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AS TRAMAS DO OLHAR João Luiz Vieira

As tramas do olhar

João Luiz Vieira H

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Lembro-me como se fosse hoje, tal o impacto daquela experiência inédita de espectatorialidade e recepção ao vivo: no início dos anos 1980, fui assistir a Janela indiscreta (Rear Window, 1954) num relançamento com ares de estreia, já que esse título, junto com mais outros quatro da filmografia hitchcockiana, ficou cerca de vinte anos fora do mercado por razões contratuais. Além de Janela indiscreta, também Um corpo que cai (Vertigo, 1958), O homem que sabia demais (The Man Who Knew Too Much, 1956), Festim diabólico (Rope, 1948) e O terceiro tiro (The Trouble with Harry, 1956) eram ansiosamente aguardados por toda uma geração. Exibido com exclusividade no cine Veneza (ali na avenida Pasteur, na quadra de quem vem de Copacabana ou de Botafogo, espaço hoje ocupado por um “centro cultural” que vive fechado), a plateia lotada do primeiro final de semana de exibição acompanhava, em tenso silêncio, as peripécias da corajosa Lisa, corporificada por uma Grace Kelly elegante e sensual, que atravessava o pátio interno de um bloco de apartamentos no entardecer de uma Nova York quente e abafada. Ela tentava conseguir alguma prova concreta que pudesse incriminar um morador em frente, suspeito de ter dado sumiço na esposa dias antes. Com total desenvoltura, especialmente em se tratando de uma moça mais preocupada com a frivolidade do mundo da moda, lá ia ela subindo rapidamente pela escada de incêndio que a levaria à janela e apartamento do suposto assassino, sem se importar com todas as pregas de sua generosa saia rodada branca, estampada em florais amarelos. Num instante, Lisa já estava no interior do apartamento do criminoso, transformada em mais uma personagem submetida aos olhares perplexos dos espectadores do filme, olhares estes sempre mediados pelo olhar controlador do seu namorado na ficção, Jeff, interpretado por James Stewart, semi-imobilizado numa cadeira de rodas. Nervosa, enquanto procurava e remexia o apartamento, víamos o suposto criminoso já na rua, embaixo, retornando ao seu apartamento.

Sempre suspeitei que o verdadeiro clímax desse filme brilhante e surpreendente não acontecia ao final, como é de praxe, numa luta esquisita entre Stewart e o assassino, cujo desenlace era adiado por um improvável espoucar de flashes nos olhos do criminoso (e do espectador). Para mim, num filme que tratava ostensivamente dos prazeres, promessas e perigos do voyeurismo, o momento de maior tensão encontrava-se mesmo ali, no instante em que Lisa/Grace Kelly acaba descobrindo a aliança de casamento da mulher desaparecida e, de longe, sabendo estar sendo olhada por Jeff/Stewart (e por todos os espectadores), tenta,

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disfarçadamente, apontar essa prova irrefutável para todos nós, do lado de cá, inscrevendo a plateia dentro daquele jogo como uma verdadeira testemunha ocular. Acontece que o criminoso acaba percebendo o gesto dela e procura seguir, com seu olhar, a direção em que a moça sinalizava a descoberta do tal anel comprometedor.

Fui testar o efeito diabólico do bruxo Hitchcock sobre a impotente plateia imediatamente na sessão seguinte – uma época não tão distante assim, quando o espectador, com o ingresso comprado apenas para uma sessão, poderia ficar na sala e assistir a quantas sessões quisesse, em cinemas onde cabiam sempre bem mais de seis, sete centenas de espectadores. Só que, naquela segunda vez, fui para a frente do auditório e escolhi uma poltrona vazia no meio da primeira fila. E no momento aguardado, em vez de olhar para a tela, virei-me na direção dos espectadores. Foi quando me dei conta do espanto e do quase pânico que tomava conta de todos, igualmente descobertos ali pelo olhar do criminoso, tal qual Stewart, que rapidamente move-se um pouco para trás, tentando se proteger do olhar investigativo do criminoso, refugiando-se numa área de sombra do apartamento. No escuro do cine Veneza, talvez sem se dar conta, a maioria dos espectadores também recuava o corpo contra a poltrona. Lembro-me de ter visto, bem mais para o fundo da sala, dois espectadores que chegaram a se levantar momentaneamente. Naquele instante, ao olhar diretamente para a câmera, o criminoso não só descobria Stewart atrás de uma teleobjetiva, como, principalmente, descobria também os espectadores confortavelmente sentados na penumbra do cinema, até então testemunhas razoavelmente distanciadas da trama. Segundo a realizadora e teórica Laura Mulvey, sempre que acontece tal efeito, a narrativa cinematográfica aciona um perfeito curto-circuito entre as três séries de olhares que compõem a estrutura do plano-ponto-devista no cinema clássico: o olhar das personagens na ficção, o olhar da câmera e o olhar dos espectadores na plateia. Os três olhares atravessados por uma simetria perfeita1 .

Com tal domínio da linguagem cinematográfica — especialmente no controle da direção desses planos-ponto-de-vista, Hitchcock subvertia, por razões narrativas, uma das regras básicas do cinema clássico, ou seja, a da interdição de olhares entre personagens na tela e os espectadores na plateia. Isso porque toda a vez que um personagem olha para a câmera, ele acaba também olhando para o espectador, encarando-o de frente e interpelando o olhar espectatorial. Trata-se da violação de um contrato que denuncia a presença do espectador e provoca um certo desconforto, chamando atenção para o voyeurismo próprio da situação cinematográfica. Rompe-se um contrato firmado no momento da compra do ingresso na bilheteria e que nos garante sempre o direito e a onipotência de olhar e não de ser olhado.

Esse exemplo paradigmático das relações entre cinema e voyeurismo muito bem entendidas e exploradas por Hitchcock ganha peso narrativo nesse filme exatamente pelo fato de que, desde o início do filme, o mestre estabelece uma outra simetria que posiciona a personagem

1MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, em Ismail Xavier (org) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1983, pp. 437-453. (Tradução de João Luiz Vieira.) Para um detalhamento do funcionamento do plano-ponto-de-vista no cinema clássico, ver BRANIGAN, Edward. “O plano-ponto-de -vista”, em Fernão Ramos (org), Teoria contemporânea do cinema, vol. I. São Paulo: SENAC, 2005, pp. 251-275.

do fotógrafo-voyeur dentro do filme na mesma posição dos espectadores do lado de cá da tela. Ambos são observadores atentos de vidas alheias e tiram prazer dessa atividade tão celebrada pelo cinema. Melhor: tanto Jeff/Stewart quanto os espectadores da sala de cinema encontram-se numa mesma situação física de imobilidade. Ele, com a perna quebrada, ora aparece deitado numa cama, ora preso a uma cadeira de rodas. O espectador, na clássica posição espectatorial, encontra-se igualmente imóvel na poltrona do cinema com sua atenção inteiramente concentrada na visão do que se passa diante de sua tela-janela. Ambos dividem, ainda, uma certa penumbra que os deixa momentaneamente protegidos e seguros de sua liberdade e controle em olhar os outros anonimamente. O esquema funciona à perfeição, assim como seu efeito dramático.

Mas Hitchcock ainda experimentaria, nesse mesmo ano de 1954, outra forma talvez mais diabólica de interpelação do espectador, relacionada às pesquisas tecnológicas então em curso e que buscavam criar nas salas de cinema uma experiência de imersão física impossível de se obter nas telinhas preto e branco das cada vez mais populares televisões. Desde o final da década anterior, o advento da televisão e sua aceitação em larga escala nos Estados Unidos transferiam cada vez mais os espectadores das salas de cinema para o espaço doméstico das salas de estar, tirando o sono de produtores, estúdios e do pessoal da indústria. Primeiro desses recursos com os quais a indústria respondia à competição desigual pelo consumo audiovisual, a terceira dimensão já havia sido suplantada em 1954 pela espetacular expansão das telas panorâmicas e do som multidirecional estereofônico inaugurados pelo Cinerama (1952) e pelo CinemaScope (1953).

Além de ter sido o primeiro processo de transformação da experiência de fruição audiovisual numa sala de cinema, o 3-D logo esgotou seu repertório de efeitos, reduzido basicamente à banalização de objetos atirados em direção à plateia – de tortas na cara do espectador, lançadas pelos Três Patetas a socos e armas apontadas na mesma direção, como aparece no western Caminhos ásperos (Hondo, de John Farrow, 1953). Um entendimento mais refinado do potencial realista prometido pelas imagens em relevo do 3-D acabou encontrando em Hitchcock uma formulação mais sofisticada exatamente nos estertores do processo, quando praticamente o 3-D já havia sido descartado pela indústria em prol das telas cada vez mais amplas e côncavas oferecidas pelos mais novos sistemas panorâmicos de realismo imersivo. Ainda assim, o mestre insistiu e, uma vez mais, o investimento voltava-se para o controle e a manipulação das emoções do espectador.

Em Disque M para matar (Dial M for Murder, 1954), uma angustiada Grace Kelly é acordada tarde da noite pelo som do telefone que toca em sua sala de estar. Ela se levanta e dirige-se até a mesa da sala sobre a qual está o telefone, alheia à presença de um assassino contratado para dar cabo de sua vida, estrategicamente escondido atrás das cortinas à espreita do momento certo para estrangulá-la. Hitchcock e seu diretor de arte criam aqui um contraste que desenha um quadro de nuances expressionistas, oscilando entre a escuridão predominante da sala, a luz diagonal que vem do quarto de dormir e a vestimenta branca e diáfana da personagem. A câmera faz uma lenta circular ao redor dela, posicionando-se por trás de seu

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corpo e criando uma extensão entre o espaço fora-da-tela e a escuridão da sala de cinema. É desse escuro – ou seja, do espaço tradicionalmente ocupado pelos espectadores durante a projeção – que surge primeiro o xale ameaçador, empunhado pelas duas mãos do criminoso aguardando o momento preciso do estrangulamento. O que acontece a seguir é algo jamais visto na terceira dimensão – o criminoso consegue dominá-la com seu corpo, empurrando-a para cima da mesa, enquanto, em total desespero, ela luta pela sua sobrevivência, estendendo a mão direita em direção a... nós. O efeito é devastador, pois sua mão se projeta frontalmente para fora da tela, em relevo, e chega até nós, como uma súplica, um agonizante pedido de socorro para que fôssemos ali salvá-la das garras do malfeitor. Impotentes e sentados em nossa poltrona, o máximo que pode ser feito é, virtualmente, acariciar aquela mão em desespero. Não há nada a fazer, e Hitchcock sabia disso ao imprimir ali uma consciência muito especial dos efeitos possibilitados pelo 3-D, construídos por quem dominava os limites e as regras do melodrama. A violência extrema atinge o seu paroxismo num esquema de montagem paralela que alterna o sufoco da personagem na sala de estar com o marido, do outro lado da linha, numa cabine telefônica. É esse esquema que articula muito bem nossa experiência do medo, tanto pelo viés do suspense (sabemos de antemão do plano para matá-la, incluindo os detalhes da mise-en-scène do crime premeditado) quanto da surpresa (a reação da personagem, a violência inesperada, o instante do choque). Afinal, nada de novo para um mestre maior na orquestração das emoções capazes de segurar uma plateia.

Nesse mesmo filme, um outro uso, de caráter mais irônico e jocoso e de natureza “linguística” também acontece quando, afinal, revela-se a verdade sobre o que havia acontecido e, literalmente descobre-se a chave do mistério que, uma vez mais, é oferecida ao espectador, em relevo, diante dos olhos de uma plateia enfeitiçada pelas artimanhas do bruxo, como afetivamente Hitchcock também era tratado.

João luiz Vieira é professor do programa de pós-graduação em Comunicação e do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense.

DISqUE M PARA MATAR

(c) NBC Universal TIPPI HEDREN, para o lançamento de OS PÁSSAROS

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