O plano-olhar hitchcockiano Luiz Carlos Oliveira Jr.
H 41
Um dos planos mais famosos de Hitchcock é aquela grua que desce da parte mais alta do interior de uma mansão (onde ocorre uma festança) e chega até a mão de Ingrid Bergman, focalizando a chave que ela está trazendo em segredo e que será o objeto-pivô do ponto de virada da trama de Interlúdio (Notorious, 1946). O plano é literalmente um plongé, um mergulho na cena. A câmera vai da tomada geral ao plano-detalhe em um movimento preciso, decidido, enfático. Em meio a todas aquelas pessoas e todos aqueles objetos, a câmera sabe exatamente o que buscar. Ela seleciona, aproxima e indica para o espectador o objeto que mais importa naquele ambiente e naquele momento. Hitchcock conduz o olhar do espectador, dirige sua atenção para um ponto específico. Em outro momento de Interlúdio, posterior à brilhante sequência da festa, uma xícara contendo café envenenado é oferecida à personagem de Ingrid Bergman, que ainda não desconfia que seus enjoos vêm sendo provocados por uma substância que o marido – já tendo descoberto que ela é uma espiã a serviço do governo americano – adiciona às suas bebidas. A câmera enquadra de perto a xícara de café e acompanha seu trajeto enquanto ela é servida. Depois, a fluência da cena é parcialmente quebrada por um enquadramento extravagante, para não dizer anômalo: a xícara, repousada sobre uma mesinha, aparece gigantesca em primeiro plano, interpondo-se entre os atores. Pela proximidade excessiva, esse objeto comum de todos os dias de repente se torna estranho, quase monstruoso. A xícara se põe ali como um elemento problemático da visão, um objeto que ressai do conjunto por uma súbita acromegalia. É como se Hitchcock exclamasse o que a personagem está prestes a descobrir (o café contém veneno!). O quadro destaca do cenário o elemento que indica o crime, a “mancha que precipita o olhar e provoca a ficção”1. Godard disse certa vez que existem dois tipos de cineastas: os que veem, permitindo que o olhar flane pelo espaço, e os que miram, fixando sua atenção num ponto preciso que lhes interessa. “Quando se dispõem a rodar um filme, o enquadramento dos primeiros é aéreo, ....................................................................................... Cf. Pascal Bonitzer, “Le suspense hitchcockien”, in Le champ aveugle: essais sur le réalisme au cinema. Paris: Éditions Cahiers du Cinéma, 1999. pp. 35-52. 1