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A CONSTRUÇÃO CRÍTICA DE UM GÊNIO DO CINEMA Luiz Zanin

A construção crítica de um gênio do cinema

Luiz Zanin

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Em seu livro A era dos extremos, o historiador Eric Hobsbawm, citando Roger Manvell, escreve que as cenas da escadaria de Odessa, em O encouraçado Potemkim (Bronenosets Potyomkin, 1925) de Sergei Eisenstein, seriam “possivelmente os seis minutos mais influentes da história do cinema”. Há quem conteste. Muita gente considera a sequência do assassinato da personagem de Janet Leigh sob o chuveiro (70 posições de câmera para 45 segundos de filme), em Psicose (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock, mais decisiva do que a do massacre da população pela guarda do czar na Rússia pré-revolucionária. Enfim, esse é o tipo de discussão capaz de preencher as horas mortas de qualquer grupo de cinéfilos.

Mas, seja qual for a conclusão (se existir alguma), poucos se atreveriam a negar que Hitchcock seja um dos mais influentes cineastas da contemporaneidade, se não for o mais influente deles todos.

No entanto, como sabemos, no final dos anos 1940 e começo dos 1950, já rico e famoso, Hitchcock era visto com certa condescendência pela crítica mais sofisticada. Tendo emigrado para os Estados Unidos, era tido como pouco mais que um artesão competente, alguém capaz de divertir a plateia fazendo com que ela experimentasse o mais básico dos sentimentos, o medo. Muitos o chamavam de “mestre do suspense”, mas ninguém se atrevia a chamá-lo simplesmente de mestre. Mestre tout court, um cineasta para cineastas, acima de tudo um artista com perfeito domínio do seu instrumento, com uma concepção muito clara do que é o cinema, aliada a uma visão de mundo profunda, como seria descrito depois.

Foi preciso um longo, intenso e apaixonado trabalho crítico para que Hitchcock atingisse esse patamar, e passasse a ocupar o posto que lhe cabia de direito no olimpo dos autores cinematográficos.

Foi colocado ali, todos sabemos, pelos jovens críticos e futuros cineastas dos Cahiers du Cinéma – em especial o futuro núcleo duro da nouvelle vague: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette.

Truffaut, em especial, tornou-se uma espécie de cruzado em defesa de Alfred Hitchcock. Essa, digamos assim, reabilitação era baseada em sincera admiração, mas teve também seu aspecto tático. Em determinado momento da postulação de uma nova ordem para o cinema

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– justamente assim chamada “política dos autores” – fazia-se necessário operar algumas partições. Entre elas, a associação que se fazia automaticamente entre o tema justo e a grande obra cinematográfica. Era o tema que engrandecia a obra e, apenas secundariamente, a maneira como este era tratado pela linguagem cinematográfica.

O desafio, para os jovens críticos, seguindo já as ideias de Alexandre Astruc (autor de um artigo famoso sobre o cinéma-stylo, a câmera-caneta), seria inverter essa equação. Encontrar no estilo, e não no assunto de que trata o filme, o valor de uma obra cinematográfica. Nessa nova concepção, quase nunca o filme de tema nobre era de fato um grande filme. O cinema realmente grande seria preciso procurá-lo em outra parte. Por exemplo, num mestre do suspense, com seus filmes dirigidos explicitamente ao público, com a finalidade mais aparente de divertir e causar medo, como era o caso de boa parte da obra de Hitchcock.

No prefácio de seu livro Os filmes da minha vida (Editora Nova Fronteira), Truffaut deixa muito clara essa disposição de quebra de hierarquias baseadas no tema, no assunto “nobre”. Já cineasta reconhecido, em 1975, relembra sua trajetória de crítico de cinema e reafirma a crença da juventude: “Continuo considerando absurda e execrável a hierarquia de gêneros. Quando Hitchcock filma Psicose – a história de uma ladra ocasional, em fuga, morta a facadas no chuveiro pelo proprietário de um motel que empalhara o cadáver da mãe morta – quase todos os críticos (na época) concordaram em julgar o tema trivial. No mesmo ano, influenciado por Kurosawa, Ingmar Bergman filma exatamente o mesmo tema (A fonte da donzela/Jungfrukällan, 1960), mas situado na Suécia do século XVI; todos ficam extasiados e lhe concedem o Oscar de melhor filme estrangeiro”.

Esse debate, evocado posteriormente por Truffaut, não se dá num espaço vazio. Refletia dissidências não apenas de concepções estéticas, mas de posições políticas rivais. A luta, antes da fundação dos Cahiers du Cinéma, se travava nas páginas da revista L’Écran Français, publicação pluralista na qual se digladiavam comunistas e hollywoodófilos. No clima do imediato após-guerra, ser contra ou a favor do cinema americano significava demarcar uma linha divisória ideológica. Leenhardt e Astruc eram os paladinos dessa nova cinefilia, combatida pela velha guarda de esquerda, Claude Vermorel, Roger Boussinot e Georges Sadoul, em especial.

Entre essas duas posições, André Bazin, o maior crítico da época, mentor e protetor dos jovens críticos, que iria levar para a revista que fundaria em 1951 com Jacques Doniol-Valcroze. Bazin era um católico humanista e conciliador. O curioso é que sendo um espírito de fato democrático, Bazin nunca chegou a se levar totalmente pela deificação de Hitchcock empreendida pelos discípulos. Acompanha o processo meio de lado, mas não se furta a entrar no debate, mesmo porque os jovens críticos valiam-se de conceitos de Bazin – entre eles o de realismo cinematográfico – para, à revelia do protetor, completar o processo de canonização cinematográfica de Hitchcock.

Esse movimento serve para a consolidação de uma geração crítica, que escolhe seus inimigos (o “cinéma de qualité” francês) e suas referências mais queridas: Rossellini, Renoir, Hitchcock, Hawks, além de um modelo de cinema – o do chamado filme B americano. Nessa batalha,

opera-se uma mudança de referência: seria na mise en scène que deveria ser procurada uma determinada verdade estética do filme e do artista. Hitchcock era campo fértil para a demonstração dessas teses. A chamada “moral” de um filme, o seu conteúdo, ou mensagem poética, se o termo cabe, estaria toda ela contida na forma cinematográfica – enquadramentos, movimentos de câmera, montagem, etc. Quer dizer, na assim chamada mise en scène, expressão difícil de ser traduzida em português. O ponto central seria desvincular o julgamento do filme de qualquer referência ao seu conteúdo. Isso alcançado, eliminam-se as hierarquias entre assuntos. A narrativa de um crime pode valer tanto quanto uma história política. Ou seja, nada, se não se levar em conta a marca pessoal (uma visão de mundo aliada a uma concepção de cinema) do autor, através da qual se transforma em obra. O conteúdo é a forma.

Na luta pelo reconhecimento de Hitchcock, os Cahiers, já dominados pela jovem guarda, os chamados jeunes turcs (jovens turcos) da crítica, lançam número especial dedicado ao mestre. Essa edição, a de outubro de 1954, a de número 39 da publicação, exibe vasto dossiê de Hitchcock com artigos de Astruc, Truffaut, Rohmer (assinando com seu nome verdadeiro, Maurice Schérer), Chabrol, além de um texto do próprio Hitchcock e outro do fundador da revista, Bazin, que se confessa ainda pouco convencido da homenagem: “Não posso dizer que os esforços conjuntos de Rohmer, Astruc, Rivette e Truffaut conseguiram me convencer do gênio escorreito de Alfred Hitchcock, especialmente em sua obra americana, mas enfim eles foram suficientes para convencer-me a questionar meu ceticismo”1. E Bazin prossegue, com toda a honestidade intelectual, narrando primeiro uma anedota com William Wyler e depois uma conversa que tivera com o próprio Hitchcock quando este filmava Ladrão de casaca (To Catch a Thief, 1955) na Riviera Francesa.

A Wyler, ele fala sobre sua interpretação de uma cena famosa em Pérfida (The Little Foxes, 1941), em que o personagem de Herbert Marshall está morrendo e, sob o olhar de Bette Davis, desaparece e reaparece do campo cinematográfico sem que a câmera se digne a acompanhá-lo. Bazin traça uma elaborada teoria sobre esse desaparecimento do ator durante instantes, até que Wyler o interrompe para dizer que Marshall tinha um defeito na perna que dificultava sua locomoção. O recurso fora usado para que um dublê o substituísse. Quanto à conversa com Hitchcock, Bazin se refere ao rigor formal da sua obra, empregando um termo do vocabulário eclesiástico: o cinema de Hitch seria “jansenista”, ao que ele, surpreso, pergunta: “What is jansenist?”. Em seguida, se ri e, como havia estudado em colégio de padres, disse que usou A tortura do silêncio (I confess, 1952) para se livrar de complexos religiosos.

O texto de Bazin, pontuado por essas pequenas histórias e uma suave ironia, testemunha que seu autor admite a originalidade e o rigor profissional de Hitchcock, mas, mesmo assim, não se entrega à idolatria, com o fazem os jovens críticos.

1Este texto completo, “Hitchcock contra Hitchcock”, se encontra na página 305 deste catálogo.

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De qualquer forma, apesar das resistências pontuais, a parada parecia ganha para Hitchcock e poucos, depois de tanto empenho dos críticos dos Cahiers, se atreveriam a chamá-lo de mero produtor de entretenimento sem maiores consequências. Pelo menos na França e em sua área de influência intelectual, àquela altura ainda bastante extensa, muito mais que hoje em dia. Na França, em particular, a fama de Hitchcock havia chegado ao ápice, em especial na época do lançamento de Um corpo que cai (Vertigo, 1958), em 1959, tido como uma de suas obras-primas. Claro, havia discordâncias, como a da revista Positif, concorrente dos Cahiers, que se obstinava em considerar Hitchcock um mero fabricante de filmes, quando não um “fascista”, como o chamou o crítico Ado Kyrou. Mas a divergência entre as revistas era acima de tudo ideológica, numa era ainda politicamente muito sensível e de grande fricção entre posições de direita e de esquerda.

Truffaut poderia ter dado sua missão por cumprida. No entanto, em uma viagem a Nova York, descobriu, para sua surpresa, que Hitchcock enfrentava mais resistências em seu país de adoção do que na supostamente intelectualizada Europa. Apesar de todo o trabalho de redenção crítica empreendido por ele e seus colegas de nouvelle vague, Hitch ainda era tido, entre os intelectuais nova-iorquinos, como apenas um bom artesão, senhor das técnicas de filmagem, um mestre do suspense, etc. E nada além. Truffaut surpreende-se ao encontrar tais reservas em críticos sofisticados que, por sua vez, ficam pasmos com o fato de aquele jovem diretor europeu, amigo de Renoir e Rossellini, deixar-se impressionar pelo que chamavam de “homem cínico e devasso”.

Diante disso, Truffaut impôs-se a tarefa de obter o reconhecimento de Hitchcock nos Estados Unidos. E o fez através da técnica da entrevista, mais eficaz, a seu ver, que a grande discussão teórica que havia triunfado do outro lado do Atlântico. Através de uma carta lisonjeira, seduziu Hitchcock para o trabalho, para o qual se preparou escrupulosamente, revendo os filmes, relendo livros dedicados ao cineasta (em especial a formidável exegese escrita por Chabrol e Rohmer) e elaborando uma lista de centenas de perguntas a serem feitas. A ideia era fazer um livro que contivesse não apenas a feitura mental dos filmes, mas, sobretudo, a sua fabricação material, de modo a explicitar a “consciência” de Hitchcock sobre a sua própria obra.

Em agosto de 1962, Truffaut recebe um telegrama de Hitchcock convidando-o, e à tradutora Helen Scott, para começar o trabalho no Beverly Hills Hotel. Tinha assim início aquele que viria a ser, para muita gente, “o mais belo livro de cinema de todos os tempos”. Fartamente ilustrado com fotogramas dos filmes, o “Hitchbook” é lançado em novembro de 1966. Com o título de Le cinéma selon Hitchcock, é muito bem-acolhido pela crítica francesa. O L’Aurore diz que lê-lo é o equivalente a dois anos de estudos em uma escola de cinema (cita, explicitamente, o Institut des Hautes Études Cinématographiques). A versão norte-americana, que chega às livrarias um ano mais tarde, se transformará em best seller. Apesar do preço salgado, vendia como pão quente na véspera do Natal. Logo a seguir o livro seria traduzido em outros idiomas e lançado em vários países do mundo. No Brasil teve várias edições. A mais recente – bastante completa e luxuosa – é a da Companhia das Letras, em formato grande e obediente à concepção gráfica de Truffaut.

O livro foi o golpe final de Truffaut sobre os recalcitrantes e solidificou o valor estético da obra do seu mestre. Hitchcock morreu, em 1980, cercado de glória, que perdura até hoje. Tendo feito sua carreira entre a Inglaterra e os Estados Unidos, deve boa parte de sua duradoura fama àqueles jovens críticos e cineastas franceses da nouvelle vague francesa. Em especial, a François Truffaut.

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luiz zanin (Luiz Fernando Zanin Oricchio, São Paulo, 1950) é crítico de cinema e colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Estudou filosofia e psicologia na USP. Editou o suplemento “Cultura” de 2000 a 2009. Autor de Cinema de novo - um balanço crítico da retomada (Estação Liberdade, 2003) e Fome de bola - Cinema e futebol no Brasil (Imprensa Oficial, 2006), entre outros livros.

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