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LONGE DO MESMO, PERTO DO OUTRO
from Hitchcock
Cássio Starling Carlos H
A reincidência de temas na filmografia hitchcockiana e a articulação deles em metáforas visuais ou em objetos com força simbólica forneceram, desde a emergência da política dos autores, referências para identificar uma ordem e um sistema, constituídos à base de repetições, identificações, articulações temáticas e formais.
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Nesse sentido, as aparições da figura rotunda do diretor desde seus primeiros filmes funcionaram como paradigma das outras reincidências que percorrem a obra. Ciente do poder de sua marca, o cineasta a emprestou a coleções de livros e a seriados de TV, capitalizando-se sempre que possível.
Desde então, refém do culto à categoria de autor, a cinefilia brinca de saber compondo listas que misturam o cânone a detalhes irrelevantes. Quando se trata de Hitchcock e de identificar os signos da homossexualidade em sua obra o que se encontra não é muito diferente. Listar sua ocorrência requer apenas um trabalho de formiga. Mas, completada essa etapa, o que fazer com os resultados?
Mobilizada pela influência dos estudos culturais em geral e da “queer theory”, mesmo a análise desses levantamentos dificilmente se liberta do enfoque temático, quando não se esgota na ênfase dada aos motivos dos personagens, à interpretação que muitas vezes se confunde com “overinterpretação”.
Tentaremos aqui expor a gênese do tema na obra e apontar como ele foi tratado de modo discrepante por seus mais dedicados biógrafos e por parte de intérpretes adeptos de um olhar gay. Completaremos com uma exposição dos sólidos argumentos trazidos com admirável lucidez por Robin Wood, ao mesmo tempo um dos mais respeitados especialistas na obra de Hitchcock e um teórico que reconhece as possibilidades e as distorções do arsenal conceitual da “queer theory”.
A homossexualidade, sugerida ou insinuada, integra o anedotário hitchcockiano na tela e fora dela desde a fase precoce da carreira do diretor. Um de seus primeiros indícios encontrase na presença de Ivor Novello, nome importante do teatro britânico nos anos 1920 e cuja presença no elenco de O inquilino (The Lodger: A Story of the London Fog, 1926) permitiu ao
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nome de Hitchcock ganhar amplitude. De acordo com o seu biógrafo Donald Spoto, “Novello era um ator de beleza discreta e um pouco afeminado, que não escondia sua vida homossexual. Fascinado por isso e intrigado pelo que, num primeiro momento, considerava um estilo de vida chocante, Hitchcock soube explorar as possibilidades cinematográficas do ator”.1
Ainda segundo Spoto, “Novello, por sua vez, tornou-se o primeiro dos muitos atores de Hitchcock cujas vidas privadas eram, senão controversas, pelo menos pouco convencionais. Embora o próprio Hitchcock cultivasse uma imagem burguesa, a verdade é que ele também almejava o conhecimento que poderia advir de uma exploração mais rebelde – ou mais aventurosa – de possibilidades da existência”, prossegue o insinuante biógrafo em The Dark Side of Genius: The Life of Alfred Hitchcock, livro já definido como “extremamente desagradável, apesar de muito útil”. Em seguida a essa observação, Spoto cita, sem identificar sua fonte, esta declaração crucial sobre a disposição do diretor face ao que chamaríamos hoje de diversidade sexual: “‘Algumas pessoas poderiam se surpreender’, disse uma atriz que o conhecia bem, ‘mas Hitchcock sempre ficava muito à vontade com homossexuais ou bissexuais. Ele sempre dizia a seus atores que eles tinham de ser um pouco masculinos e um pouco femininos para poder entrar num personagem. Ele pensava que a subjetividade e os sentimentos transcendiam os gêneros’”. (p. 86)
Outro biógrafo, Patrick McGilligan, prefere avaliar a atenção dedicada pelo diretor às sexualidades sem se entregar a interpretações moralistas, como Spoto faz em excesso, desequilibrando a imparcialidade de seu material.
Na leitura de McGilligan, “os filmes de Hitchcock expressam mais que uma curiosidade ligeira sobre todos os modos da sexualidade – heterossexual, homossexual e todas as que se encontram entre estas duas. (Uma vez ele disse a [seu biógrafo John Russell] Taylor que poderia ter virado uma ‘bicha’ se não tivesse encontrado Alma [sua esposa]). O jesuíta que vivia nele era atraído por tabus e fascinado pelo pecado – e pelo sexo como o que ocupa o posto mais alto na lista católica de pecados”.2
De fato, seus filmes constituem, ao lado dos de Luis Buñuel, um catálogo de observações acuradas sobre a sexualidade reprimida ou expandida, vivida ou imaginada, sugerida ou enunciada. Neste corpo, a homossexualidade não poderia ficar trancafiada no armário, apesar de vetada como “perversão sexual” pelo código Hays, as regras de censura sobre conteúdos autoimposta pelos estúdios hollywoodianos e cuja vigência se estendeu de 1930 a 1968.
Desta perspectiva, ganham relevância os esforços feitos nas duas últimas décadas por historiadores e teóricos para decifrar as articulações de sentido entre a representação da homossexualidade, carregada de negatividade moral e encarregada de uma função dramática quase sempre criminosa, e os valores da época. Entre eles, vale destacar o artigo incisivo de
1The Dark Side of Genius: The Life of Alfred Hitchcock, de Donald Spoto, p.86. 2Alfred Hitchcock: A Life in Darkness and Light, de Patrick McGilligan, p.65.
Robin Wood incluído em Hitchcock’s Films Revisited, e a complexa articulação do contexto identificada por Robert J. Corber em In the Name of National Security: Hitchcock, Homophobia and the Political Construction of Gender in Postwar America. Já no campo do recenseamento de temas, inclusive a homossexualidade, o mais exaustivo e recente encontra-se em Hitchcock’s Motifs de Michael Walker.
Um breve exame dos estudos sobre o tema “Hitchcock e homossexualidade” aponta uma série de incoerências, o que sugere tanto falhas como excessos.
Na filmografia apresentada ao fim de The Celluloid Closet: Homosexuality in the Movies, o levantamento sobre a representação do homossexual no cinema publicado por Vito Russo em 1981 (e depois adotado como base para o documentário The Celluloid Closet – O outro lado de Hollywood/ The Celluloid Closet, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, 1995), aparecem quatro filmes do cineasta e seus respectivos personagens:
Assassinato (Murder!, 1930) – Handel Fane, o assassino que é um trapezista que se traveste;
Rebecca, a mulher inesquecível (Rebecca, 1940) – Mrs. Danvers, a governanta que domina e aterroriza a protagonista;
Festim diabólico (Rope, 1948) – Brandon e Phillip, a dupla de amigos que estrangula um ex-colega;
Pacto sinistro (Strangers on a Train, 1951) – Bruno, que mata a ex-mulher do tenista Guy e o persegue.
No ensaio Murderous Gays: Hitchcocks’ Homophobia, um agudo estudo sobre os valores negativos que acompanham a figura gay e lésbica nos filmes do diretor, o crítico Robin Wood destaca personagens com função dramática central e cujo fascínio do mal se reveste de uma particular ambiguidade sexual. Entre os quais estão o tio Charlie de A sombra de uma dúvida (Shadow of a Doubt, 1943), Willy, o comandante do submarino de Um barco e nove destinos (Lifeboat, 1943), Norman Bates de Psicose (Psycho, 1960) e Bob Rusk de Frenesi (Frenzy, 1972), além do supracitado Brandon de Festim diabólico.
Num papel menor, mas não menos importante, o Leonard feito por Martin Landau em Intriga internacional (North by Northwesth, 1959) (o acompanhante do vilão feito por James Mason) costuma ser incluído no rol de “suspeitos”. E também são identificáveis figurantes com conotação homossexual em O jardim dos prazeres (The Pleasure Garden, 1925), Agente secreto (The Secret Agent, 1936), A dama oculta (The Lady Vanishes, 1938), Agonia de amor (The Paradine Case, 1947) e Os pássaros (The Birds, 1963).
Por fim, o levantamento proposto por Theodore Price em Hitchcock and Homosexuality identifica indícios de homossexualismo tanto em personagens que sofrem alguma inibição sexual (como acontece em Quando fala o coração/ Spellbound, 1945; Janela indiscreta/ Rear Window, 1954; Marnie, confissões de uma ladra/ Marnie, 1964 e Cortina rasgada/ Torn Curtain, 1966) quanto naqueles oriundos da classe alta e que emitem sinais de refinamento (tais como
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em O inquilino; Downhill, 1927; Vida fácil/ Easy Virtue, 1927 e Chantagem e confissão/ Blackmail, 1929). Até os homens perturbados de algum modo pela sedução feminina, como os de Jovem e inocente (Young and Innocent, 1937), Pavor nos bastidores (Stage Fright, 1950), A tortura do silêncio (I Confess, 1952), O homem errado (The Wrong Man, 1957) ou Um corpo que cai (Vertigo, 1958) são listados por Price como, no mínimo, afeminados.
Essa espécie de levantamento, contudo, funciona em suas disparidades como exemplo de como cada autor tortura os dados para obter deles o que necessita. Ou pior, como submetem representações formatadas de acordo com regras de outra época para lançá-las na fogueira, sob o argumento de que não se adequam a nosso tempo de diversidade.
Nesse sentido, a análise realizada por Robin Wood distingue-se pelo grau de lucidez do crítico ao avaliar a amplitude e/ ou limite da representação da homossexualidade nos filmes do diretor tomando a cautela de não se contaminar pelo anacronismo. Ao articular estética e psicanálise, enriquecida por uma perspectiva teórica “queer” que o autor não poupa de nuançar com um olhar gay na primeira pessoa, o artigo tem o mérito de devolver aos filmes sua singularidade histórica. Por esse conjunto de qualidades, passo a citá-lo extensamente.
Após tecer considerações psicanalíticas que visam a elucidar atitudes agressivas do cineasta em relação a atores reconhecidamente homossexuais, como Ivor Novello e Montgomery Clift, Wood parte de uma indagação essencial para focalizar o problema que seu artigo propõe: “Quais personagens de Hitchcock, de fato, são gays? Parece-me uma questão tão difícil de decidir quanto com frequência foi respondida de modo apressado”, completa.3
Wood prossegue em sua prosa elegante e oblíqua: “O que de forma ampla compõe o problema é que, antes dos anos 1960, era impossível tomar conhecimento abertamente até mesmo da existência da homossexualidade num filme de Hollywood; consequentemente, a homossexualidade tinha de ser codificada, e discretamente, e codificar, mesmo quando de forma indiscreta, é o jeito mais adequado de produzir ambiguidades e incertezas”.4
“Parece que em geral concordamos que Bruno Anthony de Pacto sinistro é supostamente gay”, exemplifica. “‘Supostamente’ soa a mim como o modo apropriado de postular isso, porque novamente a atribuição parece dever mais aos mitos populares heterossexuais sobre homens gays do que qualquer outra evidência de fato contida no filme (refém das limitações da censura) possa oferecer: ele odeia o pai, é supermimado pela mãe estúpida, parece ter muito prazer em eliminar mulheres e veste-se de modo extravagante. Era provavelmente o que Hitchcock pensava que era ser gay”.5
3Artigo de Robin Wood publicado na coletânea Hitchcock’s Film Revisited, p.345. 4Idem, pp.345-346. 5Idem, p.347.
Sua argumentação mais incisiva, no entanto aplica-se à dupla de assassinos de Festim diabólico. “Apesar de agora todos reconhecermos que seus dois assassinos são caracterizados como gays, muito pouco esforço foi feito acerca das implicações disso, que continuamos a tratar como se fosse um tema meramente incidental. (...) Festim diabólico pode ser lido como uma associação da homossexualidade com práticas consideradas não naturais, com patologias, com perversões – como o ‘mal’ e o fascismo. Ninguém proíbe tais interpretações; Hitchcock e/ ou seus roteiristas podem ter pensado que o filme falava disso. Mas o que Hitchcock pensou do que o filme dizia não é relevante: Festim diabólico pertence a um certo ponto da evolução dos homossexuais como seres sociais, das atitudes sociais em relação a eles, das realidades sociais e materiais da existência homossexual, e isso deve ser interpretado agora como parte de um contexto cultural e histórico complicado”.6
“Tomemos como ponto de partida um famoso disparate atribuído a [Jean] Renoir, de que Hitchcock fez um filme sobre dois homossexuais e nunca os mostrou se beijando. Tal observação pode não ter sentido. Brandon e Phillip se beijam (no extracampo)? Eles poderiam? Eles são gays e vivem juntos, mas são amantes? Hoje, todo mundo parece pronto para responder sim e a considerar ingênuos aqueles que não ‘pegaram’ isso em 1948. A resposta afirmativa é muito provavelmente a correta: eu não digo que esteja errada, só que não podemos estar tão certos disso e podemos estar raciocinando de maneira não histórica.”7
Ao fim dessa longa ressalva, sugiro um recuo ao passado com uma lista publicada pela revista Cahiers du Cinéma em sua fase “amarela” dos anos 1950. A revista, sede e motor da política dos autores, virava e mexia reunia e publicava especiais dedicados ao exame de aspectos essenciais da filmografia de Hitchcock, um dos estandartes de sua política editorial e estética. O número 62, publicado em agosto/ setembro de 1956, traz um levantamento assinado por Philippe Demonsablon intitulado, ambiciosamente, Léxico mitológico para a obra de Hitchcock. (pp. 18-29, 54-55)
O recenseamento é composto por “elementos plásticos” que, associados aos temas dramáticos recorrentes na filmografia, fornecem a eles “generalidade e precisão”. Entre objetos e situações o autor apresenta e comenta a ressurgência, na ordem alfabética, de algemas, cães, chaves, crianças, facas, gatos, joias, líquidos, mãos, óculos, ovos, quadros, quedas, raios, sombras, teatros, telefones, trajetos e trens.
Neste abecedário, a letra H aparece como casa vazia. Nela, a homossexualidade ou não tem lugar de evidência, apagou-se por pudor ou, mais simplesmente, nem foi percebida como relevante.
Contudo, algumas letras adiante, Demonsablon dedica quase uma página inteira a “travesti”, verbete que, se seguimos a perspicácia de seu autor, revela possibilidades mais abundantes do que as que vêm sendo buscadas pelos caçadores de sintomas.
6Artigo de Robin Wood publicado na coletânea Hitchcock’s Film Revisited, p.349. 7Idem, pp.350-351.
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Segundo Demonsablon, “numa obra em que a confissão ocupa tanto espaço, o travestir-se não se limita a ser um disfarce ou uma mudança de aparência. Onde há travestimento há algum tipo de segredo, mas as relações de um a outro são complexas. O travesti conserva um indício da verdade, ele confessa a presença de um segredo já revelado em parte. Ele é também capaz de alterar a personalidade, perturbar a identidade e desse modo provocar alterações dramáticas de importância diversa do simples equívoco”. (p. 55)
Nesse sentido, a transferência da culpa, o motivo do “homem errado” que se repete ao longo de toda a filmografia de Hitchcock encontra no travesti uma figuração que ultrapassa, esgotando, a “questão homossexual”.
O “passar-se por outro” serve, então, como o duplo dramático do “ser confundido com outro”. Longe do mesmo, perto do outro. Completar a tarefa de identificar essa combinação ao longo da obra volta a ser um exercício lúdico para o espectador. Faça sua lista!
Cássio starlinG Carlos, crítico, pesquisador, professor de história do audiovisual e curador. Foi consultor e responsável editorial da Coleção Folha Clássicos do Cinema e coeditor do especial “100 filmes essenciais” da revista Bravo. É autor do livro Em tempo real (Ed. Alameda, 2006) sobre séries de TV.