A mulher hitchcockiana: ausência, opacidade e transparência Thiago Stivaletti
Como todo grande cineasta, Alfred Hitchcock era fascinado pelas mulheres. Ou, melhor dizendo, era obcecado por elas. Fellini filmou as mulheres que habitavam sua memória desde a infância, quase sempre fortes símbolos da sexualidade masculina. Bergman penetrou na alma delas, revelando seus conflitos interiores mais íntimos e dolorosos. Hitchcock não tinha essa proximidade – a mulher em seus filmes nunca recebe um esforço de representação “real”. Ela é a agente ou o receptáculo das projeções emocionais dos homens, vítima ou algoz. Hitchcock sabia que a força mais poderosa é aquela que não se vê, que não está dentro do plano, ao alcance do olho do espectador. E essa lei valia sobretudo para suas personagens femininas. Em seus filmes tidos como mais relevantes pela crítica, essas personagens podem ser classificadas em três graus de visibilidade. As mulheres ausentes ou onipotentes são aquelas que dominam o filme sem nunca aparecer na tela. Não por acaso, em dois desses filmes, a mulher habita (ou assombra) o título do filme. As mulheres opacas são aquelas em torno das quais existe um forte mistério – mistério esse que reforça sua figura, e que os personagens masculinos tentarão a todo custo desvendar. Já as mulheres transparentes são aquelas das quais Hitchcock (e por consequência o espectador) tem pleno domínio das ações, sentimentos e pensamentos – e por isso são revestidas de menos encanto. Muitas vezes, elas são vítimas preferenciais dos homens ou das mulheres ausentes (e onipotentes). Comecemos pela primeira categoria. Um dos primeiros testes de Hitchcock com as mulheres ausentes é ainda em sua fase britânica, no filme A dama oculta (The Lady Vanishes, 1938). Miss Froy (May Whitty) é uma simpática velhinha apresentada à protagonista, a mocinha Iris Henderson (Margaret Lockwood), logo no início de uma viagem de trem. A senhora desaparece misteriosamente. Iris pergunta sobre miss Froy a vários passageiros do trem, alguns dos quais a viram no restaurante ou em outras situações – e como nós espectadores pudemos atestar na primeira parte do filme. Mas a negativa dos outros passageiros é tão forte que se instala a dúvida: seria miss Froy algum tipo de projeção da cabeça de Iris? Em meio a uma comédia de humor bastante inglês, repleta de situações prosaicas, a dúvida se instaura, e a figura de miss Froy adquire nova dimensão. Ao final, tudo é esclarecido, e a simpática senhora volta a gozar de status real – ou transparente – aos olhos do espectador.
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