Cambuci

Page 1


TERR A DA GENTE

38

3

Flora brasileira

3

paulista de O cambuci ficou s贸 no nome do bairro, em S茫o Paulo, mas quem conhece o sabor deste fruto da Mata texto

AmAndA Pimentel


TERR A DA GENTE

39

silvestre silva

tradição Atlântica quer trazê-lo de volta para os quintais, as ruas e, sobretudo, para as mesas brasileiras


T E R R A D A G E N T E | f lora bra silei ra

C 40

aminhar sob o sol entre a Chácara da Glória e o Sítio do Tapanhoim, à beira do riacho Cambuci, na Capital paulista dos velhos tempos, costumava exigir uma pausa à sombra de uma árvore. Com o passar dos anos, o riacho que emprestou seu nome de uma daquelas árvores também batizou o bairro e algumas das antigas propriedades e logradouros. “São Paulo era uma cidadezinha com ares do interior, muito arborizada e com variedade de pássaros. Como tradição, os membros das famílias italianas sentavam-se todos em suas portas, principalmente aos sábados e domingos, para conversar com os amigos. As crianças jogavam bola nas ruas de paralelepípedo, pois havia poucos automóveis transitando”, conta André Vinicius Pires, consultor em tecnologia da informação e redator da Revista do Cambuci. O bairro continua relativamente tranqüilo e alguns moradores até mantêm o hábito de sair à calçada para conversar com os vizinhos, embora a proximidade do centro metropolitano cobre seu preço no tráfego agitado das vias principais e na disponibilidade reduzida para o batepapo. Hoje já não é tão fácil desfrutar as árvores frondosas das ruas ou mesmo dos quintais. O cenário mudou e os mais novos não conhecem a espécie que deu nome ao lugar onde moram, o cambuci (Campomanesia

sombrA boA O cambucizeiro é um arbusto frondoso que chega a 5 metros de altura e oferece, além da sombra, um fruto (no recorte) com um formato que lembra pote indígena ou disco voador


tangueiras... Mas isso só durou até a década de 1980, como relata André Pires. A partir daí não se via mais a maioria dessas árvores no bairro e dos cambucizeiros não restou nem a sombra. O engenheiro agrônomo Célio Kersul, professor e pesquisador de frutas tropicais e exóticas, sustenta a hipótese de o nome do bairro ter outra origem, pois cambuci também significa pote e o Largo do Cambuci já foi chamado de Largo do Pote. Seja como for, cambuci em tupi-guarani significa fruto de duas partes (caá = mato ou fruto, mbocy = dividido em dois) numa clara alusão ao formato da fruta – ovóide romboidal, conforme definem os técnicos, ou “um suposto disco voador perfeito”, como diz o fotógrafo Silvestre Silva. Esse formato é o mesmo de potes indígenas utilizados para armazenamento de água e para o enterro dos mortos. Da família Myrtaceae, o cambucizeiro é um arbusto endêmico da Mata Atlântica da região Sudeste. Ou seja, além de ocorrer naturalmente no bairro Cambuci, é uma espécie nativa “das regiões da floresta ombrófila densa (a floresta que ‘gosta de chuva’),

A devastação

é a maior

ameaça ao cambucizeiro

T E R R A D A G E N T E | f lora bra silei ra

silvestre silva

phaea). E como a fruta não chega aos supermercados e varejões, nem sequer distinguem o sabor do passado, tão presente na mesa de suas avós ou bisavós, seja como refresco nos dias quentes, como ingrediente da sobremesa ou, o mais comum, como geléia no café da manhã e no chá da tarde. André coleciona relatos de moradores do bairro sobre os tempos áureos. Segundo Waldir Espósito, maestro, saxofonista e repórter, na década de 1970 foram derrubadas muitas árvores e casas para abrir espaço para o processo de verticalização. “É o preço que pagamos pelo progresso e pela modernização”, lamenta. Maria Pazzini Germano, moradora do Largo do Cambuci há 82 anos, complementa: “durante minha adolescência as ruas eram todas de terra, existiam muitos lotes com vegetação, todas as crianças subiam nas árvores de cambuci para pegar os seus frutos, e suprir sua fome enquanto brincavam”. As floradas de novembro, belas e delicadas, anunciavam as frutas, cuja maturação só ocorre em maio. E os cambucizeiros não eram as únicas espécies nativas: a região do Cambuci abrigava ipês - a ma re los, jatobás, pi-

41


Fruta camaleão

T E R R A D A G E N T E | f lo ra b ra s i l ei ra

texto e foto

42

FernAndo KAssAb

A primeira vez que ouvi falar da fruta cambuci foi nos anos 1980, em casa de um amigo cuja avó preparava uma famosa torta, coberta com um doce da fruta. A receita estava na família há mais de meio século. Claro que fiquei morrendo de vontade de provar a especialidade dos Ribeiro, mas foi preciso esperar até esta edição da revista Terra da Gente (mais de 25 anos!) para conhecer e experimentar a fruta in natura, além de preparar a receita de geléia. Se o sabor extremamente ácido nos faz pensar duas vezes antes de comer um segundo cambuci, na panela sua transformação é fabulosa, a começar pelos aromas – ora goiaba, ora morango, ora figo. Combinado com o açúcar, a cada etapa da receita o cambuci muda de cor, textura e aparência – e para bem melhor – até se tornar um doce ou geléia de altíssima extração, cujo sabor lembra muito o do damasco. Como usei a fruta congelada, fiz uma receita de geléia cuja técnica nos remete à doçaria brasileira do Século 19, quando, a exemplo de Portugal, preparávamos nossos doces partindo de uma calda. Sugiro a mesma receita caso você a prepare com a polpa (sem a casca) congelada.

da floresta ombrófila mista (Mata de Araucárias), da floresta estacional semidecidual (matas mais secas do interior, com algumas espécies da Mata

OlhO-de-bOi cOm geléia de cambuci IngredIentes para a geléIa:

IngredIentes para o olho-de-boI:

preparo para a geléIa:

Atlântica), em São Paulo e Minas Gerais, na vertente da Serra do Mar que dá para o planalto em direção ao interior”, reforça Osny Tadeu de Aguiar, do herbário do Instituto Florestal de São Paulo (IF). “São todas regiões intensamente devastadas pela ocupação humana”. “Hoje, a Mata Atlântica, é um dos biomas mais ri-

cos e dos mais ameaçados de extinção do Planeta”, observa Márcia Hirota, diretora de gestão do conhecimento da Fundação SOS Mata Atlântica. “A Mata Atlântica é garantia de qualidade de vida para mais de 122 milhões de pessoas – 67% da população brasileira – que vivem e dependem da preservação da floresta para sobreviver”. Segundo o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica, elaborado pela entidade, com apoio do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), as florestas originalmente cobriam 83% do território


cascas da frutas que forem se desprendendo da polpa. Cozinhe por mais meia hora, sempre em fogo bem baixo, até a fruta ganhar um tom laranja vivo. bata com um mixer até alisar completamente a textura, e deixe apurar por mais meia hora. ou, se preferir, deixe a geléia com uma textura mais grossa, cozinhando sempre em fogo muito baixo.

PreParo Para o olho-de-boi: Coloque a farinha em uma vasilha funda e junte a manteiga T E R R A D A G E N T E | f lo ra b ra s i l ei ra

em pedaços. Trabalhe com as pontas dos dedos, até obter uma mistura com aparência e farofa grossa. Junte o açúcar e continue a trabalhar a massa delicadamente. Junte a água e amasse bem, até conseguir uma massa homogênea e elástica. Faça uma bola, envolva em filme plástico e refrigere por 15 minutos. aqueça o forno em 180 graus. Polvilhe a bancada com farinha de trigo e abra a massa finamente. Usando um cálice ou cortador, faça discos de 4 cm. Com uma medida também de 4 cm, mas vazada no meio, faça o mesmo número de aros de massa e coloque sobre os discos anteriores, formando uma

43

espécie de ninho. Coloque em assadeira untada e enfarinhada. asse até corar. Com uma colher de chá, coloque bocados da geléia nos olhosde-boi. sirva com café ou chá.

paulista, ou um total de 20.529.181 km2. Agora, de acordo com o último levantamento (2000-2005), restam somente 12,11% do bioma no Estado, ou 2.487.015 km2. É mais do que sobrou da área total de Mata Atlântica no Brasil, devastada em mais de 93%, mas é muito pouco para assegurar a sobrevivência em longo prazo de muitas espécies e ameaça colocar árvores de distribuição mais restrita – como o cambucizeiro – em risco de extinção. “A família Myrtaceae, composta por árvores e arbustos, constitui

o cambuci

é rico em

sais minerais,

óleos e vitamina C

uma das mais importantes famílias de angiospermas no Brasil. Abrange 23 gêneros e cerca de mil espécies,

com importância econômica quanto ao potencial medicinal, ornamental, comestível, condimentar e fornecimento de madeira”, continua Aguiar. Como outras mirtáceas, o cambuci possui rico valor nutricional em sais minerais, vitamina C e óleos essenciais. Mesmo maduro, o fruto mantém a cor verde, no máximo um pouco amarelada. É um grande atrativo para as aves, com sua polpa farta, aroma cítrico e sabor intenso. Ainda enriquece o cardápio alimentar da população e o conhecimento de sua composição química pode contribuir


A exploração

comercial

pode

incentivar T E R R A D A G E N T E | f lo ra bra s i l ei ra

o plantio

44

na complementação de tabelas de alimentos, na opinião de Maria Isabel Valillo, cuja especialidade é a caracterização físico-química de frutos e sementes na seção de silvicultura do IF. Os pesquisadores do instituto trabalham para conseguir melhores condições de armazenamento das sementes do cambucizeiro e, dessa forma, incentivam o plantio comercial ou seu uso em reflorestamentos. Ângela Maluf, pesquisadora da área de tecnologia em produção de sementes de espécies nativas no Instituto de Botânica de São Paulo, também estuda as sementes do cambuci, consideradas recalcitrantes, ou seja, não suportam o dessecamento e nem o armazenamento em baixas temperaturas. Graças ao seu trabalho, hoje já é possível conservar as sementes por 8 meses com 100% de germinação. “A ampliação do tempo de conservação das sementes permite o comércio e o escalonamento na produção de mudas durante todo o ano. Isso viabiliza a produção de sementes e mudas, tanto para reflorestamento de áreas degradadas como para a implantação de pomares comerciais, visando a exploração econômica


Camusy, camucy, camuci, camocim, camotim, as variações da grafia mudam conforme a referência histórica, mas há cambucis em muitos textos históricos, sejam frutas ou potes de usos diversos. Do mesmo modo, existem cerâmicas com o formato do cambuci na tradição de diversas etnias indígenas. algumas são mais arredondadas, outras angulosas, tem as decoradas, mas a maioria é simples e prática, bem adequada à função de carregar água, como convém aos utensílios de uso diário. Na obra Diálogos das Grandezas do brasil, de 1618, cuja autoria não é bem estabelecida, consta uma menção à função funerária de tais potes: “fuy com jente armada na mata do brasil aonde matarao alguns homens brancos, encontrar com hua cova a que o jentio da terra dava o nome de camucy, muito dina de considerasão”.

dos frutos na forma in natura, ou, na forma de polpa para sucos, sorvetes, doces, geléias e licores”, conclui a pesquisadora. No município de Rio Grande da Serra de Paranapiacaba, vizinho a Santo André, no ABC paulista, anualmente é realizada uma festa curiosa, o Festival Gastronômico do Cambuci. Os moradores apresentam suas receitas salgadas e doces à base de cambuci, num concurso de culinária com direito a pão de cambuci, manteiga de cambuci, mousses, tortas e empadas com broto de bambu e sorvetes. “O cambuci tornou-se uma espécie nativa ameaçada de extinção, não existe mais nenhuma árvore de cambuci no bairro. Recente-

mente através da Revista do Cambuci criamos um projeto para realizar um mutirão visando o plantio de mudas da espécie de árvores nativas na região”, comenta André Pires. Iniciativas assim talvez consigam trazer de volta este sabor tão peculiar à culinária brasileira, além de devolver aos caminhos paulistas um pouco da sombra outrora tão festejada. Afinal, não se pode deixar perder uma fruta mencionada até mesmo nas Cartas do Padre Manoel da Nóbrega (1561), escritas pouco depois da fundação da cidade de São Paulo (1554): “aqui vão tão bem marmeladas de ibás, cambucis, e araçás”.

onde comprar cambuci:

o sítio do bello, em Paraibuna (sP), comercializa diversas frutas nativas da Mata atlântica in natura (durante a safra) e em polpa (congelada), incluindo o cambuci. e também tem geléias e doces já prontos. os contatos podem ser feitos pelo telefone (11) 3664-7976, pelo e-mail contato@sitiodobello.com.br ou pelo site www.sitiodobello.com.br.

T E R R A D A G E N T E | f lo ra bra s i l ei ra

silvestre silva

belAs e deliCAdAs As flores do cambucizeiro, brancas e vistosas, de agosto a novembro, anunciam a abundância de frutos, que amadurecem em maio

45


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.