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AMAR HITCHCOCK

Amar Hitchcock1

Rogério Sganzerla H

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Concordo com o titular desta coluna quando com seu habitual sarcasmo observa que todo autor é um paranoico por natureza querendo que se escreva milhares e não somente dezenas de linhas sobre sua obra. Frequentemente, só o paradoxo informa, sobretudo quando se refere ao absurdo existencial (a palavra é: sem sentido), medo ao medo, terror em que está mergulhado até a medula dos ossos o mundo moderno. Necessárlo tratar com ironia, brincar com coisa séria (o estado político-policial por exemplo) até gozar com a cara do leitor – ou do espectador como tão bem fazia Hitch – por uma questão deselegância/ sobrevivência/ lógica/ higiene mental ou coisa que o valha – como quiser.

Perdemos o maior cineasta do mundo (o termo é diretor); vale a pena reprisá-lo? Sim, desde que se veja e se ame O homem errado (The Wrong Man,1957) com olhos livres e coração aberto. Eis uma comparação aparentemente gratuita mas inevitável e profunda sobre horror, tema do desespero e “gang” do medo contemporâneo, matéria-prima do caos (pode ser kaos com k como “ker” meu amigo Jorge Mautner...), prestidigitação dos meios de produção até violentação da obra de arte para criar uma consciência oposta à do terror, contra a intolerância conformista e o atraso, esteja onde estiver nesse universo concentracionário, antes que uma bomba “H” transforme nosso sistema solar em grão de areia ao Deus-dará da Via Láctea… a tempo? Efetivamente os grandes cineastas primam pela enunciação das questões e não sua resolução. Quem viu Os pássaros (The Birds, 1963) sabe disso.

Compare-se todo Hitchcock com um excelente exemplar da fase francesa, pós-mexicana, de Luis Buñuel, Cela s’appele l’aurore (1956). O delegado que recita versos católicos de Planchon enquanto tortura um inocente, a erupção do surreal no cotidiano e o exercício quase compulsivo da criminalidade (o tom é seco e o despojamento acentua o nonsense sem fantasia, posto nu por um olho que parece ser de um etimologista…) ativa um parentesco mental entre a fleuma britânica e a condição catalã… Identifique-se

1Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, de 23 de maio de 1980.

H

Psicose (Psycho, 1960) com A marca da maldade (Touch of Evil, 1958) de Orson Welles: ambos com Janet Leigh exibem estonteantes movimentos de câmera no claro escuro moral de um labirinto violentamente preto e branco, com intenso humor negro e relações sadomasoquistas. Relacione-se os dois mais importantes fracassos de bilheteria do mundo em 1960: Os pássaros e O processo (Le procès, de Orson Welles, 1962). A partir do apelo ao thriller, gênero aparentemente banal, mal com as sugestões do “cinemanegro” americano do após-guerra e com recursos de desdramatização pelo humor, pensam de forma ambígua sobre a graça e a culpa perdida no vigésimo século do inferno. Daí a teoria da assunção do “duplo” e transferência de culpa, conforme Claude Chabrol e Eric Rhomer antes de serem cineastas considerados péssimos imitadores ou subprodutos do mestre do “suspense”, é um passo. Além do mais,trata-se de três incríveis montadores, senhores absolutos dos nossos sonhos ou pesadelos em plano-flash ou plano-sequência, eles se dão bem em todas.

O plano curto (à média regular de 7 segundos cada) assinado por George Tomásini atinge o seu esplendor na fluência de Um corpo que cai (Vertigo, 1958) assim como a duração concreta de A idade do ouro (L’age d’or, 1930) inspirou o montador Godard a desmontar os preconceitos contra a descontinuidade, instituindo o faux-raccord expresso em corte seco, em movimento de imagem e som, no cinema moderno: a assimilação por Hitchcock em Hollywood nos anos quarenta do vanguardismo de Orson Welles, após as estranhas expulsões de Griffith e Stroheim da “usina de sonhos”, constitui propriamente, dentro da tradição de Meliès a John Ford, o caminho aberto ao talento e à competente diligência de um artesão que aos poucos aprimorou-se a ponto de se tornar o cineasta número um do Ocidente, alcançando já naquela década a supremacia de Suspeita (Suspicion, 1941), Sob o signo de Capricórnio (Under Capricorn, 1949) e Festim diabólico (Rope, 1948) até a obra-prima de humor negro, Pacto sinistro (Strangers on a Train, 1950, com Farley Granger) e consecutivamente Um corpo que cai, Intriga internacional (North by Northwest, 1959) (pré-James Bond mas muito melhor) ou seu oposto O homem errado. O classicismo dessa fase depura o vanguardismo irreverente, como o de Welles nos anos quarenta transforma a obsessão pelo plano-sequência (mais que uma linguagem, expressão do uno…) em um moto-contínuo às avessas (“decoupagem” equilibrada em torno de tempos mais estáveis e econômicos – sabe-se que Welles quase gastou metade do orçamento para rodar em uma só tomada de 3’15” a monumental introdução de A marca da maldade com uma grua tão inquieta quanto a de Psicose…) onde o sujeito do filme é o autor e o objeto do humor é o espectador que, numa relação expressionista, deve ser assustado, gozado e violentado do início ao fim do filme-objeto à base de 24 surpresas por segundo… sob a batuta de Bernard Herrmann…

Na verdade o cinema de hoje em dia é velhíssimo ao contrário da modernidade de ontem… “Quem é no momento? Roberto Benton, Woody Allen (fui ver Manhattan, achei do pior Godard porque difarçado em Bergman, vinte anos depois, e apesar de não detestar, não suportei mais que uma bobina…) Quem? São certinhos, mas quero ver daqui a alguns anos. Psicose é de 1960. Várias amigas minhas até hoje não usam cortina de chuveiro… Hitch

explica”, continua o crítico que ao meu ver conseguiu situar no cinema contemporâneo a diferença intemporal entre a genialidade e a mediocridade cíclicas. Então sonhar significa reprisar e amar, sem repetições, ser, ver, entender as grandes linhas do pensamento de uma sensacional triangulação que acaba de perder o seu vértice. H

nota do editor: Foram utilizados no texto os títulos dos filmes em português, em detrimento aos títulos originais. Estes passaram a figurar entre parênteses, com a data de produção e com o nome do diretor, quando não informado.E, em alguns casos, foi necessário efetuar algumas correções em títulos e data de produção.

(c) NBC Universal

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