Amar Hitchcock
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Rogério Sganzerla
H 329
Concordo com o titular desta coluna quando com seu habitual sarcasmo observa que todo autor é um paranoico por natureza querendo que se escreva milhares e não somente dezenas de linhas sobre sua obra. Frequentemente, só o paradoxo informa, sobretudo quando se refere ao absurdo existencial (a palavra é: sem sentido), medo ao medo, terror em que está mergulhado até a medula dos ossos o mundo moderno. Necessárlo tratar com ironia, brincar com coisa séria (o estado político-policial por exemplo) até gozar com a cara do leitor – ou do espectador como tão bem fazia Hitch – por uma questão deselegância/ sobrevivência/ lógica/ higiene mental ou coisa que o valha – como quiser. Perdemos o maior cineasta do mundo (o termo é diretor); vale a pena reprisá-lo? Sim, desde que se veja e se ame O homem errado (The Wrong Man,1957) com olhos livres e coração aberto. Eis uma comparação aparentemente gratuita mas inevitável e profunda sobre horror, tema do desespero e “gang” do medo contemporâneo, matéria-prima do caos (pode ser kaos com k como “ker” meu amigo Jorge Mautner...), prestidigitação dos meios de produção até violentação da obra de arte para criar uma consciência oposta à do terror, contra a intolerância conformista e o atraso, esteja onde estiver nesse universo concentracionário, antes que uma bomba “H” transforme nosso sistema solar em grão de areia ao Deus-dará da Via Láctea… a tempo? Efetivamente os grandes cineastas primam pela enunciação das questões e não sua resolução. Quem viu Os pássaros (The Birds, 1963) sabe disso. Compare-se todo Hitchcock com um excelente exemplar da fase francesa, pós-mexicana, de Luis Buñuel, Cela s’appele l’aurore (1956). O delegado que recita versos católicos de Planchon enquanto tortura um inocente, a erupção do surreal no cotidiano e o exercício quase compulsivo da criminalidade (o tom é seco e o despojamento acentua o nonsense sem fantasia, posto nu por um olho que parece ser de um etimologista…) ativa um parentesco mental entre a fleuma britânica e a condição catalã… Identifique-se
....................................................................................... Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, de 23 de maio de 1980.
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