. For the year is still young, a thousand little signs tell me so. Perhaps I am wrong, perhaps I shall survive Saint John the Baptist's Day and even the Fourteenth of July, festival of freedom. Indeed I would not put it past me to pant on to the Transfiguration, not to speak of the Assumption. But I do not think so, I do not think I am wrong in saying that these rejoicings will take place in my absence, this year. I have that feeling, I have had it now for some days, and I credit it. But in what does it differ from those that have abused me ever since I was born? No, that is the kind of bait I do not rise to any more, my need for prettiness is gone. I could die to-day, if I wished, merely by making a little effort, if I could wish, if I could make an effort. But it is just as well to let myself die, quietly, without rushing things. Something must have changed. I will not weigh upon the balance any more, one way or the other. Para a edição brasileira7, Leminski traduz assim: Logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. Talvez mês que vem. Vai ser abril ou maio. O ano ainda é uma criança, mil sinaizinhos me dizem. Quem sabe esteja errado, quem sabe 7

Editora Brasiliente, 1986.


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consigo chegar até o dia da festa de São João Batista ou até mesmo o quatorze de julho, festa da liberdade. Qual o que, sou bem capaz de durar até a Transfiguração, me conheço bem, ou até a Assunção. Mas não acredito, não acho que estou errado em dizer que estas festas vão ter que passar sem mim, este ano. Tive essa sensação, faz dias que venho tendo, e acredito nela. Mas em que difere daquelas que fazem de mim gato e sapato desde que me conheço por gente? Não, esse é o tipo de armadilha em que não caio mais, meu desejo de pitoresco passou. Podia morrer hoje, se quisesse, apenas fazendo um pequeno esforço, se eu pudesse querer, se eu pudesse fazer um esforço. Mas não me custa nada me deixar morrer, quietinho, sem precipitar as coisas. Alguma coisa deve ter mudado. Não vou forçar nenhum dos pratos da balança, nem pra cá, nem pra lá. Uma tradução literal da primeira frase seria logo vou estar bem morto finalmente apesar de tudo. A reconstrução de Leminski é graciosa sintática e ritmicamente: logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. (e ele mantém essa fidelidade rítmica ao longo do livro). Em seguida, em vez de traduzir the year is still young como o ano ainda está jovem, introduz uma brasileirice: o ano ainda é uma criança. Essa ladinice tão necessária a uma tradução gostosa fica ainda mais explícita quando as sensações que, no original, “abusam” do narrador, na tradução “fazem gato e sapato” dele. Assim também a última frase do trecho poderia ser traduzido como não vou mais mexer na balança, de um jeito ou


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de outro, mas ele recria como não vou forçar nenhum dos pratos da balança, nem pra cá, nem pra lá. Em posfácio, Leminski informa que Beckett escreveu essa novela-monólogo em Francês, que o próprio autor depois traduziu para o Inglês, portanto temos, do mesmo punho, dois textos, e não um só, da mesma obra. Malone Meurt e Malone Dies são duas obras? Ou uma só? Afinal, Malone morre na literatura francesa ou na inglesa? Esta tradução para o Português é uma tentativa de resolver essa questão bizantina. Foi feita, simultaneamente, do Inglês e do Francês. Enquanto eu traduzia tinha, à minha esquerda, o texto francês, à direita, o texto inglês, primeiro caso de uma bitradução simultânea. Logo à página 6, indica em rodapé que determinada frase só existe no texto em Francês, comprovando a “bitradução”. Se não falasse Francês fluentemente, no entanto tinha competência bastante para fazer uma distinção preciosa: Apesar de todo o virtuosismo lingüístico de Beckett em Francês, há alguma coisa de duro e mecânico no Francês de Malone Meurt. Na tradução para o Inglês, as frases deslizam com joyciana elegância, e sabor inconfundível, com freqüentes aliterações. Faz apontamentos que revelam o artista além do tradutor mecânico, indicando, por exemplo, o emprego quase intoxicante de “modificadores”, do tipo “talvez”, “quem sabe”, “de certa maneira”, “visto de um certo ângulo”, “se bem me lembro”, além do uso quase intensivo de adjetivos “alguns”,

“qualquer”,

índices

de

como “certo”, indefinição,


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“indeterminativos”. Isso confere ao texto de Malone uma espécie de aura de irrealidade, de relatividade extrema, de coisa fora de foco, pré-pós-seres”.

O romance Pergunte ao Pó8, de John Fante, é outra obra dedicada a ironicamente exaltar o fracasso e o vazio, encerrando com suicídio da amada do protagonista, É narrado na primeira pessoa, foco narrativo também de Leminski no Catatau e em Agora É Que São Elas. Começa assim: One night I was sitting on the bed in my hotel room on Bunker Hill, down in the very middle of Los Angeles. It was an important night in my life, because I had to make a decision about the hotel. Either I paid up or I got out. That was what the note said, the note the landlady had put under my door. A great problem, deserving acute attention. I solved it by turning out the lights and going to bed. A escrita de Fante não tem nem procura intensa inventividade, ao contrário, é de uma coloquialidade escorreita, escrevendo como quem fala simplesmente, e Leminski cumpre disciplinadamente a tarefa de manter essa espontaneidade: Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel em Bunker Hill, bem lá no centro de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida porque eu tinha que tomar uma 8

Editora Brasileira, 1985.


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decisão sobre o hotel. Ou eu pagava ou caía fora: era isso que a nota dizia, a nota que a proprietária tinha enfiado por baixo da minha porta. Um grande problema, que merecia muita atenção. Resolvi o problema apagando a luz e indo pra cama. O tradutor estava, entretanto, preparado para o que desse e viesse, como uma frase bimbalhosamente inventiva: The haven of the booboisie, of boobs and bounders and all brummagem mountebanks”, que Leminski explica em rodapé e traduz assim: A igreja tem que acabar, é o refúgio da burroguesia, dos bobocas e bitolads e todos os saltimbancos de quinquilharias. Em seguida, buildings craked like crushed crackers vira prédios se esborrachavam que nem bolachas se esboroando, ou seja: não foi um tradutor literal de significados, mas um artífice também atento aos significantes, consciente da encarnagem entre forma e conteúdo. Mais uma vez, a evidência de que Leminski entrava no espírito das obras que traduzia, indo ao cerne, é sua introdução Double “John” Fantasy, óbvia referência ao disco Double Fantasy que John Lennon e Yoko9 lançaram em 1980. Ele explica: Retrato do artista quando jovem e tolo o bastante para se julgar o melhor escritor do mundo, Ask The Dust abre um movimento complexo no interior do seu processo. Afinal, é a história das desventuras de alguém querendo ser um grande escritor: um relato sobre o próprio escrever, desvelando seu 9

Leminski viveu com Alice, acabou a vida com Berenice Mendes, com quem viveu dois anos, e durante quase um ano viveu no apê da cantora Fortuna em São Paulo, evidenciando a necessidade de contar sempre com uma mulher amante ou mãe, também uma “dupla fantasia”.


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fazimento. Ao escrever Ask The Dust, esse alguém o consegue: é uma double fantasy, uma dúplice ficção. Na introdução ainda, ao descrever o protagonista, Leminski parece estar apontando para si mesmo: Um pilantra, em suma. Um marginal, misto de cínico e estóico. O estoicismo foi escola filosófica que pregava a serena indiferença à dor, aos desastres e sofrimentos, como Leminski em vida e morte, como veremos adiante. O estoicismo começou na Grécia, migrou para Roma e é para o Latim que vamos. Satyricon10, de Petrônio, traz na capa a indicação de tradução de Paulo Leminski diretamente do Latim. E, no posfácio Latim com gosto de vinho tinto, o tradutor informa que o autor é mais um da sua galeria de nobres suicidas, aqueles que se matam por uma causa ou, se forçados a isso, com altivez: Oficialmente, consta como sendo o romance escrito por Caius Petronius, cortesão e íntimo do imperador Nero, que este condenou ao suicídio, acusado de conspirador. Se não traduziu realmente do Latim, ou se usou alguma tradução portuguesa como guia auxiliar, ninguém saberá, pois Leminski não indica a fonte latina do texto. Mas faz apontamentos que pressupõem familiaridade com a obra: Quem nunca leu Petrônio não conhece as delícias do Latim, o sumo, o suco, o tutano, o perfume desse Latim ágil, vivo, vulgar, malandro, espertíssimo, único. 10

Editora Brasiliense, 1987.


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O Latim que aprendemos nas escolas (quando havia Latim) era aquela coisa pesada, retórica, altamente artificial, dos chamados “grandes clássicos”, Cícero, Virgílio, César, Ovídio, Horádio, Tito Lívio. Nesse quadro, Petrônio discrepa. Nas falas dos personagens do fabuloso banquete de Trimalcião, vemos desfilar um Latim vivo, direto o raro do reles, enfim, diante de nós. (O raro do reles: até aqui, traduzindo Latim, Leminski transita entre o erudito e o popular.) E dá uma dica reveladora de uma tradução competente porque transcriadora: A concisão extrema do Latim obriga a alongar certas frases para que não se tornem incompreensíveis ao leitor atual. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém. E chegamos a outro suicida, este cometendo um suicídio ritual e público, Yukio Mishima, o escritor japonês que, em 1970, praticou haraquiri no Quartel das Forças Armadas de Tóquio, como protesto contra a ocidentalização e a decadência cultural do Japão, principalmente o abandono dos códigos de honra. Sol e Aço11 é o último livro de Mishima, misto de ensaio e memória, manifesto e síntese de seu pensamento. A tradução do Japonês teve assistência técnica de Darci Yasuko Kusano e Elza Taeko Dói, evidência de que Leminski não “dominava” o Japonês como dizia. Apontamentos no posfácio, 11

Editora Brasiliente, 1985. Pela seqüência das traduções, vê-se que Leminski, em três anos traduziu cinco livros, num ativismo impressionante para quem já devia sentir os efeitos da cirrose.


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como sempre brilhante, parecem falar não só de Mishima mas do próprio Leminski: Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima quis se fazer todo, corpo, história e vida, uma obra de arte, entidade além e acima da mudança, da corrupção e da perda de sentido, condição natural de todos os seres deste mundo sublunar. Engana-se quem imaginar Mishima como pacato escriba, todo dedicado a seus livros e seu trabalho literário, nos moldes erasmianos do scholar ocidental, último descendente do monge beneditino, a meio caminho entre o céu e o texto, Além e Signo. Cultor das artes marciais, Mishima viveu entre o sol e o aço. Praticava karatê e a esgrima Kendô (da qual era faixa preta quinto grau). Na procura do máximo de seu limite físico, fazia halteres.

Narcisista,

aparece

em

suas

fotografias

mais

conhecidas, quase nu, músculos à flor da pele, um super-homem pronto para a batalha final consigo mesmo. Que ele perdeuganhou. Quando o intelectual ocidental parte para a ação, sua sereia, vai normalmente para a política, esse simulacro da ação, que substitui a verdadeira ação, que é a guerra, pelos vai-e-vens das conversações e negociações, próprias da classe dos comerciantes. Mishima era um “primitivo”. Um primitivo sofisticadíssimo, herdeiro de uma verdadeira civilização, alguma coisa pela qual vale a pena morrer. Antes de condenar Mishima, vamos perguntar: e nós? Será que nós temos alguma coisa pela qual valha a pena morrer?


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A autoimolação, para ele, era uma obra de arte, algo a ser preparado, saboreado por antecipação, a chave de ouro de uma vida, um clímax. Ou, para falar em jargão freudiano, um orgasmo de Tanatos. E logo Leminski acrescenta/supera: Sol e Aço é uma afirmação de vida. De uma vida tão tensa e tão forte que só o Fim poderia ser o Significado. Guevaras, Michimas: mortos, somos invencíveis. (Não escreve são, mas, sim, somos... Leminski vivia e morria outras vidas nas traduções e biografias.)

O POLIVIVENTE Depois de Toda Poesia, Alice, Áurea e Estrela cuidaram de reeditar as quatro biografias escritas por Leminski, do jeito que ele idealizou e não chegou a ver em vida, reunidas num só volume com título VIDA, cada letra representando uma biografia - de Bashô, de Cruz e Souza, de Jesus e de Trotsky. A editora pede a Pé Vermelho autorização para republicar um pequeno conto seu no final da biografia Jesus, e instrução de como indicar a autoria. A resposta é óbvia: -

Indiquem a autoria do mesmo jeitinho que Leminski

colocou na primeira edição.


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Desligando o telefone, Pé Vermelho pega Jesus, folheia e revê que a bibliografia é mínima, Leminski se baseou principalmente nos Evangelhos, que traduziu “diretamente do original grego, tendo diante dos olhos a esplêndida versão latina de Jerônimo, o maior dos tradutores da Antiguidade, que, na Vulgata, passou toda a Bíblia do hebraico e do grego para o Latim”. Depois de indicar como fonte para a biografia apenas mais Lês Manuscrits du Desert de Judá, por Geza Vermes, não deixa de dar vazão à vertente pop: “Isto sem falar em quadros, esculturas, vitrais, composições de música erudita, filmes, óperasrock”. Pé Vermelho procura VIDA, editado pela Sulina, e passa a ler as outras três biografias além de Jesus, a única que leu antes disso.

Anos 80. Sem saber que Leminski está escrevendo Jesus, Pé Vermelho telefona do hotel, Leminski diz venha, e, na casa do Pilarzinho, Alice está saindo com o fusca verde que só ela dirige, ele não sabe dirigir. - Temos de deixar algo para as mulheres fazerem – brinca Leminski, abrindo a garrafa de vodka trazida na mochila por Pé Vermelho, que abre um vinho. A louça está lavada na pia e, sobre a mesa, repousa um pão que Leminski belisca, diz que é ordem de Alice, não beber sem


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comer – e entorna a primeira vodka, depois pergunta como sempre que se encontram: - E aí, cara, lendo o que? - Ando lendo o segundo escritor que é lido em todo o mundo e nunca escreveu livro algum. Leminski até suspende o gargalo da garrafa que enche o copo. - Repete. Pé Vermelho repete o que falou e acrescenta que o primeiro escritor lido em todo o mundo, apesar de nunca ter escrito uma linha, até porque era analfabeto, é Esopo. Leminski concorda, Esopo foi escravo grego que nem sabia escrever, viveu contando suas fábulas que, depois de morto, por outros foram escritas e assim perpetuadas, mas... - ... e o segundo escritor que nunca escreveu livro é...? - Esse pão e esse vinho lembram muito ele. Jesus. Leminski baixa à mesa ao copo que ia levando à boca. - Je-sus?! O chamado Jesus Cristo?! Você também anda lendo Jesus? - Não propriamente ando lendo, leio sentado. Leminski ri, entorna, volta a botar dois dedos de vodka no copo, sua medida usual, cofiando os bigodões como se com isso passasse os pensamentos a limpo. - Mas porque você está lendo Jesus? Vai se converter e começar a bater no peito e gritar aleluia?


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Pé Vermelho conta que, na verdade, está relendo. Aos onze, leu Monteiro Lobato e José de Alencar inteiros, em livros de capa dura que a mãe comprara de um dos vendedores que então batiam palmas de casa em casa, com mala cheia de livros amostras das coleções. E então a tia-avó Mazica foi passar seus últimos meses na casa da sobrinha, levando todos seus pertences, que eram uma mala com roupas e uma Bíblia, aquele livro que muitas vezes já passara pelos olhos do menino como coelho fugidio, sempre voltando a se esconder no criado-mudo da mãe, como talismã sagrado, negro tijolo de papel. O rapazola passou a levar toda manhã, para a tia-avó, queijo branco espetado em garfo e assado na chama do fogão até amolecer e crestar nas beiradas. A velha mineira pegava o garfo, quase cega, apalpava o pedaço ainda quente de queijo, suspirava de gozo e comia feliz feito menina, com as mordidinhas possíveis para sua boca quase sem dentes. Aí o rapazola, que estava na fase de espremer espinhas para ver sangue, e cuspir na sopa para respingar na família, embora capaz de chorar vendo filmes de Mazzaropi, perguntou gritando no ouvido: - Tia Mazica, a senhora já leu muito essa Bíblia? Ela ouviu de boca cheia, mascou, engoliu balançando a cabeça até falar: - Não, menino, a tia não sabe ler. Não quer ler pra mim? Pego assim no contrapé, o rapazola pegou o tijolo negro, folheou para lá e para cá e resolveu que lógico seria começar pelo começo. O Gênesis, o mais poético e ilógico dos livros da Bíblia,


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nisso disputando apenas com o último, o Apocalipse. A leitura tinha de ser ao pé do ouvido da tia-avó, de onde saíam grandes pelos até então de insuspeitável existência. O rapazola puxou o banquinho para junto da cadeirona de vime onde ela se ajeitava em almofadas, e começou a ler. Depois de sabe Deus quantos versículos, tia Mazica ressonava e ele continuava a ler encantado pelo tom poético, pelo ritmo envolvente das frases, pela sucessão cinematográfica de imagens e... - ...até porque não tinha outro livro à mão, já tinha dado cabo das coleções de José de Alencar e Monteiro Lobato, li a Bíblia durante vários meses, cara, sem parar! Lia em diagonal os livros mais burocráticos do Antigo Testamento, repletos de genealogias e aconselhamentos e castigos e temores, mas voltando para reler os livros mais encantadores, principalmente o Novo Evangelho com suas parábolas. Até levava ao colégio para ler no recreio. - Deram de me chamar de padreco. O apelido não pegou porque não liguei, como outro apelido que me deram, muçulmano, porque parecia árabe. Isso devia ser em parte verdadeiro, se o avô materno era Nóbrega, espanhol amorenado como os tantos filhos que foram feitos à força pelos árabes nas espanholas, no tempo em que dominaram a Espanha... - Mas o que importa agora é que, relendo as parábolas de Jesus, não te parecem literatura árabe?


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Leminski sorri, emborca o copo com expressão vitoriosa e levanta para falar andando: - Claro! Jesus era árabe! Semita! Israel é uma das sete tribos do Oriente Médio, antes até do Antigo Testamento! (Hoje, Polaco, gostaria de ver tua cara novamente triunfante ao saber que os exames de DNA confirmam: os genomas de judeus e árabes são irmãos. Brigam só porque, como na parábola do filho pródigo, um tem inveja do outro...) - Mas – Leminski se intriga – porque você está relendo os Evangelhos? Pé Vermelho conta que descasou, deixando dois filhos com a ex-mulher, e foi morar num apartamento alugado. Ajeitou a mudança, escrivaninha, máquina de escrever, alguns livros (continuando o costume de doar a maioria dos livros para a biblioteca pública em toda mudança), e as caixas com panelas e utensílios. Como tinha enchido de temperos e talheres uma panela de pressão, cuja tampa não achava na mudança apressada, tampou a panela com o mais mole dos livros, o único que podia funcionar como tampa improvisada, a Bíblia. No apartamento, botou arroz integral para cozinhar e foi à área de serviço arrumar umas coisas, deu com a Bíblia ali no piso, pegou, abriu no Novo Testamento, pensando: bem, combina com vida nova... E, novamente envolvido pelo velho livro, só parou de ler quando sentiu cheiro de arroz queimado. - As parábolas dele são... são...


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- É o melhor contador de causos da literatura mundial! – explode Leminski – Ele mistura a técnica sino-japonesa dos coans, as historietas impactantes de iluminação espiritual, com a tradição greco-romana das fábulas e dos epigramas! Pois isto é um epigrama: o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado! E a parábola do semeador não é senão uma fábula brilhante, com a original variante de usar como personagens não animais, como Esopo fazia, mas três sementes! Estão no deque anexo à sala, na frente da casa, e Leminski só precisa pular para o gramado mal cuidado, onde agacha e fica mexendo na grama como se rabiscando, enquanto murmura: - E quando lhe pedem então que condene ou absolva a adúltera que estava sendo apedrejada? Se condenar, ele estará renegando sua própria crença no perdão. Se absolver, estará indo contra os velhos profetas, as Escrituras, os bons costumes, estará pregando a dissolução da família! Então ele agacha, rabiscando a areia, ganhando tempo para pensar e, ao mesmo tempo, criando suspense para outro de seus epigramas, depois de levantar com uma pedra na mão: quem não tiver pecado, atire a primeira pedra! Repassam várias parábolas, inflamados de entusiasmo, Leminski diz que “entusiasmo” vem do Grego, “estar cheio do sopro de Deus”. E decide: - Vou dedicar a biografia Jesus a você, cara! O livro sairá com a dedicatória: Para Domingos Pellegrini, que, de repente, apareceu falando de. No final, trará uma


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historieta de Pé Vermelho sobre Jesus menino, com o título Fragmento de um Apócrifo, o Evangelho da Infância conhecido como Evangelho Segundo Domingos. Décadas depois, Pé Vermelho desconfia que deve ter mostrado a Leminski algum trecho do livro juvenil Andando com Jesus, pois não lembra de como isso foi parar nas mãos do amigo. Mas lembra que, noutro encontro, chegou com uma novidade: - Li A Ressurreição de Jesus Cristo, do Og Mandino e... (Leminski franziu a cara com nojo). Larga de ser preconceituoso! O cara tem umas teses bem tesudas! Que Jesus deve ter sido educado no Templo, pelos sacerdotes, depois de ter discutido com eles quando menino. Pois, depois da lacuna de duas décadas, aparece homem pronto para pregar seu credo inovador, tão inovador que se revolta contra o comércio em redor do Templo. Leminski começa a se interessar. - As barracas ali eram autorizadas pelos sacerdotes, mediante pagamento de taxas, claro, aluguel daqueles espaços sagrados, que passavam a ser consagrados... ao lucro, assim custeando as despesas do Templo! Ali vendiam aves, carneiros e outros animais para sacrifício a Deus! Para uma freguesia que vinha de toda a Judéia! Aquilo devia render uma nota, cara, e um dia aparece um cara expulsando os vendilhões a relhadas e pontapés! Porque a guarda do Templo, que era judaica, autorizada pelos romanos conforme a Pax Romana, não prendeu aquele sujeito? Leminski mata a charada:


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- Porque conheciam Jesus, respeitavam Jesus... - ...que foi criado e educado no Templo pelos sacerdotes para ser mais um deles, um rabi, mas preferiu pregar a céu aberto com discípulos escolhidos entre trabalhadores braçais! O único que não era braçal, era um fiscal, foi quem o traiu, Judas! Leminski se irrita: - Meu livro já está quase saindo, cara, senão eu colocava isso! (Pois é, cara, se você não tivesse ido passear de vez, imagino a cara que faria sabendo das revelações em O Evangelho Segundo Jesus, do lingüista Stephen Mitchell12, que li depois ainda: baseando-se em análises estilísticas dos “originais” gregos da Bíblia, ele indica a grande interferência da Igreja e seus escribas nos Evangelhos. Como exemplos, a fuga para o Egito, a estrela de Belém, os três reis magos... é tudo ficção para tornar aceitável que tamanho prodígio espiritual, Jesus, nascesse de uma mãe solteira naquele tempo moralista e naquela cultura machista como todas então. Aliás, o anjo anunciador da gravidez virgem de Maria também é ficção. E também José, o ancião cuja vara flore... Jesus não fazia trocadilhos, mas diz a Pedro: Pedro, tu és pedra (“petrus” é pedra e Pedro em Latim) e sobre ti erguerei minha igreja. Ele, que pregava a céu aberto! Suas andanças, no chamado

“ano

da

popularidade”,

formavam

semicírculos

concêntricos a partir do Lago de Cafarnaum. Quando passou a ser perseguido, suas andanças são em linhas retas ou em curvas 12

Imago Editora, 1994.


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desconcêntricas13. E em nenhum ponto onde pousou ou por onde passou ele quis erguer igreja, sempre pregando a céu aberto. Aquele trocadilho Pedro/pedra decerto foi colocado em sua boca, a mando do próprio Pedro ou outro interessado em criar uma igreja e sua hierarquia... E que cara faria você sabendo que em 2013 Jesus é visto como um rebelde zelote, a facção judaica que pregava a luta armada contra os romanos? Pois não foi ele quem falou eu não vim trazer a paz, mas a espada? É o que afirma o iraniano Reza Aslan, no best-seller Zelote: a vida e os tempos de Jesus de Nazaré14. Certo mesmo é que, além de livro mais lido de todos os tempos, como apregoam os pastores, a Bíblia é o mais adulterado. Como você disse naquele dia no gramado praguejado de tua casa de madeira no Pilarzinho: - Na parábola da adúltera, o final foi criado pela Igreja, quando ele diz à

mulher salva do apedrejamento: - Vai, e

arrepende-te!... Isso parece certinho demais, bom-moço demais para ser Jesus... Pois é, Polaco, você decerto estava certo.)

Quando Leminski conta que escreverá mais três biografias além da de Jesus, e que um dia as reunirá num só volume com o título VIDA, Pé Vermelho pergunta porque deu de se interessar 13 14

Mapas finais da Bíblia Vida Nova, S. R. Edições Vida Nova, Sociedade Bíblica do Brasil Revista Época, 19 de agosto de 2013, págs. 50-52; o livro será lançado no Brasil em 2014.


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por biografias. Leminski diz que, antes de tudo, é porque sempre gostou de biografias, e também porque a editora paga adiantamento e é um jeito de ir vivendo de literatura. - Além disso, com isso posso viver outras vidas, não é? Polivivente!

Lendo VIDA, porém, Pé Vermelho se decepciona com a “biografia” de Cruz e Sousa, tão preciosamente brilhante em algumas passagens quanto lacunante. O biógrafo corta ou omite muito mais do que conta, inclusive apenas se referindo de passagem às mortes do poeta e sua família por penúria e tuberculose, num explícito desdém a esses “detalhes”, preferindo focar sua poesia. Acaba sendo mais um ensaio que uma biografia, mesmo para o padrão preciso/agudo de Leminski. Parece tributo a seu sangue negro, mas também reúne algumas sacadas brilhantes sobre a poesia do ferroviário e sobre o simbolismo. Já a “biografia” de Bashô, mesmo também merecendo as aspas, é bem mais densa, embora também muito menos biografia que ensaio sobre o haicai e o pensamento zen. Os momentos brilhantes deixam pensar quanto Leminski deve ter lido para julgar e condensar contradições assim: O samurai é o braço armado da classe dominante, a nobreza feudal do Japão medieval (a Idade Média japonesa só terminou em 1853, com a abertura “Madame Butterfly” dos


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portos do Japão, depois de um eloqüente bombardeio da parte da frota norte-americana do Comodoro Perry). Grupo altamente especializado na sua função social, como os escribas do antigo Egito, brâmanes da Índia, jesuítas, bolcheviques da Revolução de Outubro, os samurais se pareciam muito com as ordens combatentes da Idade Média européia (Templários, Cavaleiros de Malta, Ordem dos Cavaleiros Teutônicos). Vai buscar na Grécia paralelo com o pensamento zen oriental: O livro zen mais conhecido no Ocidente, “This Is It”, de Alan Watts, ex-pastor protestante convertido ao budismo, só pode ser traduzido como “É Isso Aí”. Em termos da semiótica de Pierce, a experiência zen seria, eu acho, a tentativa de recuperar a Primeiridade, o ícone, a experiência pura, antes das palavras, uma experiência artística, a arte sendo, sempre, a tentativa de transformar uma Terceiridade, símbolos, palavras, conceitos, em Primeiridade (percepção, formas físicas, cores, materialidades). A transverbalidade da experiência zen evidencia-se no “satôri”, a iluminação, pessoal e intransferível, impossível de programar, prever ou administrar (o desejo de atingir a iluminação, inclusive, dizem, é o maior obstáculo para atingi-la). Houve na Antiguidade, porém, um paralelo ocidental à experiência zen: o “cinismo” grego. “A virtude está nos atos e


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não necessita de discursos nem ciências numerosas”, este o princípio de Antístenes, o pai dos cínicos. Vagueando pela floresta de informações que vai plantando, Leminski perde de vista a árvore a ser focada, Bashô. Mas seu método, já no Catatau, como em muitos poemas e nos ensaios, é mesmo o desvio, o viés para depois a surpresa, o anexo maior que o principal, como usar Baschô para tratar do zen em pinceladas sintéticas, às vezes preciosas. Acaba funcionando como introdução ao pensamento oriental. E, na página de indicações para leitura, vem com essa leminskice ingrediente de seu bolo automítico: Quem quiser entender de zen, matricule-se na mais próxima academia de artes marciais.

Na também “biografia” de Trotski, o (anti)método é o mesmo, usar o homem como pretexto para falar de algo maior, a Revolução Russa ou mesmo as revoluções em geral, pois Leminski extrai da experiência soviética lições perenes e universais, “historiador que escreve com a pena embebida no tinteiro da crítica”, como disse a Pé Vermelho num de seus rompantes definitórios. Começa indicando que a história da Rússia serve ao Brasil como a luva serve à mão ou vice-versa. É só trocar os mongóis fundadores da Rússia pelos portugueses, e trocar também Pedro,


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O Grande, por D. Pedro I e II. E desfia frases que parecem feitas também não só para a Rússia como para o Brasil: A tecnoburocracia soviética de hoje (ele escreveu isso quando a URSS ainda existia, não teve a graça de ver o desmoronamento da Cortina de Ferro) teve

por quem puxar.

Desde Pedro, a Rússia é o paraíso dos burocratas. Expõe os rígidos esteios da ideologia marxista-leninista, que apregoa flexibilidade dialética mas, na prática, é rígida e centralizadora, a começar pela negação da religiosidade, tão cara às massas proletárias que os revolucionários queriam salvar da miséria (sem ver que, além da miséria física, há a miséria moral, da corrupção que o regime soviético tanto praticou, e a miséria espiritual): Curiosamente, o ateísmo, essa postura cósmico-ideológica da burguesia iluminista (Beyle, Holbach, d´Alembert, Diderot, seus

porta-vozes

incorporado

ao

teóricos programa

na

Françadas

marxista,

que

“Luzes”), se

foi

pretendeu

representar, no plano dos conceitos, o universo das classes trabalhadoras, exatamente a classe explorada pelo capital, essa abstração, e pela burguesia, sua detentora: Marx, um burguês branco do século XIX. Se

santos

são

aqueles

que

mantém

comunicação

privilegiada com alguma transcendência, Deus ou deuses, com a morte destes, não há mais santos. Só que tem um problema. É que há santos. E sempre haverá. Santos artistas, santos poetas, santos atletas, santos marxistas, inclusive.


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Essa comparação entre religião e revolução não era inédita e seria sacada por outros muitas vezes, mas Leminski a faz como respeitosa constatação. Como também ao indicar a origem burguesa dos líderes proletários, coisa tão inconveniente para o simetrismo da ideologia: O que importa guardar dos primórdios de Lev Davidovitch (seu nome real) é que Trotski teve uma infância e adolescência sem penúria, como, alias, Lênin, filho de um funcionário público, de alguma graduação na máquina burocrática. Diverso é o caso de Stalin, filho de um pobre sapateiro do Cáucaso, o único dos chefes da Revolução de Outubro a ter origens realmente populares. Como em Lênin,outro bem-nascido (como Mao e Fidel), em Trotski a revolução vai ser uma paixão intelectual, uma certeza lógica, uma convicção feita de ferro em brasa. Uma das cruéis ironias da vida: só os bem alimentados podem lutar pelos famintos. Os muito miseráveis nem sequer se revoltam: deixam-se morrer à míngua. É preciso muita proteína para fazer uma revolução. A

independência

intelectual

ou

desenquadramento

ideológico de Leminski se evidenciam ao, primeiro, elogiar a Revolução Russa e, depois, criticar o regime soviético que dela resultou: Espontaneamente, de baixo para cima, de dentro para fora, a democracia popular foi inventada pela massa obreira (no


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período pré-revolucionário, quando, deposto o Czar, um regime parlamentarista vigorou – ou se debateu, tumultuado pelos bolcheviques – durante quase um ano, enquanto as massas se organizavam). A fábrica de cinco mil operários elege seu soviet, quarenta representantes seus, que falam em seu nome, diretamente ligados à reivindicação de seus problemas, os mais lúcidos, os mais corajosos, os mais bem falantes, os de maior senso crítico. O nascimento dos soviets russos é um dos mais belos espetáculos da História humana, esse rosário de massacres e baixezas, opressões e tiranias. Os soviets, orientados pelo Partido Comunista, optariam por renegar o

regime parlamentar, com a burguesia no poder e

instituições derivadas das revoluções inglesa e francesa, para optar por uma coisa nova, radicalmente nova, misto de despotismo

asiático

com

democracia

de

massas,

rígido

centralismo estatal com socialização dos meios de produção, uma coisa que nunca tinha existido, essa coisa que, valha o que valha a expressão, hoje chamamos de comunismo. Alguma coisa entre a velha aldeia e o Império Bizantino... mas com eletricidade, ensino e medicina gratuitos, alfabetização geral e democratização das oportunidades. Mas um mundo ideologicamente fechado, como a Igreja Ortodoxa, onde só há lugar para uma verdade, um só jornal, um só projeto nacional. O regime soviético, resultante da revolução, seria uma imensa traição aos próprios bolcheviques, que não estavam


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lutando apenas por cargos num determinado regime. Todos sabiam que estavam dando a vida por um novo mundo, pela instauração de uma ordem de coisas como nunca tinha havido antes no mundo. Século depois, vemos que a utopia comunista, apesar de fracassada

economicamente,

desmascarada

socialmente

e

miserável também culturalmente, retoricamente é tão bonita e envolvente que ainda move jovens (como também sustenta veteranos carreiristas), em todo o mundo. Isso só é possível porque

os

doutrinados

cegam-se

para

todo

fato

feio,

inconveniente, que desminta ou afronte a beleza da ideologia, como a desumanidade cruel da repressão policial nos regimes ditos comunistas. Leminski enfia o dedo na ferida: Lênin chegou a exaltar a sublimidade da repressão policial revolucionária, declarando que era uma honra para

um

bolchevique colaborar com a Tcheka, a polícia política do regime soviético. E o próprio Trotski não é poupado pelo biógrafo admirador de seus méritos mas crítico de seus defeitos: Kronstadt era uma fortaleza naval russa, no mar da Finlândia, perto de Petrogrado. Seus marinheiros estiveram entre os primeiros bolcheviques, combateram pela Revolução e mantiveram sempre alto espírito de luta. Sobretudo, adoravam Trostki, que chegou a ser levado em triunfo por eles. Quando essa importante guarnição se desiludiu com o governo bolchevique e pediu a devolução de seu poder aos soviets, Trotski


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não teve dúvidas. Cercou a fortaleza, tomou-a a ferro e fogo e seus líderes foram liquidados. O comunismo na Rússia, sob a direção de Stalin, tomava direção de um “despotismo asiático”, aquela modalidade sociopolítico-econômica, com a qual Marx, pai da expressão, não sabia se haver, em seu linearismo utópico, messiânico, de cunho nitidamente inspirado por Darwin, a quem pretendia, aliás, dedicar O Capital. A independência de Leminski lhe permite ter visões tão claras quanto incômodas para os esquerdóides: Paradoxo: a esquerda, que sempre procura afirmar o caráter coletivo da História, produziu, no século XX, as grandes personalidades

carismáticas,

verdadeiros

super-atores

do

processo revolucionário, Lênin, Trotski, Mao-Tse-Tung, Fidel Castro, Ho-Chi-Mihn... Sua atração por paradoxos, em vez de se deslumbrar com utopias ou ideologias, permite também que faça uma crítica mas compreensiva apreciação de Stalin, coisa muito rara, senão inédita, no mundo da cultura política: Stalin é um divisor de águas na história do século XX. Para atingir seus fins, que eram, para ele, os fins da Revolução Russa, não se deteve diante de nada: hoje, sabemos que só na primeira década do seu poder, determinou a execução de mais de um milhão de pessoas e o aprisionamento em campos de concentração de perto de nove milhões. Entre as vítimas, trinta e cinco mil oficiais do Exército Vermelho. De 1936 a 1938,


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em expurgos sucessivos, patrocinou a liquidação física de toda a liderança bolchevique, que tinha tomado o poder junto com ele. (...) Em sua fria determinação assassina, seu único paralelo, no século XX, é Adolf Hitler. Toda a máquina estatal russa e o movimento comunista mundial foram instrumentos de sua vontade a um grau nunca visto. Mas que queria essa vontade? Riquezas pessoais? Haréns? Palácios? Delícias da mil e uma noites? Comparada com a vida de qualquer ditador de direita, do que se sabe, Stalin, até o fim, levou a vida ascética dos bolcheviques. Nunca sentou num trono, nem usava coroa. Sempre se vestiu com sobriedade monacal, militar. E, se teve prazeres, foram os prazeres do exercício do poder quase ilimitado. Mas sempre exerceu esse poder em nome de uma idéia, a construção de uma sociedade que seria, intrinsecamente, melhor que o inferno da mais-valia do mundo capitalista que cercava a Rússia, “fortaleza sitiada”, onde se forjava o novo homem, a nova sociedade, hoje “a ditadura do proletariado”. Que o diga a extraordinária coerência de propósito de seus trinta anos de tirania. Suas medidas eram rigorosamente pautadas

por motivações ideológicas. Não

mandou matar Bukharin porque não gostava dele

Bukharin

representava a direita do Partido. E perseguiu Trotski implacavelmente, porque Trotski liderava a esquerda a “oposição de esquerda”. Não era um homem, nem o coração de uma idéia, mas o cérebro de uma máquina implacável, aquela


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máquina que Lênin e o próprio Trotski tinham começado a montar um dia. Essa independência intelectual deixa Leminski ver até o óbvio, que é o que os intelectuais mais tem dificuldade de ver. Trotski comandava o Exército Vermelho, era Comissário (ministro) da Guerra e do Exterior, orador extraordinário, organizador e gerente eficientíssimo, um ídolo além de líder até indicado por Lênin como seu sucessor, então... ...exatamente aqui se coloca uma das questões mais intrigantes da vida de Trotski: porque é que ele perdeu no jogo pelo poder? A resposta será sempre a mesma: alguém soube jogar melhor. Trotski era um dispersivo, homem de mil interesses, que ia do político ao militar, do literário ao cultural. E, como intelectual que era, seu percurso era mais errático, mais sujeitos a caprichos de alteração de rota. Do alto de sua indiscutível superioridade intelectual, seu erro foi subestimar o adversário. Quando Trotski despertou de sua miragem narcisista, Stalin tinha efetivamente nas mãos todos os suportes materiais do poder. Com essa mesma independência, Leminski desvenda o populismo, em dois parágrafos que também servem para Getúlio Vargas, Perón, Fidel, até mesmo Lula:


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Com suas limitações, Stalin é o responsável pelo congelamento do vivo pensar de esquerda na escolástica embalsamada, verdadeiro sistema metafísico, que se chama “marxismo-leninismo”. Com efeito, em setenta anos de revolução e regime socialista, a URS não produziu um só pensador original, só repetidores de manual. Com Stalin, o pensamento passou a ser, apenas, o caminho mais curto entre duas citações. Mas exatamente por suas limitações, Stalin sempre teve muito maior facilidade de comunicação com os quadros mais amplos da base do Partido, gente mais simples, recém-convertida ao comunismo. Donde vem o poder de um homem?Do apoio explícito ou tácito de sublideranças, firmadas sobre camadas amplas que lhes dão respaldo militar, policial, ideológico. Essa independência também lhe conquista ver que Trotski, se não tivesse sido exilado e depois assassinado a mando de Stalin, talvez não tivesse alterado muito as coisas na URSS, pois estava longe de ser um liberal. Quando esteve no poder, agiu de maneira tão implacável quanto Stalin. (...) Nas questões de disciplina partidária, chegava a ir mais longe que Stalin, proclamando a infalibilidade do Partido. (Como a Igreja Católica prega a infalibilidade do Papa...) Defendeu o monopólio bolchevique da verdade e do poder. E sempre lutou contra a liberdade dos sindicatos e o direito de greve, com base no argumento capcioso de que a greve era um instrumento de luta da classe trabalhadora contra seus opressores burgueses; ora, na URSS, os operários estavam no


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poder, logo não poderiam fazer greve, já que seria um absurdo fazerem greve contra si mesmos... Muito rápido de raciocínio e bom de formulação, era especialista nesse tipo de sofismas trágicos. E suicidas15. Ninguém mais que ele defendeu, em 1921, a proposta de Lênin de proibir a existência de facções no interior do Partido, isto é, do governo da URSS. Foi com base nessa lei que, depois da morte de Lênin, Stalin pôde silenciá-lo, neutralizálo e isolá-lo e, com toda a tranqüilidade... No plano econômico, foi o proponente da industrialização forçada através da militarização do trabalho, a aplicação ao mundo do trabalho das leis implacáveis que regem a vida militar. Estava longe de ser aquele anjinho libertário com que sonham os trotskistas ingênuos, que só guardam dele a imagem do revolucionário bonzinho, perseguido pela crueldade asiática de Stalin, o Caim que acabaria por assassinar o Abel da Revolução, depois da morte de Lênin-Adão... Esse paralelo entre ideologia e religião é muito recorrente em Leminski, que as co-relacionando é como se debochasse das duas. Na URSS de Stalin, até de fotografias históricas foi raspada e apagada a imagem de Trotski! Não há exemplo no mundo moderno de uma conspiração de memória semelhante. O paralelo mais próximo seria a prática dos faraós do antigo Egito que

15

Evidencia-se a fascinação de Leminski pelo suicídio, aqui de um tipo digamos indireto, em que o sujeito age de modo a ser morto, como Jesus.


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costumavam mandar apagar dos monumentos os nomes dos faraós anteriores, para botar o seu no lugar... O encerramento de tantas contradições e paradoxos Leminski

graciosamente

concede

ao

próprio

Trotski,

reproduzindo sua profissão de fé e profecia no futuro humano, expressada no livro Literatura e Revolução: “O homem se esforçará para dirigir seus próprios sentimentos, para elevar seus instintos ao nível do consciente e torná-los límpidos, para orientar sua vontade nas trevas do inconsciente. E se levantará, assim, a um estágio mais elevado da existência, e criará um tipo biológico e social superior, um superhomem, se isso lhe agrada. Seu corpo se tornará mais harmonioso, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa. As formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente

dramáticas.

A

espécie

humana,

na

sua

generalidade, atingirá o talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E, sobre ela, se levantarão novos cimos.”

Apesar de tão generoso final, a leitura de VIDAS deixa um certo vazio onde brilham umas sacadas aqui, uns toques aqui, alguma argúcia como sempre em Leminski (além da irritação que se colhe página a página por incontáveis gralhas de revisão, muitas decerto devidas ainda á datilografia do autor, e mantidas por uma preparação de texto que, espera-se, seja melhorada no nova edição). Depois, porém, olhando bem, fica mais de VIDA:


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fica o jeito de Leminski de escrever, claro e conciso como só, em corajosa contraposição às convenções intelectuais, aos longos parágrafos com palavrório técnico dirigido a poucos, uma criptografia elitista que ele rejeita com sua linguagem clara, simples, pop e elétrica. Em parágrafos de poucas linhas, às vezes de uma linha só, expressa sempre um raciocínio que não se enrola, ao contrário, salta como o sapo salta, em avanços ágeis. Escreve como quem fala entre respirações, ao contrário dos escritores escriturários, que se derramam por parágrafos intermináveis para pouco raciocínio ou rala ação. VIDA confirma que o melhor de Leminski não é suas obras, mas o entrechoque entre elas, seu facetamento e sua unicalidade, seu modo único de ver o mundo e se expressar. Essa constatação desvela também porque tornou-se best-seller duas décadas e meia depois de morto: o grande público ama seres únicos, excêntricos, acima ou além da média. Provavelmente muitos não compraram Toda Poesia para ler, mas como talismã ou souvenir de uma vida que invejam e idolatram, mas que sensatamente temem viver. Por isso, como realce do que há de melhor em VIDA, e como ressalva honesta ao leitor, Pé Vermelho escreve epígrafe que a Companhia das Letras aceita para sua nova edição do Leminski biógrafo: Outros escrevam biografias passo a passo e dia a dia como se exumando o passado


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renascessem os biografados seguidos de extensa bibliografia Estas, não: são vidas recuperadas por golpes fundos e agudos sem intenção de mostrar tudo, só querendo, no fim das facetas, revelar vidas lapidadas pela visão de um poeta Amigo é pra essas coisas, Polaco, ou melhor: amigo não é quem quer te agradar ou te esconder coisas desagradáveis; amigo é quem diz o que é preciso.

O ANARQUISTA Tanto estranharam que eu nunca tive carteira de identidade... mas havia em Curitiba alguém com mais identidade e mais identificável do que eu? Eu entrava num táxi, o taxista nem me esperava fechar a porta, já perguntava: - Pra casa ou


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pra onde, poeta? E eu olhava aquele ser e perguntava – Me conhece, é? – ao que ele ria, mais um que me dizia quem é que não conhece o senhor, ao que eu respondia não me chame de senhor, então chamo do que, vossa poetência, e rindo o táxi partia para o Pilarzinho. Quem será aquele ali passando de pasta na mão? E a senhora que galinhamente leva a prole de olho no sinaleiro, quem é? Como quem é aquele guri que deslisa de esqueite, aliás cadê, sua identidade deve ser já-fui, não? Mas até o engraxate que insiste em engraxar minhas sandálias franciscanas, apesar de eu dizer que sandálias não são engraxáveis, nem eu sou do tipo que engraxa mesmo que usasse botas, ele insiste porque depois irá se vangloriar, engraxei o poeta do bigodão, embora eu prefira o poetão de bigode, mas isso o tempo espero consertará, é para isso que trabalho, carvalho, pinheiro, plátanos, todos vocês companheiros de planeta, sabem que eu não brinco em serviço, dão flores, renovam folhas, afundam raízes e fazem frutos, para mostrar que são o que são, então porque eu deveria ser diferente, ter minha identidade em papel com foto em vez de ser reconhecido pelo meu porte e pelos meus frutos como vocês, hem? Mas se querem mesmo que eu apresente identidade, ou se vão me julgar por não portar RG, Registro Geral, já nessa expressão

indicando

a

intenção

de

reduzir

todas

as

individualidades a uma generalização burocrática, invoco meu advogado Maiakovski, OAB zero zero zero zero zero cinco, cinco


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zeros enfileirados, pois cinco é um número lindo, o único com linhas retas e curvas, síntese performatemática no meio da escala decimal, porém não nos percamos no dando a palavra a Maiskovski:

passeio dos pensamentos,

“Os versos para mim / não

deram rublos / nem mobílias / de madeiras caras. / Uma camisa / lavada e clara, e basta, / para mim é tudo. / Ao Comitê Central / do futuro ofuscante, / sobre a malta/ dos vates velhacos e falsários, / apresento em lugar / do registro partidário / todos os cem tomos / dos meus livros militantes”, na tradução do mano Augusto de Campos. Meu pai foi militar, meu avô materno foi militar, talvez por essa sanguerança me apaixonei pela chamada arte militar, a única arte que destrói em vez de criar, embora também gere tantas lições e técnicas e táticas aplicáveis à política, ao marketing e até ao amor e às outras artes, então (pausa para suspirar, minha relação gozoza com o ar), se é preciso identidade nesta vida, que seja Zero, até em homenagem ao Recruta Zero, o militar que mais fez pelo mundo, só fazendo tanta gente rir. Identidade de Paulo Leminski: número zero zero zero zero zero, pronto, quem quiser conte outro conto. Ah, você dirá, burocroata de gravata (sem nem saber que a gravata vem dos croatas, daí o trocadata, cara), você dirá, alisando a gravata como corda de descarga para os pensamentos, dirá que, sem RG, rejeitando a identidade civil, condeno a família a praticamente abdicar de minha herança,


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renegando Alice e as meninas a um limbo desburocratizado, sim, mas também sem mais nada, posses herdáveis, direitos autorais, um abandono cartorial da família! Poizé, cara, com esse z aí só pra te irritazerar, te comunico oficiosamente que, apesar de teus desejos contrários, tudo dará certo, e minha identidade zero servirá

até para

Alice e as

meninas assumirem e cuidarem mais da minha herança autoral, tendo de aprender a lidar e brigar com gente como você, e com todos que tentarão me liquidar com deboches e escárnios cozidos em inveja e despeito, desprezo pelo povo que me adotará cada vez mais, sem ligar a mínima para vocês, como o povo adotou Augusto dos Anjos, fazendo viver e reviver o Poeta da Morte, e apesar de vocês continuarão a me adotar, ou até por pirraça contra vocês me adotarão ainda mais, vocês são a pimenta do meu vatapá.

Gente é bicho cultural: a cultura, da linguagem às artes, da agricultura à arquitetura, é nosso complexo diferencial em relação aos outros bichos companheiros de planeta. E a diversidade cultural é nossa maior riqueza, embora haja quem se exploda com bombas amarradas à cintura, matando outros, em nome de uma crença a ser imposta a todos. Quando, depois das rusgas egóicas, Pé Vermelho começa a conhecer realmente Leminski – não alguém atrás de um nome, mas o ser cultural vivo, pulsante de idéias e atitudes - vai


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percebendo que nele convivem (completando-se de forma única no chamado meio artístico) dois Leminski. Um, o erudito que pode sacar um provérbio em Latim de repente, ou discorrer longamente sobre a caretice rudimentar de Saussure comparado com a multiplicidade de Pierce, como pode se divertir discorrendo, entre dois conhaques, sobre a semelhança visual entre a linguagem hieroglífica e a primordial escrita cuneiforme. Outro Leminski, descobre Pé Vermelho, é aquele que, entre duas cervejas “para hidratar”, diz que Gilberto Gil é a antena cósmica do sertão, um pé no rock e outro no baião; ou que os Beatles se dissolveriam mesmo sem Yoko, porque nenhum conjunto de quatro suporta três compositores; ou que a grafitagem paulistana se alçou a uma destreza pictórica que ameaça sua própria identidade marginal. Ou ainda: - Paul McCartney reinventou o contrabaixo na música popular! O mesmo Leminski que brada isso, dali a minuto pode sussurrar alto: - Dizem que a poesia concreta tem mais teoria que poeta, mas também tem poeta com muitos poemas e nenhuma poesia! Ou: - Haroldo (de Campos) ainda vai fazer o maior metapoema da poestória! Essa duplicidade cultural gera sua arte única, onde nenhuma palavra é estranha a qualquer analfabeto, embora todas as


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palavras estejam sempre a serviço de algum arranjo criativo. Essa recusa a escrever de forma usual, essa ojeriza ao lugar comum, esse pavor do chavão, essa procura rigorosa da expressão inovadora, sem no entanto abrir mão da comunicação, torna sua linguagem única. Essa unicalidade é sua vera identidade. Ele disse ser Wilson Martins “o primeiro a divulgar notícias velhas”.

Mas,

ironicamente, parece feita para Leminski a definição de Wilson: “Todo grande escritor é autor de um idioma próprio, como de uma também própria visão do mundo”. Leminski, no entanto, não se pôs a criar uma linguagem pessoal incomunicável, como a de Ferreira Gullar em A Luta Corporal: Au / sôflu / i / luz/ ta pompa / inova´/ orbita / FUROR / to / ´scuro / Rra. Não. A linguagem de Leminski (a não ser no Catatau, e mesmo ali compreensível) é clara e simples, lembrando o ditado de Celso Garcia Cid: “Complicar é fácil. Difícil é simplificar”, ou a revelação de Picasso: “Levei cinqüenta anos para aprender a pintar como uma criança”. Muitos poemas de Leminski tem uma linguagem que se pode chamar de infantil, expressando um estado de graça no melhor sentido, um inocente espanto de descobrir o mundo: o bicho alfabeto / tem vinte e três patas / ou quase // por onde ele passa / nascem palavras / e frases. Sua visão mantém sempre essa sensação de descoberta e espanto diante da vida. E Pé Vermelho vai vendo também que, a cada poema que Leminski lhe bota nas mãos, datilografados e


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xerocados, há um achado expressivo. Pode ser (folheando Toda Poesia ao acaso, como ele gostaria) ao transformar substantivos em verbos: pariso / novayorquiso / moscoviteio / sem sair do bar. Pode ser transformando substantivos em advérbios: acordei bemol / tudo estava sustenido. Pode ser sintetizando em três versos com mono-rima uma sacada bioética: confira / tudo que respira / conspira. Pode ser dando expressão a um ecumorismo, revitalizando a velha quadrinha: Então seremos todos gênios / quando as privadas do mundo / vomitarem de volta / todos os papéis higiênicos. Pode ser raciocinando com lógica ingenuidade: Nome mais nome igual a nome, / uns nomes menos, outros nomes mais. / Menos é mais ou menos, / nem todos os nomes são iguais. Pode ser revisitando novamente a quadra mas com rimas surpreendentes como as idéias, embebidas numa visão zen: Ao perder a lembrança / grande coisa não se perde. / Nuvens, são sempre brancas. / O mar? Continua verde. Pode ser com um minimalismo que, novamente, oscila entre o infantil e o sutil: nu, / enfim, / como vim. Pode ser criando, num neologismo, o trapézio para altas divagações filosóficas: PERHAPPINESS – pois a fusão das palavras PERHAPS e HAPPINESS, “talvez” e “felicidade” em Inglês, assim fundidas nos levam a pensar se realmente é possível a total felicidade, ou se talvez pouca felicidade não será também


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felicidade, ou se não estamos vendo que somos felizes enquanto pensamos em conquistar felicidade, e por aí afora... Pode ser dando gostosa graça a trocadilhos: tudo / que / li / me / irrita / quando / ouço / rita / lee – o Leminski pop debochando do Leminsk erudito. Pode ser revitalizando a velha quadrinha com non-sense zen: Aqui faz um grande poeta. / Nada deixou escrito. / Este silêncio, acredito, / são suas obras completas. Ou pode ser simplesmente com um haicai tão singelo, que parece caído do embornal de um monge zen: duas folhas na sandália / o outono / também quer andar. O trio concretista Augusto/Haroldo de Campos e Décio Pignatari

repetiram

feito

mantra

a

“fenomenologia

verbivocovisual” como receita poética, que muito conceituaram mas pouco poetaram. Mas parece definição sintética perfeita para a poesia de Leminski, que é verbi, palavra e idéia; é voco, voz, sonoridades sempre exploradas; e é visual, sempre graficamente atenta, usando várias tipologias e tamanhos de letras, explorando grafismos e chegando ao fotopoema iconográfico que é KAMI QUASE. Essa sua inquietude e procura por experimentações, porém

comunicativas,

é

o

que

cativa

novos

leitores,

compartilhadores do prazer de “descobrir” Leminski como brinquedo cultural, caixa de surpresas, gostosura artística com tempero erudito, ao mesmo tempo concedendo e exigindo. Esse seu estilo é sua identidade, para gozo do público e despeito dos críticos rançosos. E, para conseguir isso, ele teve


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apenas de... ser ele mesmo: Eu hoje, acordei mais cedo / e, azul, tive uma idéia clara. / Só existe um segredo. / Tudo está na cara.

Anarquistas da boca para fora há muitos. Mas todos tem ao menos carteira de identidade. Leminski é o único que pode exibir essa desmedalha: além dos impostos embutidos que só se pode deixar de pagar vivendo numa caverna, ele nada mais concedeu ao sistema. Como revela um dia, quase sorrindo, depois de Pé Vermelho contar que está lendo os anarquistas Daniel Guerin e Jorge Semprun: - Legal, cara, mas quem é anarquista mesmo, nem fala que é. Pé Vermelho vai constatando que, vivendo em “estado de paixão”, Leminski negligencia a vida prática até em detalhes banais e, por isso mesmo, simbólicos de seu desapego a formalidades, convenções, bons costumes e boas normas. Quando Pé Vermelho vê, pela terceira vez, que ele pede a Alice para fazer seu prato, espera Alice se afastar para cutucar: - Você não faz o próprio prato pra não ter esse trabalho ou pra dar trabalho a ela? Leminski se espanta com a pergunta e olha em volta antes de responder sussurrando:


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- Ora, cara, é porque ela gosta...

A minha inépcia para coisas práticas contém, antes de tudo,

um pleonasmo, pois as coisas só podem ser

práticas. Idéias e emoções é que podem se dar ao luxo, o que é um chavão, ao luxo de pensar ou sentir além de concretamente ser. Ser só pode ser matéria, carne, coisa, minério ou mesmo ar, que apesar de invisível é a maior presença, onipresente, se imiscuindo ou se infiltrando molecularmente até na água ou na pedra. Então eu tenho essa inépcia para ser, contraposta a minha perícia para especular. Penso, logo existo, disse Descartes, mas pode-se contrapor: existo, apesar de pensar. Por isso me apaixonei pela poesia concreta, por prescindir de emoções e adjetivos, essa praga superficial da linguagem, como as ervas ditas daninhas que podem sufocar as plantações. Mas também por isso meio me coloquei entre a poesia concreta, que usa a linguagem como pedras numa construção, e a poesia digamos convencional, que usa as palavras como filigranas de uma teia que, ao rigor de qualquer lógica, se desfaz como a da aranha. Repare que já estou me enredando na lógica para defender a mágica: o fato de que não sei, mesmo por


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defeito ou aspecto genético, não sei cruzar rua sem medo dos carros, portanto corro quando podia passar tranqüilo no sinal verde; como não sei fazer a barba e enxaguar a pia suja de espuma, fazer o

que, não sei fazer, eu sei

pensar e sentir, uma mistura que é meu jeito de existir, oscilando entre a emoção e a lógica, pois ser humano não é estar trotando e tateando entre o topus e o logus? Qualquer outra coisa, além da coerência entre a mágica e a ciência, é loucura, o que também é um modo de ser, se você olhar com sapiência. (Estou brincando, claro, embora acredite que também é uma brincadeira a existência. Ou você vai levar a sério esses quintilhões de estrelas gastando energia para que?)

Faz parte de sua lenda pessoal, além dos dentes estragados e da aversão a banho, as roupas desleixadas e o chinelão, ou então os tênis fedendo urina por urinar na rua entre os pés - coisa que Pé Vermelho um dia critica, dizendo que pode-se evitar isso simplesmente urinando nalgum muro ou numa árvore, de modo a não borrifar urina nos pés,

e Leminski balança solenemente a cabeça de cima

enquanto chacoalha a de baixo: - Muro merece é grafite. E árvore merece só chuva.


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Enquanto Leminski vive, o sistema cultural faz sua parte no reconhecimento de seu anarquismo: pouco é requisitado por entidades e órgãos públicos, cujos cachês teria apreciado, retribuindo com performances muito mais densas e marcantes que o habitual tédio das palestras e mesas-redondas. Depois de morto, é cult homenagear e citar Leminski. Por baixo dos bigodões, ele sorri. Em 2012, Pé Vermelho publica na Gazeta do Povo a crônica Pico Lelé na Serra da Poesia: “Nessa

Serra, vemos os picos do condor Castro Alves, do

ciencial Augusto dos Anjos, do sábio Bandeira, do multiface Drummond, do vital Vinicius, do cerebral Cabral e, sim, do zenial Leminski - menos para quem olha do chão neblinoso da inveja e da incompreensão, uma cevando a outra e obstando a visão de Paulo (Lelé, como o chamava nossa amiga Elisabel Jordão) como gênio da poesia brasileira. “Há quem se confunda, na avaliação artística de Lelé, com a lenda, que ele cultivou, de auto-imolação beat por álcool e drogas. Mas olhando sua obra sem ramelas biográficas, vemos que não se conformou com a poesia convencional esgotada, nem se rendeu à esterilidade

do

concretismo,

do

vanguardismo

ou

do

compliquismo. Levado por espírito investigativo e prazeralidade (necessidade e prazer de comunicar), procurou o sincretismo sinérgico entre o velho zen oriental e a nova visão pop ocidental,


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convergindo para a poesia informações semióticas, musicais, visuais, plurais. “Não foi, porém, um ruptor, foi um inovador, reciclando com originalidade formas convencionais. Por exemplo na emblemática quadra não discuto / com o destino / o que pintar / eu

assino, a graça (no melhor sentido) está

no último verso

caligrafado. E, embora seja uma quadra, não é a velha quadra de ritmo cadenciado (que, com os trovadoristas, chegou a tornar-se fôrma repetitiva e previsível). A métrica dos versos em 3, 4, 4 e 3 sílabas confere um ritmo jazzístico, um balanço sutil, dando suporte ágil à idéia zen de acolhimento do imprevisível. “Outra quadra é exemplo dessa fusão entre forma convencional com truque inovador e sacada instigante: CURVA PSICODÉLICA / o trem salta fora dos trilhos / EDUCAÇÃO ARISTOTÉLICA / não legarei a meus filhos. Os versos em maiúsculas similam vagões, os versos em minúscula similam os trilhos, enquanto o ritmo quebrado (quebrado conforme a métrica convencional) simila o descarrilhamento, para apontar uma revisão educacional que ainda se faz necessária para os pais e o país. “Mesmo num poema-piada como entro e saio / dentro / é só ensaio pode-se ver, além da graça, a sacada reflexiva: a similitude entre os versos simila também o espelhamento entre ensaio e espetáculo, ilusão e realidade, sonhar e ser etc. A leitura de


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Leminski convida e não prescinde da inteligência e imaginação do leitor, e talvez também por isso alguns o desvalorizem... “Mas Lelé tem, como todos, altos e baixos, estes mais na prosa.

Seu

cultuado

Catatau

é

um

conto

pretensioso

delirantemente expandido, aleijão que, porém, faz a delícia dos cultuadores. O romance Agora É Que São Elas também começa ótimo e também se perde (ou, para os cultuadores, se alça) no delírio normo-linguístico. Mas vários de seus ensaios são exemplos de singularidade e instigânsia (ânsia de instigar, eixo motivador de toda sua obra). “É na poesia que Lelé conquista corações em massa, indo além do círculo de cultuadores semióticos. Traz, para as galerias empoeiradas da poesia, frescor de idéias e inquietude de posturas e formas, inclusive libertando o haicai da fôrma tradicional. Eticamente, tem uma lisura e uma saudável visão de mundo que não se encontram, por exemplo, no monstro (conforme Manuel Bandeira) Machado de Assis, tão cultuado pelos mesmos que não conseguem valorizar Lelé. “A esses, ele como que respondeu antecipada e eternamente, com o poema apagar-me / diluir-me / desmanchar-me / até que depois / de mim / de nós / de tudo / não reste mais / que o charme. Irônico é que mais e mais gente conhece seus “restos”, as lembranças de sua obra que se incorporam ao nosso patrimônio poético usual, como o verso eles passarão, eu passarinho de Mário Quintana.


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“Seus altos e baixos fazem rugir a necessidade de uma boa antologia, talvez dificultada pela sua displizência. Então talvez os que ainda menosprezam sua obra compreenderão sua despojada riqueza e instigante beleza. Até porque pra que cara feia? / Na vida / ninguém paga meia...”

Quando sai Toda Poesia, contendo num só volume toda a poesia de Leminski, Pé Vermelho se surpreende com a vendagem de massa que leva o livro a best-seller. Chega a discutir “com pedras na boca” com intelectuares (intelectuais que vivem nas nuvens, e que antigamente eram chamados de nefelibatas), que tentam diminuir o feito do Polaco. - Não é a poesia dele que está vendendo tanto – diz um - É a vida, a lenda que ele criou. - A poesia dele tem muito mais baixos que altos – diz outro. Um dos discutintes é homem de marqueting, e Pé Vermelho aponta a contradição: - Ele foi também publicitário, conhecia marqueting, foi o primeiro a me dizer que a arte da guerra é fonte de lições para o marqueting. Ora, se ele usou táticas típicas dele, para essa estratégia de criar uma lenda, você, homem de marqueting, devia reconhecer isso como mérito! E você, que fica falando em altos e baixos, já leu as poesias completas do tão decantado Machado de Assis? Aí você vai ver quantos baixos tem um escritor tido como gênio! O que faz Leminski vender é sua identidade artística única,


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como Augusto dos Anjos ou Van Gogh, de quem ele gostava tanto e não à toa, e que como ele tiveram vida curta mas deixaram uma arte tão brilhante quando duradoura! De outras mesas do bar olham espantados, e só então Pé Vermelho

percebe que está falando alto e estridente... como

Leminski, encarnando Leminski?! Lembra então de quando mostra mais um haicai a Leminski, dizendo ser inspirado na sua multifacetude: Karma eskisito / enkarno todas / máskaras ke visto. Leminski lê, devolve o papel, nada fala. Pé Vermelho pergunta: não gostou? Demais, responde Leminski: - Tanto que sinto ciúme, eu é que devia ter escrito isso. Mas te perdôo, com a promessa de você dizer que é inspirado em mim. Pé Vermelho ergue a mão escoteiro, promete, mas duas décadas depois publicará o haicai no volume Haicaipiras, sem cumprir a promessa, até agora. Anarquistas, dizia Leminski, não chegam ao poder, mas tem honra. Desculpe, cara.


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O ESTÓICO Em Polonês, a palavra “vodka” originalmente significava “água”, ou melhor, “aguinha”, fazendo lembrar a palavra portuguesa “aguardente” usada para a cachaça. A vodka queima menos a mucosa do esôfago, e seu processo de destilação, a altas temperaturas, elimina o aroma do cereal de que se origina - trigo, cevada, centeio etc – e, para o consumidor habitual, significa eliminar o chamado “bafo de bêbado”. Pé Vermelho, sempre que encontra Leminski, comprova admirado que ele tem uma dessas constituições físicas que os médicos chamam de super-resistentes ao álcool, suportando não só grandes quantidades de bebida como, também, apresentando menos sintomas externos da alcoolização (voz mole, raciocínio truncado, alegria eufórica ou tristeza repentina, tontura, desequilíbrio, vômito). Pelo contrário, em Curitiba ainda se pode encontrar muitos companheiros de copo do Polaco que garantem: - Quanto mais ele bebia, mais lúcido ficava! Essa resistência, entretanto, é a ponte crescente usada pelo álcool para conduzir rapidamente o bebedor da vida para a morte.


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Quanto mais resistente for, mais beberá, chegando às duas garrafas diárias que Leminski bebeu nos seus anos de pico (sem contar as cervejas que, ele dizia, era preciso tomar entre as doses de destilados, “para hidratar”. Essa brincadeira ou crença ingênua teria, também, seu efeito danoso, pois a cerveja, por ser diurética, desidrata em vez de hidratar, levando o bebedor a urinar muito. Os rins são afetados, e o trabalho do fígado, já penalizado pelo trabalho ingente de absorver as altas dosagens de álcool da bebida destilada, ainda é obrigado a trabalhar “a seco”, lidando com duas bebidas diferentes, uma fermentada e outra destilada). Conforme os médicos, é como, além de espancar o fígado a socos, dar-lhe também tapas, deixando o pobre órgão, responsável por tantas tarefas, usina química prodigiosa, atarantado e confuso. O fígado, como vingança ou expressão de incapacidade para tanto esforço, endurecerá suas células, como também faz o ouvido diante de barulho alto, endurecendo na cóclea os filamentos que captam os sons e produzindo surdez progressiva e irreversível. O fígado começa processo de inchaço enquanto endurece, provocando insolvência de sua usina química, até chegar a pedir concordata, como que dizendo bem, você me maltratou tanto, não vou mais cuidar de você. É então a cirrose. É quando, também, o órgão que normalmente não dói, passa a doer. “Um homem com uma dor”... Pé Vermelho é, no consumo de álcool, seguidor do Imperador Adriano, que estipulava vinho só depois do anoitecer,


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cumpridas as tarefas do dia. Então, nas visitas a Leminski no Pilarzinho, espanta-se de ver que ele não só bebe muito como bebe desde manhã. Muitas vezes verá o Polaco batizar café com conhaque ou vodka, sua bebida preferida, talvez até pela afinidade étnica. (Mas só depois de Leminski morto é que Pé Vermelho saberá, pela biografia O Bandido Que Sabia Latim, que seu pai, também Paulo (o nome completo do poeta é Paulo Leminski Filho16) também foi “bebedor de litro” de destilado (conhaque, talvez pelo preço menor, coisa a que também o filho recorrerá) e, também, morreu vitimado pelo álcool. Várias vezes Leminski fala de seu pai a Pé Vermelho, sempre para orgulhosamente se dizer mestiço de polaco com negra (na verdade também mestiça de português e negra), mas nunca fala desse detalhe revela-dor do pai. Certa vez, depois de pernoitar na casa do Pilarzinho, Pé Vermelho vai com Leminski ao centro de Curitiba, no meio da manhã, e, quando tomam o táxi, Alice pede do portão: - Manera, Paulo, não bebe em serviço! No meio do trajeto, Leminski manda o taxista parar num bar e, ainda saindo do táxi, é visto pelo do-balcão, que já despeja uma dose dupla num copo americano. Leminski entorna em dois golaços, limpa o bigode, manda marcar na conta e já vai voltando para o táxi enquanto quando Pé Vermelho ainda está chegando ao balcão e Leminski ri: - Atrasou na jogada, brother! Meia-volta! 16

Como o nome completo de Pé Vermelho é Domingos Pellegrini Júnior.


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Voltam para o táxi. Quase chegando à agência de propaganda onde ele vai trabalhar, manda parar o táxi novamente, noutro bar, onde o ritual será o mesmo: dose dupla sem gelo em copo americano, e

agora uma bala de hortelã “por via das

dúvidas, na agência tem gente de olfato apurado”. É recebido com festa pelos colegas mas, por chegar atrasado mais um dia, é tratado com frieza pelo chefe. Pé Vermelho fica ali lendo um jornal, ainda a tempo de ouvir que o rádio toca Valeu, a parceria dele com Moraes Moreira, e Leminski, datilografando, saúda: Tlintlim! – imitando o som de caixa registradora, naquele tempo ainda de rádios, máquinas de escrever e caixas registradoras. Na hora do almoço, quando se encontram no bar-restaurante da esquina conforme combinado, Leminski come coxinha e volta a entornar vodkas, agora com cerveja. Pé Vermelho come um prato-feito, sentado em tamborete no balcão, enquanto Leminski usa salgados como aperitivos entre vodkas e cerveja, depois volta para a agência. À noite, reencontram-se para voltar de táxi à casa do Pilarzinho, antes de Pé Vermelho rumar para a rodoviária, onde tem ônibus marcado para meia-noite. Ao chegarem à casa, Leminski cospe bala de hortelã no jardim, antes de beijar Alice e proclamar de dedos juntos como escoteiro: - Não bebi no serviço, amor! Na última vez em que se encontram, Leminski pergunta a Pé Vermelho se continua fazendo haicais. Pé Vermelho diz que até lembra um “de cor” (a expressão vem do Latim cor, coração:


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significando que a gente não esquece aquilo que passa pelo coração): Coração músculo acústico em liquidação Leminski pede para repetir, e ri muito quando Pé Vermelho explica que o coração está sempre em liquidação porque sua ação é bombear líquido, o sangue, e também porque está sempre se liquidando, já que cada vez que bate será uma vez a menos. Mas, depois de rir, Leminski sussurra sério: - Do coração, cara, eu não vou morrer. Decerto já sabia, então, da cirrose que o mataria.

Liquidorum fluens, os líquidos fluem e eu poderia figuradamente dizer que fui liquidado pelos líquidos. Primeiro, os que entraram pela boca e foram garganta abaixo, a amarela cerveja batismal, pois é quase para todos a primeira bebida. Depois, as águas ardentes, a pinga dos negros e a vodka dos polacos, em meu sangue integradas, como também as águas castanhas, conhaques e vermutes, inclusive martinis que durante alguns anos bebi, para agradar Alice, mal sabendo que golpeiam o fígado com sua química tanto quanto os destilados com seu latro teor alcoólico. E, finalmente, o golpe líquido final e fatal foi do sangue, na forma de hemorragia esofágica. Pesquisei, como sempre sobre


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tudo que me interesse. A primeira ironia é que essa liquidação pelos líquidos se deu através de varizes, endurecimento de canais. A cirrose é, no fundo e de fato, varizes que se formam no fígado, uma forma de fibrose, acirramento das células hepáticas como resposta à agressão tóxica. O fígado mereceu de Neruda uma bela ode, com trechos que guardo de cor ou figadalmente: “Modesto, / organizado / amigo, / trabalhador / profundo (...) / filtras e repartes, / separas e divides, / multiplicas e engraxas (...) se o vinho hereditário de minha pátria pretender / perturbar minha saúde ou o equilíbrio de minha poesia, / de ti, distribuidor de mel e de venenos, / de ti espero justiça!” Bem, meu organizado e trabalhador amigo, você decerto não foi injusto comigo, me deu o que mereci. Afinal, você lutou desde minha adolescência para eliminar do corpo entre 90 e 98% do álcool que bebi, calculam os fisiologistas, o resto os pobres rins, os velhos pulmões e a pele eliminaram; a pele, maior e mais pesado órgão do corpo, e que por isso também vi envelhecer precocemente. Mas você, amigo fígado, com sua falência me poupou de presenciar cabelos brancos ou calvície... Eu te fiz trabalhar mais que o Espártaco de Kubrick quando escravo, hem, e te golpeei mais que Espártaco golpeou quando gladiador: você agüenta metabolizar de 5 a 10 gramas de álcool por hora, mas uma simples dose contém de 12 a 15 gramas, de modo que, além de te fazer trabalhar tantas vezes o dia inteiro, te dando mais trabalho numa hora do que você suportaria o dia


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inteiro, assim ainda te deixava com trabalho acumulado para fazer depois que eu dormia! Aconteceu, meu amigo, que eu tinha o que os médicos chamam de tolerância crônica, integrando o time dos que conseguem beber muito sem apresentar sintomas como tontura, perda de reflexos, voz mole, raciocínio embaralhado, não, você me viu em ação mesmo depois de esvaziar garrafas de líquido amarelo ou garrafa e meia de líquido branco. Mas você não falou nada, você não fala, como o coração que dá seus recados com taquicardia, ou como o estômago que fala pela dor ou pelo vômito, não, você ficou quieto anarquitetando tua teia de fibras, traiçoeira porque silente, mas justa porque apenas resposta ao ataque constante. E também, deixe-me ser justo também, porque, dizem os médicos nos seus catataus clínicos, quem fuma mais de um maço por dia tem três vezes mais risco de cirrose. Também dizem eles que quem consome mais de quatro xícaras de café, por dia, tem cinco vezes menos chance de cirrosar, mas não sabem explicar porque, por isso gosto de dizer que a Medicina não é uma ciência, é apenas uma acumulação de experiências. Certo é que eu devia ter bebido também mais café... E, finalmente, o último golpe líquido que me liquidou foi a hemorragia esofágica. Outra ironia. Os líquidos ardentes, descendo pelo esôfago, provocam varizes, artérias e veias endurecidas como forma de defesa diante de tais ataques, endurecendo como se a formar escudos para os golpes. Até que,


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um dia, de repente, tais varizes inchadas espetacularmente se rompem, abrindo enormes bocas a verter sangue no esôfago. É tanto sangue que sai da boca em jorro, parecendo resposta afinal e final do corpo a todo aquele líquido que antes entrou. Vi, sim, o jorro vermelho ir bater lá na parede, tanto sangue que deixava claro não ter importância saber se era venal ou arterial, claro era que era tanto que faria falta fatal. Mas no hospital me deram transfusões de sangue, mais líquido na história, enquanto eu quase morria também por excesso de líquido, o sangue entupindo o esôfago, ameaçando entrar pulmões adentro, impedindo respirar direito. Para fazer um trocadilho cretino, que é a melhor coisa a fazer diante de coisa tão séria, uma coisa era líquida e certa conforme os médicos: as varizes do esôfago teriam de ser suturadas para estancar aquela hemorragia, que não cessaria naturalmente porque, ironia das ironias, a cirrose não deixa o fígado produzir a substância coagulante do sangue... E, entre tantos líquidos, o coração é quem decidiu a parada, parando de bater. Liquidou-se-me. Há quem diga que, se eu não tivesse me bilistruído, ah, talvez ainda escrevesse tanto, ganharia os prêmios que nunca ganhei, receberia reconhecimento até da Academia (claro que quando chegasse aos 90 no mínimo ou, com certeza, quando passasse dos 100), e daria entrevistas para turmas de colegiais no jardim de casa, respondendo sempre daonde vem a inspiração,


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e seria convidado para mesas-redondas com poetas quadrados, a maturidade me refreando o ímpeto de mandar tudo para o parnaso que os pariu; com vontade de, levantando num pulo, embora talvez com bengala, dizer não sei daonde vem a inspiração nem pra onde vai o tesão de leão de zoológico, quero é saber cadê o meu cachê, e perguntar porque, em vez de mesaredonda, não me convidam para uma cama-redonda, isto mesmo, eu deitado com Alice, como John e Yoko, e a moçada em

volta sentando no chão ou em almofadas (a

almofada é a maior invenção dos árabes), e o bilustre casal responderia às perguntas em diferentes poses e posições no colchão, Alice falando aos homens, eu às mulheres, depois viceversa, casal-câmbio, e, caso a gente não conseguisse responder alguma questão, para disfarçar discutiríamos em público a relação, por exemplo, entre a loucura da poesia e a caretice da civilização, porque não? Falando zério, olhando pelo único ângulo passível, o destino e a delícia de cada um ser o que é, conforme mano Caetano, que é que eu poderia ser além do que fui? Que mais poderia viver além do que vivi se a vida é perfeita assim sem pé nem cabeça do começo ao fim? Que graça teria chegar aos 100 perdendo o guri? Quem me reconheceria quando eu recebesse o Nobel e que amigo lá em Estocolmo me abraçaria? (Como tantos aqui me abraçaram em tantos botecos, abraços mais apertados na exata proporção do rebaixamento líquido nas garrafas...) E eu nem poderia, até por tanto apreciar a simplicidade, causar esse


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incidente internacional para meu país, ganhar o Nobel e não poder receber por falta total de identidade fiscal! Aqui entre nós, em decorrência natural deste nó – decorrência natural, não legal, natural! – da minha identidade zero, nunca declarei renda, portanto jamais paguei imposto de renda, detesto tudo que é imposto, só aceito ou faço por gosto, que me prendessem como prenderam Rousseau, fico arrepiado só de pensar que livros eu escreveria na cadeia, sóbrio quem me compreenderia? Ora, dirá você, socialdemoscroto, o imposto é o primeiro dos democratas, custeando os serviços públicos, a ordem e a segurança, a creche das crianças, o bombeiro que te acode, a precária escola pública para os pobres, a corrupção impune para os ricos, opa, ato falho, as parcas aposentadorias para o povo, as mordomias para os altos cargos, opato falho, a péssima saúde pública para todos, o nepotismo para poucos, optofalo, a Justiça lerdomonga, otflo, a vergonhante infra-estrutura nacional, a caradura licitatorial, of, enfim, preferi me abster de contribuir para isso. Os impostos que tiraram de mim, só tiraram porque são embutidos para todos. E só dei despesa para os órgãos públicos no hospital em que morri, muitíssíssimo menos do que me tiraram a vida inteira em cada tragada que dei e em cada gole que bebi, cigarros e bebidas são os produtos que mais pagam imposto, jeito gentil do sistema educar ou castigar os viciados. Meus impostos,


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embutidos na fumaça e nas garrafas, decerto dariam para custear aquele hospital inteiro, portanto não devo nada. E não poderia terminar este meu pós-jorro de palavras sem lembrar de tantos colegas de copo, Poe, Hemingway, Pessoa, Rimbaud, Maiakovski, Faulkner, Cervantes, que só não bebeu tudo que podia porque passou preso boa parte da vida, então ao menos estou em boa companhia. Pé Vermelho só sabe dos detalhes da morte de Leminski ao ler O Bandido Que Sabia Latim, onde fica claro que o Polaco, se não seguiu o preceito do imperador Adriano, de só beber depois do anoitecer, seguiu outro, o princípio estóico de jamais reclamar das dores, jamais se queixar, jamais lamuriar. Ao contrário, transformou a dor numa de suas mais belas poesias. E, na ambulância, indo para a morte, a alguém que o consolava com a lenga-lenga de que tudo vai dar certo, logo isso vai passar, responde com o humor cortante de sempre: - Coisa nenhuma! Pode dar boa-noite pro gaiteiro! Ou: como Leônidas saudou a chuva de flechas persas dizendo melhor assim, combateremos à sombra, as últimas palavras de Paulo Leminski foram para saudar a desgraça com graça. Em 2013, antes da publicação de Toda Poesia, Pé Vermelho publica na Gazeta do Povo a crônica Triste Beleza:


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“Quando leio que mais algum artista morreu de drogas, penso em Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Castro Alves, que morreram tão moços porque se drogavam com a idéia romântica de que sofrer é bom, matar-se é nobre, consumir-se é gostoso, martirizar-se é elevar-se além dos comuns mortais. Viveram de modo a contrair tuberculose, a chamada ´doença do século` 19, encarando paixões como martírios, imolando-se em boemia doentia, preferindo o manto da noite às janelas do sol. “Vinicius de Morais, que escreveu ´é melhor ser alegre que ser triste`, no mesmo Samba da Bênção comete os versos pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não. Foi ele quem cunhou a (anti)máxima poeta pra ser bom tem que sofrer? Certo é que, mesmo em Garota de Ipanema insere os versos ah, como estou tão sozinho, ah, por que tudo é tão triste?, atendendo ao vírus do romantismo sofredor. Mas Vinicius, na quase totalidade de suas letras e poemas, é um curtidor da vida, embora nem sempre da alegria. “Em A Felicidade, ele resume: tristeza não tem fim, felicidade sim. Talvez por isso, em Minha Namorada, convida a amada para ser aquela amada pelo amor predestinada / sem a qual a vida é nada / sem a qual se quer morrer. / Você tem de vir comigo / em meu caminho / e talvez o meu caminho / seja triste pra você. Ou seja: amar é também sofrer. Realismo cru ou romantismo cozido?


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“Quando Mário Bortolotto foi baleado resistindo bêbado a assalto, lembrei de suas peças, muito embebidas em romantismo sofredor, mesmo que beatnicamente reciclado. A procura de martirismo é própria dos românticos, e a geração beatnik foi-é um suspiro pós-morte do romantismo. “Também Leminski tinha muito disso de cultuar o sofrimento e a dor, o que resume no verso sofrer vai ser minha última obra, embora sempre com um antídoto humor. “Esse pós-romantismo, infantil nos sentimentos e senil nos pensamentos, mata realmente os ´filhotes de Bukovski`, que cultivam o martírio pelas drogas ou pelo sofrimento, pela tristeza, pela marginalidade cultuada. “Ao mesmo tempo, porém, lembrando da diversidade, a maior característica humana, que seria deles se não fossem assim? É possível imaginar um Leminski certinho, um Castro Alves setentão a compor poemas de paz e amor? “Então a sua imolação acrescenta a suas obras a chama de seu martírio, a nos lembrar que, se deixaram menos do que poderiam se não fossem o que foram, o que deixaram tem a intensidade dos que se jogam no abismo justamente porque é fundo. xxx “Daí não há como não lembrar do poeta russo Iessienin, que se matou deixando um poema que se tornou cult dos que cultuam o pós-romantismo, e que ele teria escrito, conforme a lenda, com o próprio sangue dos pulsos cortados, com estes últimos versos:


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Se morrer, nesta vida, não é novo / tampouco há novidade em estar vivo. “A isso respondeu seu amigo Maikovski (que, no entanto, depois também se suicidaria): Nesta vida morrer não é difícil / difícil é a vida e seu ofício. “A vida consciente, como é a vida humana, não seria consciente sem a opção suicida. A morte martírica dos pósromânticos, ou neo-românticos, como queira, dá mais vida a suas obras, assim apreciadas em admirada cultuação, por uns, ou em piedosa compreensão por outros, de qualquer forma ressaltando a diversidade humana e a complexidade artística. “Outro dia tomei um porre e tive ressaca, coisa que não tinha há década, embora beba quase todo dia. Aí lembrei de vários amigos artistas mortos, que buscavam o cigarro antes do café da manhã, tomavam a primeira dose depois, e em seguida passavam a falar apenas de arte, como se a vida fosse apenas contínua celebração artística. “Deus, te agradeço por não ter me dado essa sina, mas não posso deixar de admirar a beleza triste dessa procissão. Como diz o caboclo, é tudo gente, né?” Pé Vermelho levanta antes do sol, e, esperando a água ferver para o café, ouve o galo cantar e lembra de Leminski misturando no café da manhã o resto de conhaque da garrafa que bebeu em viagem durante a noite. Pé Vermelho se arrepia, murmura “tudo em você era exagerado”, e conta as sílabas, é um decassílabo.


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Pega papel e escreve de costas para o fogão, com o fogo no mínimo, de modo que a água estará fervendo quando terminar de escrever: Tudo em você era exagerado os teus suspiros avassaladores a voz alta, a discrição nas dores rabiscos por tudo que era lado Seixo a rolar sempre indo embora desleixo ciosamente calculado o charme arma sempre engatilhada no entanto o olhar a perguntar: e agora? Detestaria tornar-se soneto porém riria: - O que eu mais tenho medo é me tornar estátua, Deus me livre! Virou Pedreira17 onde o sapo pula numa poça e ali a lua ondula magicamente como você vive

17

Pedreira Paulo Leminski, espaço público para grades shows e produção cultural, em Curitiba.


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O MITO Mito não morre. Como os advogados chicaneiros que prolongam indefinidamente o processo com recursos e apelações, o mito recorre da morte, renascendo. “Oi, Paulo, me chamo Cecília e estou em busca de publicar meu livro, estou enviando o link para que, se possível, você dê uma lida e me diga o que acha. Obrigada." O recado é publicado num link de homenagem a Leminski na internet, em julho de 2013 – 24 anos depois de sua morte.


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Na coluna Entrelinhas, na Gazeta do Povo, no dia 15 do mesmo julho, a colunista Marcela Campos reproduz email enviado ao mesmo link, por representante de um festival literário, convidando Paulo para participar do evento, fornecendo email e fone para contato. Dizendo-se “Paulo”, alguém até responde: “Eu gostaria muito de ir, mas infelizmente já morri”. São só duas evidências risíveis do mito Leminski, o poeta meio maldito, meio esquisito, um tanto popular, um tanto erudito, mistura única de ingredientes usualmente excludentes. Ele cultivou esse mito conscientemente em vida, e sua família passou a colher os frutos disso apenas mais de duas décadas depois de sua morte. Graças a essa infinita biblioteca eletrônica que é a internet, muro imenso para grafitagem sem fim, podemos ter dele, rodando e jorrando por aí, poemas, fotos, textos, falas, recados, rabiscos, performances que, por mais mal filmadas, são melhores que nada. Seria tão interessante saber como Gregório de Matos era recebido nas casas onde ganhava hospedagem soberba e retribuía com seu humor corrosivo! Pois de Leminski muito podemos saber, o mito cresce e se remexe na internet. Em 2010, Pé Vermelho encontra Alice Ruiz em Brasília, integrando comissão julgadora de concurso do Ministério da Educação, e pergunta porque não é publicada antologia de Leminski. Pensa em antologia por prejulgar que um volume de poesias completas custaria muito caro, o preço contraditoriamente restringindo público ao poeta pop. Tem como referência as


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antologias poéticas da Editora do Autor, dos anos 1960, entregando ao público o melhor de grandes poetas em livros dignos e de preço razoável. Será uma surpresa ver que Toda Poesia, graças ao ajeitamento editorial da Companhia das Letras, consegue em 2013 chegar às livrarias com preço razoável e dignidade gráfica. E será um alegria ver que o livro do Polaco chega a best-seller! Daí, em toda foto dele que Pé Vermelho vê, ele parece dizer: - Eu te disse, cara, que um dia as massas iam comer do biscoito fino que fabrico18. A exposição Múltiplo Leminski, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, com curadoria de Alice, bate recorde de público do museu, com quase 200 mil visitantes num semestre de 2013. Em Foz do Iguaçu, apenas nas duas primeiras semanas, 30 mil pessoas vêem a segunda instalação da exposição, que depois viajaria para outras cidades. O mito foi criado pelo próprio Leminski, cultivando sua lenda viva, e o claro indício disso são as fotos para as quais posou, explorando-se como imagem pop, com olhares e posturas de (como convém a um escritor) incipiente ídolo. Nessas fotos, alternam-se ora a inquietude, ora a meninice, ora a serenidade, ora a brejeirice ou a malícia de seu olhar, como poliédrica composição visual, emoldurada pelos cabelos desalinhados de roqueiro e os bigodões eslavos. Assim tornou-se, além de ídolo,

18

Frase de Osvald de Andrade que Leminski insistentemente citava.


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um ícone, que Elisa von Randow sintetizou estampando na capa de Toda Poesia apenas os bigodões desenhados. Seu martilirismo, mistura de mártir lírico com sacrifício etílico, também alimentou seu mito. A polivalência de escrever poesia,

romance,

biografias,

fazer

traduções

e

“prosa

experimental” (como até editorialmente se referem ao Catatau, numa espécie de prevenção ao leitor comum), botou mais lenha na fogueira mitológica, que de lógica tem pouco. Entretanto, o surrado ditado de que a toda ação corresponde uma reação foi também se renovando enquanto o mito crescia. Enquanto aumentava o coro dos veneradores de Leminski, garimpando seus livros esgotados em sebos e reproduzindo seus poemas na internet, também crescia a turma dos detratores, misturando inveja e despeito travestidos de postura crítica. O fenômeno Leminski parece repetir o fenômeno Augusto dos Anjos, detratado pela crítica durante décadas, como “poeta da morte”, enquanto seu único livro, mesmo durante meio século com edições mal cuidadas controladas por um único editor, tirava dezenas de edições e seus poemas eram decorados por gerações. Augusto, quando sua obra passou para domínio público, passou a ter edições bem cuidadas, uma delas com ensaio primoroso de Ferreira Gullar. A um crético, um cretino crítico que, em nome de uma pseudo-ética tenta desmerecer Leminski por ele ser “popularesco”, Pé Vermelho tem de responder duro:


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- É? Então vá ler o Catatau, ou os Ensaios Crípticos! Só a poesia dele é popular, aliás é mais propriamente pop, popular é pagode, sertanejo e axé! O jornal Rascunho, logo que Toda Poesia entra nas listas de mais vendidos, condensa a ranhetice anti-leminski numa matéria de capa, com o título Polaco Oco, e, em duas páginas internas, artigo com o título Sobraram apenas os óculos e o bigode. O artigo não é devastador como os títulos maldosamente manipulados sugerem, é escrito com dignidade, embora com o intuito claro de atender à encomenda de desconstruir o mito. Pé Vermelho lê o artigo, depois fica olhando a foto de Leminski na orelha de Toda Poesia, o Polaco sorrindo com uma margarida na orelha, passando a mão nos cabelos com olhar de quem desafia docemente: - Como é, cara? Você vai deixar assim? Pé Vermelho liga o rádio e Roberto Carlos está cantando querem acabar comigo / nem eu mesmo sei porque. / Enquanto eu tiver você aqui / ninguém poderá me destruir... Dalva, esposa de Pé Vermelho, traz café e se espanta de ver que está com os olhos úmidos falando sozinho: - Pode deixar, cara, eu estou aqui. - Com quem você está falando? – ela pergunta e fica sem resposta, porque ele já está escrevendo e, depois de enviar para centenas de emails, envia para o Rascunho o artigo: A despeito de Leminski: POLACO OCO OU RASCUNHO CASMURRO?


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“Rascunho teve época nazista, com matérias que não se limitavam a comentar autores, queriam sua eliminação, como quando estampou em título garrafal: Sebastião Uchoa Leite insiste em fazer poesia: PARA COM ISSO, SEBASTIÃO! Rejeitado pela reação ética de muitos leitores, Rascunho passou a limpo essa fase, mas agora tem recaída (embora precavida porque rescaldado) com a matéria sobre Leminski. “A tentativa de ´matar` Leminski tem a precaução de se armar com uma análise argumentativa e digna de Marcos Pasche, revestida porém por um tratamento editorial raivoso e despeitado. Na capa do jornal, em vez de foto do autor (como é regra do jornal), uma ilustração bisonha e um título trocadilhesco que, no afã de depreciar Leminski, deprecia o jornal: POLACO OCO. Nas páginas centrais, um título raivoso e grotesco como a ilustração que estampa: Sobraram apenas os óculos e o bigode. “Acrescente-se que sobraram também os milhares de leitores que já sabiam de cor poemas de Leminski, aos quais agora vão se somando outros milhares. O título original de Pasche decerto foi transformado em subtítulo: Toda poesia de Paulo Leminski revela uma obra datada, vazia e repetitiva. Rascunho manipulou a edição do artigo de forma a ´matar` toda a obra de Leminski, enquanto o próprio articulista ressalva que sua poesia tem ´brilhantes lances de criatividade`. “Com Toda Poesia, os leitores podem ter visão geral e suas próprias preferências, apesar das muitas baixices e inocuidades do poeta. Como, porém, seus leitores são afetivos e argutos como


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Leminski foi, isso não o matará, ao contrário. Ele não se queria Deus perfeito, embora, sim, se dedicasse espertamente a criar a imagem de um ´pop star literário` (o que não é crime nem é anti-ético). “É engraçado (ou é desgraçante) que os mesmos que reclamam da literatura não ter mais leitores, não suportam quando algum autor faz sucesso, como aliás detestam os livros de autoajuda que, porém, sustentam a indústria editorial, até para que possa também publicar livros outros. “Esperemos que, na onda (que bela onda, Paulo, nós que te amamos estamos tão felizes por você) na onda do sucesso de Toda Poesia venham também a antologia, e a reedição de VIDA, contendo as biografias de Jesus, Bashô, Cruz e Sousa e Trotsky, primorosas pela agudeza amorosa com que foram escritas. E que o Catatau continue a encantar quem gosta de vanguardices, e que os Ensaios Crípticos continuem a ser exemplos de visão criativa, com menos ou mais leitores mas sempre a configurar um escritor que não pode ser despeitosamente reduzido a óculos e bigode. “Leminski trouxe à poesia um frescor jovem, uma feição pop, uma aura cult, e, principalmente, uma atitude de vida, que vão continuar encantando os leitores de mente clara e coração aberto. Não será com dois títulos casmurros que matarão Leminski, embora ele esteja morrendo de rir.”


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Também depois da publicação de Toda Poesia, Pé Vermelho folheia La Vie en Close, e tem uma surpresa que motiva escrever mais uma crônica sobre o Polaco, O Último Poema de Paulo Leminski: “Um conhecido poeta, que vê o polaco como rival na posição de ´maior poeta da geração` (como se o mundo da poesia não fosse um continente, mas uma montanha com um pico para apenas um), me falou que a poesia de Leminski é ´mistura pobre de pop com cult`. “Concordei que é uma definição certeira, apenas alterando uma palavra: ´mistura nobre de pop com cult`. “Por pop entenda-se não só a fala popular, coloquial, da poesia de Leminski, mas também seu romantismo, sua irônica egolatria, seu debochado martirismo. Pois o povo é romântico, adora idolatrar, vendo-se nos ídolos, como gosta de sublimar o sofrimento, drible emocional para superar as dores. “Nos últimos tempos eu não agüentava mais encontrar o polaco, para não ver como se matava, no entanto coerente com sua visão romântica de mártir poético, aprisionado pelo álcool mas visando uma ressurreição artística. “Bem, polaco, funcionou. Aquele teu ´rival` está se torcendo de inveja. `”Agora me deixe contar uma historinha que vai te fazer soltar aquela risada meio escondida.


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“Peguei La Vie em Close para folhear saudosamente, e eis que o livro está roído por traças, que cavaram veios fundos páginas adentro. “Esses veios, quando folheio, formam desenhos simétricos nas páginas esquerda e direita. Aqui formam uma flor, que páginas adiante se transforma num molusco, que depois vira uma árvore... “Passei em revista todas as centenas de livros aqui da biblioteca, verificando que era o único atacado pelas traças, e ia jogar no lixo, quando me dei conta de que elas fizeram nele um poema mutante, que pode ser chamado de Transformação. “Como você se transformou, você não se mata mais, você se tornou permanente. “Com direito até a poema póstumo. Ou, conforme você: tão doce, tão cedo / tão já / tudo de novo vira começo.” Ou: isso de querer / ser exatamente aquilo / que a gente é / ainda vai / nos levar além #

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