ISSUE#01
Interrogando Merkley??? - Ensaio Avanethiérre - um dos meus contemporâneos mais antigos - Eterno Retrô do mesmo - Realismo e Representação - A Estética do Cotidiano - Interrogando Guilherme Gontijo Flores. www.rnottmagazine.com
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WHO ARE THESE PEOPLE?
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ISSN 2358-0127
VINICIUS FERREIRA BARTH
RAFAELA LAGARRIGUE
SE AUTO-INTITULA: EDITOR CHEFE
SE AUTO-INTITULA: DIRETORA DE ARTE
NA VERDADE É: Fotógrafo de rua, Mestre em Literatura pela UFPR.
NA VERDADE É: Produtora de moda, excêntrica.
vinicius.rnott@gmail.com
rafaela.rnott@gmail.com
JULIANO SAMWAYS
GUILHERME GONTIJO FLORES
SE AUTO-INTITULA: COLABORADOR
SE AUTO-INTITULA: COLUNISTA
NA VERDADE É: Professor de filosofia, autor, músico, estudante, ex-enxadrista, ex-filatélico.
NA VERDADE É: Poeta, tradutor e professor no curso de Letras da UFPR.
jspetroski@hotmail.com
ggontijof@gmail.com
-Robert Frost
A
virada de 2013 para 2014 marcou o lançamento (virtual e também físico, pleno de brindes e saúdes) da R.Nott Magazine, revista virtual de arte e cultura que se reapresenta aqui em nova roupagem, em trajes finos, ao gosto daqueles distintos que prezam antes a virada de página ao click. O caminho que possibilitou a fundação e publicação desse projeto e lançou a sua primeira edição, que você poderá degustar ao longo das páginas a seguir, foi de busca entre os meandros e as entranhas (e as estranhezas) da internet por conteúdos ainda ocultos ou pouco iluminados dentro de nossa vivência cultural. Buscávamos algo novo, fresco. Gente nova. Diálogo. A construção da R.Nott representou para estes editores a reunião de um conteúdo que desejávamos ver em nossa língua, e no entanto sem papas, clichês, abecedários críticos ou recalques artístico-intelectuais. Esperamos ter alcançado tal objetivo ao longo desse verão escaldante de muito trabalho na Issue #01. A satisfação, ao menos, foi garantida. Daqui pra frente, (re)visite os mundos desses que nos ajudaram a formar essa edição inaugural. Se ainda não estiver seguro, dê mais uma olhada na nossa capa. Ela vai te convencer. Vinicius Ferreira Barth
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PROPOSTA DA REVISTA
"Forgive me my nonsense, as I also forgive the nonsense of those that think they talk sense.”
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Interrogando Merkley???
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artista norte-americano respondeu às nossas perguntas e falou sobre seus métodos de trabalho, sobre a sua preferência em usar o Photoshop ao invés de tintas e pincéis, e também sobre o período em que viveu no Brasil como um missionário Mórmon.
J
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RUÍDO
Eterno Retrô do mesmo
uliano Samways abre a coluna ‘Ruído’ falando sobre a onda Retrô pela qual passamos. Ou na qual sempre estivemos?
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INTERROGATÓRIO
LITERATURA
um dos meus contemporâneos mais antigos
G
uilherme Gontijo Flores, que também é um dos nossos entrevistados do mês, inaugura a coluna de Literatura falando sobre um dos seus contemporâneos mais antigos. Confira!
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VISUAIS
Realismo e representação
andra Stroparo, na coluna ‘Visuais’, nos traz um panorama dos movimentos estéticos de vanguarda do séc. XX, tratando das diversas formas de representação do real.
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A estética do cotidiano
V
inicius Ferreira Barth nos lança uma reflexão a respeito da Fotografia de Rua e sobre o que ela, afinal, representa nesses tempos que misturam a onda retrô do filme, a nova fotografia portátil e o incessante consumo de imagens no cotidiano.
AVANETHIÉRRE
I
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INTERROGATÓRIO EM VIDEO
Interrogando Guilherme Gontijo Flores
nterrogamos o poeta, professor e tradutor Guilherme Gontijo Flores. E entre versos que se perdem na cabeça e tribos de poetas vivendo na era da internet, ele nos fala sobre o seu livro de estreia, Brasa Enganosa (ed. Patuá, 2013).
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SUMÁRIO
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VISUAIS
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INTERROGANDO
MERKLEY??? 6
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Eu sou ambos os membros do ZZ-Top. Eu sou, além disso, todas as outras pessoas com cabelo comprido, chapéu e barba.
Então caso você veja alguém com esse visual, pode ter certeza que
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sou eu
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INTERROGATÓRIO
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Pra começar, você deixou bem claro no seu blog que NÃO é um fotógrafo. No entanto, eu mesmo ouvi falar pela primeira vez a respeito do seu trabalho em uma aula de fotografia, como sendo um nome em ascensão no meio. Além disso, você é um all-star do Flickr, visto e comentado por milhões de outros fotógrafos. Como se sente com esse feito? A coisa da internet era/é engraçada. Especialmente por nunca ter sido uma ambição minha ser reconhecido como “fotógrafo”. Eu realmente me divirto muito fazendo arte e é muito fácil compartilhar tudo isso pela internet. Quando o Flickr era legal, isso era um bônus. Eu queria que eles não tivessem sido vendidos ao Yahoo e fodido tanto com o serviço. Eles poderiam ter sido o Facebook, Twitter, Instagram e todo o resto combinados, não fosse a mentalidade retrógrada do Yahoo
que acabou reprimindo tudo isso. Como se eu soubesse do que estou falando. - Você viveu no Brasil como um missionário Mórmon, certo? Como foi esse período, e o que você conheceu aqui em termos de cultura e arte? Bem, por ser um missionário Mórmon eu estava confinado a uma vida de oração. Eu sou muito feliz por ter conhecido tantos brasileiros em um nível pessoal, em suas casas, compartilhando refeições e aprendendo a língua de um modo que poderia não ter acontecido de outro modo. Eu só queria ter tido, na época, a atitude não religiosa e de livre pensamento que tenho agora. Mas remorso é uma coisa besta. Eu adoraria voltar ao Brasil um dia. É comum eu ter sonhos em que estou lá de novo, e esses sonhos são geralmente bacanas. - Conte um pouco sobre o período em que você trabalhava com pintura e desenho, antes da fotografia. O que você perseguia nessa época em termos de arte, e como isso difere do que você persegue agora? Eu ainda pinto e desenho, e faço isso desde que tinha 4 anos de idade. Eu cresci lendo Charles Schultz e Dr. Seuss e assistindo desenhos da Hanna Barbera. Ainda me vejo, de certo modo, como um cartunista. Quando eu era criança, meu pai sempre me deixava usar a sua câmera para fazer fotos, mas naquela época o que eu fazia eram apenas fotos documentais de amigos, etc. Quando eu finalmente consegui uma câmera digital e o Photoshop, por volta de 1999, eu realmente percebi que todo o processo de
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INTERROGANDO MERKLEY???
[08] Jill • ZZZ???
[09] Violet Blue Portrait with Halo of 13 Freebie Dildos & A Sacred Heart/Butt Plug
fazer imagens com histórias que eu queria que existissem poderia ser muito mais fácil. Eu sinto que as maiores inspirações para essa minha arte baseada em fotografia são Gary Larson e Devo misturado com Vargas. Veja, eu sou muito preguiçoso, e desenhar ou pintar não são tão ergonômicos quanto deitar numa cama e usar uma câmera, um computador e o Photoshop. Não tenho cãibras nas mãos, nunca arrebento ou perco meu pincel ou caneta,
e posso desfazer qualquer coisa que não goste. Então o processo mental é basicamente o mesmo, só mais confortável e eficiente. - Falando em arte, suas fotos são comumente vistas através dos olhos da moda e estilo. Também é muito comum que seu trabalho seja comparado com o de David Lachapelle. Como você vê isso? Ser comparado com Lachapelle nunca é um insulto, e, depois de ter sido
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INTERROGATÓRIO 10
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INTERROGANDO MERKLEY???
[10] Delachaux & Manders-Absinthe Antlers
[11] Carrie
Delachaux is a safari DJ who likes absinthe. Manders is a pretty girl with long legs. Absinthe is a drink that gives an awful stomach ache.
Takes a Nap on Her Mirrored Vanity With a Cake for a Pillow, Three Floating T-Bones, Eight Floating Bottles of Perfume and One Landing or Maybe Jumping Cat.
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INTERROGATÓRIO
comparado com ele um certo número de vezes, fui fazer a minha lição de casa e descobri que nós temos basicamente a mesma idade, absorvemos a mesma arte/cultura ao crescer, e transitamos nos mesmos tipos de círculos sociais. Então não é tão surpreendente que de vez em quando a gente compartilhe de certas escolhas estéticas. Meu amor por cores supersaturadas deriva basicamente de filmes como O Mágico de Oz e outros da mesma época, quando tudo parecia estar sendo levado aos limites. Eu imagino que ele (Lachapelle) daria uma resposta similar. E sim, eu realmente gosto de moda. Mas sou tão meticuloso quanto ao seu uso ser especial ou intencional que na maior parte do tempo eu acabo não gostando do que alguém está vestindo, e é por isso que, no fim das contas, eu faço tantos nus. Se eu realmente gosto da maneira como alguém está trajado e acabo julgando que tem méritos para ser documentado ou celebrado, fico mais do que feliz em incluir isso na minha arte.
[12] imagem 1 Dredg
[12] imagem 2 The Martin Brothers
[13] imagem 3 PStarr
[13] imagem 4 merkley???
Bathtub Portrait with Snortzle, Butterface, Scale & Black Balloon
Tub Time With Eggs Christian & Justin Martin
Buzzed on Vodka In a Discoish Helmet Pretend Drunk Driving a Clawfoot Tub With a Frying Pan Steering Wheel While 2 Eggs Collect Germs and Extra Toast Flies Out of an Unplugged Toaster Into The Breakfasty Steam
On The Throne and The Phone with a Fake Jew (Sue) Who Gives Merk News of His Two Millionth View and Merk Gives The Loo His Twenty Thousandth Poo and Whoopdee Doo It's All Too True
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INTERROGANDO MERKLEY??? - Várias fotos suas são musicais em alguma medida, do uso de microfones a fonógrafos. Algumas vezes chegam parecer arte de capa de álbuns de música. Qual é o papel da música na sua vida e na sua produção? O que você costuma ouvir? (Você é um dos membros do ZZ-Top?) Durante toda a minha vida eu fiz música, e por muito tempo estive envolvido no ramo musical. Eu não faço distinções entre os diferentes meios artísticos, pra mim todos são “arte”. Ultimamente eu tenho escrito e gravado muita música. É divertido. Eu sou ambos os membros do ZZ-Top. Eu sou, além disso, todas as outras pessoas com cabelo comprido, chapéu e barba. Então caso você veja alguém com esse visual, pode ter certeza que sou eu. - Existe uma grande e tradicional dificuldade de entendimento entre a arte e a moda, de poderem se ver e se reconhecer como pensamentos estéticos e sociais já amadurecidos.
Na fotografia, nomes como os de Helmut Newton e Richard Avedon não compartilham do status artístico como os de, por exemplo, Cartier-Bresson e Brassaï. Mesmo assim, tanto a arte como a moda construíram diversos modos perspicazes de ver a sociedade e os modos como o ser humano interage dentro de um sistema social. Desse ponto de vista, quais são as suas preocupações e pensamentos mais íntimos que o trazem à forma final do trabalho? O que é que você procura em suas imagens? Eu gosto de fazer coisas que eu sinto que não existiriam sem mim. Ninguém realmente sabe o que é que leva um artista a criar e compartilhar. Eu suspeito que isso venha de um desejo humano que consiste em encontrar pessoas com cabeças parecidas com quem se possa construir uma tribo. - Você cria algum tipo de expectativa com relação ao que as pessoas vão interpretar ou imaginar quando veem
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INTERROGATÓRIO 14
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INTERROGANDO MERKLEY???
[14] Upside Down Quasi Rastafarian Stripper Pole Crucifix at St. Dominic's Catholic Church w/Anime Video Tape, Wild Boar, Lego RV & Stigmata Gems, Nokia Cell Phone, Backwards Violin, Waving Elmo & About 20, 20 Dollar Bills. VI-violin Vi-Video-tape AN-Anime NO-Nokia EL-Elmo LE- Lego RV-Lego
as suas imagens? É comum você se ver perplexo com reações inesperadas? Depende da peça. Em geral eu tenho alguma ideia de que mensagem/piada eu quero transmitir, mas me permito reservar intencionalmente algum espaço aberto para interpretação. Eu gosto de ouvir o que as pessoas pensam que a minha arte significa. A coisa boa/ruim sobre arte é que alguém sempre está certo e errado. Na maior parte do tempo eu gosto de incluir elementos e criar histórias com justaposições que façam com que o espectador conte uma história para si mesmo. Eu gosto da arte que exige que o espectador ative o seu próprio senso de criatividade. Nenhuma história nunca é completamente contada, porque cada vez que se ouve existirão novas circunstâncias para considerar.
Na verdade, o que importa mesmo não é o equipamento. Eu trato as imagens com o meu cérebro, globos oculares, dedos e Photoshop. Nada disso é um plug and play. Não é muito diferente de uma pintura, exceto que a câmera fornece a tecnologia para pular algumas etapas. - Conte sobre os seus livros. Estão disponíveis fora dos EUA? Eu lancei meu último livro há um tempo numa edição limitada autografada e basicamente se esgotou alguns meses após o lançamento. Fiquei ainda com uma centena de cópias para a posteridade, mas de um tempo pra cá eu venho pensando em me livrar delas, porque ocupam muito espaço.
É isso o que eu gosto em imagens, sejam paradas, em movimento ou qualquer outra. Sem diálogo, nós é que precisamos completar as lacunas e descobrir o que está acontecendo, e para cada pessoa a perspectiva e as possibilidades são diferentes. Imaginar é divertido. - Com que tipo de equipamento você costuma trabalhar e o que você usa para tratar as suas imagens? Eu uso uma variedade de câmeras compactas de bolso. Nesse momento a minha favorita é a Canon 300hs, mas todo mês são lançados novos modelos que são divertidos e dão conta do trabalho. Eu poderia fazer tudo com o iPhone se eu precisasse. www.rnottmagazine.com
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por Guilherme Gontijo Flores
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LITERATURA
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literatura contemporânea sempre impressiona. muito.
há um certo fetiche por ela ser nova, por poder dizer o novo, quem sabe o mais que novo, o além do nosso tempo. quem sabe ela já não seja póstuma, compreensível apenas para os pósteros? e nós, que não somos bobos, queremos estar entre esses não-nascidos, para frequentar o seu saber, ou mais, demonstrar como também estamos além-de-contemporâneos exatamente por sermos contemporâneos. eu não sou diferente de ninguém, mesmo que latinista, mesmo que empenhado em traduzir elegias de propércio e odes de horácio. por isso eu quero falar de um dos contemporâneos mais antigos, e, pra ser sincero, um dos meus favoritos: ele poderia se candidatar ao meu contemporâneo favorito de todos os tempos. mas, pelo prazer do suspense, eu não cito nomes, não por enquanto. mas posso descrever as obras pensem no seguinte - pensem mesmo: eu falo de uma obra literária escrita, mas ela certamente não se resume à folha de papel, porque ela é, na sua origem, uma performance oral que agora está escrita, talvez como um pássaro empalhado que nós podemos imaginar num voo. assim, como ela não está no seu universo original, esse desencontro entre a fala originária e o texto que nos sobrou marca toda a obra: em lugar da performance perdida, temos variantes textuais (como no caso das 6 primeiras edições do grande sertão: veredas, que variam porque o próprio guimarães rosa alterou seu texto continuamente enquanto estava vivo); por isso, cada leitor pode, até segunda ordem,
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um dos meus contemporâneos mais antigos
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para amarmos esse herói, não basta o louvor da guerra. de fato, ele mata sem pestanejar, ele é o suprassumo de um rambo, ele consegue parar um rio só pelo número de cadáveres que ele lança lá dentro, ele parece ter pouco respeito por homens e deuses. em resumo, uma figura insuportavelmente humana, inclusive no seu vazio.
escolher e ler textos diferentes, se optar pelas variantes possíveis para cada trecho. cada um pode visualizar o que seria seu original, sem que nunca ninguém possa ver o que ele foi de verdade. e mais, esse texto, que não é texto, está escrito numa língua artificial que nunca foi exatamente falada por povo algum, mas que, apesar desse estatuto, é traduzível; então precisamos aceitar que só meia dúzia de loucos (i.e. apaixonados ou desocupados) podem folhear as variantes na língua original, para fazer com que o resto dos leitores interessados leiam alguma tradução do que conseguirem interpretar. vocês estão me acompanhando? nosso texto, hoje, foi um suposto acontecimento oral numa língua sem
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falantes nativos e que só se propaga em texto escrito, sobretudo traduções: é, talvez, como a foto de uma estátua. agora, a coisa linda ainda não chegou: a narrativa é marcada por uma recorrência rítmica que impede a categorização desse texto em romance, ou prosa. meu contemporâneo é poesia, mas poesia longa, bota aí umas 300 páginas para cada obra, pode ser? e narrativa. mas se fosse uma narrativa fácil eu não gostaria, não seria minha contemporânea nem apontaria para os pósteros, certo? então ela não é fácil, está cheia de lacunas, alusões a outras narrativas que praticamente desconhecemos, enquanto narra uma guerra, sem contar propriamente seu início e seu fim. em certos momentos, parece que não se trata de uma guerra,
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LITERATURA mas de um jogo de honra, poder, quem sabe de amor, mas sobretudo de amor próprio, porque esse cara não cairia nas balelas do amor romântico. aliás, se há algum relacionamento amoroso digno de nota - na verdade, penso que são três - eles fogem um pouco ao padrão hollywood: nós temos um triângulo amoroso, com uma
adúltera mais que sedutora, capaz de lançar olhos de cadela sobre uns pobres guerreiros de baixa capacidade afetiva; um belo e simpático casal tradicional que está no lado dos derrotados (o marido morto, o filho será morto, a mulher será escrava sexual de algum general); e um suposto casal gay de guerreiros suados e violentos capazes de amar outro homem fervorosamente, com ou sem penetração anal, que parece não ser o centro afetivo deles. no mais, tudo se centra numa briga de dois poderosos por uma questão mesquinha a respeito de butim de guerra, aliás, a respeito de uma mulher escrava que não é particularmente desejada por nenhum deles. o ponto fundamental é o orgulho de cada um num cabo de força para determinar até que ponto os jogos de poder delimitados socialmente são conservados em um estado de sítio constante. o que, por sua vez, nos leva ao tema da morte: um desses homens sabe do seu fim inevitável - ele vai morrer nesta guerra. e ele, por tolice ou vanglória, está disposto a seguir seu destino de matança e morte na esperança de ver seu nome na boca dos outros. e só. ele não espera nada no além-vida, prazeres do paraíso cristão, ou virgens por deflorar a cada dia, ou batalhas
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um dos meus contemporâneos mais antigos
nórdicas que se reiniciam a cada nascer do sol. ele mata e ele morre por um nome, e é essa figura sentimentalmente esvaziada que ama outro homem, e é essa figura peculiar, "que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo, que ficou desapontado, como é comum no seu tempo, e que ficou apaixonado e violento, talvez como vocês" (diria Belchior, um nosso contemporâneo), que nós podemos chamar de um herói. o ponto crucial é que, para amarmos esse herói, não basta o louvor da guerra. de fato, ele mata sem pestanejar, ele é o suprassumo de um rambo, ele consegue parar um rio só pelo número de cadáveres que ele lança lá dentro, ele parece ter pouco respeito por homens e deuses. em resumo, uma figura insuportavelmente humana, inclusive no seu vazio. mas nós não poderemos ver ou chorar a sua morte, talvez como não se pode ver finalmente tony soprano ser baleado no último episódio de the sopranos, para apenas imaginarmos essa figura monstruosa que não fomos incapazes de amar. ao percebermos isso, talvez possamos entender a guerra em seu horror, em seu esvaziamento completo do que não é ganância por ganância, ou honra por honra, ou poder por poder. por isso, apesar de toda a história ser sobre um matador, nós teremos de chorar um derrotado ao fim desse livro, desse contemporâneo mais antigo, disso que eu posso chamar de meu homero.
post-
scriptum: alguém realmente esperava que eu fosse falar de outra coisa? numa espécie geneticamente estável há muitos milhares de anos, num planeta que já conta seus 4,5 bilhões de anos, inserida num universo que supostamente completou mais 13 bilhões, onde ela conta menos do que um grão de areia no egito, alguém realmente acha que eu vou me resumir a ser contemporâneo do cara que nasceu na mesma década que eu? alguém de fato acha que um guarani kaiowá - que hoje perde vergonhosamente seus direitos sob o nosso governo - é mais ou menos contemporâneo que sartre ou pitágoras, ou que a poesia de hafez ou a antologia dos cantares organizada por confúcio? não, meus caros, estamos todos partilhando um instante do cosmo, e whitmanianamente eu gostaria de abraçar também a todos os mortos, meus contemporâneos.
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Retr么 Eterno
Mesmo
do
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por Juliano Samways
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RUÍDO
P
ensemos em uma biblioteca (melhor seria uma vídeo-audioteca) com prateleiras repletas de timbres variados, oscilando, por exemplo, de uma guitarra Fender aveludada claptonmaníaca para uma visceral hendrixniana, ou até mesmo de outra Fender calculista e econômica gilmouriana para uma arrogantemente brilhante blackmoreana. Quantas formas de tocar uma Fender ainda poderão nos tocar? Entre té onde se vestirá a onda etrô sonoridades e batidas, grooves de baixo, arranjos, nesse universo finito de combinações desarranjos, harmonias e melodias, gama sentimentos angústias e pequenas de imagemmovimentos alegrias da produção musical sessentistas, setentistas, oitentistas, resessentistas, noventistas, re-setentistas, re-re-sessentistas, reoitentistas, dos anos rebeldes aos uma ferramenta anacrônica por natureza, sedentários, a nossa biblioteca exala um julgamento do presente revestido de vasto universo de sons e possibilidades adequações do que já se foi: é uma para a criação (ou repetição?) artística. repetição. Essa é a Googleteca, acessível a todos Repetir pode ser revolucionar? Vade que possuam uma boa conexão de Retrô! Não é demonizar a repetição, mas internet. Quem acessa essas informações sim uma crítica à simples repetição, ao musicais, as empoeiradas melodias repetir novamente. Ferramenta da própria dessas prateleiras, não se torna também indústria musical, em outras épocas parte desse mofo musical digital? Em um onipotente e agora quase inexistente, a passado não muito distante, essa base de repaginação, a reutilização de conceitos, dados que retorna pela web foi fomentada que já povoou e salvou várias vezes o por diversos tipos de fonogramas em mercado fonográfico, agora parece se forma de mercadoria: LP, fita cassete, tornar a única engenhosidade dos artistas CD, DVD, outrora produtos (gravações que estão a pipocar pelo novo mercado oficiais e licenciadas) e anti-produtos (as das redes anti-sociais. Imaginem uma famosas gravações piratas e cassete) de cópia de Syd Barrett, careta, compondo um mercado e anti-mercado da música. A música eletrônica em um desses microportabilidade e acessibilidade à informação apartamentos em Pequim. Quantos musical, a massificação da informação, novos Lou Reeds Lennons Mccartneys potencializou algo que já acontecia e que já com camisa dos Ramones dançando um era usual no ramo das mercadorias, uma sambinha meio tango? Quantos terão espécie de estética, que aqui intitulamos seus sucessos partilhados nesse universo de Retrô. Palavra de origem latina que da estética Retrô? Daí também os vários indica um olhar sobre o passado, o Retrô é
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Eterno Retrô do Mesmo programas atuais do tipo reality com apelo ao antigo, ao já estabelecido, aos cânones de um mercado adormecido. Esse é o fenômeno Retrô da música, uma espécie de wikirock, youtubemania, música das redes agorafobia. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (aquele que só acreditava em um Deus que fosse capaz de dançar) já apontava para a questão da repetição de conceitos. Dizia ele que em um universo materialmente finito, com um tempo infinito, todas as coisas necessariamente voltariam. As atualizações da matéria, atualizações de possibilidades, por mais que sejam trilhões, um dia retornariam. O tempo faria todas as coisas retornarem, pois nunca cessa, e mais do que isso, faz com que o processo eternamente retorne o mesmo. Essa proposta do “eterno retorno do mesmo”, aplicada ao universo musical, resulta em um repertório finito (a matéria é finita), porém ilimitado (o tempo não para de passar) de combinações. Pois bem, não precisamos esperar pelo infinito, pois a indústria cultural musical virtual da Era da Informação faz o “mesmo” retornar em um universo muito menor de tempo. Até onde se vestirá a onda Retrô nesse universo finito de combinações, sentimentos, angústias e pequenas alegrias da produção musical? Universo que se desenhou na roupagem criada por vários artistas advindos do mundo comercial, ou mesmo até na roupagem feita à margem deste mundo, por outra finita gama de bandas independentes; quem, afinal, não se submeteu formalmente a esse universo dos selos e grandes gravadoras?
estética musical justamente por ser de uma ética musical: se algo sempre retornará, se eternamente faremos a mesma coisa, façamos então com que eternamente “valha a pena”. Porém, as sábias palavras de Nietzsche parecem não responder aos dilemas que a sociedade da desinformação coloca: conceitos iguais a re-conceitos, o retorno dos mesmos conceitos. É a estética como o fim das épocas, afirmando que todas as épocas são de fato uma só, como se todas as tendências da moda, dos valores, dos elementos culturais fossem somente um. Pior do que padronizar e fazer retornar o igual, alguns ainda apontam o argumento de que algo somente será bom e renovador se não estiver constando nos anais da Googleteca. Outros ironizariam até mesmo este texto, como uma cópia de algum outro já publicado, repousados na máxima teológica: não acredito em um Deus que não saiba control-C control-V. Apostamos, talvez, no artista de carne e osso, numa espécie de arte orgânica com saliva e suor, que faz da sua vida seu itinerário de contato com o público, como se a arte fosse o público, como se os acesso e plays em redes sociais fossem opostas à ideia de audiência. Mas é o sabor insosso desse porvir da arte não mais digital que deixamos aqui. Nesse eterno Retrô do mesmo, não sabemos a qual época não pertencemos.
No universo da internet (palavrinha que sempre retorna ao texto), no universo dos conceitos, a pergunta que aqui colocamos é simples, porém com possíveis respostas de grande complexidade: qual o problema das coisas retornarem? E ainda aprofundando a questão, que também se torna ética: por que não dar a uma coisa o simples direito de acabar, morrer, e não ressuscitar? O tal do Nietzsche, novamente repetido, respondia a este dilema de
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Avanethiérre *Ato ou estado de amarrar-se às origens futurísticas tradicionais vindouras.
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EQUIPE Produção e estilismo: Rafaela Lagarrigue Fotógrafa: Ailin Cordoba )Modelo: Laura Figueredo (Muse Management Maquiagem: Paula Besostri Cabelo: Agostina Biancardi Vilchez Agradecimentos às estilistas: Manuela Bequis, Padmini Tewaney e Paulie García.
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& REALISMO
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Representação por Sandra M. Stroparo¹
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VISUAIS
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A Realidade é coisa delicada,
de se pegar com a ponta dos dedos.
"
Paulo Henriques Brito
A
s vanguardas estéticas do início do século XX não são as inauguradoras da modernidade, mas talvez marquem o seu auge. Ou início da decadência como descreveriam alguns. Essa, no entanto, é uma questão interminável: para Harold Bloom estamos, desde o Romantismo, em plena Modernidade (e ainda, para ele, a pós-modernidade é uma distorção de conceitos). Aquém e além dessas discussões, talvez nos interesse aqui usar como referência o período das vanguardas como um apoio possível, temporal e estético, o lado de lá de alguma ponte que podemos tentar levantar. Exercício de convencimento: tomara que ela, a ponte, não caia, pra lá ou pra cá. Dentre as muitas características das vanguardas, gostaria de escolher duas para usar como referencial, alicerces para a tal ponte. A primeira delas seria o uso do, digamos, não-real, do não existente, da criação como elaboração de um universo que chama atenção para si próprio especialmente porque não temos, na realidade mundana, nada que se pareça
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com aquilo. Ou melhor: para alguns críticos, a arte de vanguarda não parece, num primeiro momento, criar algo que pretenda expor, ou representar, ou por vezes mesmo “comentar” a realidade. A vanguarda vai encontrar em si mesma, na sua nova linguagem inventada, seu próprio mundo. Durante o século XIX, aos poucos, a atenção dos artistas desloca-se do “o que” para o “como”, na construção de uma arte que vai possibilitar a existência, como auge ou decadência, das vanguardas. Como quer Marjorie Perloff, tratando de Rimbaud (inequívoca e constantemente reverenciado como o primeiro nome da vanguarda), “There is no real precedent for the anti-paysage of the Iluminations. The first thing to say about the “cities” evoked in “Les ponts” and “Métropolitain”, in “Parade” and “Promontoire”, is that, in the words of Rimbaud’s “Barbare”, “elles n’existent pas”. Não há, portanto, precedente real para a arte da vanguarda, ela evoca "o que não existe". A segunda característica pode ser justamente a mais oposta à primeira. Assim, um dos argumentos dos artistas
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Realismo e Representação do começo do século para as novidades defendidas por eles era justamente o de que o Realismo vigente era conservador demais, inexato demais, e escondia aquilo que o século XX não demoraria a afirmar (reafirmar?): qualquer representação revela uma perspectiva, um ponto de vista, algum lugar de onde se olha. Uma representação que dissesse algo sobre seu tempo, mais parecida com ele, e portanto em algum sentido mais real, ainda que por meios novos, era o que esses artistas também buscavam. E quem diria, hoje, que um quadro
cubista de Picasso, como o que ele fez uma vez de Marie Thérèse, “Mulher chorando”² , é menos real, nos diz menos sobre nós mesmos, que a Pietà de Michelangelo? Por que as proporções tão harmônicas e a perfeição dos traços (e a tridimensionalidade, já que se trata de uma escultura...) daquela Maria com seu filho morto no colo parecem dizer algo em uma língua familiar, mas com um sotaque antigo, reconhecível, mas anacrônico para o que somos hoje? E como esse outro rosto desfeito, todos os lados daquela cabeça desmontada e remontada com lágrimas de uma Marie Thérèse que
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VISUAIS
conhecemos menos que aquela outra Maria, parece nos dizer mais sobre a nossa própria tristeza? Virginia Woolf, no ensaio "Mr. Bennet and Mrs Brown", afirmou que “por volta de 1910 o caráter do homem havia mudado”³. A escritora escreve isso depois de ver os quadros de uma exposição de pós-impressionistas organizada por Roger Fry, apresentando pela primeira vez aos ingleses autores como Van Gogh e Cézanne. A idéia é dramática mas eficientemente moderna: a Arte, aquela Arte daquele momento, podia mudar o homem e oferecia portanto uma possibilidade de representação não
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sabemos se transformadora, mas capaz de revelar ao homem o que ele talvez já fosse sem o saber... Nada que já não tivesse sido anunciado antes. Rimbaud em seu projeto de vidência, de maneira bastante imprecisa e cifrada projetara para a arte e o artista modernos o papel da vanguarda da humanidade. Ainda alguns anos depois de Virginia Woolf, Ezra Pound insistiria nisso, numa frase tão conhecida quanto controversa: “o artista é a antena da raça”. Mas volte-se à observação de V. Woolf. Hiperbólica ou não, a verdade é que ela relata a natureza quase violenta de uma arte capaz de transformar o mundo justamente por revelá-lo de
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Realismo e Representação outra maneira, por um ponto de vista inesperado mas não menos possível – ou verossímil. O olhar de Van Gogh sobre o mundo, podemos dizer hoje, é entre outras coisas uma possibilidade, uma perspectiva diferenciada das outras tantas do seu próprio tempo, e até por isso incompreendida pelo seu próprio tempo. Roger Fry defendia a ideia de que esses pintores trouxeram emoção ao impressionismo, sendo isso o que faltava para a pintura que já tinha descoberto a luz. Talvez possamos afirmar que o “Os comedores de batata” são um quadro capaz de nos dizer mais sobre camponeses
pobres comendo umas poucas batatas, plantadas e colhidas por eles mesmos, do que algum quadro que fosse mais objetivamente “fiel” a uma situação como aquela. Poderíamos começar dizendo que o próprio tema já era inovador mas estaríamos errados. O Realismo, como escola de pintura, já com Courbet havia retratado pobres trabalhadores braçais em ação e o realismo inglês já pintara sua Londres dickensianamente miserável. Assim, não estava na escolha temática o que ia abalar "o caráter do homem”, mas na forma como a representação, qualquer que fosse, se dava. Com maçãs, alguns auto-retratos e uma montanha, Cézanne muda nossa maneira de olhar tanto para as maçãs como para o resto das coisas do mundo. A arte do começo do século XX deixa, definitivamente, de ser a beleza (clássica?) a ser observada e repetida e idealizada, para assumir o papel de agente. Mas é claro que esse não será um papel homogeneamente cumprido. Durante todo o século XX a arte passou por vários tipos diferentes de realizações que, em sua maioria, nascem das permissões abertas pelas vanguardas e afins. As artes plásticas revelam muitas dessas mudanças importantes, do expressionismo ao expressionismo abstrato, da pop art à arte da performance, todas são opções de representação que revelam, em última análise, uma compreensão também particular do que “é” a arte.
¹ Professora da Universidade Federal do Paraná, tradutora. ² http://www.tate.org.uk/art/images/work/T/T05/T05010_10.jpg ³ "Mr. Bennett and Mrs. Brown" in: WOOLF, Virginia. The Virginia Woolf reader. New York/London/San Diego: A Harvest Book, 1984
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A EstĂŠtica do
Cotidiano
por Vinicius Ferreira Barth
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VISUAIS
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Pay attention,
the world’s gonna tell you about itself.
"
Joel Meyerowitz
P
raticamente não há quem não seja, hoje, um fotógrafo.
Em um tempo de contradições tecnológicas, em que a fotografia digital matou sem piedade o rolo de filme, que por sua vez renasceu como uma fênix nas mãos dos retrôs e dos Lomos e que hoje divide território com celulares e Instagrams, é difícil definir que espaço a fotografia ocupa dentro de uma sociedade que consome,
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acima de tudo, imagens. Contraditório? Talvez não. A insaciabilidade de uma época que valoriza e devora o Novo (see – like – share – next), mesmo que esse Novo seja um evento do passado revisto em condição de entretenimento (onda Retrô?), parece jogar uma nova luz sobre o pensamento fotográfico. Produz-se fotografia massivamente, e quase que exclusivamente em termos de consumo e diversão. Mais do que suscitar um pensamento (estético, artístico ou social), mais vale conquistar ‘curtidas’, e a fotografia digital do nosso tempo, por conseguinte, tornou-se a fotografia da efemeridade, do descarte, muito diferentemente da ideia de conservação simbolizada pelos volumosos álbuns de fotos de férias ou de casamentos, ou, simplesmente, pela impressão em papel. Poeiras e imagens desbotadas, símbolos materiais de outros tempos. Como, então, explicar o Retrô e o enorme gosto por aplicativos com filtros que deixam suas fotos com um gostinho de 1975? Como explicar as câmeras Lomo, analógicas e de plástico, antagonistas conceituais e existenciais dos canhões
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A Estética do Cotidiano tecnológicos Nikon, Canon, Sony, etc.? É difícil resumir. Talvez tudo seja um esforço em busca do diferente, do ‘like’ pela sensação de originalidade, pelo cool da “Retrografia”. Mas ainda deixo a questão em aberto. Nosso tema em si já é anacrônico o suficiente. Com tanta gente fazendo fotos em tantos lugares, o que significa Fotografia de Rua? (com letras maiúsculas = termo consagrado. Anacronismo, desuso, atividade plena?). Uma diferença clara estaria posta em comparação com a fotografia instantânea de redes sociais: na mesma proporção em que socialmente desejamos notoriedade e atenção, o “fotógrafo de rua” (encaixado nesse gênero já consolidado) pouco se mostra. Explora menos a sua própria imagem que o seu olhar, expõe menos do que absorve. Esse indivíduo se comporta como um filtro particular de leitura e interpretação do mundo. Essa tentativa de compreensão também se mistura com a interferência dele próprio sobre o que vê. Uma fotografia nunca é um retrato fiel da realidade, mas uma composição de elementos agregados pelos olhos do fotógrafo. Daí pode-se partir do movimento imperceptível de CartierBresson à abordagem quase predatória de Bruce Gilden, e a Fotografia de Rua voltase ao seu autor e se torna um retrato dele mesmo. O fotógrafo também é visto pelo mundo que ele registra, ao mesmo tempo em que não vemos esse mundo senão pelos seus olhos. E num tempo em que tantos fotografam, já existindo um cânone ‘street’ tão bem estabelecido (seja em Nova Iorque, Paris ou Hong Kong), por que se fazer Fotografia de Rua? Alguns diriam ser uma atividade anacrônica, pouco de acordo com o amplo domínio que têm as pessoas sobre aparatos fotográficos; ou seja, as pessoas já se veem constantemente, sem a ajuda de um fotógrafo-mediador-intrometido. Em preto e branco ainda? Só se for pra tirar uma onda Retrô. Não obstante, ainda se faz. Por que esse tipo de fotografia ainda existe?
Talvez o impulso de interpretar o mundo e a gente ao nosso redor ainda seja grande. Talvez a fotografia do cotidiano e das emoções genuínas nos ofereça um material tão literário quanto qualquer obra literária. A diferença é o grau de improbabilidade, onde não se sabe que protagonistas surgirão na próxima esquina ou que drama se presenciará (ou não) no dia seguinte. Desse ponto de vista, o fotógrafo é um diretor que carrega um palco nas mãos, e nesse palco é capaz de reunir num milésimo de segundo atores que nunca tiveram nem terão nada em comum entre si, a não ser aquele momento infinitesimal de protagonismo dramático. O mundo constantemente nos oferece cenas e personagens perfeitamente dramáticos ou cômicos, mas nem sempre estamos preparados para vê-los. Isso quer dizer que fotografias ‘históricas’ ou ‘memoráveis’ estão em todos os lugares, sendo formadas e deformadas nesse fluxo temporal incessante. Apenas uma quadra, alguns metros ou mesmo alguns segundos podem separar o fotógrafo daquilo que ele mais procura quando varre as intermináveis ruas da sua cidade: significado. Por isso, seja em Nova Iorque (a Meca, por seu ‘crazyness’, pela vida abundante que flui e beira o nonsense), seja em Tóquio ou em Buenos Aires, o tema desse gênero segue o mesmo. Mas o resultado nunca é igual, como nunca são iguais os olhares e as compreensões. É interessante notar como a necessidade da Fotografia de Rua segue existindo, seja ela produzida em filme ou em um tablet, e muitas vezes nem sequer sabemos para quem mostrá-la. Talvez seja apenas para nós mesmos, em um modo único e anacrônico de entender o nosso próprio olhar e o meio que nos envolve. Deslocamos do cotidiano o próprio cotidiano e o resignificamos. Visto sob os olhos corretos, qualquer mundo é estético o suficiente.
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INTERROGATร RIO EM VIDEO
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nterrogamos o poeta, professor e tradutor Guilherme Gontijo Flores. E entre versos que se perdem na cabeรงa e tribos de poetas vivendo na era da internet, ele nos fala sobre o seu livro de estreia, Brasa Enganosa (ed. Patuรก, 2013).
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Interrogando Guilherme Gonjito Flores
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