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O BEM, O MAL E O FEIO NA OBRA DE ALFRED HITCHCOCK

Marcelo Miranda

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Na histórica conversa entre François Truffaut e Alfred Hitchcock publicada em livro1, o crítico e cineasta francês descreve ao diretor inglês a personalidade do protagonista de O mensageiro do diabo (The Night of the Hunter, 1955), de Charles Laughton. Neste filme, o assassino vivido por Robert Mitchum tem, tatuadas nas mãos, as palavras “bem” e “mal”, algo definidor de sua personalidade. Nisso, Hitchcock retruca: “Poderíamos transpor nosso slogan ‘quanto mais perfeito for o vilão, mais perfeito será o filme’ para ‘quanto mais intenso for o mal, mais ferrenha será a luta e melhor será o filme”’.

Todo o cinema de Alfred Hitchcock será, de fato, a batalha das duas instâncias tatuadas nas mãos de Robert Mitchum em O mensageiro do diabo. Os protagonistas dos principais filmes do diretor estarão sempre pendendo de um lado a outro, não apenas no seu próprio íntimo, mas especialmente nas realidades que os cercam. Ora um personagem precisa conviver com o mal, ora outro é perseguido pelo bem, ora ele mesmo guarda dentro de si um ou os dois elementos. É a partir desses conflitos que Hitchcock trilha um desenvolvimento artístico que culminará em alguns dos melhores momentos já exibidos em telas de cinema.

O elemento mais apontado como a marca autoral do diretor é a obsessão em colocar um inocente sendo perseguido como se fosse culpado. Hitchcock gostava disso a ponto de abrir mão da ficção pura e reconstituir, detalhe a detalhe, a história verídica narrada em O homem errado (The Wrong Man, 1957). Porém, nunca foi assim tão simples. Não bastava ao propalado mestre do suspense narrar as agruras de um coitado sendo caçado por forças superiores2. Havia, em cada filme e em cada repetição de estruturas muito semelhantes entre si, definições em geral bastante claras sobre a natureza moral dos personagens. Nunca foi “hitchcockiano” esconder do público as reais intenções de quem surgia em cena.

1Hitchcock/ Truffaut: entrevistas, edição definitiva [tradução de Rosa Freire D’Aguiar] - São Paulo: Companhia das Letras, 370 páginas, 2004. 2O homem errado reconstitui a trajetória de um músico de Nova York que, em 1952, foi preso e acusado de uma série de assaltos na região próxima à sua casa. Sua captura se deveu ao reconhecimento por uma testemunha, algo que posteriormente se revelou enganoso.

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Alfred Hitchcock sempre se mostrou essencialmente um cineasta sincero – tão sincero que se martirizava por tapear o espectador num falso flashback mostrado em Pavor nos bastidores (Stage Fright, 1950).

Daí que, ao longo de dezenas de filmes, ele trabalhou a natureza e o instinto das mais variadas maneiras para criar figuras psicologicamente complexas, por mais “inocentes” que elas fossem. Mesmo O homem errado, com toda a obsessão pelo tratamento realista, tinha em Henry Fonda a figura trágica do inocente que, ao ser preso por engano, questiona-se se talvez não mereça mesmo estar ali. Quando ele sair e se deparar com a esposa num manicômio, a culpa vai corroê-lo: ele era isento dos crimes, mas, justamente devido a isso, provocou a destruição da mulher. O bem se torna mal por puro descontrole das circunstâncias.

Intriga internacional (North by Northwest, 1959) é outro título sempre referenciado quando se pensa na questão do culpado versus inocente na obra de Hitchcock. Em cena há Roger (Cary Grant), executivo teimosamente perseguido por homens misteriosos que insistem em misturar sua identidade com a de um tal George Kaplan. Como o homem errado, Roger é confundido por forças superiores a ele, com a diferença de que este protagonista será bem mais ativo e dinâmico, a ponto de incorporar em si mesmo a figura com a qual é vinculado. Aqui, portanto, o bem e o mal não são muito claros tanto quanto nunca se sabe, de fato, quem é George Kaplan.

As relações de bondade e maldade são brilhantemente misturadas num mesmo personagem em A sombra de uma dúvida3 (Shadow of a Doubt, 1943). Assistimos ao desenrolar do enredo sob o ponto de vista da jovem Charlotte, que recebe alegremente a visita de seu tio Charlie (Joseph Cotten). A garota é a instância da inocência, que vai se desiludindo à medida que as atitudes do tio passam a não condizer com a imagem projetada por ela a respeito dele. Por sua vez, Charlie, a princípio, é a instância do bem que logo se descama até se revelar como sendo o puro mal.

O processo não se dá de forma “surpreendente”, como se Hitchcock escondesse a real natureza de Charlie. Na verdade, acreditamos que ele é bom porque assim acredita Charlotte, e não necessariamente porque a narração nos tenha garantido alguma coisa. O que vemos em cena, portanto, é mesmo o desmascaramento gradual de Charlie, num desenrolar natural e orgânico dentro da estrutura do filme. Curiosamente, dois anos antes, Hitchcock lançara Suspeita (Suspicion, 1941), no qual Lina (Joan Fontaine) desconfiava fortemente do marido, a ponto de achar que ele pretendia matá-la. Também todo visto sob o olhar subjetivo – no caso, de Lina –, o filme se concluía de maneira inversa a A sombra de uma dúvida: o marido se revelava inocente, confirmando para si a pecha de instância do bem, depois de ser amaldiçoado, perante a visão de terceiros, como sendo a projeção do mal.

3A sombra de uma dúvida é tido como o filme favorito do próprio Alfred Hitchcock, ainda que ele mesmo tenha afirmado a Truffaut: “Eu não deveria dizer que é meu filme predileto. Se às vezes me expressei nesse sentido, foi por sentir que esse filme é satisfatório para nossos amigos, os verossímeis, nossos amigos, os lógicos...”

Hitchcock fez outra forma de variação entre o bem e o mal ao separá-los em dois corpos. Pacto sinistro (Strangers on a Train, 1951) mostra o tenista Guy (Farley Granger) inocentemente enredado nas tramoias perturbadas – e perturbadoras – de Bruno (Robert Walker). Este cumpre a parte do “acordo”, mas o outro, ao não crer no que lhe fora proposto, precisa assumir que agora integra uma circunstância bem maior do que sua moral permitiria. Guy deverá, de fato, olhar o mal de frente e entender como ele pensa e age – sem, para isso, incorporar, em si mesmo, a instância maléfica. Esta caberá apenas a Bruno: convencido da lógica e justeza de seu raciocínio, ele levará o plano totalmente a cabo, nem que precise acumular o próprio lado mal, já inerente, àquele que buscava encontrar (e não conseguiu) em Guy.

A tortura do silêncio (I Confess, 1952) também separa mal e bem em duas partes, porém as mistura sob circunstâncias distintas, a partir de outros preceitos morais e, especificamente neste caso, metafísicos. O padre Michael (Montgomery Clift) é erroneamente acusado de assassinato. O verdadeiro culpado é seu assistente, Otto, que não assume o crime mesmo quando o religioso é preso. Michael sabe que Otto é o assassino por tê-lo ouvido se confessar, mas não pode contar o segredo justamente pelo sigilo do confessionário. Precisará conviver com a angústia do “inocente culpado” – ele não matou, sabe quem o fez e não pode revelar. O mal vem de Otto e impregna o padre através da fé. Michael é forçado a ser cúmplice do crime e, consequentemente, permite que o mal se mantenha instalado em dois corpos: o dele e o de Otto4 .

Tanto Guy (Pacto sinistro) quanto Michael (A tortura do silêncio) têm plena consciência de onde o mal está. E quando esse conhecimento aparenta ser impossível? É a angústia do detetive Scottie (James Stewart) em Um corpo que cai (Vertigo, 1958) a partir do momento em que é contratado para seguir a misteriosa Madeleine (Kim Novak). Ele não faz ideia da trama para a qual está sendo atraído, e assim ficará enquanto o filme durar. Scottie nunca será capaz de definir ou compreender onde está o bem e o mal, e por isso mesmo se tornará um dos personagens mais confusos de toda a obra de Hitchcock. Ele se apaixona por Madeleine a ponto de tentar ressuscitá-la em outra pessoa, depois que ela despenca de uma torre. Ele conhece uma espécie de sósia da mulher e a obriga (numa sutil variação da necrofilia) a se vestir e se portar como a “original”. Scottie aparenta enlouquecer cada vez mais e mistura conceitos de “certo” e “errado” na própria mente. Nem mesmo quando a verdade se revelar, e o ciclo se repetir (uma nova queda da torre), ele vai ter paz: uma freira será o artífice da desgraça, numa nada discreta ironia de Hitchcock com a imagem do catolicismo, religião tão vinculada ao ideário do que seja bom e correto para a moralidade humana.

A dicotomia e a confusão em torno do que era o mal e o bem nos personagens de Um corpo que cai foi um preparo para a radical experiência de se assistir a Psicose (Psycho, 1960), o maior sucesso comercial de Hitchcock. O jovem Norman Bates (Anthony Perkins) se constitui

4Hitchcock não era grande fã de A tortura do silêncio por acreditar que o filme não faria sentido aos não-católicos, devido à resistência do padre em abrir mão de um segredo de confissão que apenas o prejudica.

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de um corpo e duas mentes. Uma delas encarna a mãe; a outra, o próprio Norman. A priori, uma não tem consciência da existência da outra enquanto consciência ativa. Ou seja, a mãe sabe de Norman, e vice-versa, mas ambos parecem não perceber ou atinar estarem dividindo a mesma fisicalidade.

Em Psicose está provavelmente o exercício mais complexo de Hitchcock na relação entre o bem e o mal. Bates assassinou a mãe no passado, mas convence a si mesmo de que ela se matou; ele retalha uma mulher no chuveiro, mas fica transtornado ao retornar ao local e ver o corpo estendido no banheiro; ele é investigado pela polícia e, preocupado de descobrirem a mãe sendo “cuidada” em casa, toma todas as precauções para que ela não fique visível.

É um personagem multifacetado em sua construção, algo que apenas faz sentido quando Psicose chega ao fim. Isso se deve especialmente porque, numa exceção que confirma a regra, Hitchcock esconde que Norman Bates e a mãe são a mesma pessoa. Ele dá indícios, mas nunca revela, de fato, até os instantes finais do filme. Além do suspense tradicional dos trabalhos anteriores, o inglês insere, aqui, altíssimas doses de mistério, algo bem menos comum em sua carreira do que possa aparentar numa olhada desatenta5. O artifício permite a Hitchcock trabalhar aspectos insuspeitos da personalidade de Norman, já que ele faz isso diante dos nossos olhos sem nos deixar dar conta do procedimento.

Daí o choque de Psicose ser tão grande. Não só pelas constantes cenas de violência tão expressivamente criadas pelo diretor, mas também por essas cenas ganharem sentido muito mais amplo quando, enfim, a verdade é exposta. O que achamos ser essencialmente o mal (a mãe), de fato o era, mas estava o tempo inteiro “disfarçado” de bem, na figura frágil do filho – e, por sua vez, o que pensamos como sendo o mal (de novo, a mãe) não era mais do que um cadáver numa cama.

Como apontamos aqui no início, segundo o próprio Hitchcock: “Quanto mais intenso for o mal, mais ferrenha será a luta”. A intensidade do mal é forte na obra do inglês, variando entre um personagem e outro ou se fixando num único ser. A questão, a partir daí, será a seguinte: o que esse mal é capaz de perpetrar? Alfred Hitchcock fez 53 filmes para investigar isso. E nos legou um monumento cinematográfico.

MarCelo Miranda é repórter do jornal O Tempo (BH/MG), crítico de cinema da revista eletrônica Filmes Polvo (www.filmespolvo. com.br) e colaborador das revistas impressas Teorema, Filme Cultura e Taturana. Foi curador do Festival Internacional de Curtas-Metragens de Belo Horizonte em 2007, 2008 e 2010, membro da comissão de seleção de longas do 43° Festival de Brasília, membro do júri oficial da 12ª Mostra Londrina de Cinema e autor de textos sobre filmes lançados pela Programadora Brasil. Em parceria com o professor Rafael Ciccarini, finaliza uma antologia de textos da Revista de Cinema, editada em Belo Horizonte nos anos 1950 e 60.

5O diretor acreditava que, quanto mais o espectador soubesse dos rumos de uma trama, mais suspense ele sentiria, devido à inquietação de algum movimento violento por parte do vilão. Em Psicose, essa lógica se inverte um pouco, já que Hitchcock omite quem realmente comete os crimes.

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