Hitchcock

Page 83

A mulher hitchcockiana: ausência, opacidade e transparência Thiago Stivaletti

Como todo grande cineasta, Alfred Hitchcock era fascinado pelas mulheres. Ou, melhor dizendo, era obcecado por elas. Fellini filmou as mulheres que habitavam sua memória desde a infância, quase sempre fortes símbolos da sexualidade masculina. Bergman penetrou na alma delas, revelando seus conflitos interiores mais íntimos e dolorosos. Hitchcock não tinha essa proximidade – a mulher em seus filmes nunca recebe um esforço de representação “real”. Ela é a agente ou o receptáculo das projeções emocionais dos homens, vítima ou algoz. Hitchcock sabia que a força mais poderosa é aquela que não se vê, que não está dentro do plano, ao alcance do olho do espectador. E essa lei valia sobretudo para suas personagens femininas. Em seus filmes tidos como mais relevantes pela crítica, essas personagens podem ser classificadas em três graus de visibilidade. As mulheres ausentes ou onipotentes são aquelas que dominam o filme sem nunca aparecer na tela. Não por acaso, em dois desses filmes, a mulher habita (ou assombra) o título do filme. As mulheres opacas são aquelas em torno das quais existe um forte mistério – mistério esse que reforça sua figura, e que os personagens masculinos tentarão a todo custo desvendar. Já as mulheres transparentes são aquelas das quais Hitchcock (e por consequência o espectador) tem pleno domínio das ações, sentimentos e pensamentos – e por isso são revestidas de menos encanto. Muitas vezes, elas são vítimas preferenciais dos homens ou das mulheres ausentes (e onipotentes). Comecemos pela primeira categoria. Um dos primeiros testes de Hitchcock com as mulheres ausentes é ainda em sua fase britânica, no filme A dama oculta (The Lady Vanishes, 1938). Miss Froy (May Whitty) é uma simpática velhinha apresentada à protagonista, a mocinha Iris Henderson (Margaret Lockwood), logo no início de uma viagem de trem. A senhora desaparece misteriosamente. Iris pergunta sobre miss Froy a vários passageiros do trem, alguns dos quais a viram no restaurante ou em outras situações – e como nós espectadores pudemos atestar na primeira parte do filme. Mas a negativa dos outros passageiros é tão forte que se instala a dúvida: seria miss Froy algum tipo de projeção da cabeça de Iris? Em meio a uma comédia de humor bastante inglês, repleta de situações prosaicas, a dúvida se instaura, e a figura de miss Froy adquire nova dimensão. Ao final, tudo é esclarecido, e a simpática senhora volta a gozar de status real – ou transparente – aos olhos do espectador.

H 83


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook

Articles inside

CRÉDITOS E AGRADECIMENTOS

4min
pages 414-416

ÍNDICE DE FILMES POR TÍTULO

2min
page 413

ENTREVISTA COM PETER BOGDANOVICH

16min
pages 357-364

UM JOVEM COM MENTE DE MESTRE - ENTREVISTA COM ALFRED HITCHCOCK

1hr
pages 365-412

AS MULHERES DE HITCHCOCK SOBRE HITCHCOCK – ENTREVISTA COM JANET LEIGH, TIPPI HEDREN, KAREN BLACK, SUZANNE PLESHETTE E EVA MARIE SAINT

34min
pages 341-356

ENTREVISTA COM GUS VAN SANT

19min
pages 333-340

INTRODUÇÃO (1966) DO LIVRO

23min
pages 315-324

AMAR HITCHCOCK

5min
pages 329-332

PREFÁCIO À EDIÇÃO DEFINITIVA DO LIVRO

5min
pages 325-328

HITCHCOCK DE ROHMER E CHABROL

13min
pages 309-314

HITCHCOCK CONTRA HITCHCOCK

22min
pages 301-308

DEVEMOS ACREDITAR EM HITCHCOCK?

6min
pages 297-300

A CONSTRUÇÃO CRÍTICA DE UM GÊNIO DO CINEMA Luiz Zanin

10min
pages 291-296

ALFRED HITCHCOCK - NÃO É APENAS UM FILME

23min
pages 281-290

FILMES PERDIDOS

2min
pages 259-262

LONGAS-METRAGENS

1hr
pages 133-242

A PARTE DO SONHO A PROPÓSITO DE HITCHCOCK E DALÍ, DO SURREALISMO E DO ONIRISMO

38min
pages 103-118

CURTAS-METRAGENS

2min
pages 243-246

DO CINEMA E DO ASSASSINATO COMO BELAS ARTES HITCHCOCK E A ESTÉTICA DO CRIME

15min
pages 119-125

LONGE DO MESMO, PERTO DO OUTRO

12min
pages 89-94

HITCHCOCK E O SONHO

19min
pages 95-102

A MULHER HITCHCOCKIANA: AUSÊNCIA, OPACIDADE, TRANSPARÊNCIA

13min
pages 83-88

O CINEMA DEVORADOR DE ALFRED HITCHCOCK

28min
pages 47-58

INTRODUÇÃO

16min
pages 17-26

AS TRAMAS DO OLHAR João Luiz Vieira

9min
pages 35-40

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DO LIVRO

15min
pages 69-74

O BEM, O MAL E O FEIO NA OBRA DE ALFRED HITCHCOCK

10min
pages 79-82

A MORTE E O FALSO CULPADO NO CINEMA DO JOVEM HITCHCOCK

20min
pages 59-68

O CINEMA DA CUMPLICIDADE

7min
pages 75-78

O PLANO-OLHAR HITCHCOCKIANO Luiz Carlos Oliveira Jr.

14min
pages 41-46
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.