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O PLANO-OLHAR HITCHCOCKIANO Luiz Carlos Oliveira Jr.
from Hitchcock
O plano-olhar hitchcockiano
Luiz Carlos Oliveira Jr. H
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Um dos planos mais famosos de Hitchcock é aquela grua que desce da parte mais alta do interior de uma mansão (onde ocorre uma festança) e chega até a mão de Ingrid Bergman, focalizando a chave que ela está trazendo em segredo e que será o objeto-pivô do ponto de virada da trama de Interlúdio (Notorious, 1946). O plano é literalmente um plongé, um mergulho na cena. A câmera vai da tomada geral ao plano-detalhe em um movimento preciso, decidido, enfático. Em meio a todas aquelas pessoas e todos aqueles objetos, a câmera sabe exatamente o que buscar. Ela seleciona, aproxima e indica para o espectador o objeto que mais importa naquele ambiente e naquele momento. Hitchcock conduz o olhar do espectador, dirige sua atenção para um ponto específico.
Em outro momento de Interlúdio, posterior à brilhante sequência da festa, uma xícara contendo café envenenado é oferecida à personagem de Ingrid Bergman, que ainda não desconfia que seus enjoos vêm sendo provocados por uma substância que o marido – já tendo descoberto que ela é uma espiã a serviço do governo americano – adiciona às suas bebidas. A câmera enquadra de perto a xícara de café e acompanha seu trajeto enquanto ela é servida. Depois, a fluência da cena é parcialmente quebrada por um enquadramento extravagante, para não dizer anômalo: a xícara, repousada sobre uma mesinha, aparece gigantesca em primeiro plano, interpondo-se entre os atores. Pela proximidade excessiva, esse objeto comum de todos os dias de repente se torna estranho, quase monstruoso. A xícara se põe ali como um elemento problemático da visão, um objeto que ressai do conjunto por uma súbita acromegalia. É como se Hitchcock exclamasse o que a personagem está prestes a descobrir (o café contém veneno!). O quadro destaca do cenário o elemento que indica o crime, a “mancha que precipita o olhar e provoca a ficção”1 .
Godard disse certa vez que existem dois tipos de cineastas: os que veem, permitindo que o olhar flane pelo espaço, e os que miram, fixando sua atenção num ponto preciso que lhes interessa. “Quando se dispõem a rodar um filme, o enquadramento dos primeiros é aéreo,
1Cf. Pascal Bonitzer, “Le suspense hitchcockien”, in Le champ aveugle: essais sur le réalisme au cinema. Paris: Éditions Cahiers du Cinéma, 1999. pp. 35-52.
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fluido (Rossellini); o dos segundos está calculado ao milímetro (Hitchcock)”2. Ao contrário de Rossellini, que deixa a câmera se guiar pelas coisas às quais se dirige, o olhar de Hitchcock marca a cada instante seu controle, seu poder, “sua capacidade cortante de enquadrar e de centrar, de desenhar por uma exacerbação ou uma exorbitância simbólicas um fragmento de mundo subitamente inchado por uma atenção humana”3. O plano hitchcockiano é dotado de uma força de indexação, de demarcação exata do seu objeto. Hitchcock não vê, ele mira.
Do ponto de vista de uma história das formas cinematográficas, seria preciso situar a origem do suspense hitchcockiano num momento anterior à própria existência da obra de Hitchcock (que começa por volta de 1925). A exploração narrativa do primeiro plano e da montagem, necessária para a consolidação dos procedimentos que estariam na base da mise en scène hitchcockiana, remonta aos anos 1910, sobretudo à sua segunda metade, período em que as metragens se alongam e as técnicas se complexificam. Antes disso, o cinema contava suas histórias por meio de uma sucessão de “tableaux” que consistiam em cenas condensadas num bloco de espaço-tempo fechado, captado a partir de um único posicionamento de câmera frontal e fixo. Herdeira menos da pintura do que de uma certa tradição de espetáculo cênico do século XIX (que incluía o teatro de boulevard, a pantomina, as esquetes de mágica, os museus de cera), a estética do tableau funcionava como uma versão impressa do palco teatral, cada tableau constituindo no interior do filme uma pequena cena autônoma que representava com mais ou menos eficácia e clareza um episódio da narrativa. As cenas se apresentavam em bloco, em plano de conjunto. Com a “virada griffithiana”, elas passarão a se apresentar em pedaços. É a passagem do tableau ao plano, e da mera aglomeração ou acumulação de registros aos efeitos de montagem propriamente ditos. A decupagem técnica, isto é, a fragmentação da cena em planos, introduz no cinema um “princípio de economia narrativa”: cada plano deve mostrar um aspecto necessário ao andamento da narrativa, e deve fazê-lo no tempo adequado; o cineasta deve identificar em cada cena os elementos mais importantes, depois isolá-los e organizá-los em uma sucessão de planos seguindo uma certa lógica e uma certa hierarquia. Através da variação do ponto de vista, entra em jogo uma estética do centramento: “o espaço do plano não é mais um campo indiferenciado, ele é ao contrário hierarquizado, estratificado, centrado sobre um objeto, uma figura, um evento”4. Diferentemente do tableau primitivo, que comportava um certo grau de confusão e ambiguidade, o plano é pensado de modo a dirigir, a centrar a atenção do espectador. Ele deve ser imediatamente decifrável, poupar o observador de todo esforço de interpretação da imagem e, principalmente, não distraí-lo do essencial. “É o começo do que Hitchcock chamaria de ‘direção de espectador’” (Siety).
A mestria de Hitchcock consistirá justamente em levar ao extremo esse poder de centralização, essa arte de coordenação da atenção visual. O suspense hitchcockiano nasce de um olhar que desafia sua própria acuidade, sua capacidade de visão. Numa cena de Janela
2“Bergmanorama”, Cahiers du Cinéma nº 85, julho de 1958. 3Cf. Jacques Aumont, “Le plan”, in Cahiers du Cinéma, número especial “Le siècle du cinéma”, novembro de 2000. 4Emmanuel Siety, Le plan, au commencement du cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma/Scérén-CNDP, 2001. p. 58.
indiscreta (Rear Window, 1954), a genial enfermeira e massagista de Jeff (James Stewart), interpretada por Thelma Ritter, diz que sabe muito bem que ele ficou a noite inteira em claro bisbilhotando os demais apartamentos, pois seus olhos estão vermelhos e inchados – olhos inflamados, sobrecarregados pela atividade excessiva. Em Hitchcock, a visão está sempre em excesso; o olhar não se contenta com as aparências, quer ver o que se trama por trás delas. Nenhum plano de Hitchcock traz apenas a natureza surpreendida em um de seus aspectos privilegiados. Tampouco se trata da pura restituição luminosa de um evento selecionado em meio ao conjunto das aparências do mundo visível. O acidental e o aleatório não têm muito espaço aqui – a não ser que sejam um “acidental” e um “aleatório” perfeitamente calculados e regidos. Nenhuma imagem hitchcockiana é gratuita ou provém de um paraíso imaculado, nenhum plano é inocente. Há sempre a presença de um olhar consciente de suas escolhas, olhar que decupa a cena guiado por uma intenção, um desejo que, mais cedo ou mais tarde, se converte em obsessão, em ideia fixa.
Toda imagem hitchcockiana é já uma interpretação do mundo – um plano-olhar que esquadrinha e analisa a realidade (uma realidade, note-se, já devidamente filtrada e “corrigida” pela Ideia). Não à toa, a especulação sobre as aparências é uma das molas propulsoras dos enredos de Hitchcock. O que faz o personagem de James Stewart em Janela indiscreta senão interpretar, de uma posição imóvel, tal qual um espectador de cinema, as aparências que se lhe oferecem à visão? No decorrer do filme, ele consegue provar para a namorada que suas suspeitas em relação ao homem do apartamento da frente procediam, ou seja, ele consegue provar que interpretou corretamente a cena observada numa das madrugadas em que ficou vigiando os vizinhos (o homem era um assassino e havia matado a esposa). Mas o velho clichê nunca se provou tão verdadeiro quanto no cinema de Hitchcock: “as aparências enganam”. Basta ver a tragédia de um outro personagem de James Stewart, o Scottie de Um corpo que cai (Vertigo, 1958). Ao se apaixonar por Madeleine (Kim Novak), o detetive Scottie se faz prisioneiro de uma ilusão, se deixa seduzir por um simulacro. Quando percebe, já é tarde. Uma má interpretação, portanto, pode ser fatal. Não se deve confiar inteiramente nas aparências. Deve-se saber olhar através delas, ou independentemente delas. Eis um dom muito estimado na obra de Hitchcock, rendendo algumas de suas passagens mais belas. Um exemplo é a cena de Sabotador (Saboteur, 1942) em que Barry, jovem trabalhador acusado injustamente de um ato de sabotagem e perseguido por todas as autoridades do país, refugia-se na casa de um senhor que é cego. Quando a sobrinha do gentil senhor chega para visitá-lo, ela vê as algemas de Barry, nota que ele é o homem procurado pelas autoridades e imediatamente tem o ímpeto de entregá-lo à polícia. Entretanto, seu tio a impede, afirmando que Barry é um rapaz bom e não pode ter cometido crime algum. Ele diz que sua condição de cego lhe permite ver “coisas intangíveis”, como a inocência. “Ele possui a visão interior.”5 Em Quando fala o coração (Spellbound, 1945), ocorre algo parecido: a psicanalista interpretada por Ingrid Bergman em nenhum momento deixa de confiar na inocência do personagem de Gregory
5Jean Douchet, Hitchcock. Paris: Ed. Cahiers du Cinéma, 1999, 2006, p. 232.
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Peck, que todos acreditam ser um assassino esquizofrênico. É como se ela pudesse enxergar a alma do homem por quem se apaixonou, a luz que se esconde em seu interior.
Os reais assuntos dos filmes de Hitchcock, aliás, nunca estão na superfície (nunca estão na aparência). Eles ocupam uma espécie de estofo secreto, um arcabouço subterrâneo. A trama é pretexto para a insinuação de um tema mais profundo, que se dissimula nas artimanhas da intriga. Um thriller político de espionagem pode ser apenas o disfarce de um filme sobre um relacionamento conjugal que está frio e precisa se reaquecer (Cortina rasgada/ Torn Curtain, 1966). Um suspense sobre uma moça que descobre que seu tio é um serial killer pode ser na verdade um drama que aborda a sordidez escondida sob o retrato impoluto da família convencional (A sombra de uma dúvida/ Shadow of a Doubt, 1943, que tudo indica tratar-se de um filme sobre o incesto). Debaixo da superfície dos eventos vive um outro filme – o filme que realmente importa. O conteúdo visual de cada plano de Hitchcock é supradeterminado por um conteúdo outro, que não aparece, não vem à tona, age em silêncio. O que equivale a dizer que as próprias narrativas de Hitchcock, e não apenas os personagens, agem sob as ordens de um Inconsciente. Toda imagem hitchcockiana tem seu correspondente na esfera oculta do pensamento insondável. Há uma camada de imagens que é anterior a tudo aquilo que estamos vendo e que, embora permaneça encoberta, é a parte mais determinante dos filmes. Os acontecimentos narrativos são guiados por essa imagem anterior, que não é possível captar pelo olhar, pois não foi transcrita na matéria do mundo visível. Somente o pensamento pode buscar tal imagem, somente em espírito é possível tocá-la. A única visão que se lhe aplica é a visão interior. Enxergar com a mente e não com os olhos. O verdadeiro filme deve se construir na mente do espectador.
Hitchcock admite para Truffaut, no conhecido livro-entrevista6, que toda a dinâmica de Janela indiscreta se funda no “efeito Kulechov”, ou seja, na justaposição de um plano do rosto do ator, sempre com a mesma expressão, e diferentes contraplanos que mostram diferentes situações. As cenas se articulam assim: o primeiro plano mostra James Stewart olhando pela janela, o segundo mostra o que ele está vendo e o terceiro, sua reação. A cada nova articulação, um novo sentido se atribui à expressão do ator, que, todavia, manteve-se inalterada. Em outras palavras, é a montagem que cria o sentido, o filme se constrói na mente do espectador a partir de um material totalmente desconectado de sua significação primeira.
Se o suspense hitchcockiano deriva da articulação (arbitrária) do olhar com seu(s) objeto(s), nada mais natural, então, que o cerne de sua mise en scène seja questão de uma extraordinária orquestração dos raccords de olhar e do plano-ponto-de-vista. Um dos procedimentos de base do cinema de Hitchcock, o plano-ponto-de-vista – “um plano em que a câmera assume a posição de um sujeito de modo a nos mostrar o que ele está vendo”7 – pouco a pouco vai se tornando sua estrutura dominante e, mais ainda, o próprio motor das ficções. Em filmes
6Hitchcock/ Truffaut: entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 7Edward Branigan, “O plano-ponto-de-vista”, in RAMOS, Fernão Pessoa (org.), Teoria Contemporânea do Cinema – Volume II: Documentário e narratividade ficcional. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005. p. 251.
como Um corpo que cai, Os pássaros (The Birds, 1963), Janela indiscreta, Frenesi (Frenzy, 1972) ou Psicose (Psycho, 1960), o ato de olhar é em si o motivo, o “tema” da narrativa, além de ser o ponto nodal tanto da decupagem quanto da trama. O olhar produz a ficção.
A primeira cena de Os pássaros diz tudo: Melaine (Tippi Hedren) atravessa uma rua no centro de São Francisco e, ao ouvir o som de um pássaro (logo após receber o assovio flertante de um rapaz que passa pela calçada), ergue o pescoço na direção do céu, onde avista um bando de aves selvagens voando em círculo. É o primeiro plano-ponto-de-vista de Os pássaros, e desde já o olhar de Melaine se apresenta como o desencadeador da cólera irracional das forças primitivas. Todas as cenas em que ocorrerem os ataques dos pássaros serão quase que inteiramente articuladas em torno do olhar de Melanie. Na grande cena do filme, os pássaros atacam um posto de gasolina em frente ao restaurante de Bodega Bay. Melanie observa, da janela do restaurante, o caos que se instala quando um homem deixa cair um fósforo no chão encharcado de gasolina e um incêndio começa. É então que se dá uma rápida sucessão de planos alternando entre o rosto de Melanie e o fogo se propagando por um filete de combustível. Nesta breve sequência de planos, cada tomada de Melanie mostra seu rosto paralisado em uma pose diferente. Ela vai virando o pescoço da esquerda para a direita do quadro, o percurso do seu olhar correspondendo ao trajeto do fogo que atravessa toda a extensão do posto até atingir a bomba de gasolina e provocar uma enorme explosão. Melanie, boquiaberta e com os olhos arregalados, parece empalhada nesses planos; ela não se mexe, apenas olha fixamente, em pose estática. Hitchcock de certa forma abstrai o olhar de Melanie do resto de seu corpo, do resto do universo, transforma-o numa entidade autônoma. Cada close-up de Tippi Hedren funciona como a reverberação em imagem do que ela havia dito no começo da cena, alertando para a chegada dos pássaros: “Olhem!”. Esse imperativo, agora, ganha seu verdadeiro sentido dentro do filme, que é menos de alerta do que de ataque. A cada olhar de Melanie, o fogo se intensifica e agudiza sua investida contra os homens. É o próprio olhar da personagem quem põe fogo no mundo.
Após a explosão, vem um dos planos mais analisados pelos exegetas de Hitchcock (por isso mesmo, não me deterei muito sobre ele): o superplano geral feito do ponto mais elevado e central da abóboda celeste, mostrando Bodega Bay incendiada – o plano-ponto-de-vista do Criador, como já foi tantas vezes definido. Esse plano inscreve no filme, não sem uma ponta de ironia, o lugar do próprio diretor. Pois Hitchcock, embora não chegue a impor um único significado estrito para o mundo (seria negligenciar os inúmeros interstícios dos seus filmes), toma posse do universo diegético, torna-se o deus-metteur en scène de um mundo que não obedece senão às leis de organização mental de seu criador. Em alguns momentos, ele chega a inserir na cadeia narrativa o sinal da presença desse mastermind que tudo organiza, como na cena de Disque M para matar (Dial M for Murder, 1954) em que, enquanto o vilão explica como deverá se dar o que ele acredita se tratar de um crime perfeito, a câmera se posiciona no teto do cenário e filma tudo de cima, em acentuado plongé, como a incorporar o olhar do mestre que detém controle integral sobre todos os detalhes de um plano a ser executado exatamente da forma como foi pensado.
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É conhecida a história de que Hitchcock já chegava no set com o filme todo pronto na cabeça. A filmagem era uma etapa necessária para materializar uma ideia, um desenho perfeito que ele trazia na mente. O crítico francês Jean Douchet conta, em sua crítica de Psicose, que assistir ao filme foi uma experiência de déjà-vu, pois o que ele via na tela correspondia exatamente àquilo que Hitchcock havia lhe contado com riqueza de detalhes numa entrevista no ano anterior, quando o filme ainda era apenas um projeto. O filme e a ideia que o precedera praticamente se equivaliam.
Todo filme de Hitchcock é o “remake” de uma Ideia que, uma vez posta em obra, ganha o imaginário coletivo e pede constantemente sua reatualização. Não espanta, portanto, que seus principais motivos tenham sido retomados tão exaustiva e obsessivamente por diversos cineastas e videoartistas, de Brian De Palma a Chantal Akerman, de Douglas Gordon a Larry Cohen, de Pierre Huyghe a Gus Van Sant. As imagens hitchcockianas parecem naturalmente destinadas à repetição, e aqui já se insinua uma outra história, a história das eternas reapropriações a partir de Hitchcock, do eterno retorno de suas imagens.
luiz Carlos oliVeira Jr. é crítico de cinema e doutorando na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com pesquisa sobre a história dos estilos cinematográficos a partir de Hitchcock e seus herdeiros.