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O CINEMA DA CUMPLICIDADE
from Hitchcock
Heitor Capuzzo H
O termo suspense no cinema é utilizado popularmente para designar uma modalidade dramática que inclui, quase sempre, filmes tematicamente centrados em intrigas de espionagem, investigações policiais, assassinatos seriais, roubos minuciosamente planificados e outras formas de contravenções.
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Alfred Hitchcock foi denominado o mestre do suspense não exatamente por realizar filmes com essas temáticas, mas por compreender e demonstrar que o suspense não define por si uma modalidade dramática, mas uma instigante estratégia narrativa.
O suspense, segundo Hitchcock, seria atingido através do estabelecimento de um pacto com o espectador, permitindo que o mesmo tenha acesso com exclusividade a informações dramáticas desconhecidas aos personagens da trama.
O ritual de se assistir a um filme seria próximo ao de um elaborado jogo entre o diretor e o público, sendo fundamental que este último tenha a impressão de estar jogando em igualdade de condições.
Para tal, é necessário o estabelecimento e o cumprimento de estratégias dramáticas e, claro, o diretor precisa compartilhar estas regras a priori com o espectador para atrair o seu interesse nesse lúdico ritual.
Esse controle das informações dramáticas permite ao público especular sobre a narrativa, antecipando possíveis lances e desdobramentos. O conhecimento prévio das informações por parte do espectador e a familiaridade para com os personagens são condições essenciais para que se estabeleça essa impressão de coautoria nos possíveis rumos da narrativa.
Essas estratégias só funcionam se o espectador estiver muito envolvido com a proposta, os personagens, os conflitos e se sentir preparado para o acesso dramático aos próximos lances desse jogo sedutor.
Hitchcock aperfeiçoou esse mecanismo de ilusão de participação com rara maestria. Um de seus cuidados básicos foi não subestimar a inteligência do público. As tramas de seus filmes, apesar de complexas, são claras, passíveis de envolventes especulações e ao mesmo tempo apontam desdobramentos imprevisíveis.
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Em Disque M para matar (Dial M for Murder, 1954), o personagem central é um marido que, ao descobrir a infidelidade de sua esposa, resolve assassiná-la, não sem antes certificar-se que o seguro de vida dela tenha o seu nome como beneficiário.
Ao envolver em seu plano um antigo colega que se encontra vulnerável face à lei, o marido transfere a ação física do assassinato a este pobre diabo que se vê acuado frente à chantagem da qual é vítima. O personagem do marido continua inspirando o oposto da empatia, revelando-se cada vez mais desprezível ao olhar dos espectadores.
Ao acompanhar o ensaio minucioso do possível assassinato, a plateia tem acesso à mente precisa do marido. Se seus motivos não justificam o crime, o plano mostra-se viável e inteligente. Tudo indica um possível crime perfeito.
Aqui se podem apontar os cuidados que Hitchcock tem para com o refinamento das regras desse jogo que ele estabelece com o público. Seria pouco sutil apresentar o marido de forma sedutora e simpática. Seria um recurso indigno para um jogo que se pretende inteligente. É melhor deixar o público se familiarizar com esse assassino frio. A empatia dependará exclusivamente da vontade do público. Como inteligência ainda é um artigo raro na humanidade, esse vilão, aos poucos, revela-se um outsider cujo fascínio não provém dos clichês de seu comportamento, mas do refinamento de sua mente. Isso significa também que qualquer deslize da parte dele terá como consequência imediata a reprovação do público. É esperado dele nada menos do que a perfeição.
O ensaio do possível assassinato funciona como uma detalhada apresentação das regras do jogo. São demonstrados didaticamente cada etapa, gesto, intenção, assim como o futuro posicionamento e deslocamento espacial dos envolvidos na ação. A mente meticulosa do marido prevê também variáveis que permitem ao executante do assassinato opções em caso de alguma repentina mudança, não se descartando até a possibilidade de se abortar o plano proposto. É necessário que todos concordem com o fato de que esse plano tem grande probabilidade de ser concretizado de acordo com a previsão inicial. Nesse processo do ensaio, a empatia do público para com o personagem do marido começa a se manifestar.
Há também uma astuciosa estratégia dramática nessa trama. O marido não estará em cena acompanhando visualmente o assassinato. Mas o público sim. Começa aqui um complexo mecanismo de transferência e cumplicidade que Hitchcock soube explorar bem em sua filmografia. Mais do que tentar conquistar a empatia do público para com o assassino, Hitchcock coloca a plateia para substituir o marido durante o próprio ato do crime. O público agora se torna cúmplice desse diabólico mandante, seja ele o personagem do marido ou o próprio Hitchcock.
A essa altura, o espetáculo começa pra valer. Não há mais tempo para os ensaios e são muitos os detalhes a serem atentados. A ação tem o seu início. O público fiscaliza atentamente
as minúcias de cada etapa, com a mente revisitando o que agora parte do passado, prevendo a repetição de cada gesto já ensaiado.
Como a vida tem as suas regras, um repentino detalhe muda radicalmente o rumo dos acontecimentos. Ironicamente, o suposto executante do crime é morto pela suposta vítima. A mulher, ao final da sequência, encontra-se viva e consciente, embora atordoada com tudo o que acabara de vivenciar. Para o espectador, uma imprevisível reviravolta que anula a segurança conquistada anteriormente nos ensaios. Num jogo não basta conhecer as regras e prever a habilidade do oponente. É necessário estar preparado para surpresas que podem requerer experiência anterior. É necessário ter a sagacidade para o raciocínio e a pronta reação.
Se o público chegou a pensar que poderia se candidatar a mandante de crimes perfeitos, a reviravolta faz com que a cumplicidade para com o marido seja interrompida. Hitchcock agora demonstra para a plateia o porquê de ter optado por esse personagem como vilão. O marido rapidamente consegue interferir nos acontecimentos, implantando falsas provas que irão incriminar sua mulher como sendo uma suposta assassina que premeditara a morte daquele homem. Essa destilada maldade resgata, ironicamente, a empatia da plateia, pois mais uma vez representa o triunfo da inteligência frente ao amadorismo da mulher. Novamente o público é chamado a acompanhar esse marido psicótico e o faz de bom grado, pois se trata de um cinema da cumplicidade.
Aqui reside outra característica do suspense. Além do controle privilegiado das informações por parte da plateia, é necessário saber reagir com rapidez e sagacidade. Como os jogos de estratégia, as dificuldades são classificadas em níveis. Os impasses são cada vez maiores e inversamente proporcionais ao tempo disponível para as necessárias soluções.
O suspense se fortalece com as contrações temporais que se conflitam com o agravamento das circunstâncias. No caso do marido, é impressionante sua sagacidade ao repensar todos os detalhes da trama, adaptá-los às novas condições surgidas e arquitetar um encaminhamento que se apresenta melhor do que a solução originalmente planejada. Ele o faz num tempo extremanente curto, frente a uma pressão que indicava uma previsível derrota. Agora não se trata apenas de um crime perfeito, mas de um assassino genial.
Mas o jogo ainda não acabou. O público foi seduzido em demasia pela maestria daquela mente diabólica. Não há mais como jogar de igual para igual. Daí entrar em cena um novo personagem, sem qualquer ligação emocional com os fatos anteriores. Trata-se de um rival à altura do assassino. Dessa vez, a empatia da plateia ficará dividida durante o embate entre os dois personagens. Como num duelo justiceiro, o risco é grande e que vença o melhor.
Novamente a concentração é requisitada para o acompanhamento dos detalhes. Os personagens procuram reconstituir o que só o público testemunhou nos mínimos detalhes. Já que fora prematuramente protegido contra uma possível acusação de cumplicidade com o mandante do crime, agora o jogo cerebral reserva ao público o papel de membro do júri,
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podendo acompanhar na segurança da poltrona os novos embates. Ao perceber a supremacia do detetive, aos poucos a plateia irá revelar-se infiel ao marido, reproduzindo o mesmo comportamento de sua mulher.
Nesse embate vence não aquele que tiver a lei ao seu lado, mas o mais hábil e inteligente. Afinal, trata-se de um jogo. Mas os jogos não deixam impunes aqueles que os usufruem. Além do entretenimento sedutor, a plateia aprendeu também a fingir sua imparcialidade. Mas cuidado: o espírito travesso do mestre do suspense virá na madrugada puxar os pés daqueles que pensam dormir tranquilos. Toda cumplicidade tem o seu preço.
Hitchcock soube como aperfeiçoar estratégias para envolver intensamente o espectador no desenrolar dramático de seus filmes. É possível detectar suas influências em modalidades dramáticas diversas, como a comédia, o drama social, o western, a ficção científica, entre outras.
Quando a referência é Alfred Hitchcock, o termo “mestre do suspense” adquire um duplo sentido. Primeiro, qualifica a maestria com que o cineasta construiu sua filmografia. Segundo, faz justiça aos ensinamentos de seu legado frente à continuidade do próprio cinema. Hitchcock talvez seja o cineasta mais citado, estudado, analisado ou mesmo imitado, comprovando o quanto suas estratégias narrativas foram essenciais para transformar o espetáculo cinematográfico num ato de inteligência.
Heitor CaPuzzo é professor titular na School of Arts, Design and Media da Nanyang Technological University, em Cingapura. Foi professor titular na State University of New York – University at Buffalo e na Universidade Federal de Minas Gerais. Foi professor visitante na School of Cinematic Arts da University of Southern California, onde realizou seu estágio de pós-doutorado. Autor de diversos livros, dentre eles Alfred Hitchcock: o cinema em construção.