13 minute read

A MULHER HITCHCOCKIANA: AUSÊNCIA, OPACIDADE, TRANSPARÊNCIA

A mulher hitchcockiana: ausência, opacidade e transparência

Thiago Stivaletti

Advertisement

H

Como todo grande cineasta, Alfred Hitchcock era fascinado pelas mulheres. Ou, melhor dizendo, era obcecado por elas. Fellini filmou as mulheres que habitavam sua memória desde a infância, quase sempre fortes símbolos da sexualidade masculina. Bergman penetrou na alma delas, revelando seus conflitos interiores mais íntimos e dolorosos. Hitchcock não tinha essa proximidade – a mulher em seus filmes nunca recebe um esforço de representação “real”. Ela é a agente ou o receptáculo das projeções emocionais dos homens, vítima ou algoz.

Hitchcock sabia que a força mais poderosa é aquela que não se vê, que não está dentro do plano, ao alcance do olho do espectador. E essa lei valia sobretudo para suas personagens femininas. Em seus filmes tidos como mais relevantes pela crítica, essas personagens podem ser classificadas em três graus de visibilidade.

As mulheres ausentes ou onipotentes são aquelas que dominam o filme sem nunca aparecer na tela. Não por acaso, em dois desses filmes, a mulher habita (ou assombra) o título do filme. As mulheres opacas são aquelas em torno das quais existe um forte mistério – mistério esse que reforça sua figura, e que os personagens masculinos tentarão a todo custo desvendar. Já as mulheres transparentes são aquelas das quais Hitchcock (e por consequência o espectador) tem pleno domínio das ações, sentimentos e pensamentos – e por isso são revestidas de menos encanto. Muitas vezes, elas são vítimas preferenciais dos homens ou das mulheres ausentes (e onipotentes).

Comecemos pela primeira categoria. Um dos primeiros testes de Hitchcock com as mulheres ausentes é ainda em sua fase britânica, no filme A dama oculta (The Lady Vanishes, 1938). Miss Froy (May Whitty) é uma simpática velhinha apresentada à protagonista, a mocinha Iris Henderson (Margaret Lockwood), logo no início de uma viagem de trem. A senhora desaparece misteriosamente. Iris pergunta sobre miss Froy a vários passageiros do trem, alguns dos quais a viram no restaurante ou em outras situações – e como nós espectadores pudemos atestar na primeira parte do filme. Mas a negativa dos outros passageiros é tão forte que se instala a dúvida: seria miss Froy algum tipo de projeção da cabeça de Iris? Em meio a uma comédia de humor bastante inglês, repleta de situações prosaicas, a dúvida se instaura, e a figura de miss Froy adquire nova dimensão. Ao final, tudo é esclarecido, e a simpática senhora volta a gozar de status real – ou transparente – aos olhos do espectador.

H

A experiência da mulher ausente se consolida no primeiro filme americano de Hitchcock, Rebecca, a mulher inesquecível (Rebecca, 1940). Rebecca de Winter é a falecida mulher de Maxim (Laurence Olivier) em torno da qual todos os personagens gravitam. Seu caráter é flutuante: as pessoas que a conheceram parecem devotar-lhe sentimentos que vão do carinho à grande admiração. As circunstâncias de sua morte permanecem envoltas em neblina, sendo revelas apenas no desfecho. Rebecca é a sombra que oprime a personagem transparente: a nova senhora de Winter (Joan Fontaine), que de tão frágil não recebe nem nome no filme. Sua transparência/ identificação com o espectador é construída desde o início – é ela que enuncia as narrações em off no início e ao fim do filme. Seu complexo de inferioridade, seu medo de não conseguir superar a figura da falecida estão estampados em suas reações. Sua fragilidade é reforçada em diversos planos gerais que mostram sua silhueta diminuída em meio aos imensos salões da mansão de Manderlay.

Para completar, Rebecca, o filme, ainda conta com uma personagem opaca: a senhora Danvers (Judith Anders), governanta da casa que nutre uma idolatria pela falecida e oprime psicologicamente a nova esposa de Winter. Na grande entrevista a Truffaut1, Hitchcock observa que Danvers nunca é vista andando – quando a cena começa, ela já está lá; quando a cena termina, ela já se foi sem que tenhamos visto sua saída. Uma solução de gênio para reforçar o mistério dessa mulher, de quem nunca saberemos a razão de tamanha admiração pela ex-patroa. Ao final, sua sombra em meio ao incêndio de Manderlay marca sua passagem definitiva para o mundo dos mortos, ao lado de Rebecca.

Mas a maior mulher ausente da obra de Hitchcock é a senhora Bates de Psicose (Psycho, 1960). O filme deve grande parte do seu impacto sobre os espectadores a essa figura que nunca aparece. Assim como o não-andar da senhora Danvers em Rebecca, a senhora Bates tem um andar estranhamente determinado quando avança para esfaquear o detetive Arbogast (Martin Balsam) no alto da escada de sua casa – um andar de animal predador, decidido e calculado. Ao final, a senhora Bates é ainda mais poderosa porque não é exatamente ausente – ela vive na cabeça do filho Norman.

O efeito da não-presença da senhora Bates só é igualado por outro grande vetor do filme: a transparência de Marion Crane (Janet Leigh). Sabemos tudo de Marion: seu temperamento, suas motivações, sua insegurança, seu arrependimento. Ela rouba o dinheiro do chefe porque essa é a única maneira de sustentar seu affair com Sam (John Gavin). Hitchcock nos faz “grudar” em Marion por meio daquele que é talvez o mais duradouro close de sua obra: a extensa cena em que ela dirige seu carro para sair de Phoenix rumo a uma nova vida. Uma grande sequência: enquanto Marion dirige, ela imagina a reação das pessoas que ela deixou para trás. Enquanto a câmera mostra em close o rosto e as reações de

1François Truffaut. Hitchcock/Truffaut: entrevistas (1983). Companhia das Letras, 2004, p. 127.

Marion, ouvimos em off as vozes do comprador do carro que conversa desconfiado com o policial, do chefe que indaga sobre Marion à sua colega secretária, da secretária que fala com sua irmã e do contador que discute com seu chefe sobre a burrada de confiar 40 mil dólares na mão dela. Nessa sequência-chave, Hitchcock força ao limite nossa identificação com Marion, a ponto de fazer-nos torcer por ela. Marion não é transparente apenas a nós, mas a Norman Bates, seu algoz. Pouco antes de morrer, Marion diz a Norman que “vai voltar a Phoenix para sair de uma armadilha”. Seu futuro algoz é o primeiro a saber que ela se arrependeu de seu crime (o roubo do dinheiro). E, esquecendo-se do nome falso que escreveu na ficha do hotel (Marie Samuels), ao se despedir de Norman na última conversa – na qual Norman fala bastante sobre si mesmo e seus medos –, Marion se trai e revela seu verdadeiro sobrenome, Crane.

A total transparência de Marion serve a um grande efeito: o assassinato súbito e repentino antes da metade do filme provoca um choque e nos deixa órfãos de identificação. Em sua entrevista a Truffaut2, Hitchcock admite que o grande motivo para aceitar dirigir Psicose foi essa morte repentina e inesperada da protagonista. Não surpreende que tenha se dedicado a “trair” o espectador com tanto afinco. Na cena do assassinato no chuveiro, o rosto de Marion é filmado em close enquanto recebe as facadas. Ao final, um tour de force da câmera, num lento zoom out no olho que vai se abrindo num movimento de espiral.

Movimento similar ao da abertura de Um corpo que cai (Vertigo, 1958), que abre com um close na boca e nos olhos de uma mulher apavorada. De dentro dos olhos, sai uma figura em espiral. Mas, ao contrário da transparência de Marion, Madeleine Elster (Kim Novak), a mulher obcecada pela morte, é uma mulher opaca – a nossos olhos e aos de Scottie (James Stewart), o detetive incumbido de investigá-la. A evidência dessa mulher é enganosa – e ao contrário de revelá-la, Hitchcock vai se dedicar ao longo do filme a erigir um grande mistério em torno dela.

Alguns procedimentos constroem essa opacidade. Quando Madeleine aparece pela primeira vez, seu primeiro close não é de frente, mas de perfil. Num movimento natural, ela se vira 180º, mostrando-nos seu outro perfil. Com uma presença sempre evanescente (em alguns momentos em transe) diante de Scottie, Madeleine sempre olha para um ponto de fuga fora do plano – algo que Antonioni também utilizaria dois anos mais tarde para as personagens de Monica Vitti em A aventura (L’avventura, 1960), A noite (La notte, 1961) e O eclipse (L’eclisse, 1962).

Um detalhe importante: sempre que vemos Madeleine, estamos vendo-a com os olhos de Scottie. Hitchcock consegue aqui transpor para os olhos de um personagem masculino aquilo que ele mesmo fez habitualmente com suas personagens femininas: despi-las de

2François Truffaut. Hitchcock/Truffaut: entrevistas (1983). Companhia das Letras, 2004, p. 270.

H

H

qualquer realidade e construí-las como puras fantasias masculinas. Nesse sentido, Scottie é seu alter ego dentro do filme, e Madeleine é talvez sua personagem mais emblemática. A opacidade atinge seu auge no momento que em Scottie veste Judy exatamente como a falecida Madeleine. Ao sair do banheiro, Judy/ Madeleine é vista embaçada, como um fantasma. Um plano soberbo com uma possível significação universal: essa seria a maneira pela qual os homens apaixonados em geral enxergam seu objeto de desejo, uma visão turva pela força do desejo.

Assim como Rebecca, Um corpo que cai reúne também os três graus de visibilidade da mulher. Carlota Valdes, a bisavó de Madeleine que teria enlouquecido, é a grande mulher ausente, a figura que define a personalidade de Madeleine. Já Judy Barton, a “sósia” de Madeleine que Scottie encontra por acaso na rua após a morte desta última, padece da transparência que tanto frustra o detetive. Quando Scottie lê a carta que Judy deixou, nós espectadores (junto com ele) ficamos sabendo de todos os seus pensamentos e sentimentos. Eis a grande maldição de Scottie: ao reencontrar a mulher que amou, ela não tem mais seu ar de mistério, é transparente como a mais comum das mulheres. Junto com a consciência do golpe no qual caiu, há também a desilusão amorosa com o declínio da figura da mulher.

Processo contrário é vivido por Lisa Fremont (Grace Kelly) em Janela indiscreta (Rear Window,1954). Dessa vez, o desejo amoroso é maior nela do que em seu amado, o fotógrafo Jeffries (James Stewart). Desta vez, o mistério (ou a opacidade) não está na mulher, mas nos eventos que ocorrem nas janelas em frente ao apartamento de Jeffries. Quanto mais Lisa se engaja na descoberta do mistério ao lado de Jeffries, mais ela se torna interessante aos seus olhos. Até a sequência em que penetra na casa do principal suspeito de assassinato, “entrando no quadro”, no campo de visão que constitui a obsessão maior do fotógrafo. De sujeito, Lisa torna-se objeto aos olhos de Jeffries, e só assim conquista definitivamente seu amor.

Chegamos então às duas últimas grandes mulheres opacas de Hitchcock, ambas encarnadas pela beleza glacial de Tippi Hedren. Em Os pássaros (The Birds, 1963), sua personagem, Melanie Daniels, é uma socialite que decide ir da cosmopolita São Francisco à provinciana Bodega Bay atrás do solteirão Mitch (Rod Taylor). Sabemos muito pouco sobre ela: sai com frequência nas colunas sociais de São Francisco; provocou certo escândalo ao pular numa fonte em Roma – numa clara alusão a A doce vida (La dolce vita, 1960), de Fellini, rodado três anos antes; revela em dado momento que não fala há tempos com a mãe.

Hitchcock nos dá pouquíssimas informações sobre Melanie, mas faz uma associação sutil e ambígua: a chegada dela a Bodega Bay coincide com o ataque dos pássaros. Numa alusão simbólica ao desejo interdito, é quando Melanie olha Mitch com paixão pela primeira vez – ela no barco, ele no píer à sua espera – que um pássaro a ataca pela primeira vez. Essa associação se insinua no inconsciente do espectador durante o filme, até se explicitar na cena em que, logo após um grande ataque dos pássaros, num café da cidade, uma moradora apavorada e enlouquecida diz para a câmera, encarando Melanie: “Por que eles estão fazendo isso?! Disseram que, quando você chegou, tudo isso começou. Quem é você? O que é

você? De onde você veio? Acho que você é a causa disso tudo. Acho que você é o mal!”. A personagem anônima explicita nessa fala o que a montagem sugere desde o início.

Assim, Melanie é uma das grandes mulheres de Hitchcock porque sua presença como elemento perturbador vem menos de suas próprias atitudes e mais de circunstâncias que lhe são externas. Suas ações indicam um bom caráter, mas o mundo à sua volta desaba em caos desde a sua chegada. Culpada ou não, seu grande castigo vem na cena em que ela sobe ao sótão e sofre um ataque brutal dos pássaros. Hitchcock repete aqui a técnica usada na morte de Marion Crane em Psicose: o ataque dos pássaros é filmado com muitos cortes, aumentado o efeito do terror.

Nesse filme, Hitchcock também fornece uma pista falsa na figura da mãe de Mitch, Lydia (Jessica Tandy). Logo que ela parece, podemos pensar que o grande conflito do filme se dará com ela – como em Psicose, ela é a mãe possessiva contra a nova presença feminina na vida do filho. Mas Lydia logo se revela uma personagem transparente, e não opaca: numa conversa franca com Melanie, confessa ter medo da solidão e ter consciência de que precisa se dar bem com a nova namorada do filho.

E por fim, a última grande mulher de Hitchcock, também alçada ao título do filme: Marnie (em Marnie, confissões de uma ladra/ Marnie, 1964). O cineasta demora alguns minutos para revelar o rosto dessa mulher. Antes, ficamos sabendo que ela foi autora de um grande roubo no escritório onde trabalhava. Quando ela aparece, acabou de trocar de identidade, pintou de loiro os cabelos pretos. Marnie é também uma figura opaca, uma cleptomaníaca assumida, de passado desconhecido, que anda de golpe em golpe. Até encontrar pela frente um homem, Mark Rutland (Sean Connery) disposto a desvendar esse mistério feminino. Nas palavras da própria Marnie, depois que eles se casam Mark vive preso a uma “obsessão patológica por uma criminosa”. Até o desfecho esclarecedor, Hitchcock se recusa a fornecer qualquer chave emocional para Marnie. Naquela que seria a grande cena de impacto emocional antes do final – um acidente fere o cavalo preferido de Marnie e obriga-a a abatê-lo com um tiro –, o rosto de Marnie é mostrado de perfil, recusando-nos um acesso mais dramático ao sofrimento dela.

Mas Marnie, o filme, encara uma problemática: ao final, a descoberta do “segredo do passado” supostamente liberta Marnie de sua compulsão por roubar, mas ao mesmo tempo a deixa mais vulnerável e dependente do marido, Mark, responsável maior por sua catarse. Mark realiza assim a obsessão maior de Hitchcock e (por que não?) de todos os homens: despir a mulher de seu mistério para assim melhor dominá-la, eliminando toda a insegurança que a figura feminina pode causar. De opaca e misteriosa, Marnie torna-se transparente, perdendo o interesse (para nós e talvez para o próprio Mark).

A mise en scène de Hitchcock reforça essa ideia. Na cena de abertura do filme, Marnie anda em linha reta paralela à linha do trem, uma mulher decidida que sabe o que quer. Ao final, após a revelação de seu trauma original, no momento em que ela sai da casa de sua mãe amparada por Mark, um plano geral da rua e Baltimore com dois grandes navios

H

H

de carga que fecham a vista do horizonte, indicando um futuro pouco promissor. Como definiu uma vez num debate com o público no cinema Grand Action em 2003 o crítico francês Jean Douchet, ao levar Marnie à catarse de seus traumas, Mark pode tê-la livrado da cleptomania, mas ao mesmo tempo extraiu dela a sua essência, aquilo que definia a sua personalidade, descaracterizando-a.

Para Hitchcock, o mistério feminino era tão importante quanto o suspense de determinadas situações. Nesse jogo de esconder e revelar a essência de suas mulheres, num movimento contraditório de fascinação distante e obsessão em decodificar o mistério, suas mulheres adquiriram status próprio em relação a sua obra.

tHiaGo stiValetti é repórter e crítico de cinema. Formou-se em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade de São Paulo e fez pós-graduação em Cinema e Sociedade na Universidade Paris X – Nanterre. Desde 2008, cobre o Festival de Cannes para o portal UOL. Mantém o blog Longos Planos (longosplanos.zip.net).

This article is from: