Caderno Comunicação, Educação & Artes

Page 1

C a d e r n o

Comunicação Educação Artes

&


Caderno

Comunicação, Educação e Artes


Farol do Forte Editora www.faroldoforte.com.br - F: (11) 3042.1040 Este livro pode ser distribuído via Internet, sob licença Creative Commons. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/ Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas. Referência ao autor conforme ficha catalográfica. O compartilhamento desta obra na Internet, por quaisquer meios ou recursos, deve manter o volume na íntegra, sem alterações ou edições de qualquer forma.

O arquivo original está disponível, na íntegra, para download gratuito no site da nossa livraria eletrônica Farol Digital (www.faroldigital.com.br/loja).

Praticidade e versatilidade Este livro pode ser adquirido na loja virtual da editora: Farol Digital – www.faroldigital.com.br/loja Ao comprar o livro em formato impresso, você estará colaborando com a editora e remunerando os esforços do autor, de acordo com a Lei de Direitos Autorais vigentes no país. Incentive a produção cultural e receba a praticidade e versatilidade que só um livro impresso proporciona.


Flavia Delgado (Org.) Lislei Carrilo (Org.)

Caderno

Comunicação, Educação e Artes São Paulo - 1ª Edição - 2017


Ficha Catalográfica

Imagens da capa: Creativetc (Pixabay) Diagramação: Rodolfo Nakamura


“Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver sede, dá-lhe água para beber." Provérbios 25:21



Caderno Comunicação, Educação e Artes

Índice 1. Chaplinianas: referências do protagonismo feminino na identidade artística e nas obras de Charles Chaplin .........................11 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6

Introdução................................................................................................... 12 As primeiras referências femininas ........................................................... 13 “Casamento ou Luxo”, um drama do destino sem Carlitos ...................... 19 Sophia Loren, o Carlitos de saia ................................................................ 23 Considerações finais .................................................................................. 26 Referências ................................................................................................. 27

2. Sociabilidade e relações de gênero em jornais e revistas do século XX ............................................................................................... 29 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6

Introdução................................................................................................... 29 Namoro e família no Brasil ........................................................................ 30 O flerte e o jogo social entre os sexos ....................................................... 35 Sociabilidade e meios de comunicação ..................................................... 37 Considerações Finais ................................................................................. 43 Referências ................................................................................................. 43

3. O Nilo invade o Amazonas: o sucesso das ‘novelas bíblicas’ em Manaus ............................................................................................ 47 3.1 Introdução................................................................................................... 47 3.2 TV Record, dramaturgia e as produções históricas ................................... 49 3.3 Audiência conquistada: a evolução de desempenho das produções bíblicas no Amazonas ......................................................................................... 57 3.4 Usos e gratificações: os ‘porquês’ do telespectador manauara ................. 62 3.5 Referências ................................................................................................. 68

4. Desejos e Paixões Pequena análise estética sobre o cinema de Pedro Almodóvar .................................................................................. 69 4.1 Objetivo ...................................................................................................... 69 4.2 Liberdade e independência: a obra de Almodóvar em confronto com a indústria do cinema .................................................................................. 70 4.3 A estética de Almodóvar: influências e características marcantes ........... 73 4.4 Considerações finais .................................................................................. 82 4.5 Referências ................................................................................................. 83

5. Documentário: simulação do mundo vivido e dissimulação de si mesmo................................................................................................. 85 7


Volume 1

5.1 A proposta de Coutinho ............................................................................. 98 5.2 Referências bibliográficas........................................................................ 101

6. Avaliações externas e sua relevância na fundamentação de índices de qualidade da educação: Um diagnóstico das políticas públicas que avaliam o ensino no Brasil........................... 105 6.1 6.2 6.3 6.4 6.5 6.6

Introdução................................................................................................. 106 Os parâmetros da qualidade do ensino .................................................... 108 O ENEM................................................................................................... 112 Os índices ................................................................................................. 115 A tendência............................................................................................... 118 Referências ............................................................................................... 120

7. O efeito prismático da informação nas redes sociais...................... 123 7.1 7.2 7.3 7.4

Introdução................................................................................................. 123 Revisão bibliográfica ............................................................................... 125 Considerações Finais ............................................................................... 130 Referências ............................................................................................... 131

8. Redes sociais e rastreabilidade digital: reflexões sobre as menções públicas em torno do acidente ambiental da Samarco em Mariana ......................................................................... 133 8.1 8.2 8.3 8.4 8.5 8.6

Introdução................................................................................................. 133 Opinião pública e sites de redes sociais................................................... 136 Análise das menções públicas nos sites de redes sociais ........................ 140 Rastreabilidade digital e a perspectiva da TAR ...................................... 147 Conclusão ................................................................................................. 151 Referências ............................................................................................... 155

9. O Jornalismo e o Cinema: Uma análise de produções fílmicas com a temática direcionadas à profissão ......................................... 157 9.1 9.2 9.3 9.4 9.5

Introduçâo................................................................................................. 158 Relação - O Cinema e o Jornalismo ........................................................ 159 A exibição do jornalismo visto no cinema .............................................. 164 Considerações Finais ............................................................................... 172 Referências ............................................................................................... 173

10. Responsabilidade não faz mal a ninguém: artistas e intelectuais na construção da TV brasileira na década de 1970....................................................................................................... 175 10.1 Introdução................................................................................................. 175 10.2 O Teatro.................................................................................................... 176 10.3 A Televisão .............................................................................................. 179 8


Caderno Comunicação, Educação e Artes

10.4 Referências ............................................................................................... 187

11. AB, 18-35, Ambos os Sexos. Público-Alvo. Afinal, o que é isso? ...................................................................................................... 188 11.1 11.2 11.3 11.4 11.5 11.6 11.7 11.8 11.9

Introdução................................................................................................. 188 Porque o assunto é relevante .................................................................... 190 Diferentes âmbitos de Públicos-Alvo ...................................................... 191 Objetivos da Campanha e Agentes de compra ........................................ 193 Onde encontrar o público-alvo ................................................................ 195 Relação do Público-Alvo com Macroambiente ...................................... 196 Bagagem Cultural .................................................................................... 196 Conclusão ................................................................................................. 197 Bibliografia............................................................................................... 198

9


Volume 1

10


Caderno Comunicação, Educação e Artes

1. Chaplinianas: referências do protagonismo feminino na identidade artística e nas obras de Charles Chaplin Alex Carolino FRANCISCO* Resumo Charles Chaplin (1889-1977) cresceu na Inglaterra vitoriana rodeado de artistas. Desde a infância, seu olhar atento e curioso para o trabalho de atores, cantores e comediantes da época, ajudaram-no a desenvolver e executar filosofia e estética artísticas que, até hoje, servem de objeto para estudos acadêmicos. São os emblemáticos filmes de sua autoria que eternizaram na história do cinema mundial o notável vagabundo Carlitos. Ao olhar para uma camada mais profunda do ator e diretor, encontra-se a mãe, a atriz Hannah Chaplin (1865-1928), figura importante na construção de sua identidade artística. Visionário, o comediante britânico contribuiu para a evolução e sofisticação do primário cinema e da narrativa audiovisual ao perceber no protagonismo feminino uma forma de amadurecer sua reflexão sobre o mundo e a arte. Assim, encontra-se o rompimento do artista com velhos padrões, a tentativa de explorar a versatilidade produzindo o dramático “Casamento ou Luxo” (1923) e, no fim de sua jornada, um inteligente resgate à raiz burlesca que lhe deu notoriedade, com o controverso “A Condessa de Hong Kong” (1967). Há uma feliz coincidência entre esses pontuais feitos: o icônico Carlitos sai de cena para dar espaço às mulheres interpretadas pelas atrizes Edna Purviance (1895-1958) e Sophia Loren. Palavras-chave: cinema; Charles Chaplin; protagonismo feminino; narrativa audiovisual; identidade artística.

11


Volume 1

1.1

Introdução

Falar da obra de Charles Chaplin é correr riscos. É arriscar-se a tentar fazer um panorama e, certamente, não conseguir abranger sua importância para o cinema como um todo, já que ele se expressou em todas às áreas de uma produção audiovisual. É arriscar-se a tentar entender a psicologia e a filosofia por trás de sua obra e, assim, entrar em um baú de infinitas referências e experiências pessoais sem uma única definição, e sair de tudo isso com uma metáfora: Chaplin é um enorme vitral, composto de muitas cores e muitos pedaços, que, reunidos em harmonia, compõe sua grande imagem. Portanto, a escolha desse trabalho é olhar para o lado, para o tipo de personagem que sempre figurou na companhia de Carlitos nos pastelões e melodramas: as mulheres ou as personagens femininas. Objetivamos esse universo de pesquisa aos filmes de longa-metragem, por estar neles um melhor aproveitamento da persona feminina em cena, bem como o olhar mais profundo do ator-diretor sobre essas personagens em diferentes ângulos. Para ser ainda mais precisos, opto por um recorte pontual que, naturalmente surgiu ao debruçar-me sobre a filmografia de Chaplin: as únicas personagens em filmes de longa-metragem que assumiram o posto de protagonista em substituição ao Vagabundo ou a um papel interpretado por Chaplin. Há duas obras que surgem com essa proposta e têm movimentos de extrema importância na carreira do astro burlesco: a primeira marca sua inédita empreitada puramente dramática, rompendo com a comédia que o consagrou; a segunda é sua derradeira produção, com um resgate ao humor ingênuo, com uma mulher com os trejeitos de Carlitos e a aposta no gênero que, para a época, fora considerado ultrapassado. Vamos a elas: “Casamento ou Luxo” (1923) e “A Condessa de Hong Kong” (1967), respectivamente. Para o estudo, esforço-me em aprofundar na literatura pertinente ao tema, como ensaios, monografias, livros técnicos e biografias no desejo de encontrar as referências femininas que fizeram parte da construção artística 12


Caderno Comunicação, Educação e Artes

de Charles Chaplin, seu olhar sobre a estética, a interpretação e a personagem da mulher dentro de uma narrativa audiovisual. Fez-se necessário também debruçar-me sobre o pensamento crítico da imprensa, cineastas, pesquisadores e formadores de opinião sobre o trabalho do diretor para com os filmes que são o centro do nosso estudo e relacionar esses pontos de vista com os momentos históricos, sociais, culturais e econômicos em que estão inseridos.

1.2

As primeiras referências femininas

Diante da icônica imagem em preto e braço de um homem de chapéu-coco e bengala de junco, bigode acentuado, calças sanfonadas, sapatos bem maiores que os pés e com olhar e sorriso que vão do ingênuo ao sagaz em instantes, é fácil recordar do paradoxo personagem Carlitos e, automaticamente, associá-lo a seu criador, Charles Chaplin (1889-1977). O mítico vagabundo concebido pelo ator e diretor britânico no início dos anos 1910 foi além de sua época, encantou plateias e tornou-se referência para atores e diretores de cinema, seja pela concepção estética ou por lançar um novo olhar sobre o modo de fazer e pensar o humor. Chaplin é fruto do meio artístico. O pai, Charles Spencer Chaplin (18631901), iniciou a carreira como mímico, no Teatro Poly Variety, em 1887. A mãe, Hannah Hill Chaplin (1865-1928), apresentava-se em salas de música britânicas desde os 16 anos e ficou conhecida com o nome artístico de Lily Harley. Ela era uma mulher de estatura baixa, sem grandes traços de beleza e que impressionava pela voz ao cantar nas casas de música da época, como relembrou o próprio Chaplin em sua autobiografia. É debruçado sobre a memória do artista que encontro passagens que comprovam sua imersão no teatro e na comédia desde a primeira infância. O pequeno Charlie, apelido que recebera na época, acompanhava a mãe, uma expectadora assídua dos vaudevilles: “Lembranças de momentos épicos: a visita ao Royal Aquarium, onde assistia em companhia de mamãe aos 13


Volume 1

espetáculos de variedades – ‘Ela’, uma moça a sorrir entre chamas, as sortes de meio xelim – mamãe precisava me levantar nos braços para que eu enfiasse a mão num grande barril cheio de serragem e lá acompanhasse um embrulho de ‘surpresa’, que continha um apito de açúcar que não apitava e um broche de rubi de brinquedo. Depois, uma ida ao Catenbury Music Hall, onde, sentado, numa cadeira de veludo vermelho, via meu pai representar...” (CHAPLIN, 1964, p. 35). Essa passagem reforça os cenários que permeiam a filmografia de Chaplin, como as grandes casas de variedades, além da pobreza representada pela busca de alguns centavos para viver, e os sabores da infância. Após a separação, Hannah não exigiu que Charles pagasse pensão, pois, na época, ganhava 25 librar por semana como estrela de teatro e conseguia sustentar Charlie e o caçula Sydney (1885-1965). Porém, por causa da laringite, fora perdendo a voz, inúmeras vezes reduzidas a fiapos de som seguida de inúmeras vaias, e com ela os contratos de trabalhado. Foi por causa do infortúnio da mãe que, aos cinco anos, Chaplin subiu ao palco pela primeira vez: “Mamãe em geral me levava para o teatro à noite, de preferência a deixar-me sozinho em quartos de pensão. Estava ele então representando ‘A Cantina’, no Aldrshot, na época um teatrinho poeira frequentado principalmente por soldados. (...) uma plateia grosseira para qual tudo servia de pretexto a risotas e caçoadas. (...) estava de pé nos bastidores quando a voz de mamãe falhou, reduzindo-se a um mero sussurro. O público começou a rir (...). (...) mamãe se viu obrigada a sair de cena (...). (...) recordo-me do homem a me levar pela mão, e depois de algumas palavras de explicação ao público, deixar-me sozinho no palco. (...) diante das caras da plateia envolta e fumaça, comecei a cantar, acompanhado pela orquestra” (CHAPLIN, 1964, p. 36). Neste trecho, nota-se a exposição do artista ao improviso. A seguir, destacase o desenrolar dessa inusitada estreia e a possível primeira relação de 14


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Chaplin com o humor, ocasionada do erro, da inocência, da situação burlesca, tal como a comédia que seu personagem Carlitos expressou ao mundo: “No meio da cançoneta, uma chuva de moedas desabou sobre o palco. Imediatamente parei e disse que primeiro iria apanhar o dinheiro – cantava o resto da cantiga depois. Grande gargalhadas. O empresário reapareceu com um lenço e me ajudou na colheita. Desconfiei que ele fosse fica com ela. Essa desconfiança foi transmitida à plateia e redobraram as gargalhadas, especialmente quando o empresário saiu do palco com o dinheiro e eu o segui ansiosamente. Só depois que ele entregou o dinheiro a mamãe foi que voltei ao palco e continuei a cantar. Sentia-me completamente à vontade.” (CHAPLIN, 1964, p. 39) A perspicácia do pequeno artista, possivelmente fruto da observação de humoristas no palco, aliada a ambição de uma vida melhor, também está presente no desfecho da seguinte recordação: “Cantava para o público, dançava e fiz várias imitações, inclusive de mamãe cantando a sua marcha irlandesa (...). E repetindo o estribilho em toda a minha inocência, eu imitei a voz de mamãe a falar – e fiquei surpreso com o efeito que isso causou na plateia. Risadas e aclamações, nova chuva de moedas; e quando mamãe reapareceu no palco para levar-me, sua presença desencadeou tremendos aplausos. Essa noite marcou a minha primeira aparição em cena e a última de mamãe” (CHAPLIN, 1964, p. 40). Com Hannah distante dos palcos, o sustento da família ficou cada vez mais difícil e, por diversos momentos, beiraram à miséria e mendicância. Nos relatos de Chaplin em sua autobiografia, a mãe afastara-se do convívio com os colegas do teatro de variedades, filiara-se à igreja protestante, vendera muitos pertences de sua época como atriz, mas mantivera guardada uma mala com os figurinos que mais gostava. Vez ou outra, Hannah relembrava os tempos áureos e divertia os filhos. “Representava para nós não apenas o 15


Volume 1

seu próprio repertório de variedades, como imitava outras atrizes que vira trabalhar no chamado ‘teatro autêntico’.” (CHAPLIN, 1964, p. 43). Apresenta-se nesse trecho como o julgo artístico da mãe era passado para Chaplin ainda criança. Na análise da literatura, “(...) ele presta verdadeiro tributo à dedicação de Hannah para educa-lo, que corrigiu a sua dicção e deu exemplos constantes de talento teatral” (SANCHES, 2003, p. 15). À mãe, Chaplin ainda dá os créditos de seu domínio sobre o teatro gestual: “Duvido que, sem minha mãe, conseguisse ter êxito na pantomima. É a mima mais prodigiosa que vi até hoje... Foi olhando-a e observando que aprendi, não só a traduzir emoções com o rosto e o corpo, como a estudar o homem” (CHAPLIN, 1919). Ainda sobre a influência da mãe na formação artística de Chaplin, faz-se necessário o estudo de duas vertentes que ajudam a compor a filosofia chapliniana bem como a visão de mundo que marcou a filmografia do artista. Não esqueçamos, porém, que ambos apontamentos também dizem respeito a formação social de Chaplin, mas atemo-nos a contribuição artística, assim como a origem dessa influência, que é o feminino, aqui representado pela figura materna. A primeira vertente apontada é de cunho religioso. A família de Chaplin era protestante e por diversas vezes a maneira encontrada por Hannah para pregar os ensinamentos de Cristo era por meio da encenação. São os relatos autobiográficos que apontam como a mãe interpretava os personagens bíblicos, além de ressaltar o caráter humanitário de Cristo. A formação religiosa data da infância de Chaplin, aos cinco anos de idade. “(...) realizou naquela hora a mais luminosa e comovente interpretação do Cristo que jamais vi ou escutei. Falou de sua tolerante compreensão; da mulher pecadora que ia ser apedrejada pela multidão (...). Falou do ódio e do ciúme dos sumos sacerdotes e fariseus [por Jesus] (...). E o seu último grito de agonia: ‘Meu Deus, por que me abandonastes? (...) ‘– Você vê – dizia mamãe – como Ele era humano; como todos nós também padecia de dúvidas.” (CHAPLIN, 1964, p. 44).

16


Caderno Comunicação, Educação e Artes

A segunda vertente a destacar é a dos altos e baixos financeiros da vida artística, exemplificados pela situação da mãe. Em diversas passagens da autobiografia, Chaplin descreve os extremos vividos pela família, que sempre mudava de residência e ora tinha o que comer, ora sofria com a fome, todas dentro do convívio com artistas da época, tanto os bem como os malsucedidos. Em duas passagens bastante peculiares, Chaplin relembra o contraste de realidades em que viviam duas amigas de sua mãe, ambas atrizes. Uma delas, que se casara com um homem rico, os convidara para passar o verão em sua luxuosa mansão. Empregados, mesa farta e boa roupa fizeram parte da rotina do pequeno por um tempo. Porém, de volta à pobreza, o choque deu-se quando Chaplin sentiu-se envergonhado por ter de andar com a mãe e uma outra companheira do teatro que não se dera tão bem na vida e mendigava pelas ruas da cidade. “Essas variações demonstraram um fator importante na infância de Charles Chaplin: ele viveu entre o luxo e a mais plena miséria, mas sem sair ou distanciar-se do mesmo grupo social dos atores do teatro de variedades londrino” (SANCHES, 2003, p. 16). Estes dois apontamentos nos remete as situações vividas por Carlitos nos filmes de comédia. São da visão do artista a calma, a paciência e a tolerância diante da adversidade (visto sua origem de vagabundo maltrapilho), assim como os extremos cenários dos filmes, com relatos de casas paupérrimas a grandes salões luxuosos. Em cena, está em jogo o olhar para o humano por meio do humor e, ainda, o perfil solidário e esperançoso, traço da fé religiosa, que podemos observar na trama de filmes como “O Garoto” (1921), em que Carlitos encontra uma criança em um cesto pela rua, tenta se livrar dela, mas passa a amá-la e a cuidá-la após diversos fatos que impedem a separação. Como aponta o escritor Angel Zúñiga (1911-1994), no livro “La Máscara de Charlot” (1954), ao analisar o filme “Casamento ou Luxo” (1923), “(...) Chaplin mede as pessoas de acordo com elas próprias, o que constitui o melhor dos critérios humanos. (...) E, como sempre, sua visão trágica da vida busca a ternura para se converter em tristeza. Em resignação. Em humilhação. Em poesia, acima de tudo”. 17


Volume 1

Ainda debruçado sobre a autobiografia de Charles Chaplin, busco referências femininas em sua construção artística e que não fossem de cunho familiar ou de relacionamento afetivo. A primeira delas se dá ainda durante a fase teatral, com o trabalho da atriz Marie Lloyd (1870-1922), que fez grande carreira em teatro musical o final do século 19. Seu trabalho ficou conhecido como o humor de duplo sentido, ou seja, sua performance nos palcos era repleta de insinuações, o que arrancava o sorriso do público. Criança, Chaplin ainda estava no grupo Oito Rapazes de Lancashire quando teve a oportunidade de trabalhar com Marie. Possivelmente, a postura da atriz para com o trabalho nos palcos deva ter inspirado o artista, que, durante os anos, ficou conhecido por usar métodos rigorosos em seu trabalho no cinema. Chaplin recorda: “jamais conheci artistas mais séria e conscienciosa. Eu ficava a olhar de olhos arregalados aquela mulherzinha inquieta, gorducha, a andar nervosamente de um lado para outro, por trás do cenário, irritada e apreensiva, até que chegava o seu momento de aparecer. Então, imediatamente, mostrava-se alegre e calma” (1964, p. 70). O próprio Chaplin aponta a possível relação entre seu método de trabalho antes de entrar em cena com o de Marie no seguinte trecho: “Meu próprio método é muito pessoal: antes de entrar no palco, sinto-me extremamente nervoso e excitado. E, nesse estado, fico tão exausto que na hora de entrar em cena alcanço a necessária serenidade” (1964, p. 302). Já na fase cinematográfica, Chaplin teve contato com a comediante norteamericana Mabel Normand (1892-1930). Ela já fazia sucesso em filmes quando o ator e diretor começou a se aventurar pela sétima arte. Cabe aqui um interessante recorte da autobiografia de Chaplin que aponta seu olhar crítico sobre as comédias produzidas pela pioneira Keystone Comedy Film Company. “Algum dia vira uma comédia da Keystone?, perguntou-me o sr. [Charles] Kessel [um dos proprietários]. Claro, eu tinha visto várias. Mas eu não lhe disse é que eu as considerava uma crua mistura de grosseria e trambolhões” (1964, p. 171). Apresenta-se a primeira análise do artista sobre uma personagem feminina no principiante cinema e, justamente, sobre o trabalho de Mabel, como está registrado no seguinte relato: 18


Caderno Comunicação, Educação e Artes

“Contudo, uma bela garota de olhos negros, chamada Mabel Normand, na verdade encantadora, entrando e saindo de algumas cenas, justificava plenamente a existência desses filmizinhos [comédias da Keystone]. Mesmo sem ter um tremendo entusiasmo pelas comédias da Keystone eu compreendia o valor que elas teriam do ponto de vista da minha publicidade pessoal” (CHAPLIN, Charles, 1964, p. 171). Mabel ainda seria a porta de entrada de Chaplin para as produções cinematográficas. Foi dela a primeira cena que o artista pode ver sendo gravada dentro de um estúdio, quando seu interesse pela arte de filmar foi da curiosidade para uma possibilidade real. “Numa das montagens, Mabel Normand batia furiosamente numa porta, gritando: “Deixe-me entrar!” Depois, a câmera parava de trabalhar. Era só isso o que se filmava na ocasião. Foi uma revelação para mim, que ainda não tinha a menor ideia de que o cinema fosse feito aos pedacinhos como um jogo de armar” (CHAPLIN, 1964, p. 175).

1.3 “Casamento ou Luxo”, um drama do destino sem Carlitos Cabe neste momento situar o leitor de que as comédias de Chaplin alcançaram grande êxito desde o princípio. Entre os críticos e os artistas da época, com seus curtas-metragens, Chaplin conseguira criar um personagem que dialogasse com o cinema, uma arte então em pleno processo de desenvolvimento. Já no início dos anos 1920, o cinema já se reinventara e começara a apostar em produções mais ambiciosas, de longa duração e que oferecessem um novo olhar sobre a arte de contar histórias. Dominando a sétima arte, Chaplin passara para um novo status como artista, dessa vez negociando contratos milionários, bilheterias que venceram fronteiras e com sucesso por onde quer que fossem exibidas suas películas, tornando-se sinônimo de grande audiência. Em novembro de 1922, Chaplin parte para um novo projeto no qual pretende explorar novos tipos de produção e buscar outros significados 19


Volume 1

para suas histórias. “Em meu primeiro drama sério, ‘Casamento ou Luxo’, eu me empenhei pelo realismo, em ser como na vida real. O que você verá aqui é a vida que vi pessoalmente – a beleza, a tristeza, o caráter, a alegria, tudo o que é necessário para tornar a vida interessante”, disse Chaplin em entrevista concedida em 1923. Ele ainda discorre sobre suas buscas com o gênero dramático: “A história é íntima, simples e humana, apresentando um problema tão antigo quanto o tempo, mostrando-o com tanta verdade quanto pude colocar nela – dando-lhe um tratamento tão realista quanto fui capaz de conceber”. “Casamento ou Luxo” é considerado um ousado retrato de costumes que conta a história de Marie, moça pobre de uma cidade francesa, que se apaixona perdidamente por Jean. Mas as pressões familiares, o destino e uma grande tragédia separa os apaixonados. Anos depois, em Paris, Marie torna-se a amante de um homem rico e esnobe e reencontra Jean, agora um artista, disposto a reconquistar a amada. Pela primeira vez, Chaplin sai de cena e cede o lugar do célebre Carlitos, certeza de grande bilheteria, para uma protagonista mulher. O astro fez questão de se explicar para seus seguidores no texto que abre a película: “Para evita qualquer malentendido, gostaria de precisar que não apareço neste filme. É o primeiro drama sério escrito e realizado por mim. Charles Chaplin” (1922) Para a protagonista do drama, o ator-diretor escolheu a atriz Edna Purviance (1895-1958) que fora a estrela de muitas de suas comédias; foram 37 ao todo. Chaplin e Edna tiveram um envolvimento amoroso que começou logo nos primeiros anos de parceria entre eles. “A carreira dela [Edna] inda me interessava, embora já estivéssemos afastados do plano afetivo. Mas, observando-a com objetividade, percebi que se encorpara num jeito de matrona, sem corresponder ao tipo feminino que eu tinha em vista para novos filmes”, disse o astro em sua autobiografia, numa clara reflexão sobre a estética feminina adotada para sua obra. Antes da fama, Edna trabalhava como secretária em São Francisco. Sua expressão bastante sisuda não agradou a Chaplin em um primeiro contato. Ele não enxergou chances de uma moça tão série atuar em seus filmes 20


Caderno Comunicação, Educação e Artes

cômicos. Mas a performance de Edna nos testes tanto agradou que ela passou a ter espaço cativo nos curtas do astro. Ela também fora a preferida quando Chaplin passou a dirigir longas. Para registro, Edna foi a mãe que abandonou o personagem-título, em “O Garoto” e, depois, a jovem francesa açoitada pelo destino, em “Casamento ou Luxo”. Edna fora elogiada pela crítica por sua habilidade em interpretar de mulheres ricas e sofisticadas a jovens pobres e sofredoras com maestria. Na análise da especialista em cinema clássico e fundadora do site Cinemaclássico, Carla Marinho, “Edna era a parceira ideal porque fazia exatamente o que Chaplin precisava em uma atriz: executava o que ele pedia, da forma como ele mandava. E como era pessoa doce, parceira. [...] Os dois eram vistos por todos os lugares, jantavam e dormiam juntos quase todas as vezes. Edna também teria feito inúmeros abortos de Chaplin, segundo a biografia ‘Chaplin, o Contraditório Vagabundo’, o que teria deixado ela doente em várias ocasiões, atrasando algumas filmagens”. O ponto de partida de Chaplin para a criação da protagonista de “Casamento ou Luxo” é justamente a realidade oposta a da personagem Marie no início do filme. Ele resgatara uma ideia que teve após conviver com a socialite Peggy Hopkins Joyce (1893-1957), conhecida como uma caça-dotes na época. Seus cinco casamentos a fizera ser dona de uma fortuna de US$ 3 milhões e seu maior anseio era sempre um novo casamento. Em “Chaplin – uma Biografia Definitiva”, o escritor inglês David Robinson comenta as histórias que Peggy contou ao astro e que serviram de inspiração para o filme: “Durante os encontros, ela o tinha relegado com suas pitorescas reminiscências. Descrevera seu caso com o rico e famoso playboy editor parisiense Henri Letellier. Também lhe contou sobre o jovem que tinha cometido suicídio por estar desesperado de amor por ela, dando-lhe a desculpa para usar alguns vestidos de luto muito requintados” (ROBINSON, 1985).

21


Volume 1

A aposta de Chaplin no melodrama pautado por elementos como vingança, violência, perda da inocência, família, coincidências, reviravoltas e redenção não é gratuita e está, segundo autor-diretor, sob a base de uma reflexão da figura feminina da época, como ele apresenta no seguinte trecho de uma entrevista concedida em 1924: “Quando eu trabalhava em ‘Casamento ou Luxo’, tentei expor com o máximo de clareza e exatidão certa fase da vida de uma pessoa, mostrar sem alteração nem supressão o ponto de vista cósmico de uma mulher sentimental sobre todas as coisas. Minha ideia central era, naturalmente, que ela não fosse forte o suficiente para enfrentar uma vida de tantos assaltos”. Ou seja, o apelo dramático empregado por Chaplin no filme está na personalidade fragilizada da protagonista Marie. O ator-diretor ainda vai além quando coloca a personagem no ambiente mundano de Paris e, nesse novo cenário, Chaplin a utiliza para refletir sobre o contraste entre tempo, espaço, maturidade e sociedade. “Entre o prólogo e o epílogo marcadamente melodramáticos, o entrecho parisiense adotas os recursos da crônica de costumes, com situações ligeiras temperadas com ironia e sofisticação. [...] o cinismo emerge como estilo de vida de um retrato de costumes liberais e avançados” (CARLOS, 2012, p. 15 e 17). Após a estreia, “Casamento ou Luxo” teve uma recepção fria, ficando apenas quatro semanas em cartaz. Em uma inflada crítica do cineasta russo Vsevolod Pudovkin (1893-1953) na série de livros “Kino” (1927), Chaplin se afastou da virtuose do cinema com o drama de Marie: “Considero esse tipo de filme não só inaceitável por seu conteúdo ético, mas julgo também que ele se torna capaz de afastar o cinema de seus meios específicos excepcionais, de sua poderosa virtualidade. Para Chaplin, toda a riqueza dos acontecimentos ligado à complexa existência da sociedade humana não merecia ser representada em seu filme, pois, já há muito tempo, seu pensamento circunscreveu tudo isso numa 22


Caderno Comunicação, Educação e Artes

série de dogmas ocos. Chaplin, que vive num meio vazio, encontrou facilidade em separar o pequeno mundo de seus quatro personagens de todo o resto, pois que o resto, tanto para ele quanto para o público ao qual se dirige, é um mundo de ideias preconcebidas, imutáveis e sem interesse”. 1.4

Sophia Loren, o Carlitos de saia

Em pleno anos 1960, Charles Chaplin, já com 78 anos, tira da gaveta um projeto criado há 30 anos e que escrevera para a atriz Paulette Goddard (1910-1990). Em seu retorno ao cinema, quando todos achavam que tinha se aposentado, ele decide apostar na comédia pastelão e no estilo que o consagrou. Quis o destino que fosse seu derradeiro filme, “A Condessa de Hong Kong”, o primeiro a ser totalmente custeada por um grande estúdio, a Universal – até então, Chaplin produzia de maneira independente. E, com ele, o mítico ator sai de cena mais uma vez para dar lugar a uma protagonista mulher. Uma exilada russa que entra como uma clandestina em um navio americano e se esconde na cabine de um diplomata decidida a conquistar uma nova vida nos Estados Unidos. A bela mulher é Natascha. Sua intérprete é a estrela americana Sophia Loren, e sobre sua interpretação recai todos os dotes burlescos que fizeram Carlitos ser sucesso nos anos 1920. O filme ainda é singular por ser o único em cores da carreira de Chaplin e por seu elenco estelar. Primeiro escalão de Hollywood, Marlon Branco (1924-2004, no papel do diplomata Ogden) contracena com Sophia. Ela, uma deusa italiana, era um dos atrativos da obra. Ele estava no auge de sua maturidade interpretativa. O encontro de ambos em uma obra de Chaplin é, de fato, um momento único para o cinema mundial e, na época, fora esperado com bastante entusiasmo. A escolha artística de Chaplin para contar as desventuras da protagonista foi a de filmar grande parte do filme em cenários que imitam o interior de um transatlântico. As cenas são então limitadas espaços pequenos característicos desse tipo de ambientação e remete-nos aos sets dos primeiros curtas da carreira do diretor. 23


Volume 1

“Essa configuração especial favorece o aparecimento das ações cômicas, momentos de puro deleite visual que lembram as comédias de erros dos velhos filmes mudos, com batidas de porta, sustos, entradas e saídas bruscas, corre-corre, perseguição de gato e rato” (GUIMARÃES, 2012, p. 12). A avaliação de Guimarães aponta claramente que Natascha, dentro do ambiente citado anteriormente, revive os trejeitos de Carlitos a cada fotograma. “Sophia Loren vira um clown, dá saltos homéricos toda vez que alguém bate à porta da cabine, veste roupa grande demais para o seu tamanho, chapeuzinho e sai caminhando pela cabine com passos de Vagabundo. Nessas ocasiões, a referência visual da performance de Loren é Carlitos. Sophia é um Carlitos de saias” (GUIMARÃES, 2012, p. 12 e 13). O desempenho de Sophie como protagonista em um filme de Chaplin também foi analisado pelo escritor Francis Bordat, no livro “Chaplin Cinéaste” (1998). Ele a destaca como a mais próxima do fenômeno Carlitos. Diz ele que “o principal interesse de ‘A Condessa de Hong Kong’ consiste numa espécie de desafio cinematográfico no qual Chaplin, no fim de sua carreira, reintroduz no cinema sonoro atual não apenas um dos acatares mais semelhantes a Carlitos (a própria condessa, que mesmo sob as formas voluptuosas de Sophia Loren reencarna uma ‘senhorita Carlitos’), mas toda uma escrita do burlesco mudo”. Antes de ser dirigida por Chaplin, Sophia já tinha uma carreira consolidada na Europa e indicações ao Oscar por trabalhos no cinema italiano e francês. Em 1962, Sophia foi a primeira mulher a levar a desejada estatueta dourada de melhor atriz em um filme de língua não inglesa. Seu trabalho em “Duas Mulheres” (1962), não apenas lhe rendeu o prêmio como a fez ter fama internacional. Foi pelas mãos do diretor Vittorio de Sica (1901-1974) que a atriz se tornou a personificação da mulher desejada e voluptuosa, 24


Caderno Comunicação, Educação e Artes

estereótipo que a atriz carregou por longos anos. “Chaplin conseguiu provar que Loren era uma ótima comediante e a dirigiu de maneira a ressaltar suas características físicas para a comédia pastelão, assim como fazia com seus antigos parceiros de elenco” (GUIMARÃES, 2012, p. 35). A italiana tinha 32 anos quando gravou “A Condessa de Hong Kong”, era um dos rostos mais admirados do cinema mundial e uma das poucas atrizes a serem reconhecidas pelo talento e pela beleza, como apontoa o crítico Guimarães. Em sua análise sobre a última obra de Chaplin para o livro “Chaplin, Retrospectiva Integral” (2012), o jornalista Marcelo Miranda avalia que os melhores momentos do filme estão na figura de Natascha: “[...] Os melhores instantes, o de real graça, em ‘A Condessa de Hong Kong’ são aqueles que independem da trama – ou seja, os que funcionam dentro do filme de maneira ‘vertical’. É Loren tentando vestir roupas compradas por brando e descobrindo ser menor do que as vestes. São idas e vindas da moça, entre dois cômodos, na insistência de dormir no sofá. Num certo momento, ela divide o quarto com o mordomo bêbado de Brando, numa longa cena sem palavras cujo prazer se equilibra entre o ‘nonsense’ dos movimentos do personagem tentando ajeitar na cama a expressão cada vez mais desesperada de Loren” (2012, p. 38). O último suspiro burlesco de Chaplin até hoje divide opiniões. Em seu lançamento, “A Condessa de Hong Kong” teve uma recepção fria com fortes críticas da imprensa apontando a película como antiquada e anacrônica. Naquela época, o cinema estava em pleno processo de superação de velhas fórmulas e ousadia de Chaplin em resgatar o estilo que o consagrou fora visto por muitos como um desserviço à sétima arte. O cineasta adotou uma postura truculenta diante das duras críticas da imprensa britânica e americana, ao passo em que era ovacionado na Europa. A seguir, destacamos das principais críticas da imprensa europeia e que foram reunidas no livro “Chaplin, uma biografia definitiva”, escrito pelo crítico de cinema David Robinson.

25


Volume 1

“Uma encantadora comédia [que] não merecia a severidade da imprensa britânica”, da revista francesa Paris-Match “Em Londres, espinhos; em Paris, rosas”, do jornal francês Le Figaro “Paris vinha Chaplin por Londres”, do jornal francês Paris Jour “Demolidoras críticas londrinas e americanas não eram justificadas”, do jornal italiano L’Unitta “É difícil entender as objeções levantadas pelos críticos ingleses... O retrato que ele faz do mundo, ingênuo e generoso, revelador e desarmado, desenrola-se novamente”, do jornal suíço Dagens Nyhatet 1.5

Considerações finais

As personagens femininas tiveram presença cativa nas comédias de Charles Chaplin, embora fossem apresentadas como personagens secundárias. Em cada filme, Carlitos se deparava com uma mulher diferente e que representava a figura feminina de sua época. Eram elas donas de casa, moradoras de rua, socialites e, muitas vezes, sua mãe, companheira, amiga. Ainda assim, percebe-se um tom superficial na abordagem dessas personagens. Para os teóricos do teatro e da dramaturgia, essas figuras são consideradas planas em sua essência e cumprem com clareza seu objetivo dentro de uma narrativa. E foi assim que as mulheres apareceram em sua maioria nas comédias de Chaplin. Com o estudo do feminino nas obras do ator/diretor britânico, pudemos observar que quando as mulheres passaram a ser protagonistas dos filmes, abertura que se dá em “Casamento ou Luxo”, elas se tornam personagens esféricas, ou seja, possuem uma camada mais profunda de personalidade e tem mais de um objetivo em sua jornada. E essas personagens são melhor desenvolvidas em cena por estarem em um filme de longa-metragem, ou 26


Caderno Comunicação, Educação e Artes

seja, de maior duração. Percebe-se em “A Condessa de Hong Kong” que a personagem Natascha resgata os tipos planos das comédias de Chaplin. Ainda podemos concluir nesse estudo que a figura feminina, seja representada pela mãe ou pelas atrizes que admirou e com quem trabalhou, foram importantes para a construção da identidade artística do ator/diretor. Aproveitamos o ensejo para esclarecer que a escolha de não incluir as mulheres com quem Chaplin se relacionou amorosamente foi precisa para evitar estudos não objetivos sobre sua natureza artística. Houve uma busca pela literatura sobre a contribuição das namoradas e esposas do artista em sua obra, porém, os próprios registros não apontam referências conceituais que tivessem influenciado na filmografia de Chaplin.

1.6

Referências

BORDAT, Francis. Chaplin Cinéaste. Paris: Cerf, 1998. CARLOS, C. S.; GUIMARÃES, P. M. A Condessa de Hong Kong. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2012. CARLOS, C. S.; GUIMARÃES, P. M. Casamento ou Luxo. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2012. CHAPLIN, Charles. Minha Vida. 17ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2015 (1964). CHARLIE CHAPLIN – OFFICIAL WEBSITE. Overview of His Life. Biography. 2016. Disponível em < http://www.charliechaplin.com/en/biography/articles/21-Overview-of-HisLife>. Acessado em agosto de 2016. MARINHO, Carla. Edna Purviance, o primeiro grande amor de Chaplin. 2014. Disponível em <http://www.cinemaclassico.com/index.php/entertainment/item/1010-ednapurviance-o-primeiro-grande-amor-de-chaplin.> Acessado em setembro de 2016. MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. 4ª ed. 2005. Lisboa. Editora Dinalivro. MENEZES, Cynara. Chaves, o Chaplin Cucaracha. Socialista Morena. 2014. Disponível em < http://www.socialistamorena.com.br/chaves-o-chaplincucaracha/>. Acessado em agosto de 2016. 27


Volume 1

MILTON, J. Chaplin: Contraditório Vagabundo. São Paulo: Ática, 1997. ROBINSON, David. Chaplin, uma Biografia Definitiva. Osasco: Novo Século, 2012. SANCHES, Everton Luis. Charles Chaplin: Confrontos e Intersecções com seu Tempo. 2003. Franca. ZÚÑIGA, Angel. La Máscara de Charlot. Enciclopédia Pulga – nº 94. Ediciones GP. Barcelona, 1960.

-------------------------------------Alex Carolino Francisco – Especialista em Cinema e Linguagem Audiovisual; Jornalista graduado pela UnG Universidade Guarulhos; Roteirista; Escritor e Professor Universitário.

28


Caderno Comunicação, Educação e Artes

2.

Sociabilidade e relações de gênero em jornais e revistas do século XX

Ana Claudia Fernandes GOMES* Resumo Este artigo analisa o discurso comunicacional construído por jornais e revistas sobre sociabilidade, namoro, casamento, sexualidade e família, de acordo com regras e normas sancionadas por um código moral de conduta. A discussão apresenta um fragmento da configuração social e cultural brasileira, em processo de constante criação e transformação, intermediado pela comunicação social. Palavras-chave: comunicação.

2.1

sociabilidade,

cultura,

gênero,

meios

de

Introdução

A sociabilidade como objeto de pesquisa é um tema clássico para as Ciências Sociais. A configuração urbana envolve indivíduos em grupos sociais que estabelecem redes de sociabilidade e criam o espaço urbano a partir de representações simbólicas, artísticas e comunicacionais. O todo desse processo resulta em um complexo cultural sócio-histórico dinâmico, ou seja, a cultura está sempre em movimento e admite mudanças constantes. Dessa forma, a cidade transforma-se, a história recria-se e os indivíduos interados em jogos sociais configuram a sociedade. As mensagens divulgadas pelos meios de comunicação de massa representam e simbolizam a configuração social ao anunciar regras, reforçar valores morais e interpretar o cotidiano. O objetivo desse artigo é analisar as relações de gênero em formato de namoro e casamento a partir de notícias e reportagens divulgadas em jornais e revistas no decorrer do 29


Volume 1

século XX. Faremos um breve histórico sobre o processo de institucionalização do namoro na configuração da sociedade brasileira e observaremos o ressurgimento dos antigos manuais de costumes divulgados por igrejas e jornais do século XIX, que normatizavam os papéis sociais e as relações de gênero estabelecidas entre homens e mulheres no âmbito familiar e no espaço público. A análise de produtos comunicacionais permite-nos o vislumbramento de parte da teia cultural simbólica tecida por produtores e receptores das mensagens veiculadas ao grande público. No contexto de uma “sociedade mediatizada”, que segundo Sodré (1996), articula o funcionamento de instituições sociais com os meios de comunicação, torna-se relevante observar a divulgação de normas e regras de orientação sobre formas de sociabilidade e relações de gênero. E atrelado a esse processo, podemos observar a construção de um discurso que orienta e previne sobre as “novidades do século”, como telefone, a internet e as redes sociais, apresentados como intermediários das novas formas de sociabilidade desenvolvidas no contexto urbano.

2.2

Namoro e família no Brasil

Tradicionalmente o namoro é visto como uma fase que precede o casamento é um período que envolve a seleção do parceiro, o processo de conquista amorosa e a legitimação familiar e pública do relacionamento. A constituição da família pelo casamento é precedida “necessariamente de ajustes e entendimentos entre os futuros cônjuges ou entre suas famílias, e ainda entre intermediários socialmente definidos” (Azevedo, 1986:4). Sob o regime patriarcal e familista do Brasil colonial, a escolha de cônjuges baseava-se nos interesses dos grandes grupos de parentesco e por isso, não dependia de vontades individuais. O casamento, como forma de sociabilidade entre os sexos, deveria ser entre “iguais”, a regra básica era a homogamia: parceiros da mesma raça, com origens sociais ou religiosas semelhantes, o homem deveria ser mais velho que a mulher. Esse sistema

30


Caderno Comunicação, Educação e Artes

de normas e regras era transmitido por manuais e folhetos, que reproduziam os aconselhamentos familiares e religiosos. Anunciava um Guia de casados, publicado em Portugal em 1747: “A desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda causa contradição e discórdia” (Del Priore, 1999: 39). Em relação à socialização da mulher, o casamento era a forma principal de integração à sociedade. “De acordo com o senso comum, para a mulher “tomar estado” era necessário casar-se, fosse com um homem ou com Deus. Um velho ditado nos tempos coloniais dizia que a mulher saía de casa três vezes na vida: para seu batizado, casamento e enterro” (Araújo, 1993: 64). Namorava-se nas praças, nas roças, nos quintais das casas e nas igrejas. O namoro poderia ser “de lampião” ou “de espeque”, quando o rapaz ficava embaixo da janela esperando o sinal dado pela moça para o encontro. Criou-se um código de flores e gestos, para a comunicação entre as moças nas janelas e seus admiradores na rua. Nas igrejas, “no meio de tanta gente, até que se podia dar uns beliscões e umas pisadelas no pé da moça” (Del Priore, 1999: 21). Contudo, a aproximação entre os sexos, rica em sinais não-verbais, exigia constrição e recato, principalmente feminino. No século XIX, as exigências do amor romântico começaram a substituir lentamente os antigos padrões do namoro tradicional, dando ênfase a novas formas de relacionamento entre os sexos: o namoro romântico e o casamento por amor. Formas que ainda sofriam as influências das tradições morais, jurídicas, patriarcais e de costumes da sociedade brasileira e que faziam parte de um processo de crescente individualismo observado na Europa a partir da revolução sexual de fins do século XVIII. Nas grandes cidades, moças e rapazes aproximavam-se em novos locais de sociabilidade. Em meados do século XIX, a Capela Imperial o Rio de Janeiro era frequentada por jovens da elite, que iam à busca de músicas religiosas, sorvetes e paqueras. Segundo Freyre, “as igrejas católicas no Brasil se antecipavam Às modernas igrejas protestantes dos Estados

31


Volume 1

Unidos como centros de sociabilidade e até de namoro, em torno do sorvete ou do creme gelado” (1997:63). O processo de “fazer a corte” no Brasil era baseado em regras e sanções sociais que ditavam comportamentos aos indivíduos. Esse processo passou por uma grande transformação em relação às formas mais antigas, com a institucionalização do footing. “O footing era ocasião para o flirt, um primeiro comércio de olhares aparentemente casuais, de sorrisos, de gestos significativos. Seria a primeira vez que as moças se expunham deliberadamente, ainda que de modo dissimulado, à conquista em vista do namoro” (Azevedo, 1986: 15). Ao passearem em sentido oposto aos rapazes pelas ruas, as moças podiam observá-los, avalia-los, compará-los e discretamente transmitir sinais ao escolhido, cabia a este a responsabilidade por uma abordagem mais direta. Contudo, segundo um Manual dos namorados publicado no século XIX: “O primeiro cuidado do cavalheiro ao simpatizar com uma senhorinha é não tentar fitá-la. Um olhar insistente compromete a dita senhorinha aos olhos paternos e pode provocar a atenção dos maldizentes (...) Se por um revés da sorte, houver oposição, deve discretamente se afastar ou transmitir seus respeitosos sentimentos à gentil eleita. Não deve afrontá-la com bilhetes em termos que maculem a sua paz, quiçá vexatórios para a sua modéstia e candidez” (Del Priore, 1999: 22). Nas cidades, o namoro e o flirt também foram facilitados pelos meios de transporte, especialmente o bonde, que contribuiria para a criação de um novo modelo de namoro, “do bonde para a janela”. Os rapazes passavam em frente às janelas das moças e transmitiam-lhes sinais e gestos, reiterando a comunicação não-verbal do “namoro de lampião”. O espaço reservado para as mulheres ainda era o da “casa” enquanto o espaço da “rua” era ocupado pelos homens.

32


Caderno Comunicação, Educação e Artes

A transição do flirt ou paquera para o namoro propriamente dito, dependia de um contato direto e um assentimento de moças e rapazes para novos encontros, realizados longe dos olhares familiares. Esse princípio de namoro muitas vezes dependia da mediação de alcoviteiras, as quais facilitavam a comunicação, interpretavam sentimentos e propósitos de cada um dos namorados, acobertavam os contatos contra os riscos de denúncia e surpreendimento. A alcoviteira, que geralmente era “alguém da família da menina, sempre do sexo feminino e de mais idade” (Azevedo, 1986: 33) também fazia o papel de fiscal da família ao observar intenções e qualificativos pessoais e familiares do pretendente ao namoro. Além dos parentes fiscais de família, os intermediários e facilitadores de encontros também podiam ser colegas, amigos, empregadas domésticas, que passavam a fazer parte do casal de namorados, ou do “jogo” a dois, como “representantes da família e da sociedade”. Os intermediários exerciam um “específico controle” dos impulsos afetivos do casal e davam “testemunho perante a família da honestidade e da modéstia nas relações entre aqueles” (Azevedo, 1986: 40, D’Incao, 1989); eles eram “avalistas poderosos (...) como se vê, o amor não atuava sozinho” (Needel, 1993:151). A intimidade exagerada era contida, pelo menos aparentemente, a discrição era a norma que prevalecia. Quando o namoro chegava a ser conhecido oficialmente pela família da moça e legitimado pelo consentimento dos pais, assumia o caráter de compromisso e as pressões e responsabilidades incidiam sobre o casal, dispensando a mediação anterior. No início do século XX, com a modernização das grandes cidades, a casa tornara-se um recinto mais privado e a convivência pública e salões, ruas e teatros, principalmente pela elite, permitia uma maior aproximação entre os sexos e consequentemente, maior liberação das emoções. Eram também difundidos espetáculos de circo e teatro popular para as classes populares, pois, “o hábito e o prazer da vida noturna eram extensivos ao espaço doméstico” (Araújo, 1993: 342). Surgiram cartões postais com imagens de

33


Volume 1

jovens se beijando (Leite, Massaini, 1989), os relacionamentos amorosos tornaram-se cada vez mais, visíveis publicamente. No contexto urbano, além do círculo das relações familiares, outros ambientes começaram a facilitar a interação entre homens e mulheres: as festas, bailes de formatura, escolas e escritórios. Na década de 50 muitas mulheres já trabalhavam e, quando casavam, deveriam conciliar o trabalho com as tarefas de “rainha do lar”. Cabia ao homem a iniciativa do namoro, que era uma relação de “muita conversa e pouca intimidade” (Mello e Novais, 1998: 611), as mulheres deveriam preservar-se virgens. No casamento, não havia mais a completa submissão da mulher ao homem, mas este continuava sendo o “chefe da família”, responsável pelo sustento econômico e a mulher assumia o papel de mãe e esposa. O número de filhos diminuía devido ao controle de natalidade, entre os de maior renda e maior formação escolar. As aventuras extra-conjugais dos maridos eram conhecidas, mas, abafadas pelas esposas, que resignavam-se em manter o casamento, “sobretudo por razões religiosas, mas, também, por motivos econômicos e por preconceito social” (ibid, 612). Finalmente, podemos considerar o flerte como o fio condutor do jogo estabelecido entre os sexos. Os namoros de janela, de igreja, de passeio, durante o footing ou durante o trajeto do bonde, têm início com a técnica “de z’óio”, do flirt, da paquera. Técnica responsável por estilizações de comportamentos e padronização de modelos de namoro. Recoberto com diferentes significados, o flerte atravessa os séculos e transmite valores e condutas morais e familiares, a partir da troca de olhares entre homens e mulheres. Veremos a seguir como o flerte e consequentemente o namoro, estabeleceram-se como jogos sociais e formas lúdicas de sociação entre os sexos, indicando aspectos das configurações sociais nas quais foram (re)criados. Destacaremos mensagens e análises elaboradas por revistas e jornais, que gradativamente substituíram os antigos manuais de normas e condutas sobre o namoro e família.

34


Caderno Comunicação, Educação e Artes

2.3

O flerte e o jogo social entre os sexos

No início do século XX, o flerte era analisado em artigos e crônicas de costumes de revistas e algumas publicações como, Variações sobre o flirt: pequeno ensaio de psychologia urbana, de 1907. O predomínio masculino na sociedade da época seria contrabalanceado com o predomínio feminino na arte do amor, especificamente, na arte do flerte. Nesta publicação lemos: “toda a gente falla agora de flirt. Fala de flirt como falla de bridge e dos automóveis (...) é um novo figurino do amor, absolutamente necessário como a eletricidade e o homem de negócios. Palavra franceza, costume americano – fusão da moral. Galanteria prática, fetichismo semi-ousado, experimentalismo excitante” (Rio, 1907:7-8). A dinâmica de um jogo ou uma luta é elucidada pelo cronista João do Rio, que atribui ao homem e à mulher, o papel de “adversários” durante o flerte: “o flirt é a lucta amorosa (...) a velha lucta entre mulher e homem numa paralela em que o encontro infinito está sempre ahi e sempre infinitamente afastado” (ibid: 19-24) na época dos automóveis e da eletricidade. A partir do “jogo do faz de conta” estabelecido entre os parceiros sexuais durante o flerte, a mulher conseguiria momentaneamente inverter a sua condição de subordinação social, por estar em condições de “igualdade de poder” com o homem. Contudo, a condição de desigualdade permaneceria, especialmente no casamento, mediante o caráter definitivum da relação. O homem continuaria sendo o responsável pela escolha e aproximação para o namoro e após o casamento, conferiria à mulher o título de “dona-de-casa” e “rainha do lar”, cargo completamente subordinado ao “chefe de família”. O casamento refrearia a “loucura transitória” do amor e domesticaria o desejo do casal, eliminando a suposta e efêmera dominação feminina, que mesmo assim, continuaria sendo reverenciada, de acordo com um código social de conduta. Durante a segunda metade do século XX, muitas mudanças ocorreram em relação à divulgação de normas e regras de conduta para o flerte ou o namoro. Além da ampliação do mercado editorial, com revistas destinadas 35


Volume 1

ao público feminino e ao público masculino e de livros de auto-ajuda, os programas e novelas transmitidos pela televisão transformaram-se em importantes instrumentos, a partir de suas mensagens, para a apreensão do “código amoroso”. Os antigos manuais, muitas vezes distribuídos por igrejas e utilizados como facilitadores para a manutenção da ordem social foram substituídos por reportagens em jornais e revistas, que reproduzem as regras de ordem social e atualizam modelos de namoro e casamento. Nas cidades, os shopping-centers, as danceterias e os barzinhos são lugares privilegiados para o flerte ou paquera e para a sociabilidade, principalmente entre moças e rapazes. Segundo Frugoli (1989), os shopping-centers constituem locais de consumo e principalmente, de lazer e sociabilidade para os jovens. “rapazes e garotas trocam olhares e eventualmente travam algum encontro, numa re-edição do tradicional footing (...) o shopping center constitui mais um cenário, um pano de fundo para o encontro de jovens uma espécie de metáfora da cidade moderna” (Frugoli, 1989; 148-149). A escolha do cônjuge não é mais a principal finalidade do flerte e o namoro, que tornaram-se fins em si mesmos, supervalorizando o caráter lúdico da sociação, a diversão e a “curtição”. Na década de 80, surgiu no Brasil o “ficar”, que é uma forma de relacionamento amoroso caracterizada pela falta de compromisso e pela busca do prazer (Chaves, 1997), visa a satisfação de desejos e necessidades, sexuais ou não, sem ter como finalidade direta o namoro. Segundo Gikovate (1993), o “ficar” teria sido uma invenção feminina, atrelada a independência econômica e social das mulheres e ao avanço das questões relacionadas à liberdade sexual, contexto irrompido em meados da década de 60, quando o casamento teria deixado de ser indispensável à vida social. A durabilidade dos relacionamentos é fracionada e surgem modelos de relações passageiras, mantidas enquanto houver prazer para o casal. Ao analisar as transformações da intimidade na sociedade moderna, Giddens (1993) aponta o surgimento dos “relacionamentos puros”, que vinculam 36


Caderno Comunicação, Educação e Artes

amor à sexualidade em uma relação que existe por ela mesma, enquanto proporcionar satisfação individual para ambas as partes. Segundo Lasch (1991), o amor e o prazer sexual tornam-se fins em si mesmos, sem nenhuma meta além deles mesmos, em um processo desencadeado pela dissolução da família burguesa, que deixa um vazio a ser ocupado por meios de comunicação, grandes corporações e governos opressores, os quais garantem a satisfação pessoal a partir do consumo, em uma sociedade que vive para o momento e para o trabalho. Baudrillard ao analisar a sociedade de consumo, conclui: “A família está a dissolver-se? Então, exalta-se” (1995:104) sob a forma de espetáculo. A seguir, observaremos como o flerte, a paquera, o “ficar” e outras formas de relacionamentos, como o namoro telefônico e o namoro virtual foram descritas e reapresentadas pela imprensa, especialmente jornais e revistas.

2.4

Sociabilidade e meios de comunicação

Durante o século XX, novas formas de sociabilidade criadas e estabelecidas entre homens e mulheres foram incentivadas pelos avanços tecnológicos, especialmente referentes aos meios de comunicação, que além de informarem sobre “modismos” e tendências dos relacionamentos interpessoais, passaram também a intermediar e a possibilitar relacionamentos à distância, principalmente nas grandes cidades. Em 1930, Fon-Fon em sua seção “Faianças”, a qual tratava de “trepações e amor”, publicou um artigo assinado por Yves, o conselheiro sentimental da revista, que comentava a presença do telefone como intermediário de relacionamentos amorosos: “Aliás o telephone é um meio prático, fácil, modernissimo, ao alcance de todos, para se amar á distancia... Há mesmo creaturas que preferem amar por um fio. Como quem ama as nuvens, a lua, as estrellas... Como quem ama o vento... Como quem ama um fantasma... Como quem ama apenas uma voz. Mais curioso é o amor epistolar. Mas, não sei porque o amor que se escreve nas missivas tem sempre um sabor de 37


Volume 1

sinceridade que se repete. É como os bons discos que gostamos de ouvir espiralar melodias na solidão das nossas horas de romantismo... (...) Mas, sem duvida, o melhor ‘momento do amor’ é aquelle em que o silencio é interrompido com os fervor dos lábios que se encontram, que se esmagam – calados”. (Yves, 1930:1) O namoro por telefone é comentado como algo que causa estranhamento por não depender do contato físico para existir, substitui a troca de olhares e é apontado como algo extremamente abstrato e fugaz, em comparação ao amoro epistolar. O romantismo ainda orienta os relacionamentos e o discurso do conselheiro, que incentiva o beijo os lábios como manifestação do “melhor momento do amor”. Veremos adiante como este discurso foi reificado, especialmente em relação ao “namoro virtual” pela Internet. Após algumas décadas, não apenas o telefone, mas também jornais, revistas, rádio, televisão e computadores foram transformados em meios facilitadores e intermediários para o estabelecimento de novos relacionamentos. Surgiram serviços especializados em aproximações interpessoais, sob a forma de companhia, amizade, paquera, namoro ou casamento. Em 1993, o serviço telefônico Disqueamizade abrangia 47 cidades brasileiras (Torres, 1993); em 1994 surgiu o “Classiline”, classificados pessoais do jornal Folha de São Paulo (Frehse, 1996) e em 1995, começou a popularização no Brasil do “mandar mensagens” e do “namoro virtual” pela Internet (Viana, 1997). Ao analisar o Disqueamizade, serviço que possibilitava o cruzamento de linhas telefônicas e a conversa de vários usuários ao mesmo tempo, Torres conclui que a procura pelo serviço devia-se à “possibilidade de um intercâmbio de interesses, afinidades, comportamentos e informações sobre oferta de espaços de lazer” (1993:74). E Frehse ao analisar os classificados pessoais “Classiline” conclui que, apesar da “ausência de sociabilidade, já que se continua sem esse alguém que se procurou avidamente via jornal e ou telefone (...) por menos, que isso diminua a ‘dor e a solidão’, o que importa, enfim, é que haja ‘diversão sim’” (1996: 126-127). 38


Caderno Comunicação, Educação e Artes

O “namoro virtual” estabelecido pela Internet foi apresentado como um fim em si mesmo, que poderia substituir o encontro pessoal, mas, a novidade ainda não substituiria completamente o contato físico. Em uma seção da homepage do universo on line, vinculado ao jornal Folha de São Paulo, lemos que: “o surgimento da paixão da Net não é tão novidadeiro quanto parece. Todos os elementos das mais antigas histórias de amor estão lá: o encantamento inicial, o mistério, a curiosidade, o desejo. Talvez tenhamos voltado aos tempos das cantigas de amigo da Idade Média em que os amantes não se conheciam pessoalmente, em que as cartas e serenatas tomavam um longo período antes que a relação saísse da virtualidade, e eles se tratavam por nomes inventados. É possível que esse espaço aberto à fantasia nos torne mais tolerantes no momento em que a realidade se impõe (...) A hesitação do encontro cara-acara se explica: será que a fantasia não terá superado a realidade? (...) o romance pode dar certo na Net, também porque pode dar certo em qualquer lugar (...) dar certo no fim das contas, é estar junto, fisicamente” (Aquino, 1998:1). A indústria cultural investiu no filão “namoro virtual”, novelas, jornais, revistas e filmes comentaram a “novidade do século XX”. Em 1996, os protagonistas da novela “Explode Coração”, apresentada pela Rede Globo no horário nobre, iniciaram o romance via Internet. O jornal O Estado de São Paulo publicou reportagens e notícias como: “Namoro high tech sobrevive a distância” (27.9.1998); “Após namoro virtual, adolescentes fogem de casa” (12.6.1999). A revista Época (25.1.1999) apresentou como matéria de capa: “Sedução na Internet: am@r.com.br”. Em fevereiro de 1999, Esther Hamburger escreve no jornal Folha de S.Paulo sobre a estréia no Brasil da comédia romântica hollywoodiana You’ve got mail, traduzida como “Mens@gem para você”, e comenta: “É como se, ao associar o romance água-com-açúcar com as invenções mais recentes e a paixão amorosa com as conexões eletrônicas, os roteiros de cinema e TV estivessem 39


Volume 1

domesticando as tecnologias da imaginação virtual (...) Ao atravessar os séculos, as narrativas usuais constroem pontes que facilitam a incorporação de mudanças” (Hamburger, 14.2.1999). Das tramas fictícias à vida real, o namoro virtual adaptou-se à configuração social brasileira. A procura de um parceiro por anúncio em classificados pessoais, Internet ou agências especializadas em namoro e casamento também foi tema de várias reportagens e notícias difundidas pelos meios de comunicação, durante o período de nossa pesquisa. As novas estratégias e formas de amor foram sendo divulgadas em revistas femininas, a partir de depoimentos e conselhos sentimentais, ora preventivos, ora entusiastas: “Promessa é dívida: entre a fantasia e a realidade, os classificados pessoais revelam desejos e escondem surpresas” (Marie Claire, ago. 1998); “Eu tentei achar o homem certo em três agências de casamento; cheque as suas chances de encontrar um príncipe encantado por meio de empresas especializadas” (Nova, nov. 1998); “Os amores de Netuno: o planeta que rege os namoros da internet” (Marie Claire, mar.2001). De maneira geral, a temática amorosa presente nas reportagens, indica principalmente, que o vínculo estabelecido entre emancipação feminina e casamento foi reformulado, porém, continua essencial para a definição dos relacionamentos afetivos na sociedade brasileira. A necessidade de serviços especializados como intermediários para a interação social foi justificada por reportagens em jornais e revistas, a partir do contexto de um suposto “mercado da solidão”, que atingiria especialmente as mulheres. Com manchetes e chamadas sugestivas, algumas revistas reforçaram o argumento: “Sozinhas, por quê?: o mercado matrimonial brasileiro” (Época: 8.12.1999); “O fantasma da solidão: milhões de brasileiros vivem sós” (Veja, 25.7.2001); “Está faltando homem: as mulheres buscam ansiosamente o par ideal” (Isto é, 30.6.2001). Após séculos, o casamento ainda surgiria como alternativa de combate ao “fantasma” da solidão, que aterrorizaria o universo feminino. As mensagens dos meios de comunicação incentivaram a procura de meios

40


Caderno Comunicação, Educação e Artes

alternativos para o encontro de um parceiro ideal, seguindo a orientação que, tudo seria válido para evitar-se a categoria de “solitária” ou “solteirona”. Em um “mercado da solidão”, agências de casamento e namoro oferecem serviços especializados no estabelecimento de relacionamentos interpessoais. Os match-makers ou “cupidos profissionais” produzem um cadastro para cada cliente, com as características desejadas em um parceiro, cruzam os dados contidos nos cadastros da agência e apresentam pessoas com perfis semelhantes. Segundo reportagem de Veja sobre o “mercado de cupidos”, em 1993 havia em São Paulo 30 agências de casamento, número infinitamente multiplicado com a extensão do serviço à esfera virtual. Além dos canais de bate-papo, em 2000, a internet também possuía sites especializados em namoro e em casamento no formato de agências virtuais. Mensagens como “não confie apenas no destino, dê uma mãozinha a ele”, “aumente as suas chances de encontrar a pessoa ideal” ou “não fique sozinho, nós estamos aqui para ajudar você” eram comuns para a divulgação das agências em jornais, revistas e sites. De maneira geral, as chamadas publicitárias consideram “difícil achar a pessoa certa” e oferecem-se como facilitadores desse processo, priorizando “a felicidade e o amor” dos clientes, composto majoritariamente por mulheres. As normas, as mudanças, as aventuras e as desventuras em relação ao amor, ao namoro, ao casamento e à família são apresentadas pela indústria cultural ao público, que analisa o “comportamento” da sociedade a partir das mensagens divulgadas. Para o público adolescente, especialmente feminino, revistas especializadas em namoro divulgavam dicas de paquera e informações para o início, manutenção e término dos relacionamentos afetivos, apresentando-se como renovações dos antigos manuais de conduta. Em edições especiais para o mês dos namorados de 1999, algumas destas revistas publicaram as seguintes matérias: “Um manual de A a Z para fazer seu namoro dar certo” e “Namoro passo a passo: a paquera, o ficar, o rolo, o namoro” (Atrevida, jun. 1999); “Pra quem não tem namorado, mas tem fé: tudo sobre Santo Antônio” (Querida, 41


Volume 1

jun.1999). A sexualidade também é um tema bastante explorado por essas revistas, a partir de fotos e manchetes como: “Paquerar, ficar, namorar, transar...quatro capítulos do amor” (Todateen, jan.1999). O casamento não é apontado e enfocado como objetivo dos relacionamentos afetivos iniciados pelo público-leitor, entretanto, a paquera, o namoro e as estratégias de conquista, inclusive com a ajuda do santo casamenteiro, continuam sendo considerados jogos muito disputados entre o casal (moça X rapaz).. Observa-se um descompasso entre o formato da mensagem destinado ao público adolescente e as exigências sociais relacionadas ao amor e ao casamento, contidas nas mensagens destinadas ao público adulto. A reformulação dos manuais de costume indica mudanças superficiais, pois, o casamento e a balança de poder entre os sexos ainda orientam culturalmente os relacionamentos amorosos em nossa sociedade, sob as mesmas regras seguidas em outras épocas. Em outras palavras, o código continuou o mesmo, apenas a forma de transmiti-lo sofreu mudanças, ocasionadas principalmente pelos novos formatos dos veículos de comunicação de massa durante o século XX. A divulgação da sociabilidade pelos meios de comunicação de massa já foi discutida por Adorno (1985) em suas análises sobre a “indústria cultural”. Segundo o autor, há a massificação da informação, ou seja, cria-se um discurso simples e moralista por ser destinado à grande massa. As normas, as mudanças, as aventuras e as desventuras em relação ao amor, ao namoro, ao casamento e à família são apresentadas pela indústria cultural ao público, que observa o “comportamento” da sociedade a partir das mensagens divulgadas. As “dicas” oferecidas ao público incentiva, segundo o autor, o conformismo às regras culturais sancionadas. De acordo com Lima (2000), a cultura de massa, promovida pelos meios de comunicação de massa, produz e reproduz as realidades sociais, recriando e ressignificando símbolos e valores.

42


Caderno Comunicação, Educação e Artes

2.5

Considerações Finais

Durante o século XX, muitas mudanças ocorreram em relação à divulgação de normas e regras de conduta para o flerte ou o namoro e as relações de gêneros. Além da ampliação do mercado editorial, com segmentação de revistas e livros de auto-ajuda, programas e novelas transmitidos pela televisão transformaram-se em importantes instrumentos, a partir de suas mensagens, para a apreensão do “código amoroso”. Os antigos manuais de costumes foram reformatados para anunciarem e reproduzirem padrões e modelos de namoro e casamento. Jornais, revistas, rádio, televisão e sites além de comunicarem, foram transformados em meios facilitadores e intermediários para o estabelecimento de novos relacionamentos. Em 1995, começou a popularização no Brasil do “mandar mensagens” e do “namoro virtual” pela Internet. Em seguida, jornais, revistas, novelas e filmes comentaram a “novidade do século XX” e começaram a ditar regras de sedução e precaução, assim como, os comportamentos diante das novas formas de sociabilidade, ou seja, começou-se o processo cultural de domesticação da “novidade”. Duas décadas depois, em pleno século XXI, a internet e as redes sociais revolucionaram padrões de sociabilidade e de comunicação, criando novos paradigmas de análise. Considerando o constante processo de transformação social, cultural e comunicacional, as redes sociais como elemento de sociabilidade serão tema de um próximo artigo.

2.6

Referências

ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. “A indústria cultural”. In: Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ARAUJO, R. M. B. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. AQUINO, E. “Papo em bar virtual leva à paixão com final feliz”. In: Tudo aconteceu no UOL. Disponível em www.uol.com.br. Acesso em novembro de 1998. 43


Volume 1

AZEVEDO, T. As regras do namoro à antiga. São Paulo: Ática, 1986. BAUDRILLARD, J, A sociedade de consumo. Lisboa: edições 70, 1995 BERGER, J. Modos de ver. 2.ed. SL, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2007. CANEVACCI, M. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. 2.ed. São Paulo: Studio Nobel, 2000. CASTELLS, M. A Era da Informação:economia, sociedade e cultura: o fim do milênio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003 CERTEAU, M. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 2001. CHAVES, J. Ficar com: um novo código entre jovens. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 1997. DEL PRIORE, M. A família no Brasil colonial. São Paulo: Moderna, 1999. D’INCAO, M. A. “O amor romântico e a família burguesa”. In: D’INCAO, M. A. (org.) Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989. FREHSE, F. “Classiline: diversão ou solução? Reflexões sobre a sociabilidade a partir do jornal em São Paulo”. In: Sociabilidades. São Paulo: LASC/USP, 1996 FREYRE, G. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. FRUGOLI Jr, H. Os shoppings-centers de São Paulo e as formas de sociabilidade no contexto urbano. Dissertação de Mestrado Antropologia – FFLCH –USP, 1989. GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Ed. UNESP, 1993. GIKOVATE, F. Namoro: relação de amor e sexo. São Paulo: Moderna, 1993 HAMBURGER, E. “Filme une romance e tecnologia”. In: Folha de São Paulo, 14.2.1999. LASCH, C. Refúgio num mundo sem coração: a família: santuário ou instituição sitiada? Rio de Janeiro: Paz e terra, 1991. LEITE, M. M., MASSAINI, M. I.. “Representações do amor e da família”. In: D’INCAO, M. A. (org.) Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989. LIMA, L. C. (org.) Teoria da Cultura de Massa. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002 MELLO, J. M. C., NOVAIS, F. A. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, L. M. (org) História da vida privada no Brasil : contrastes da initimidade contemporânea. Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

44


Caderno Comunicação, Educação e Artes

NEEDEL, J. D. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. RIO, J. Variações sobre o flirt: pequeno ensaio de psychologia urbana. Rio de Janeiro: Livraria Luso-Brasiliera, 1907. SIMMEL, G. “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, O. G. (org). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. SIMMEL, G. “Sociabilidade – um exemplo de sociologia pura ou formal”. In: FILHO, E. M. (org.). Coleção Grandes Cientistas Sociais. n. 34. São Paulo: Ática, 1983. SIMMEL, G. Filosofia do Amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993. SODRÉ, M. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes, 1996. TORRES, L. L. “Para não ver cara nem coração: um estudo sobre o serviço telefônico “Disqueamizade”. In: Cadernos de Campo. n.3. São Paulo: USP, 1993 THOMPSON, J. B. A Mídia e a Modernidade – uma teoria social da mídia. 10 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008. VEJA – Acervo Digital. Disponível em www.veja.abril.com.br. Acesso em maio de 2013. VIANNA, H. “Fragmentos de um discurso amoroso (carioca e quase virtual)” In: Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. YVES “O melhor momento do amor” In: Fon-Fon, Rio de Janeiro, n. 41, s/ed, 11.10.1930

------------------------------------------Ana Claudia Fernandes Gomes - Mestre em Sociologia da Cultura pela Universidade de São Paulo. Graduada em Ciências Sociais (Sociologia e Antropologia) pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do curso de Comunicação Social da Universidade Guarulhos.

45


Volume 1

46


Caderno Comunicação, Educação e Artes

3. O Nilo invade o Amazonas: o sucesso das ‘novelas bíblicas’ em Manaus1 Carla POLLAKE Evellin VERAS Resumo O crescimento de audiência e repercussão das novelas históricas (chamadas popularmente de ‘novelas bíblicas’) exibidas pela TV Record vem chamando a atenção do público, de profissionais do audiovisual e de pesquisadores da área de comunicação/televisão. A TV Globo é a referência em dramaturgia no país, mas há algum tempo vem dividindo telespectadores com outras emissoras; neste contexto, a evolução de desempenho das ‘dramaturgias religiosas’ abre espaço pra discussão sobre os porquês de um tema tão segmentado estar conquistando a audiência. A partir da perspectiva dos usos e gratificações, foram realizadas duas pesquisas qualitativas sobre a programação de TV em Manaus (AM) - em 2014 e em 2016 - que apontam alguns motivos para o interesse dos amazonenses por este tipo de produção. Palavras-chave: novelas históricas; audiência; pesquisa; televisão; usos e gratificações.

3.1

Introdução

Quando se fala em teledramaturgia, especialmente em novelas, a TV Globo é referência não só no Brasil, mas no mundo. Segunda maior emissora 1

Trabalho apresentado no GP Estudos de Televisão e Televisualidades do XVII Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 47


Volume 1

comercial do planeta2, suas novelas são exportadas para mais de 120 países todos os anos3. A qualidade técnica e estética das produções é indiscutível, no entanto, há algum tempo as temáticas abordadas nos enredos das produções tem promovido discussões e posicionamentos entre grupos de telespectadores; tal movimento tem levado a emissora a rever personagens, e até mesmo a mudar o rumo de algumas tramas. Babilônia, exibida em 2015, por exemplo, foi considerada a novela de pior desempenho da história da TV Globo e por isso teve sua exibição encurtada. Pesquisas apontaram os motivos do fracasso: críticos e telespectadores consideraram alguns enredos ‘fortes demais’, como as abordagens sobre questões de gênero (homossexualidade) e racismo. Considerando que telenovelas são produtos culturais feitos para atender o consumo de grupos sociais, devemos levantar alguns pontos de reflexão ao abordar como tema os desempenhos destas produções. Produtos produzidos pela indústria cultural, pensados a partir dos preceitos da comunicação de massa, devem atender aos anseios da sociedade tendo como base seus aspectos culturais para que sejam aceitos e consumidos pela sociedade onde estão inseridos. Os Estudos Culturais, nascido em berço da mais rigorosa tradição inglesa, dão conta dessa premissa; a América Latina, que ‘bebeu’ das principais fontes britânicas, dispensou grande atenção às mediações entre culturas populares e produção cultural de massa, ou seja, as teorias atentam para que a significação que o indivíduo dá às mensagens pode definir qual o fluxo de permanência do produto cultural ‘à venda’. Mattelart e Neveu (2004) define a linha central de interesse dessa perspectiva:

2 Até 2011 a TV Globo era a terceira do mundo; com a queda comercial da americana CBS, a emissora passou à segunda colocação no primeiro semestre de 2012 e mantém-se até a presente data. 3

A TV Globo é a segunda maior produtora de novelas do mundo, perdendo apenas par a mexicana Televisa.

48


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Podemos qualificar (...) a emergência dos Cultural Studies como a de um paradigma, de um questionamento teórico coerente. Trata-se de considerar a cultura em sentido amplo, antropológico, de passar de uma reflexão centrada sobre o vínculo-nação para uma abordagem da cultura dos grupos sociais. Mesmo que ela permaneça fixada sobre uma dimensão política, a questão central é compreender em que a cultura de um grupo, e inicialmente a de classes populares, funciona como contestação da ordem social ou, contrariamente, como modo de adesão às relações de poder. (p.13-14). O entendimento desta base teórica é fundamental para a presente investigação já que o resultado da recepção dos indivíduos ao objeto de estudo central – as produções históricas – está diretamente condicionado à cultura de um grupo social; em um país de dimensões intercontinentais como o Brasil, esta compreensão torna-se ainda mais necessária para a problematização adequada do fenômeno. A compreensão da recepção de mídia aqui proposta se dará tendo como base de análise os estudos culturais (Escola de Birmighan) sob o modelo de codificação-decodificação proposto por Paul Lazarsfeld e Robert Merton: a técnica de focus group4. A partir da utilização destas estruturas teóricometodológicas serão apresentados os resultados de percepção para a questão central: quais os motivos para o crescente desempenho de audiência das produções históricas da TV Record no Amazonas.

3.2

TV Record, dramaturgia e as produções históricas

Edir Macedo, fundador e líder da Igreja Universal do Reino de Deus, adquiriu a Rede Record em1989; a partir daí, muitas mudanças foram feitas para reestruturar a emissora. Em 1990, ganhou uma nova identidade visual e reformulou a programação. Entre os anos de 1995 e 2003 ocorreu a

4

A fundamentação da técnica será apresentada mais adiante. 49


Volume 1

mudança de sede para a Barra Funda (SP), possibilitando o investimento em estúdios mais modernos e também em produção de minisséries. No período de 2004 a 2007, com o slogan ‘A Caminho da Liderança’, apostou em uma nova fase ao retomar a produção de telenovelas com a exibição de A Escrava Isaura, e ao diversificar a grade de programação visando aumentar sua audiência. Outro grande passo da emissora neste período foi a criação do complexo de produção dramatúrgica no Rio de Janeiro, o RecNov. Neste processo de profissionalização, algumas produções começaram a ter destaque de audiência como: Prova de Amor, Vidas Opostas e Caminhos do Coração5 - que teve três temporadas devido ao sucesso de audiência. A tabela a seguir destaca, em ordem cronológica, as teledramaturgias produzidas pela Record, a partir da criação do RecNov6, em 2005.

ANO

TELEDRAMATURGIA

2005

ESSAS MULHERES / PROVA DE AMOR

2006

CIDADÃO BRASILEIRO / BICHO DO MATO / ALTA ESTAÇÃO / VIDAS OPOSTAS

2007

LUZ DO SOL / OS MUTANTES / AMOR E INTRIGAS

2008

CHAMAS DA VIDA

2009

PROMESSAS DE AMOR / PODER PARALELO / BELA, A FEIA

5

Devido ao sucesso de audiência da novela, o autor Tiago Santiago produziu dois desdobramentos do enredo, dando origem à trilogia: Caminhos do coração, Os Mutantes: caminhos do coração e Mutantes: Promessas de Amor. 6

O Grupo Record comprou o complexo Renato Aragão Produções, em Jacarepaguá, e o transformou em sua base de produções dramatúrgicas, que ficou conhecida como RecNov (Record Novelas),

50


Caderno Comunicação, Educação e Artes

2010

RIBEIRÃO DO TEMPO / A HISTÓRIA DE ESTER

2011

REBELDE / VIDAS EM JOGO / SANSÃO E DALILA

2012

MÁSCARAS / BALACOBACO / REI DAVI

2013

DONA XEPA / JOSÉ DO EGITO

2014

MILAGRES DE JESUS / PECADO MORTAL / VITÓRIA

2015

OS DEZ MANDAMENTOS

2016

A TERRA PROMETIDA / ESCRAVA MÃE

2017

O RICO E LÁZARO

Como podemos observar na tabela, foi em 2010 que a TV Record produziu a primeira minissérie baseada em histórias religiosas, A História de Ester, tornando-a pioneira neste segmento. Considerada ainda uma iniciante em dramaturgia, e com o desafio de uma produção de época, a emissora deixou a desejar no que dizia respeito principalmente a recursos tecnológicos e estéticos. O resultado de audiência não foi considerado um sucesso, mas o burburinho produzido estimulou à TV Record a continuar investindo no nicho histórico religioso em busca de criar um diferencial editorial para suas produções. Antes de chegarmos ao nosso objeto de estudo, a novela Os Dez Mandamentos, é importante apresentar as etapas/trajetória de ascensão das produções históricas da emissora a fim de contextualizar o sucesso alcançado por esta produção. Para isso, utilizamos como base as informações disponíveis no portal R77.

7

http://entretenimento.r7.com Acesso em 28 de abril de 2017 às 10h

51


Volume 1

3.2.1 A História de Ester Estreia

N. de Capítulos

Periodicidade

03 de Março de 2010

10

Semanal – às quartas-feiras

Sinopse A minissérie A História de Ester foi baseada no livro bíblico de Ester e se passa por volta de 400 anos a.C., na antiga Pérsia, onde hoje é o Irã. A trama principal traz uma linda história de amor entre uma mulher do povo, Ester, e o rei Assuero. Ester é uma humilde moça judia que se torna rainha e salva seu povo de ser morto.

Destaques: Foram construídos cenários importantes em um estúdio de mil metros quadrados no RecNov, no Rio de Janeiro. Cada capítulo custou cerca de R$500 mil reais, porém as limitações tecnológicas e a composição de figurino e maquiagem de época se tornaram pontos fracos da produção.

3.2.2 Sansão e Dalila Estreia

N. de Capítulos

Periodicidade

04 de janeiro de 2011

18

Semanal – às quartas-feiras

Sinopse A minissérie Sansão e Dalila conta a história de Sansão, um homem que ao se apaixonar, entrega seu futuro nas mãos de sua amada Dalila ao revelar a origem de sua força, o seu voto com Deus e a proibição de passar a navalha nos cabelos.

Destaques: Nesta minissérie a composição do figurino e da maquiagem de época foi aprimorada em função da experiência anterior. Cada capítulo custou em média R$ 800 mil e o desempenho de audiência começou a melhorar. 52


Caderno Comunicação, Educação e Artes

3.2.3 Rei Davi Estreia

N. de Capítulos

Periodicidade

24 de janeiro de 2012

29

Semanal – às quartas-feiras

Sinopse

A obra Rei Davi foi baseada em I Samuel e II Samuel e conta a história de um dos personagens mais importantes e conhecidos da Bíblia, Davi. A história que mostra como um humilde pastor de ovelhas derrotou o temível gigante Golias e que transformou as doze tribos de Israel em uma grande nação, forte e respeitada. Destaques: Esta minissérie foi um marco de mudança no padrão/qualidade técnica e estética das produções históricas da emissora. O investimento de mais de R$ 25 milhões possibilitou mais qualidade de imagem e uma caracterização de figurino e maquiagem mais realista. A minissérie foi comercializada para vários países e ganhou o prêmio Festival y Mercado de Televisión Internacional, da Argentina, na categoria de Melhor Produção de 2012.

3.2.4 José do Egito Estreia

N. de Capítulos

Periodicidade

30 de janeiro de 2013

37

Semanal – às quartas-feiras

Sinopse O roteiro narra a história de José, filho preferido de Jacó, que foi vendido como escravo pelos irmãos. Após alguns anos, José interpretou um sonho do Faraó, que ficou satisfeito e o coroou como seu homem de confiança.

Destaques: José do Egito foi a mais longa minissérie bíblica da TV Record. A obra utilizou câmeras de cinema para dar mais realidade às cenas; muitas feitas fora do Brasil - no Egito, em Israel e no deserto de Atacama, no 53


Volume 1

Chile. A produção teve o mesmo custo da anterior, e também foi exportada para vários países.

3.2.5 Milagres de Jesus Estreia

Capítulos

primeira temporada: 22 de janeiro 21 de 2014 14 segunda temporada: 2 de fevereiro de 2015

Periodicidade Semanal – às quartasfeiras Segundas e terças-feiras

Sinopse

A série Milagres de Jesus foi dividida em duas temporadas, exibidas em 2014 e 2015. Feita em episódios, com o enredo contado a partir do ponto de vista dos agraciados por Jesus Cristo e escrita por Renato Modesto, Vivian de Oliveira, Maria Claudia Oliveira, Paula Richard, Gustavo Reiz e Camilo Pellegrini, com direção de João Camargo. Destaques: Com os bons resultados de audiência a série ganhou duas temporadas na TV Record. A produção ganhou destaque internacional sendo a primeira série brasileira dublada em espanhol exibida pelo Canal Univisión, nos Estados Unidos. A série levou o prêmio na categoria Melhor Produção de 2014 pelo Festival y Mercado de Televisión Internacional. O programa também foi líder de audiência entre os canais que exibem programação em espanhol, com 1,7 milhão de espectadores.

3.2.6 Os Dez Mandamentos Estreia Capítulos primeira temporada: 23 de março 176 de 2015 segunda temporada: 04 de abril de 66

54

Periodicidade Segunda a sexta-feira


Caderno Comunicação, Educação e Artes

2016 Sinopse A novela reconta uma das mais famosas passagens da Bíblia: a saga de Moisés, desde seu nascimento até a chegada de seu povo à Terra Prometida, passando pela fuga do Egito através do Mar Vermelho e o encontro com Deus no Monte Sinai. Livre adaptação dos livros Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, a novela cobre mais de cem anos de história.

Destaques: Os Dez Mandamentos foi a primeira telenovela brasileira baseada numa história bíblica. Com um investimento de quase R$ 750 mil por capítulo, a emissora apostou pesado em caracterização dos personagens e efeitos durante as pragas do Egito e na abertura do Mar Vermelho. Devido ao grande sucesso de audiência, a novela foi dividida em duas temporadas, repetindo o método utilizado com a novela Os Caminhos do Coração, que teve três temporadas. A ‘novela bíblica’ foi exibida em mais de 30 países e recebeu três indicações na edição de 2016 do Seoul International Drama Awards, um dos mais importantes prêmios da TV na Ásia. Esta produção marca o início de produções sistemáticas de ‘novelas históricas bíblicas’ na TV Record e é o objeto de estudo central deste artigo.

3.2.7 A Terra Prometida Estreia

N. de Capítulos

Periodicidade

05 de julho de 2016

179

Segunda a sexta-feira

Sinopse A telenovela A Terra Prometida, que foi a sequencia da história de Os Dez Mandamentos, narra que Josué se tornou o novo líder dos hebreus após a 55


Volume 1

morte de Moisés. Um guerreiro experiente, dotado de coragem, determinação e de uma fé poderosa, Josué tem que cumprir uma difícil missão ordenada por Deus: comandar as doze tribos de Israel na conquista de Canaã, a Terra Prometida.

Destaques: Estavam previstos 130 capítulos, mas devido aos bons índices de audiência registrados foram esticados para 179 capítulos, consolidando o sucesso da TV Record nesse segmento e impulsionando a continuação de produções de ‘novelas bíblicas’.

3.2.8 O Rico e Lázaro Estreia

N. de Capítulos

Periodicidade

13 de março de 2017

150

Segunda a sexta-feira

Sinopse

A novela O Rico e Lázaro conta que após o governo de vários reis que se afastaram de Deus, Jerusalém encontra-se mergulhada na idolatria. O povo de Deus está prestes a perder tudo que Moisés e Josué conquistaram. A Babilônia impõe sua força sobre toda a região da Mesopotâmia. Após derrotar os egípcios, Nabucodonosor assume o trono do vasto império. Durante seu reinado, ele transforma a cidade em joia do mundo antigo, construindo para sua esposa, a rainha Amitis, os lendários Jardins Suspensos da Babilônia. Nabucodonosor invade Jerusalém, destrói o Templo de Salomão, e escraviza milhares de hebreus, dando início ao Cativeiro da Babilônia, que se estenderá por setenta anos. Destaques: Foi a primeira novela da emissora totalmente gravada em 4K8. Apesar da divergência inicial entre alguns gestores da emissora sobre a questão de investir ou não no segmento de produções de temas histórico8

Tecnologia de filmagem de resolução quatro vezes maior do que a full HD. 56


Caderno Comunicação, Educação e Artes

religiosos, já que a emissora por muitos anos tentou desvencilhar-se da associação à Igreja Universal, os dirigentes encontraram um caminho de acordos onde a abordagem sobre a questão da imagem deu lugar ao pensamento estratégico de segmento de um mercado dramatúrgico sem precedentes9. O segmento se consolidou na grade de programação da emissora principalmente após promover um grande investimento na qualidade das produções, elevando significativamente as médias de audiência em várias capitais brasileiras e fomentando a exportação do produto.

3.3

Audiência conquistada: a evolução de desempenho das produções bíblicas no Amazonas

As ‘produções bíblicas’10 evoluíram em qualidade e estratégia, e conquistaram a audiência do brasileiro. Para uma perspectiva deste panorama, utilizaremos como exemplo específico, o desempenho alcançado em Manaus, capital do Amazonas, onde estas produções cresceram muito em repercussão e resultados de audiência nos últimos dois anos. Para esta análise utilizamos métodos complementares: um quantitativo11, com base em índices de audiência; outro qualitativo, apurado a partir de grupos de discussão12.

9

Informação da autora Carla Pollake, que entre 2013 e 2015 era Gestora de Pesquisa e Conteúdo na TV Record e participou do processo de implantação das ‘novelas bíblicas’ da emissora. 10 Vamos utilizar os termos “produções bíblicas’ e/ou ‘novelas bíblicas’ como substitutos populares equivalentes ao conceito de produções históricas, utilizado oficialmente pela TV Record. 11

Utilizando como método a aferição de audiência através de dados transmitidos a uma base estatística por meio dos peoplemeters instalados na cidade de Manaus. 12 Grupos realizados e mediados pelas autoras do presente artigo. 57


Volume 1

A primeira variável analisada foi a audiência13. O gráfico a seguir mostra o desempenho referente à média de audiência (temporada) de cada uma das produções históricas, de acordo com os dados do IBOPE14:

Fonte: Ibope Media Workstation – Base: Total Ligados. Praça: Manaus.

A minissérie José do Egito se destacou ao registrar a maior média de audiência(IA)15 que foi de 8,5 pontos, porém dividiu o ranking de maior

13 Dados coletados pelo departamento de pesquisa e análise de conteúdo da TV A Crítica, afiliada da TV Record no Amazonas. 14 Como a emissora local assinou contrato com o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) em junho de 2012, os resultados das minisséries bíblicas produzidas antes desse período não serão incluídas neste estudo. Em setembro de 2016 houve uma transição de contrato; a TV A Crítica, não renovou com o IBOPE e assinou com a empresa alemã GFK (Growth from Knowledge); por consequência as médias de audiência das novelas A Terra Prometida e O Rico e Lázaro apresentadas neste artigo foram fornecidas por este instituto.

15

Cada ponto de audiência equivale a um por cento (1%) do universo de domicílios ou de indivíduos de uma cidade; sendo assim, esses números variam de um estado para o outro, e podem variar de um ano para o outro, como ocorreu na cidade de Manaus, conforme descrito a seguir: 2016 (IBOPE)

2017 (GFK) 58


Caderno Comunicação, Educação e Artes

share16 de 13,4 pontos com a novela Os Dez Mandamentos (1ª temporada). Em termos reais, Os Dez Mandamentos teve um melhor desempenho já que o total de ligados (TL)17 foi 12,2% menor que o do período da minissérie; além de exibir 139 capítulos a mais que José do Egito, o que poderia ter diminuído a média da produção mas não aconteceu. Com base nestas observações podemos apontar que, em Manaus, José do Egito foi o marco inicial de visibilidade das produções históricas da TV Record e teve sua confirmação de recall com a progressão continuada de audiência em Os Dez Mandamentos, assim, esta produção se consolida como ponto de virada para a repercussão da dramaturgia desta emissora no Amazonas. Posterior às duas temporadas da novela Os Dez Mandamentos, foram produzidas as novelas A Terra Prometida e O Rico e Lázaro, cujos desempenhos de audiência são destacados a seguir18:

1 ponto de audiência = 5.567 domicílios

1 ponto de audiência = 6.643 domicílios

1 ponto de indivíduos

1 ponto de audiência = 21.919 indivíduos

audiência

=

19.038

16

Share refere-se à participação, o quanto representa a audiência no total de televisores ligados. 17 Total de Ligados (TL) refere-se à audiência do total de ligados. Índice dentre a população que assiste a TV em determinada faixa horária. 18 Vale destacar que neste período a aferição de audiência da TV A Crítica já estava sendo realizada pelo instituto GFK, o que mudou algumas métricas já que ampliou a amostra de 220 para 260 peoplemeters. 59


Volume 1

Fonte: GfK; Evogenius Reporting; Ponderação: domicílios; Praça: Manaus;

Segundo os dados do GFK19, a média da estreia da novela A Terra Prometida foi de 14,5 pontos, e manteve uma média satisfatória durante toda sua exibição. Na sequencia, o resultado da estreia de O Rico e Lázaro surpreendeu registrando em Manaus a maior média de audiência em todo o Brasil (25,0 pontos)20; esse resultado correspondeu a um crescimento de 72,4% em comparação à estreia de A Terra Prometida, consolidando índices de audiência nunca antes registrados21. Durante o período de exibição de Os Dez Mandamentos foi detectado que os índices de audiência da novela das 21h22 da TV Amazonas23 começaram 19

Na data de estreia da novela a TV A Crítica estava no período de transição de contrato do IBOPE. O GFK só começou a gerar informações a partir de setembro, mas disponibilizou dados retroativos para que a emissora não tivesse um ‘buraco’ em sua sequencia de análises. 20 Utilizamos como referência o Painel Nacional de Televisão (PNT) que é constituído pelas praças onde existe medição regular de audiência. Dados de todo o Brasil foram publicados no site O Planeta TV (e posteriormente confirmados pela TV Record por email) que registrou as seguintes audiências de estreia: GO: 20,0; RJ: IA 17,0; PE: IA 15,3; BA: IA 15,2; MG: IA 15,0 e SP: IA 14,5. 21 Historicamente as novelas da TV Record tinham desempenhos muito baixos no Amazonas. 22 Babilônia, na TV Globo estreou uma semana antes de Os Dez mandamentos na TV Record. 23 Afiliada da TV Globo no Amazonas. 60


Caderno Comunicação, Educação e Artes

a apresentar uma redução de desempenho; esta variável foi incluída no estudo para efeito de comparação por trazer um aspecto importante para a análise: estaria a TV Record angariando audiência em função da queda de desempenho da TV Globo? Por que a emissora referência em teledramaturgia estava perdendo público em Manaus? Destacamos a audiência da novela Babilônia, exibida no mesmo período da novela Os Dez Mandamentos, confrontando, para efeito comparativo, com os dados das novelas que a antecedeu, e que a substituiu:

Fonte: Ibope Media Workstation – Base: Total Ligados. Praça: Manaus.

Babilônia alcançou a média de 18,8 pontos; sua antecessora Império havia registrado média de 23,3 pontos, ou seja, houve um índice de decréscimo de 19,3%, perda considerável para o horário nobre. Com índices muito abaixo do esperado em todo o Brasil, Babilônia teve sua exibição reduzida; ficou no ar apenas cinco meses quando normalmente a duração média de uma novela é de oito meses. As curvas de movimentação de audiência, tanto na TV A Crítica (que exibia Os Dez Mandamentos) quanto na TV Amazonas (que exibia Babilônia), foram identificadas e diagnosticadas, mas os motivos para este comportamento do público telespectador só poderiam ser identificados por meio de uma investigação qualitativa. E foi o que fizemos. 61


Volume 1

A Regra do Jogo, substituta de Babilônia voltou a elevar os índices de audiência do horário, registrando uma média de 24,0 pontos, mas a participação ainda apresentava-se reduzida se comparada ao período anterior, com o agravante de ter mais televisores ligados que naquela ocasião. Tendo sido identificado este panorama, a TV A Crítica entendeu ser esta uma oportunidade de fidelizar o público amazonense no horário nobre com vistas a dramaturgia da TV Record; assim realizou um pesquisa ainda no ano de 2014 para ajustes em sua programação e estratégias e aproveitou para investigar a questão do crescimento da audiência das novelas históricas, assim como o declínio das produções dramatúrgicas globais.

3.4

Usos e gratificações: os ‘porquês’ do telespectador manauara

Quando entramos em campo de investigação que diz respeito ao comportamento do receptor, naturalmente somos conduzidos aos pressupostos dos estudos culturais. A compreensão de hábitos relativos aos mass media e a co-relação com a cultura popular são recortes para refletir como a esfera cultural, o poder e as diferenças sociais são elementos constituintes das respostas dadas às mensagens midiáticas. A operacionalização de um conceito expandido de cultura, isto é, que inclui as formas nas quais os rituais da vida cotidiana, instituições e práticas, ao lado das artes, são constitutivos de uma formação cultural, rompeu com um passado em que se identificava cultura apenas como artefatos. A extensão do significado de cultura (...) propiciou considerar em foco toda produção de sentido. (ESCOSTEGUY, 2015, p.157) Apesar de os estudos culturais terem contribuído muito para conferir compreensão e visibilidade à problemática da recepção, este é um campo que ultrapassa conceitos básicos e amplia suas possibilidades para campos sociológicos, principalmente quando o objeto de estudo provém da recepção televisiva. 62


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Na evolução dos estudos culturais, os anos 1980 estão associados à imagem da vira “etnográfica”. A expressão designa, de modo muito cômodo, um deslocamento rumo a um estudo das modalidades diferenciais de recepção da mídia pelos diversos públicos, particularmente em matéria de programas de televisão (MATTELAT; NEVEU; 2004, p. 95). Em meio a um cenário de novas possibilidades, pesquisadores foram em busca de métodos de observação e compreensão de públicos reais na tentativa de criar modelos de decodificação das mensagens (midiáticas) que chegam aos receptores. Paul Lazarsfeld e Robert Merton, pesquisadores da área de Ciências Sociais, desenvolveram ainda na década de 1940 uma perspectiva de investigação que buscava compreender, e não interferir nem generalizar, as respostas dadas pelo público a determinadas mensagens; esta ferramenta de investigação foi denominada focus groups24. O modelo, que investiga principalmente o sentido de valores, princípios e motivações que regem os julgamentos e percepções das pessoas, nos parece o mais apropriado para a investigação e busca proposta no problema apresentado por este artigo. O Grupo Focal é altamente recomendável quando se quer ouvir as pessoas, explorar temas de interesse em que a troca de impressões enriquece o produto esperado, quando se quer aprofundar o conhecimento de um tema. (COSTA, 2005, p.180) Assim, com base nas premissas metodológicas da perspectiva focus groups, em 2014 e em 2016 a TV A Crítica realizou pesquisas qualitativas que tinham como objetivo captar aspectos valorativos e normativos dos amazonenses em relação à imagem, programação da emissora e de suas concorrentes; um dos recortes investigados foi a dramaturgia (novelas).

24

Popularmente chamado de Grupo Focal ou Grupo de Discussão. 63


Volume 1

A pesquisa qualitativa de 2014 foi a primeira realizada pela emissora25 e por isso, antes de qualquer abordagem, procurou identificar o perfil do telespectador amazonense26; a pesquisa tinha como objetivo fazer uma investigação da sua imagem institucional27 e programação (nacional e local), assim como da concorrência. Do ponto de vista da imagem, a TV A Crítica ainda era muito associada ao SBT; os que a reconheciam como retransmissora da TV Record distinguiam a imagem da afiliada, da cabeça-de-rede28. Enquanto a emissora local era reconhecida como parte do grupo de comunicação mais forte do Amazonas, a TV Record era vista como a emissora que era a opção aos que não gostavam da TV Globo; o único ponto forte era o jornalismo. No que diz respeito à dramaturgia, poucas pessoas assistiam novela na TV A Crítica/Record; foram feitas algumas menções (positivas) à minissérie José do Egito. Já para a TV Amazonas a associação com a TV Globo era feita imediatamente29; na avaliação era colocada como a ‘emissora poderosa’ e de qualidade (técnica/estética) impecável, mas já começava a apontar uma avaliação pejorativa em relação ao conteúdo das novelas.

25

A pesquisa foi realizada com o apoio e supervisão da Gerência Nacional de Afiliadas da TV Record/SP. 26 O que é fundamental para a ampla compreensão das repostas dadas pelos telespectadores e passa diretamente pela questão cultural, equacionada e apontada nos preceitos dos Estudos Culturais. Em linhas gerais os amazonenses mostraram uma postura conservadora e tradicional em diversas áreas sociais como: família, religião e política. 27 Durante 25 anos a TV A Crítica foi afiliada ao SBT no Amazonas. Foi a partir de 2007que ela afiliou-se à TV Record. Na pesquisa queriam investigar como a associação com a TV Record era percebida. 28 Ação muito comum quando uma emissora tem sua marca local muito forte; os telespectadores acabam tendo um recall de imagem diferente para o que é local, e para o que é nacional. 29 O que é bastante comum pela força da programação nacional da emissora, principalmente a dramaturgia. 64


Caderno Comunicação, Educação e Artes

“É uma emissora que exibe conteúdo impróprio e apelativo nas novelas” (Assistem TV Aberta, C, 35-55) “A Rede Globo está muito apelativa, expondo muito a mulher, o luxo, o sexo, expondo temas que fogem do controle, desrespeito aos pais e valores.” (Assistem TV Aberta, BC, 25-55) “O beijo de dois homens, eu achei um absurdo aquilo”30 (Assistem TV Aberta, BC, 25-55) Enquanto a dramaturgia da TV A Crítica/Record era pouquíssimo mencionada por falta de conhecimento das produções exibidas, as menções às novelas da TV Amazonas/Globo (sempre líderes de audiência) começavam a apresentar críticas em relação aos conteúdos abordados. Em 2014 essas citações ainda eram pontuais, isoladas em cenas/personagens específicos; e o que ainda sobressaía era qualidade técnica-estética das produções e a excelente atuação dos atores. Com base nos resultados obtidos a partir desta pesquisa, uma série de ações (marketing) e mudanças (conteúdo) foram realizadas na programação da TV A Crítica; programou-se uma nova investigação em um prazo de até 24 meses para mensurar os resultados alcançados a partir das adequações adotadas. Entre 2014 e 2016 houve uma movimentação nas emissoras que trouxe resultados observáveis nas grades no que diz respeito à dramaturgia. A TV Globo investiu em questões contemporâneas nos seus enredos, e a TV Record estreou a primeira novela histórica inspirada em um dos mais conhecidos personagens bíblicos; Babilônia e Os Dez Mandamentos foram marcos importantes para este período de análise. Em 2016 o departamento de Pesquisa e Análise de Conteúdo da TV A Crítica31 realizou a segunda

30 Menção referente ao beijo entre os personagens Felix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso), na novela Amor à Vida, das 21hs. 31 Criado em 2015, o departamento de Pesquisa e Análise de Conteúdo da TV A Crítica é responsável por todo o monitoramento de conteúdo, pesquisa e análise de

65


Volume 1

pesquisa qualitativa da emissora; as impressões captadas em 2014 se amplificaram na imagem das duas emissoras. Separamos alguns32 textuais que sugerem os motivos dos telespectadores para o aumento de audiência das novelas históricas no Amazonas, e em contrapartida uma queda nos resultados das novelas da TV Globo. A seguir as principais percepções sobre as produções ‘bíblicas’ da TV Record: “Os Dez Mandamentos deu audiência porque foi bem divulgada, fala da fé, foi muito bem produzida – a abertura do mar vermelho foi muito bem feita – e também porque a Globo está deturpando os valores das famílias das novelas.” (Assistem TV Aberta, AB, 35-45) “As novelas bíblicas mostram ensinamentos para todos, por isso levantou a Record.” (Assistem TV Aberta, C, 35-45) “A Record melhorou muito a qualidade dos programas e deu novas roupagens às novelas; está muito melhor.” (Assistem TV Aberta, AB, 5060) “As novelas bíblicas ensinam muitas coisas boas, passa valores que estão esquecidos, e podemos assistir com a família toda.” (assistem TV Aberta, C, 50-60) Já quando investigamos as impressões das novelas da TV Globo, registramos as seguintes impressões: “A Globo distorce os fatos em novelas e isso influencia negativamente as crianças; não é mais uma emissora para a família” (Assistem TV Aberta, AB, 35-45) “Traz má influência ao povo brasileiro em relação à família nessas novelas; tem sexo, gay, tudo que não presta.” (Assistem TV Aberta, AB, 50-60)

dados de audiência da emissora. As duas autoras deste artigo ocupam cargos de gestão nesta área. 32 A pesquisa é extensa e separamos apenas as citações referentes à percepção das pessoas em relação à dramaturgia na TV A Crítica/Record e TV Amazonas/Globo. 66


Caderno Comunicação, Educação e Artes

“As novelas tem muita imoralidade, violência, homossexualismo, são indecentes.” (assistem TV Aberta, C, 50-60) “Devido à inversão de valores das novelas da Globo, ela caiu no conceito popular, aí as novelas bíblicas da Record ganharam espaço” (assistem TV Aberta, AB, 35-45) O debate foi amplo, e do resultado obtido pudemos traçar os principais pontos de comparação, em relação à imagem das emissoras33, com os resultados obtidos em 2014. No que diz respeito especificamente à questão norteadora deste artigo, que buscava investigar os motivos do aumento de desempenho de audiência das ‘novelas bíblicas’ da TV Record no Amazonas, podemos apontar três aspectos principais: •

O telespectador amazonense é conservador, tradicionalista, o que contribui para uma rejeição a assuntos considerados ainda tabus na sociedade (temas frequentes nas novelas da TV Globo); ainda sob esta perspectiva, anseiam o resgate de valores familiares e buscam programas que apresentem ‘bons exemplos’ a serem seguidos;

Aumento da qualidade técnico-estética das produções dramatúrgicas da TV Record, tendo como grande destaque a novela Os Dez Mandamentos.

Investimento em divulgação (marketing) das produções históricas.

Sem dúvida uma mudança de hábito leva tempo e depende de uma série de variáveis que envolvem aspectos sociológicos e culturais, principalmente no que tange a produtos da mass media; e um recorte regional, como o aqui apresentado, é apenas um apontamento para observarmos o todo e as mudanças (progressivas ou retrógadas) da sociedade e seus reflexos diante das respostas dadas a produtos midiáticos.

33

Um dos principais objetivos das pesquisas. 67


Volume 1

3.5

Referências

Bibliográficas CITELLI, Adilson (et.al.). Dicionário de comunicação: escolas, teorias e autores. São Paulo : Contexto, 2014. DUARTE, Jorge. BARROS, Antonio (orgs.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo : Atlas, 2005. ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Os Estudos Culturais. In: Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências (org.) Antonio Hohlfeldt, Luiz C. Martino, Vera Veiga França. 15 ed. Petrópolis, RJ : 2015. FERNANDES, Ismael. Memórias da Telenovela Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1997. MATTELART, Armand; NEVEU, Érick. (trad.) Marcos Marcionilo. Introdução aos estudos culturais. São Paulo : Parábola Editorial, 2004. Apostila IBOPE MEDIA – Media Workstation

Dados Estatísticos Ibope Media Workstation – Acesso autorizado segundo contrato firmado com TV A Crítica Ltda. Período: 2012/2016. Base: Total Ligados. Praça: Manaus. GFK Evogenius Reporting – Acesso autorizado segundo contrato firmado com TV A Crítica Ltda. Período 2016/2018. Ponderação: domicílios. Praça: Manaus.

Pesquisas Qualitativas Imagem e Posicionamento TV A Crítica. Pesquisa realizada pelo Instituto Action Pesquisas de Mercado. Manaus, 2014. Pesquisa Qualitativa TV A Crítica JOB 01. Pesquisa realizada pelo Departamento de Pesquisa e Análise de Conteúdo da TV A Crítica. Manaus, 2016.

Webliográficas http://entretenimento.r7.com Acesso em 28 de abril de 2017 às 10h http://veja.abril.com.br/entretenimento/por-audiencia-record-sacrificou-historia-deos-dez-mandamentos/ Acesso em 28 de abril de 2017 às 15h

------------------------------------------Carla POLLAKE – Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo, UMESP, cpollake@gmail.com Evellin VERAS – Especialista em Produção e Direção em Cinema pela Universidade do Norte, UNINORTE, evellinveras84@gmail.com

68


Caderno Comunicação, Educação e Artes

4. Desejos e Paixões Pequena análise estética sobre o cinema de Pedro Almodóvar Eduardo RAZUK Resumo Esse artigo tem como proposta apresentar os principais aspectos referentes à estética da obra de Pedro Almodóvar. Nesse estudo estão contempladas análises sobre os movimentos artísticos, os aspectos formais e os conteúdos mais recorrentes na narrativa desse renomado cineasta espanhol. Palavras chave: Pedro Almodóvar, Estética no cinema, Cinema Espanhol.

4.1

Objetivo

O objetivo do presente artigo é o apresentar uma pequena análise sobre a obra cinematográfica de Pedro Almodóvar, em seus aspectos que se relacionam às questões estéticas. Os elementos estéticos postos em análise serão agrupados em três núcleos de observação; Primeiramente serão identificados os movimentos artísticos presentes no conjunto da obra do cineasta, em posterior, a observação se dedicará aos aspectos formais encontrados com freqüência em seus filmes e, finalmente, será apresentada uma análise em referência aos conteúdos mais recorrentes nas suas narrativas. Nas questões referentes ao conteúdo dramatúrgico, os elementos a serem interpretados sintetizados no modelo de análise apresentado abaixo:

69


Volume 1

a. Aspectos gerais: contexto histórico-cultural, ação principal, lugar e época da ação, enredo, personagens e cenas, ordenamento e estrutura cênica e abordagem geral dos filmes. b. Elementos de direção de arte propostos: cenários, figurinos, iluminação, música, sonoplastia, ambientação e concepção estética. c. Personagens e suas características físicas e modos de caracterização, perfil psicológico, conflitos e funções dramáticas. Os filmes observados para a realização dessa análise são apenas as obras comerciais que o Pedro Almodóvar realizou no formato de longametragem. Estaremos observando cronologicamente um conjunto de filmes e, conseqüentemente, a trajetória de seu criador, portanto, na abordagem das interpretações estéticas procuramos o entendimento proposto por PAREYSON (2001, p18): “... uma poética é eficaz somente se adere à espiritualidade do artista e traduz seu gosto em termos normativos e operativos, o que explica como uma poética está ligada ao seu tempo, pois somente nele se realiza aquela aderência e, por isso, se opera aquela eficácia. A definição de um conceito de poética é muito útil ao crítico, antes de tudo porque esclarecer a poética de um artista, isto é, colher sua espiritualidade no ato de individuar-se num gosto de arte, colher este gosto no ato de manifestar-se na sua eficácia normativa e operativa e colher estas normas e estas operações no ato de concretizar-se em obras, é um dos melhores trabalhos que o crítico pode fazer.” 4.2

Liberdade e independência: a obra de Almodóvar em confronto com a indústria do cinema “Lo que tienen mis películas es que en ellas se ve a un director que puede trabajar de espaldas al mercado y con absoluta libertad e independencia, sin ser un director underground.” Pedro Almodóvar

70


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Quando o filme Todo sobre mi madre em 1999, recebia o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o grande prêmio da indústria cinematográfica norteamericana, transmitido via TV para diversos países e com cobertura e repercussão mundial na imprensa, consagrava-se no âmbito da cultura de massa o cineasta Pedro Almodóvar, que já tinha conquistado projeção internacional desde 1987 com a exibição de sua comédia Mujeres al borde de un ataque de niervos. A consagração hollywoodiana é confirmada em 2002 quando, novamente, recebe o Oscar, agora como Melhor Roteiro pelo filme Hable com Ella, outro de seus sucessos internacionais, também premiado com o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro em 2003. Principal personalidade do atual cinema espanhol, Almodóvar, desde meados dos anos 80 já era extremamente festejado e reconhecido nos circuitos cults do cinema de arte, por realizar uma produção cinematográfica extremamente significativa. Tanto quanto uma obra de outros grandes mestres no cinema europeu, como Fellini, Buñuel ou Bergman, seus filmes tem como traço mais marcante o estilo único e inconfundível do artista. Uma marca que rouba a cena e protagoniza a obra, à medida que, mesmo fundida aos outros trabalhos como atuação, roteiro, fotografia e outras ações técnicas e artísticas ligadas à produção cinematográfica, mais do que todos esses elementos, sua direção se destaca e se impõe pela força de seu valor estético. Almodóvar apresenta em seus filmes uma linguagem transgressora e pouco usual se comparada ao estilo tradicional e mundialmente dominante do cinema comercial norte-americano que, como um dos principais instrumentos da Indústria Cultural, apresenta geralmente abordagens populares e linguagens habituais, facilmente assimiladas no seio da cultura de massa. Para isso, os filmes norte-americanos notadamente têm privilegiado a estética realista, também chamada de estética naturalista. Diferentemente de sua aplicação nos estudos literários em que são apontadas diferenças conceituais entre naturalismo e realismo, nas artes cênicas esses termos se confundem e se completam. O naturalismo é um estilo que se origina na França com Zola, como um prolongamento do 71


Volume 1

teatro realista. Originária dos palcos teatrais a estética naturalista encontrou maior importância nos meios cinematográficos e televisivos. No cinema, a estética naturalista é empregada amplamente e se constitui a partir da manipulação de vários dos diversos elementos que compõem a linguagem cinematográfica. A forma naturalista de se narrar uma história procura valorizar uma visão realista, apresentando uma interpretação de realidade absoluta, como única versão possível sobre os fatos e situações abordadas; os movimentos da câmera procuram retratar ângulos que reproduzam o comportamento do olho humano, como um observador invisível; a forma de interpretação dos atores, seus gestos, seus movimentos, a exploração de seus recursos vocais e a caracterização dos personagens tendem a uma imitação do natural; as noções de espaço, de tempo e de continuidade de cenas bem como a concepção dos cenários, figurinos, maquiagens, cores, efeitos sonoros e iluminação procurando reproduzir o real, estão entre os recursos mais empregados nessa busca por uma ilusão de realidade que precisa ser aceita e assimilada pelos milhões de espectadores da cultura de massa. MERTON & LAZARSFELD (1990) nos apresentaram o conceito que a comunicação de massa pode gerar uma “disfunção narcotizante” e por isso, pode criar em seu público habitual um “conformismo social” que atinge também o gosto estético das sociedades da cultura de massa. Esse “gosto popular”, difícil de ser rompido, provoca no público alguns preconceitos em relação ao emprego de outras expressões artísticas. Em contraste com as tradições da estética naturalista da indústria cinematográfica norte-americana, condicionada às imposições comerciais e econômicas, o cinema de Pedro Almodóvar é profundamente autoral. Em seus filmes há um incontestável predomínio do estilo único do artista, que como roteirista e diretor de suas histórias realiza uma obra com uma estética incomum. Luigi Pareyson (2001) destaca que na atividade artística, o elemento indispensável é sua poética, explícita ou não, pois um artista pode expressar-se sem a definição de um conceito de arte, porém jamais realiza sua obra sem um ideal. Nesse sentido, buscar na obra de um artista um 72


Caderno Comunicação, Educação e Artes

compromisso estético e suas tendências artísticas será sempre um risco de se aventurar em suposições, interpretações e impressões pessoais, porém observar esse estilo incomum e contrastante ao estabelecimento do cinema comercial e, mesmo assim, consagrado pela própria indústria cinematográfica, nos parece bastante interessante aos estudos da comunicação e arte.

4.3

A estética de Almodóvar: influências e características marcantes

Embora na complexidade de sua obra cinematográfica Almodóvar não se apresente comprometido com apenas uma única tendência artística, sendo, ao contrário, o seu cinema rico em linguagens e tendências estéticas. É fato que várias influências são identificadas quando observamos seus filmes, já que seu trabalho flerta mais profundamente com esse ou aquele movimento da arte e, dependendo da obra analisada, as vezes mais e outras vezes bem menos perceptíveis. Três grupos de observação serão tratados nesse caminho de investigação: os movimentos artísticos mais característicos, as formas mais comumente empregadas e os conteúdos mais recorrentes nas suas narrativas. Apresentando em sua obra o relativismo, a subjetividade e o pluralismo característicos da pós-modernidade em que se insere, no entanto, três princípios estéticos ligados ao modernismo nas artes, rotulados como movimentos artísticos, podem ser pontuados comumente na estética almodovariana: o Kitsch, o Expressionismo e a Pop Art. Ainda há um quarto movimento, essência da obra do cineasta: La Movida Madrileña. Esse, de caráter sociológico, ligado à história e cultura recente da Espanha, é fundamental em qualquer análise sobre o cinema de Pedro Almodóvar. La Movida Madrileña nasce como um fruto da liberdade conquistada no período de transição que marca a Espanha no final da Ditadura Franquista (1939-1975) após quase quatro décadas de atraso cultural resultantes de um regime de direita iniciado ao final de Guerra Civil Espanhola, de caráter

73


Volume 1

fascista e reacionário. O governo autoritário e controlador em relação à educação, liberdade de imprensa e censura aos meios de comunicação de massa e meios culturais, com a morte do ditador Francisco Franco em 1975, começa a perder seu controle e sua força política e nesse período de transição pós-franquista a Espanha inicia sua retomada democrática. Resultado dessas novas liberdades advindas da democratização e modernização da nação espanhola, nascido dos círculos noturnos undergrounds da juventude de Madri, esse movimento marginal de contracultura se expande pelas artes e principais cidades espanholas com a proposta filosófica da pós-modernidade em combate aos antigos padrões socioculturais predominantes no antigo regime. Pedro Almodóvar, então um jovem afinado com a intelectualidade da capital espanhola, por suas ligações com o movimento teatral e com a efervescência das noites madrilenas, participa ativamente das ações culturais engajadas no desejo de mudança em nome de novos valores para a sociedade espanhola. Suas produções cinematográficas, principalmente aquelas realizadas no início dos anos 80, refletem por completo esse estado de mudanças e renovações na busca por novos tempos propostos na Movida, tanto que é reconhecido hoje como seu principal ícone. Outro princípio predominante em seu trabalho cinematográfico é o uso de uma linguagem visual composta pela estética do Kitsch. Mais do que uma premissa estética, o Kitsch, para assim ser conceituado, depende de fatores como cultura e tempo; absolutamente relativo o uso desse termo de origem alemã tem sido empregado para denotar o mau gosto, a falta de autenticidade, a imitação, a bugiganga e a falta de qualidade entre outros rótulos. O estilo kitsch se relaciona principalmente a objetos e ambientes em que predominam os exageros ornamentais, a mediocridade dos materiais, as misturas inadequadas de estilos, o empilhamento de objetos. É também simbolizado pelos produtos da reprodutibilidade artística, típicos da cultura de massa. De cunho notadamente mercadológico e imediatista o kitsch costuma ter uma atmosfera alegre e sentimentalista, fútil e triunfante. Fenômeno de todos os tempos e de todas as artes, a estética Kitsch, no universo imagético que Almodóvar nos apresenta, quase sempre estará 74


Caderno Comunicação, Educação e Artes

presente, ora como uma denúncia, uma crítica ao mau gosto pequenoburguês, ora como um deboche às tradições e costumes espanhóis ou simplesmente ornamentando e dando suas cores e sua vida na composição das cenas. Em contraste com a ambientação Kitsch seus enredos, personagens e roteiros mostram forte tendência ao Expressionismo. Embora não seja essencialmente um autêntico expressionista e até muito distante do tradicional expressionismo alemão, tão marcante no cinema europeu na primeira metade do século 20, encontramos nos filmes de Almodóvar os exageros dramáticos, as caricaturas, as deformações, os excessos cromáticos, as neuroses e doenças da alma, elementos recorrentes na temática expressionista. Até hoje o movimento expressionista, iniciado entre o final do século 19 e início do século 20, provoca indagações. Da chamada Vanguarda Histórica é a estética que se mantém entre os mais atuais e suas idéias e influências no mundo das artes continuam vivas. As primeiras manifestações do expressionismo surgem na Europa, revelando uma pintura correlata aos tempos conturbados das crises do pré 1ª Guerra Mundial, às inovações típicas da civilização industrial emergente, ao Marxismo, às teorias psicanalíticas de Freud e à filosofia de Nietzsche. O Expressionismo surge na pintura, em contraposição ao Impressionismo; os pintores expressionistas começaram a mostrar a sociedade e o homem em seus aspectos mais negativos: a miséria, o sofrimento e a injustiça. Marcada pela expressividade da linha e pela utilização da violência cromática que resulta em pinturas dramáticas e obsessivas, a doutrina expressionista representa uma ruptura radical nas artes, em relação à temática tradicional da pintura clássica, criando imagens brutalizadas e deformadas. O movimento cuja estética anteriormente existia apenas em iniciativas isoladas, ganhando a força transcendente do espírito da época desenvolveu-se rapidamente em território europeu, mais intensamente entre os alemães e outros povos nórdicos, e acabou por envolver outras artes como a música, a literatura e o cinema.

75


Volume 1

Além da subjetividade e da introspecção, várias outras são as características que marcam as obras da doutrina expressionista: a estética do feio, a violência, a aspereza, a dramaticidade, o desespero, o êxtase, a desordem espiritual, o doentio, o exagero em todas as suas cores e formas. A respeito dessas características o texto de GOMBRICH (1981, p.448) é bastante esclarecedor: “O que perturba o público a respeito da arte expressionista talvez seja menos o fato de a natureza ter sido distorcida do que o resultado implicar no distanciamento da beleza. Que o caricaturista mostre a fealdade do homem é ponto pacífico; no fim de contas, é esse o objetivo de seu trabalho. (...) Tornou-se quase um ponto de honra dos expressionistas evitar qualquer coisa que cheirasse a ‘boniteza’ e ‘polimento’, e chocar o ‘burguês’ em sua complacência real ou imaginada.” As obras expressionistas, de enfoques pessimistas, agonizantes e até doentios, revelam a aflição do artista diante da realidade e, muitas vezes, denunciam problemas sociais. Sua estética distancia-se do padrão de beleza tradicional e marcam a presença do feio no mundo das artes. É, principalmente, nesses sentidos que assistimos um expressionismo latente nos filmes de Almodóvar, como uma contraposição a estética naturalista do cinema comercial e como um grito em prol de seus personagens mais comuns: os angustiados, os loucos, os neuróticos, os feios em suas vidas repletas de fatalidades, violências, obsessões, perversões e perdas irrecuperáveis. Como nem tudo na obra de Almodóvar é drama, pelo contrário, o elemento dramático é frequentemente diluído no colorido kitsch e em situações leves conduzidas em narrativas românticas, cômicas ou irônicas, outro movimento estético presente em sua obra é o pós-modernismo, mais notadamente os elementos da Pop Art e suas influências na obra do diretor espanhol predominam se comparadas àquelas referentes aos elementos expressionistas ou kitschs já citados anteriormente. A própria Movida Madrileña, fio condutor da estética almodovariana, trás em sua mística a 76


Caderno Comunicação, Educação e Artes

contestação festiva, a integração à cultura de massa e a arte comercial e o rompimento polêmico de tradições que sempre nortearam os caminhos da arte Pop. A vanguarda pós-moderna iniciada por Andy Warrol que valorizava a estética das histórias em quadrinhos, dos cartuns, das fotos e filmes publicitários, das fotonovelas, da comunicação de massa e dos ídolos da Indústria Cultural muito tem em comum com a história de vida e a obra de Pedro Almodóvar Caballero, nascido em Calzada de Calatrava, província de Ciudad Real, que no final dos anos 70, aos 16 anos, vai viver sozinho em Madri, já com a intenção de estudar e se dedicar a arte. Na capital espanhola, em contato com os movimentos de vanguarda, ingressa na vida artística participando de um grupo teatral, Los Goliardos, começa a escrever em revistas de contracultura e inicia sua carreira cinematográfica, produzindo seus primeiros curtas metragens em Super 8. Ainda nessa época publica uma novela chamada Fuego em lãs entrañas, e algumas fotonovelas pornográficas. Seu primeiro filme de longametragem é datado de 1980, Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, em que já podemos acompanhar o estilo pessoal de Almodóvar com as principais características de linguagens e tendências estéticas que acompanharão toda sua obra, até o momento atual, onde a inspiração na Pop Art e em suas tendências estão sempre presentes, em forma, conteúdo e espírito. Em relação aos formatos, nos filmes de Almodóvar, encontramos assiduamente os gêneros Melodrama e Tragicomédia. Algumas vezes, esses gêneros surgem miscigenados em um mesmo filme e quase sempre por aventuras, romances e crimes vividos por personagens atípicos com histórias de vida surpreendentes, pouco comuns em relação à própria tradição dos gêneros. Em ¡Átame!, 1990, por exemplo, temos como personagens principais um rapaz com problemas mentais, que saindo de uma clínica de recuperação rapta uma estrela de filme pornográfico por quem tem um amor obsessivo. Em meio às violências e estupros que sofre em seu período de cativeiro, essa jovem se apaixona por seu algoz e da situação dramática passamos a uma aventura romântica que esses 77


Volume 1

personagens viverão para poderem continuar juntos; um final feliz que (incrível!), iremos torcer para que dê certo. No teatro, cinema, rádio e tevê, o Melodrama corresponde a um gênero popular romântico cuja forma se baseia nos fatos inverossímeis, no maniqueísmo, no emprego de estereótipos e nos exageros emocionais e cênicos, com a intenção de provocar a piedade e as lágrimas como forma de envolvimento. Como nos apresenta PAVIS (1999, p.238): “O melodrama sobrevive e prospera hoje no teatro de boulevard, nas telenovelas ou nos romances baratos e nas fotonovelas: livrou-se de seus instrumentos um tanto vistosos do roman noir ou do melodramático fácil, refugiando-se em mitos neoburgueses do casal ameaçado ou dos amores impossíveis. Sob uma forma paródica, isto é, em sua própria negação, ele hoje é fonte de inspiração de um teatro da derrisão e dos efeitos visuais: desde o dadaísmo, o surrealismo e o teatro do absurdo. Muitos artistas (...) são fascinados por este concentradíssimo caldo de cultura burguês que é o melodrama e pela repulsão/fascínio que ele continua a exercer sobre nossos contemporâneos.” Como ocorre no melodrama, na tragicomédia presente na obra almodovariana, o gênero é explorado numa leitura extremamente particular do artista. A tragicomédia é um gênero que nasce da composição híbrida que mistura os gêneros clássicos da tragédia e da comédia, mesclando cenas sublimes, densas ou sérias com elementos ou situações engraçadas. Outras vezes o inverso: cenas cômicas com desfechos trágicos que causam grande tristeza. Em Almodóvar, o gênero recebe outras tonalidades resultando numa composição menos comum. A obra Entre Tinieblas, 1983, exemplifica bem essa excentricidade na manipulação do gênero: Aqui a heroína, Yolanda Bel, é uma cantora de cabaré viciada em drogas que, ao assistir a morte de seu namorado por overdose decide buscar sua recuperação num convento, a ordem das "redentoras humilhadas". Lá encontramos um grupo de freiras que repetem os hábitos, vícios e a vida leviana que Yolanda queria abandonar. Nesse cenário cômico e incomum, 78


Caderno Comunicação, Educação e Artes

nascerá uma grande paixão da Madre Superiora por Yolanda Bel e resultado dessa paixão obsessiva, se impõe o trágico da solidão e do abandono, quando da partida de Yolanda. Ainda no ponto de vista formal, outro elemento muito significativo na estética almodovariana se refere à questão cromática. “Eu ando pelo mundo prestando atenção Em cores que eu não sei o nome Cores de Almodóvar Cores de Frida Kahlo, cores” trecho da letra da canção Cores de Adriana Calcanhoto

A cor na obra de Almodóvar é, sem duvida, um destaque. O cromatismo apresentado em seus filmes é outra particularidade do cineasta. Cores em matizes exageradas e em desarmonia. Suas explosões cromáticas ocorrem em composições com predominância das cores quentes ou berrantes. Empregos de estampados, listrados e geométricos diversos em arranjos visuais contrastantes e imprevisíveis, ora servindo a proposta de criação de ambientações Kitsch, ora valorizando os excessos e climas expressionistas. E, finalmente, na trilha de observação dos aspectos artísticos mais característicos da estética de Pedro Almodóvar, outro elemento importante para análise são os conteúdos mais recorrentes nas suas narrativas. Nesse sentido, identificamos como sendo as temáticas mais freqüentes: O Sexo e suas deformações: freqüentemente o fio condutor da narrativa são os encontros e desencontros amorosos focados na vida sexual e suas implicações. Geralmente descontrolado e passional o sexo sempre surge como um elemento a ser resolvido por seus personagens. São elementos comuns em sua narrativa: as taras, as perversões, os abusos, os incestos e os crimes sexuais. O sexo é mostrado como um elemento dominador sobre a vontade e sobre o caráter dos personagens; Crítica Social: alvo constante da ironia do autor é o modo de vida da classe média espanhola na sociedade contemporânea, em várias de suas interfaces. Geralmente a crítica à sociedade em Almodóvar vem 79


Volume 1

envolvida por grande comicidade ou por grande ironia, embora nem por isso, seja menos dura ou amarga que em outros estilos de abordagem. São alvos frequentes de sua crítica a televisão, o consumismo e o contraste entre a austeridade de uma Espanha barroca até o final da ditadura de Franco com a modernidade pós-franquista. A hipocrisia das relações familiares, o moralismo, a criminalidade e as convenções sociais, outros alvos de seu juízo crítico, são tratados com cinismo e deboche, resultando por vezes em enredos inverossímeis que, no entanto, impregnados por uma verdade crítica, superam a questão da coerência realista e resultam em narrativas com grande poder de aceitação e de assimilação por parte do público de cinema; Iconoclastia: outro elemento importante, ainda no ponto de vista da crítica social é a postura iconoclasta presente nos roteiros de Almodóvar. Em seus filmes o diretor espanhol ataca as crenças estabelecidas nas tradições familiares espanholas e através de suas histórias os papéis familiares são, mais do que discutidos, desnudados frente às outras realidades e imposições nascidas das vicissitudes humanas. Assim na obra de Almodóvar é comum encontrarmos esses status de família sendo colocados à prova: um pai estuprador, uma mãe e uma filha disputando o amor de um mesmo homem, a cumplicidade de uma família diante de um crime etc. Ainda em relação ao elemento iconoclasta, ainda veremos sua obra apresentando ataques contra elementos da religião católica. Ataques esses que tomam ainda mais graves proporções, quando observamos ser a Igreja Católica uma instituição venerada pelo conjunto da população espanhola e que tem a cultura religiosa enraizada tão profundamente na história da Espanha, que se confunde com a própria história do povo espanhol. Desse modo, por exemplo, as freiras coniventes com o tráfico de drogas de Entre Tinieblas ou o padre pedófilo e homossexual responsável pela direção de uma escola de meninos em La mala educación, como elementos de crítica social, têm sobre a sociedade espanhola um impacto ainda maior do que o que teriam em outros países em que a cultura católica tenha menores influências.

80


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Homossexualidade: homossexual assumido Pedro Almodóvar na sua obra apresenta um grande panorama sobre o universo homossexual: a diversidade de tipos, os modos de vida, os amores etc. Gays, travestis, lésbicas e transexuais estão sempre presentes como personagens nos seus filmes e, não raro, a questão da homossexualidade é o fio condutor da narrativa; Outros elementos importantes ainda compõem esse quadro de conteúdos recorrentes na poética apresentada por Almodóvar, se não de uma maneira tão concreta como os acima expostos, mas como presença que envolve sempre as suas histórias e, portanto, merecem o destaque: Latinidade: sua obra é absolutamente fundamentada no retrato dos sentimentos e emoções típicas do homem latino. O modo de ser latino ultrapassa as questões referentes às narrativas ou personagens, está presente no todo da obra, nas músicas, nas cores, nos ambientes, nos figurinos, nas maquilagens e cabelos. Tudo o quanto vemos e ouvimos no universo cinematográfico de Almodóvar está impregnado da mais profunda latinidade; Ódio e paixão: a vida na tela de Almodóvar é narrada sem meios termos; a mistura do espírito expressionista com narrativas melodramáticas e tragicômicas resulta em histórias em que os sentimentos imperam exageradamente. Os sofrimentos, as dores, as paixões, as angústias estão sempre conduzindo suas histórias e a vida de seus personagens em proporções desmedidas. O universo feminino: além de as mulheres serem geralmente as protagonistas, a alma e as questões femininas ganham através do cinema de Almodóvar uma relevância incomum, se compararmos ao que geralmente é apresentado em outras produções de cinema. Por fim, Madri: a cidade, a paisagem urbana, suas tradições, suas inovações e sua cultura. Mais do que espanhola, a obra de Almodóvar é, acima de qualquer outra questão geográfica, madrilena. O modo de ser e modo de viver na capital da Espanha são mais do que um simples pano de fundo ou 81


Volume 1

um recurso cenográfico nas histórias e fábulas contadas por Almodóvar. Em Madri o artista encontra suas histórias e seus personagens e, muito provavelmente, é desse seu olhar sobre a vida madrilena que surgem suas inspirações e sua concepção estética.

4.4

Considerações finais

Melodramático, exagerado, tragicômico, debochado, ousado, profano, caótico, libertino, tocante, inesperado, sensual, inverossímil, transgressor, genial – todos esses rótulos, e outros tantos aqui não citados, poderiam ser empregados em definições que pretendessem conceituar o cinema de Almodóvar. Nesta pequena análise que nos propusemos a realizar buscouse a identificação dos elementos mais significativos para a observação estética da obra fílmica do diretor e roteirista espanhol Pedro Almodóvar. Uma obra absolutamente autoral em uma pluralidade de linguagens pouco comum ao estilo, cultura e imposições da indústria cinematográfica. Apesar de apresentar um cinema rebelde à prática comum da indústria do cinema e às regras de um filme comercial, seus filmes têm conquistado um grande prestígio e seu cinema marca um novo estilo, de grande aceitação em termos de crítica, distribuição e público. Ao que se deve então o sucesso de uma obra tão sui generis? É a pergunta que se coloca e, ao que nos parece, as questões relacionadas aos movimentos artísticos mais característicos presentes em sua obra, bem como os gêneros, formatos e os conteúdos mais recorrentes nas suas narrativas, farão parte dos caminhos que deverão ser perseguidos por aqueles que se interessem por essa resposta. Importante ainda ressaltar que a poética desse grande cineasta transcende a tudo isso predominando, por fim, o que chamamos aqui de estética almodovariana, pela falta de um termo que melhor defina essa concepção tão fascinante e particular de um gênio artístico completamente dedicado a apresentar corajosamente filmes que retratam a sua visão de mundo, sua gente e, principalmente, sua alma. “O cinema não é minha segunda vida, é a minha vida. Eu vivo não só para experimentar e pelo simples fato de estar 82


Caderno Comunicação, Educação e Artes

vivo, mas tudo o que vivo tem a ver de algum modo com o cinema que vou fazer ou com as narrativas que vou escrever.” Pedro Almodóvar Informações biográficas Nome Completo: Pedro Almodóvar Caballero Natural de: Calzada de Calatrava, La Mancha, Espanha Nascimento: 24 de Setembro de 1951 Filmografia: 2013 – Os Amantes Passageiros (Los Amantes Pasajeros) em fase de lançamento no Brasil; 2011 – A Pele que Habito (La Piel que Habito); 2009 - Os Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos); 2006 - Volver (Volver); 2004 - Má educação (La mala educación); 2002 - Fale com ela (Hable con ella); 1999 - Tudo sobre minha mãe (Todo Sobre Mi Madre); 1997 - Carne trêmula (Carne Trémula); 1995 - A flor do meu segredo (La Flor de Mi Secreto); 1993 - Kika (Kika); 1991 - De salto alto (Tacones Lejanos); 1990 - Ata-me! (¡Átame!); 1988 - Mulheres à beira de um ataque de nervos (Mujeres Al Borde De Un Ataque de Nervios); 1987 - A lei do desejo (La Ley Del Deseo); 1986 - Matador (Matador); 1985 - Tráiler para amantes de lo prohibido (TV); 1984 - ¿Qué he hecho yo para merecer esto?!!; 1983 - Maus hábitos (Entre Tinieblas); 1982 - Labirinto de paixões (Laberinto de Passiones); 1980 - Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón; 1978 - Folle...Folle...Fólleme Tim! (curtametragem); 1978 - Salomé (Média-Metragem); 1977 - Sexo va, sexo viene (curtametragem); 1976 - Muerte en la carretera (curta-metragem); 1976 - Sea cariativo (curta-metragem); 1975 Blancor (curta-metragem); 1975 - La caída de Sodoma (curta-metragem); 1975 - Homenaje (curta-metragem);1975 - El Sueño, o la estrella (curtametragem); 1974 - Dos putas, o historia de amor que termina en boda (curta-metragem);1974 - Filme político (Film Político) (curtametragem). 4.5

Referências

FREITAS, Verlaine. Adorno & a arte contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

83


Volume 1

HOLGUIN, Antonio. Pedro Almodóvar. Madri: Cátedra, 2006. MERTON, Robert & LAZARSFELD, Paul. Comunicação de Massa, Gosto Popular e a Organização da Ação Social. In: LIMA, Luiz Costa (org). Teoria da Cultura de Massa, 4ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, pp.101-127. MERQUIOR, José Guilherme. Formalismo e Tradição Moderna. São Paulo: Editora Forense / Edusp, 1974. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001. RODRIGUES, Ana Lucilia. Pedro Almodóvar e a Feminilidade. São Paulo: Escuta, 2008. SANTANA, Gilmar. Riso, lágrima, ironia e tratados: genialidade e paradoxo em construção permanente. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. STRAUSS, Frederic. Conversas com Almodóvar. São Paulo: Jorge Zahar, 2008. ------------------------------

Eduardo RAZUK – Profissional de comunicação e artes, coordenador e professor em cursos superiores de comunicação social e diretor teatral (Grupo Galpão de Teatro). Doutor e Mestre em Comunicação Social pela UMESP - Universidade Metodista de São Paulo, Especialista em Comunicação e Mercado pela Faculdade Cásper Líbero; Publicitário e Gerente de Marketing pela ESPM - Escola Superior de Propaganda e Marketing; Especialista em Curadoria, Estética e História da Arte pela FAINC. eduardorazuk@uol.com.br

84


Caderno Comunicação, Educação e Artes

5. Documentário: simulação do mundo vivido e dissimulação de si mesmo34 Débora Cristine ROCHA Resumo A simulação e a dissimulação, propostas por Jean Baudrillard (1981) são estratégias cada vez mais presentes nos sistemas de comunicação atuais. Elas têm se tornado formas de fidelizar o público, que tem se interessado por textos de cultura (LOTMAN, 2001) que possam exibir o máximo de realidade. Sendo assim, a pesquisa visa estudar a estética que apaga as marcas da representação, com o intuito de gerar textos tão pretensamente colados ao mundo vivido que ocultam o processo de mediação, no gênero documental. Para tanto, ela discute a essência do documentário, os seus mecanismos de linguagem e a sua relação com a ficção. No corpus de pesquisa, destaca-se o trabalho do documentarista Eduardo Coutinho, que utiliza histórias de vida de pessoas comuns, anônimas em sua obra. Palavras-chave: Documentário; Simulação; Dissimulação; Eduardo Coutinho; Histórias de Vida.

Nos últimos tempos, o cinema documentário tem ocupado cada vez mais espaço nas salas de exibição do mundo todo (DUCLOS e JACQ, 2005, p. 28). Apenas no Brasil,

34

Trabalho apresentado no GP Semiótica da Comunicação do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 85


Volume 1

Em 2010, estrearam mais de 40 produções de não-ficção nacionais, que levaram cerca de 850 mil espectadores às salas de exibição. Em comparação com o cinema de ficção, sobretudo com os blockbusters internacionais, os números do cinema documental brasileiro ainda são acanhados, mas representam um avanço. (DINIZ, 2011) Em 2004, os números já mostravam este aumento: a audiência do cinema documental no Brasil chegou a 15% das exibições, um crescimento importante em relação à porcentagem de 1% a 2% de anos anteriores (RAMOS apud FREITAS, 2004, p. 58). Com essa mudança, acredita-se que "o documentário deixou de ser marginal e está, cada vez mais, ocupando um lugar central no cinema" (RAMOS apud FREITAS, 2004, p. 58), ainda que os investimentos realizados pela indústria cinematográfica nesse formato sejam reduzidos, diante dos destinados aos filmes de ficção e a sua bilheteria não se equipare a campeões comerciais. Há menos de um século, os primeiros documentaristas brasileiros, os chamados cavadores, que também costumavam ser os cinegrafistas dos filmes, eram considerados malandros capazes de qualquer sordidez. Havia exceções, é claro, mas muito raras: Gilberto Rossi era respeitado, mas de modo geral estes cinegrafistas eram malvistos; eles tinham é que descolar a grana, qualquer trambique valia, e o filme resultante nem sempre era lá aquela maravilha. Às vezes nem filme havia. Eram os “cavadores” e não havia quem não desancasse os cavadores, atribuíam-se-lhes todos os males do cinema brasileiro. Porque cinema não era isso. Cinema era filme de ficção, com estrelas glamourizadas. Aquele espetáculo prestigioso que as telas exibiam no Brasil, mas que os Brasileiros – Deus sabe por que malefício – não conseguiam fazer. (BERNARDET, 1979, p. 27) O documentário realizado pelos cavadores não merecia crédito, nem respeito. Estava sempre sob suspeita, suspeita de adulteração, suspeita de 86


Caderno Comunicação, Educação e Artes

fraude, era sempre uma obra engendrada pela má-fé. Por isso, a associação entre o formato documental e a falsidade era corrente. Cinema mesmo, cinema de verdade era o filme hollywoodiano, o filme no qual desfilavam as celebridades; o documentário era apenas o marketing dos políticos, o filme institucional que exibia obras e instituições públicas do ponto de vista de seus padrinhos. O documentário exibia o Brasil exótico, a nação de grandes recursos naturais e povo pacífico, um quadro típico do populismo. Era a propaganda governamental, o carro-chefe da manipulação política. Porém, no decorrer do tempo, a mudança de paradigma é radical. Hoje, os documentaristas são os cineastas mais bem vistos do cinema brasileiro. Nomes como Eduardo Coutinho (falecido de forma trágica em 2014), João Moreira Salles e José Padilha são tidos como referências não apenas nesse gênero, mas no cinema em geral. A credibilidade alcançada pelo documentário no Brasil se repete no mundo, o que determina o crescente interesse do público pelo gênero. Tal interesse é explicado por Marie- Pierre Duhamel-Müller, diretora artística do Festival de Cinema do Real de Paris, realizado no Centro Pompidou, como a desconfiança do público quanto à ficção e uma disposição para ver a realidade (DUHAMEL-MÜLLER apud DUCLOS e JACQ, 2005, p. 28). Ou seja, não é mais o documentário que suscita dúvidas quanto à credibilidade, mas a ficção. Tal disposição pode ser compreendida como um dos impactos da simulação (BAUDRILLARD, 1981) sobre os sistemas de comunicação. Para Jean Baudrillard (1991,p. 9), “Simular é fingir ter o que não se tem.” Ou seja, os meios de comunicação fingem ter a realidade para oferecer, embora eles não a possuam. Simulam o mundo vivido, como se o processo de representação pudesse ser desconsiderado, para agradar o público. A simulação passa a ser desejada exatamente porque apaga a linha divisória entre realidade e produção midiática, criando uma realidade alternativa muito mais atraente para a conquista de audiência. Quando os traços da representação são apagados, cria-se a ilusão de que os meios de comunicação exibem a vida como ela é, como se tudo o que é exibido 87


Volume 1

pelos meios de comunicação pudesse corresponder exatamente à realidade. Desta forma, os mecanismos de seleção e a combinação, inerentes a qualquer tipo de linguagem, são convenientemente esquecidos. O resultado será a criação de simulacros extremamente verossímeis que conferirão credibilidade aos sistemas que os exibirão. Uma vez que o sistema consiga tal confiança, poderá contar com a preferência do público que deseja realidade, ou ao menos a sua ilusão. Com o objetivo de alavancar a audiência, a simulação investirá pesadamente na verossimilhança. É uma estratégia de marketing para vender a realidade, algo que não se tem. A novidade é que agora a verossimilhança passa a ser um dos pilares que alicerçam a credibilidade da produção midiática, pois dará a sensação de realidade que o público deseja. O ato de simular a realidade contará com o voyeurismo midiático, o prazer de observar a vida privada do outro através dos sistemas de comunicação, assim como contará com o exibicionismo midiático, o prazer do indivíduo mostrar a si próprio nestes sistemas. Neste contexto, uma das estratégias e um dos recursos utilizados pela simulação será o uso de histórias de vida de pessoas anônimas. O cinema ficcional e o cinema documental convergem ao criarem mundos verossímeis em si mesmos. As duas vertentes cinematográficas geram mundos simulados, mas com pretensões diferentes: o ficcional não pretende exibir um mundo na tela como se fosse o mundo vivido, já o documental pretende. Esta pretensão, o cinema documental divide com outros gêneros audiovisuais, ainda que estes pertençam a outros sistemas de comunicação, caso do reality show na televisão. Obviamente existem ressalvas, não se pode negar que, entre o documentário e o reality show, há uma grande distância. No entanto, ambos se aproximam pelo emprego de mecanismos semelhantes na busca por um universo de não-ficção que possa corresponder à simulação da realidade na tela:

88


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Curieusement, on ne rapproche guère cette vogue réaliste des émissions de télé-réalité telles que “Strip-tease”, “Loft Story”, “Survivor”, aux Etats- Unis, “Big Brother”, ou “Gran Hermano”, aux Pays-Bas ou en Espagne, aux ressorts pourtant analogues: caméras postées pour saisir des comportements spontanés, acteurs non professionnels devenant objets consentants. Bien sûr, dire que le documentaire en appelle au même désir d’emprise que les shows, considérés comme la lie des programmes, serait abusif. Mais soyons vigilants: tous les dispositifs réalistes peuvent servir une manipulation: celle des non-acteurs, à la merci des réalisateurs guettant ce qui leur échappe; celle des spectateurs croyant qu’on filme pour eux la vie même. (DUCLOS e JACQ, 2005, p. 28) Em sistemas de cultura cuja plataforma de trabalho pretenda exibir a vida como ela é, a produção midiática procurará maquiar a representação. Ela tenderá à simulação, procurará formular um mundo no qual o espectador possa mergulhar e navegar em total imersão. Daí, no caso desses sistemas, a necessidade da reprodução cada vez mais fiel, cada vez mais próxima do mundo vivido. Essa será a estratégia pela qual os sistemas de comunicação que trabalham com o documental criarão mundos simulados. É preciso relembrar a diferença entre dissimulação e simulação, proposta por Baudrillard (1981). Tanto a dissimulação quanto a simulação são fingimentos, no entanto, na primeira, há consciência deste fingimento. Já na segunda, perde-se tal consciência: o grau de verossimilhança é de tal ordem que não se distingue mais o mundo midiático do mundo vivido. Todos os aparatos e todas as técnicas, dos recursos mais simples aos mais sofisticados, dos mais antigos aos de última geração, devem acentuar as semelhanças entre o mundo midiático, exibido pelos sistemas de comunicação e o mundo vivido, experimentado no cotidiano. A realidade exibida pelos sistemas de comunicação será tomada, então, como o fragmento legítimo, autêntico do mundo vivido, recortado pelo olho da câmera e montado como mundo midiático.

89


Volume 1

A percepção das diferenças entre o mundo vivido e o mundo midiático serão deliberadamente apagadas para que a simulação não seja notada. Assim, ao encobrir os processos de representação, será possível tornar a vida midiática tão digna de crédito quanto a vida cotidiana de tal modo que o público as considere equivalentes no critério veracidade. E a estratégia utilizada para tanto será a exploração do modelo indiciário, uma vez que o índice impregna o texto no qual se vê inserido com uma aura de realidade. Essa pretensa autenticidade, conferida pelo índice, dilui limites, reforça a fusão entre ficção e mundo vivido, mas também é um ardil que permite aos sistemas de comunicação anunciarem ao público que funcionam como espelhos fiéis e dignos de confiança do mundo vivido. Como se não houvesse lentes que refratassem a realidade, apenas espelhos que a refletissem. De fato, se a mídia exibe o mundo vivido exatamente como ele é, por que não acreditar no que veicula? Se a mídia exibe o mundo vivido exatamente como um espelho, para que questionar o que ela mostra ou de que forma obtém tal efeito? Quando os sistemas de comunicação são vistos como meros espelhos do mundo vivido, a mediação é desprezada, a montagem é desconsiderada e a ficção, no sentido proposto por Geertz (1989, p. 11) como algo construído, disfarçada. Afinal, se o sentido original de fictio é construção e todo filme possui uma organização interna, uma montagem que pode ser compreendida como processo construtivo, não há filme sem ficção. Em algum grau e de alguma forma, todo filme sempre será construído, todo filme sempre será ficcionalizado. Mas o segredo do efeito espelho será encobrir a ficção ali existente. Desse modo, nos dias atuais, os sistemas de comunicação estariam se dedicando cada vez mais à produção de filmes não-ficcionais. Fortemente indiciário, o universo da não-ficção possui o pré-requisito fundamental para a construção do efeito espelho, índices em abundância. Porém, trata-se de um ardil. Tais sistemas não conseguem eliminar a ficção de nenhum de seus

90


Caderno Comunicação, Educação e Artes

textos, pois ficção e realidade são, na verdade, os dois polos de um contínuo semiótico responsável pela geração textual. Desse modo, o universo da não-ficção guarda, em seu interior, o diálogo entre ficção e mundo vivido, entre ficção e realidade. Na semiosfera, esses dois sistemas de cultura dialogam sem limites muito definidos, sem separações nítidas, uma imprecisão que enriquece esse universo do ponto de vista semiótico, mas também oculta um amplo projeto de credibilidade dos sistemas de comunicação. Será a credibilidade necessária ao sucesso da simulação. O diálogo impreciso entre ficção e mundo vivido, que pode ser muito criativo, é reduzido à simulação que torna invisível um desses pares dialogantes. A ficção não é assumida, ela é deixada de lado quando se anuncia que esse ou aquele texto retrata a vida como ela é. Eis uma estratégia de persuasão. A aproximação entre ficção e mundo vivido deve induzir a certeza, a convicção de que os textos elaborados sob critérios ditos objetivos irão corresponder aos acontecimentos como de fato são. Assim, em teoria, a prática da manipulação estaria afastada e os textos gerados contariam com autoridade aos olhos do público. Tais textos seriam certificados como reais, ainda que o real que exibissem fosse um pseudoreal. Pseudo, construído, imitado, simulado. Como se não houvesse lentes que refratassem a realidade, apenas espelhos que a refletissem, o processo de simulação prima pelo paradigma indiciário e destaca a imagem do tipo fotográfico. Como parte do objeto, essa imagem não se limita a apontar o mundo vivido, mas dilui as bordas entre ficção e realidade pela força da conexão óptica entre imagem fotográfica e realidade, assim se faz crer que a simulação não existe. A força dessa imagem metamorfoseia a representação em algo mais. Tomada como prova retórica sobre a veracidade, a imagem fotográfica determina a simulação nos sistemas de cultura que a adotam. No centro do processo, está novamente a verossimilhança que pode ser reconhecida como um elemento de modelização importante nos sistemas 91


Volume 1

de cultura atuais, capaz de modelizar variados sistemas, que operam na fronteira entre a ficção e o mundo vivido, entre os quais se encontram a etnografia, o jornalismo, a história, a telenovela, o reality show e o documentário. O documentário, por exemplo, exibe a força da verossimilhança na captação do mundo vivido, realizada pelos suportes de imagem e áudio: Pela capacidade que têm o filme e a fita de áudio de registrar situações e acontecimentos com notável fidelidade, vemos nos documentários pessoas, lugares e coisas que também poderíamos ver por nós mesmos, fora do cinema. Essa característica, por si só, muitas vezes fornece uma base para a crença: vemos o que estava lá, diante da câmera; deve ser verdade. Esse poder extraordinário da imagem fotográfica não pode ser subestimado, embora esteja sujeito a restrições (NICHOLS, 2008, p. 28) A capacidade da imagem fotográfica de reproduzir a aparência do que está diante da câmera compele-nos a acreditar que a imagem seja a própria realidade reapresentada diante de nós (NICHOLS, 2008, p. 28) Na verdade, a verossimilhança diz respeito ao quanto a ficção parece ser a realidade à qual se refere. Essa relação induz a crença na completa equivalência entre verossimilhança e veracidade na transmissão do mundo vivido: quanto maior a verossimilhança, maior a veracidade. São grandezas diretamente proporcionais. É preciso compreender, no entanto, que a relação entre o mundo midiático e o mundo vivido não significa necessariamente veracidade. Tal transmissão sempre estará marcada pela mediação, cuja primeira manifestação se dará através do sistema perceptivo. Afinal, o real exige tradução perceptiva para ser compreendido. Só a mediação lhe fornece linguagens, códigos e textos com os quais se torna possível dialogar na vida cotidiana. E o diálogo é, em si, uma operação de tradução:

92


Caderno Comunicação, Educação e Artes

We have mentioned that the elementary act of thinking is translation. Now we can go further and say that the elementary mechanism of translating is dialogue. (LÓTMAN, 2001, p. 143) Há um artifício de retórica no processo que faz equivaler o mundo vivido e o mundo midiático, como se não houvesse qualquer diferença entre eles. Quando os dois mundos são levados à equivalência, o reconhecimento da mediação é comprometido e os textos que afirmam exibir a vida como ela é adquirem o caráter de fidelidade e veracidade integral. Essa é uma manobra retórica com grande poder de persuasão. No entanto, todo texto é construído. A construção implica em mediação. A construção também implica em ficção, considerando-se ficção algo construído. Ou seja, no mundo vivido, que é mediação, existe um processo de tradução inerente à sua própria existência enquanto linguagem e pensamento: a tradução entre o real e os textos de cultura que o traduzem. Daí, o mundo vivido contar, na sua construção, com a ficção. As relações entre ficção e mundo vivido, ficção e realidade são o ponto de partida para a exploração de vários gêneros audiovisuais. No documentário, a definição do gênero só se estabelece na fronteira entre ficção e mundo vivido. A definição de documentário só é construída pelo contraste em relação a outros gêneros, em geral, o filme de ficção, experimental e de vanguarda: A definição de “documentário” é sempre relativa ou comparativa. Assim como amor adquire significado em comparação com indiferença ou ódio, e cultura adquire significado quando contrastada com barbárie ou caos, o documentário define-se pelo contraste com filme de ficção ou filme experimental e de vanguarda. (NICHOLS, 2008, p. 47) Para o documentário, a comparação com outros gêneros é tão decisiva que, por vezes, procurar defini-lo sem esse recurso pode comprometer a sua compreensão enquanto gênero.

93


Volume 1

É verdade que muitos documentaristas avisam que seu trabalho não objetiva espelhar a vida como ela é. No entanto, a pretensão de exibir a realidade, não se refere a essa ou àquela maneira de determinado cineasta realizar seu trabalho - trata-se de uma exigência do gênero documental e não de seus realizadores individuais. Para tanto, os elementos específicos da linguagem cinematográfica dados pela câmera (enquadramento, plano, ângulo, movimento), assim como os elementos não específicos (iluminação, figurino, cenário, cor, tela, interpretação do ator) – conforme a tipologia de Martin (1990) – , são articulados de modo a compor simulações do cotidiano. Tais simulações são marcadas por uma verossimilhança extrema em relação ao mundo vivido, que modeliza todo o material audiovisual. Há uma gramaticalidade no cinema documentário que modeliza os elementos da linguagem cinematográfica, específicos e não específicos, de modo muito particular. Trata- se de uma configuração que conta com convenções de representação, ditas documentais, em geral vistas como capazes de minimizar a subjetividade. São as convenções documentais que atestam a seriedade do documentário, revestem o formato com uma aura que o valoriza como expressão do mundo vivido, fatual e verídico. Objetividade e isenção são estratégias que materializam o modelo indiciário e, assim, conferem credibilidade ao texto. É claro que existem vários tipos de documentário, cada qual modelizado por um modo de representação, o que leva o formato a transitar entre extremos. Na tipologia de Bill Nichols (2008), que compreende seis formas documentais, o documentário abrange desde o modo poético, tão autorreferente que gera mundos midiáticos muito próximos da ficção até o modo observativo, que pretende acompanhar os acontecimentos que se desenrolam diante da câmera sem que haja qualquer interferência do documentarista. Em teoria, como se o cineasta sequer existisse. Nesse sentido, as diferenças entre os vários modos de representação documentais são tão grandes, tais modos se distanciam tanto uns dos outros que os reunir sob o mesmo rótulo, documentário, é passível de contestação 94


Caderno Comunicação, Educação e Artes

por alguns cineastas: “Porque não há nada mais diferente de um ‘documentário’ do que outro ‘documentário’." (BRAGANÇA, 2007) Seja como for, há uma característica, um objetivo que aglutina todos esses modos de representação: a exploração da fronteira entre ficção e mundo vivido que pode determinar configurações muito distintas, mas que sempre serão construídas enquanto simulação, uma vez que sempre buscam imitar o referente. A simulação seria, então, o ponto alto do processo de referencialização, que desponta aqui e ali nos sistemas de comunicação, mas na atualidade se consolida como forma de geração de textos que possuem um nível de referencialidade tão grande que, por vezes, são vistos pelo público como a própria realidade. Nesse contexto, o documentário, principalmente nos modos de representação que valorizam o referente, caso do modo observativo, dialoga com vários sistemas de comunicação de maneira muito significativa. O modo observativo ou observacional advém do método etnográfico, que procura criar simulações do mundo vivido como se o etnógrafo não fizesse parte das cenas que transcorrem à sua frente. Nessa concepção, o fato de que a simples presença do pesquisador já é capaz de alterar os acontecimentos e interferir na cultura observada é desconsiderado. Porém, na presença de um estranho, é inevitável que o cotidiano seja alterado. Em teoria, várias técnicas podem ser empregadas para minimizar os efeitos do contato, mas todas serão recursos que irão impregnar o texto de cultura produzido de referencialidade. Clássico do documentário observacional, Nanook of the North (FLAHERTY, 1922) pretende documentar o modo de vida da cultura esquimó como se Flaherty e sua câmera sequer existissem durante a filmagem. O referente é enfatizado todo o tempo, mesmo quando algumas sequências, caso da caçada das morsas, são encenadas por Nanook e sua família a pedido de Flaherty. Nessas sequências, o formato documental faz prevalecer o referente e gera a docuficção, na qual o cinema documentário dialoga com o teatro. 95


Volume 1

Nanook é uma simulação, mas não é falso. O documentário simula o cotidiano de uma família esquimó, nunca será o cotidiano propriamente dito dessa família, mas essa sua condição não fará dele uma fraude. Nanook apenas reproduzirá da forma mais referencial possível o que é visto pelas lentes da câmera e da cultura de Flaherty. O filme irá refratar a realidade encontrada num lugar tão inóspito e exótico quanto o Ártico, mas muitas vezes será compreendido como mero espelho dali. Nanook é a experiência do mundo vivido, ainda que esse mundo pertença à outra cultura. Também é a experiência do indivíduo, ainda que esse indivíduo seja parte de outra cultura. Aqui, o indivíduo retrata a parte pelo todo tanto quanto outros indivíduos, em outros documentários, são transformados em porta-vozes de suas respectivas culturas. Esta questão leva ao debate primordial que envolve o documentário: “O que fazer com as pessoas?” ou “Como devemos tratar as pessoas que filmamos?” (NICHOLS, 2005, p. 26- 46). Trata-se de uma discussão da ordem da simulação. Em outras palavras, qual estratégia será utilizada para criar a simulação? Será o modo de representação documental, ou seja, o modo como se dará a simulação entre o mundo midiático e o mundo vivido no documentário que indicará a forma como as pessoas serão tratadas durante a montagem. Ao contrário do filme de ficção, o documentário não costuma utilizar atores profissionais para desempenhar papéis. Há documentaristas que preferem trabalhar com pessoas anônimas. Um caminho para tratar a pessoa anônima é torna-la um tipo sociológico, estratégia utilizada em Viramundo, documentário dirigido por Geraldo Sarno (1965) sobre a migração nordestina para o Estado de São Paulo na década de 1960. Parte do trabalho enfoca o movimento operário paulista, formado em grande parte por nordestinos. Para tanto, Virando contrasta dois operários, que contam suas histórias de vida, intercaladas pela entrevista de um empresário. O contraste entre os operários é obtido pela montagem paralela, que intercala as imagens de um operário sem qualificação profissional e de outro qualificado. 96


Caderno Comunicação, Educação e Artes

É a montagem que constrói a oposição e, por contraste, cria tipos sociológicos. Esses tipos apagam a individualidade, desconsideram a complexidade do comportamento humano ao transformarem experiências de vida em matéria-prima para a cinematografia. O processo transforma pessoas em personagens. Vistas dessa maneira, as pessoas serão peças na linha de produção, peças a serem encaixadas aqui e ali no processo fabril do texto audiovisual, funcionarão como argumentos retóricos que conferem credibilidade ao discurso transmitido. O processo não deve ser tomado como manipulação, no sentido de falsificar ou induzir resultados. Trata-se apenas do funcionamento de determinado modo de simulação, que toma a história de vida ou a experiência humana como peça das engrenagens fílmicas. Haverá um limite na simulação, reconhecido pelos próprios documentaristas. Geraldo Sarno, anos após o lançamento de Viramundo, dirá: “O que o documentário documenta com veracidade é minha maneira de documentar” (SARNO, 1984). Ou seja, além da expressão singular de cada cineasta realizar sua obra, o documentário será apenas a ficção, a construção semiótica que enfatiza o referente. E será esse molde semiótico que permitirá ao formato gerar a simulação. “Simular é fingir ter o que não se tem.” (BAUDRILLARD, 1991, p. 9). No documentário, simular é fazer de conta que o texto de cultura é o mundo vivido, fingir que entre o texto e a realidade não há diferença. Para tanto, será gerada uma forma de texto tão referencializada que ao público só restará acreditar que o cotidiano vivenciado por ele é exatamente igual ao cotidiano exibido na tela. O texto será, então, apresentado como um espelho tão fidedigno à vida real que por vezes a dispensará. Nesse panorama, cada documentarista elaborará a simulação a seu modo, mas não terá como fugir dela. Mesmo que o próprio documentarista não veja seu trabalho desta maneira, o gênero modelizará o que lhe for submetido como simulação. Há, por exemplo, as diversas formas de exibir o movimento operário paulista, elas surgem em Viramundo (SARNO, 1965), Entreatos (SALLES, 2004) e Peões (COUTINHO, 2004). 97


Volume 1

O que separa esses documentários é a forma de organizar o pensamento. Sarno contrasta as experiências de dois operários anônimos e Salles acompanha Lula, o sindicalista que chega à presidência da república e traça o perfil do anônimo que se transforma em celebridade. Já Coutinho procura dar voz aos operários anônimos que participaram das greves do Grande ABC paulista, lideradas por Lula no período de 1979 a 1980. Mas, ainda que esses documentários trilhem caminhos muito diferentes para mostrarem a trajetória operária, existe algo que os une enquanto gênero: a simulação. No documentário de Coutinho, em específico, a simulação gerada pelo tipo sociológico será deixada de lado, mas outra tomará o seu lugar. A forma de tratar as pessoas, no trabalho desse cineasta, será mais sensível, mas nem por isso terá como dispensar a simulação.

5.1

A proposta de Coutinho

Não são poucos os documentários sobre histórias de vida e eles se distribuem por todos os modos de representação do gênero. São diferentes maneiras de exibir experiências da vida privada, que contam com linguagens próprias, mas que se aproximam ao mostrarem o cotidiano de pessoas comuns que participam da História. No Brasil, o documentarista que mais trabalhou com histórias de vida de pessoas anônimas, foi Eduardo Coutinho. Segundo o cineasta, seu processo de criação não utiliza a entrevista, tanto que preferiu substituir as palavras entrevista e depoimento por conversa ou diálogo. Em primeiro lugar, porque Coutinho (2003) afirmou não contar com pauta ou roteiro prévio do que será falado com o entrevistado e, em segundo, “porque entrevista, depoimento, pressupõe uma formalização que destrói o clima de diálogo espontâneo que é importante” (COUTINHO, 1997, p. 16) para a construção da obra. No entanto, é possível que Coutinho conceba o termo entrevista apenas em sentido jornalístico, dada a sua experiência na imprensa como editor, 98


Caderno Comunicação, Educação e Artes

redator e diretor do programa Globo Repórter (TV Globo) de 1975 a 1984. Paul Thompson, (1992, p. 254). em contraponto ao pensamento de Coutinho, que “Uma entrevista não é um diálogo, ou uma conversa. Tudo o que interessa é fazer o informante falar. Você deve manter-se o mais possível em segundo plano” (THOMPSON, 1992, p. 271). Em Coutinho, a conversa será utilizada de modo peculiar, fazendo uso de mecanismos etnográficos. Ele opta por aparecer pouco em qualquer uma de suas obras, fazer poucas perguntas e deixar o outro à vontade para falar sobre si mesmo, assim como sobre o que mais lhe parecer pertinente. Coutinho também valoriza a captação do instante, do evanescente. Ele conta com o acaso, o imprevisível para realizar o filme e procura manter o frescor do contato com o entrevistado, será esse frescor o responsável pela elaboração de um ambiente capaz de gerar o inesperado. Para preservar a espontaneidade do primeiro contato com o entrevistado, num primeiro momento, Coutinho envia apenas a equipe de pesquisa. Ele não conversa com o entrevistado antes da gravação, seleciona quem será filmado ou não a partir dos relatórios dessa equipe. Também para manter a espontaneidade, Coutinho procura nunca interromper o entrevistado, evita fazer perguntas desnecessárias e grava em vídeo. Não usa película para que não haja interrupção sequer para a troca do rolo de filme, necessária a cada 15 minutos. Outra recomendação é evitar julgamentos, uma história pode até parecer irrelevante, mas nem por isso deve ser interrompida. Essa metodologia é atestada pela História oral, pois Se você interrompe uma história por considerá-la irrelevante, estará interrompendo não apenas essa, mas toda uma série de ofertas posteriores de informações que serão relevantes. (THOMPSON, 1992, p. 263) Coutinho (2003) afirma que “É preciso deixar o outro à vontade, se sentir bem para dar o seu espetáculo”. Somente assim será possível captar o “instante imprevisível”, sempre estimulado pela postura que não julga. Para Coutinho, essa poderá ser uma postura até mesmo ética, mas para o 99


Volume 1

documentário enquanto formato, a captação do acaso será o carro-chefe da simulação. O acaso deve fazer aflorar a espontaneidade que fará da entrevista um registro confiável e enfatizará o referente. Só que a espontaneidade oferecerá à simulação o que lhe é mais caro, a sensação de veracidade. Todos os recursos utilizados por Eduardo Coutinho em seu processo criativo, independente da intenção do documentarista que, em geral, conduzem ao mesmo efeito: a simulação. E há momentos em que ocorre algo interessante: a simulação é dissimulada. Baudrillard (1991, p. 9) estabelece que “Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem.”. Assim como o documentário simula ao fazer de conta que corresponde à realidade sem filtros – finge ter a realidade quando não a tem –, para que ele possa funcionar como gênero e angariar credibilidade, também é necessário dissimular a existência do processo de simulação que lhe é inerente – fingir não ser uma representação do mundo vivido quando, na verdade, é. Faz parte da própria natureza documental ocultar, encobrir a simulação. Para simular, é preciso dissimular. Por mais paradoxal que seja, uma das formas de dissimular a simulação, ou de fazer de conta que ela não existe, é evidenciar a sua estrutura do texto de cultura. Recursos documentais que enfatizam o referente são combinados a recursos metalinguísticos. Este é o caso de Jogo de Cena (COUTINHO, 2006), no qual mulheres comuns contam suas histórias de vida, sentadas no palco do Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, diante da câmera de Coutinho. Só que, em alguns momentos, as suas histórias passam a ser narradas, no mesmo teatro e também diante da câmera de Coutinho, por atrizes brasileiras consagradas. Tendo como plano de fundo, em relação a cada entrevistada, as cadeiras vazias do teatro, Coutinho constrói cinematograficamente a metáfora da vida como representação teatral ou simulação. Em uma das histórias, a mãe que perde seu bebê dá um depoimento sereno. Andréa Beltrão, a atriz que prossegue contando essa história, chora durante a encenação. 100


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Andréa Beltrão – Eu acho que se eu tivesse me preparado como atriz para chorar, eu não teria ficado tão incomodada. Eu fiquei incomodada. Chegou uma hora no texto que eu falei “Gente, eu não vou conseguir falar.” Coutinho – Aqui e agora? Andréa Beltrão – É, na hora, teve uma hora em que eu dei uma parada assim que eu falei “Será que eu paro? Peço para fazer de novo?” Eu achei que eu já estava muito emocionada, demais. Vai ficar chato, vai ficar meloso isso. Eu teria de ensaiar muitas vezes num teatro para conseguir falar isso friamente. Não que ela fale friamente, ela não fala isso friamente. Mas estoicamente, olimpicamente, dessa maneira! Eu teria de me preparar demais!! Então, todas as vezes que eu fazia bem mecanicamente, tudo bem, passava. Agora quando eu tentava fazer bem serena, tentando me aproximar da serenidade dela, não sei que, aí eu não conseguia. Essa hora do “Meu bebê”, “Vítor, meu bebê”, uma puta merda! Ele questiona as similaridades e as diferenças entre o mundo vivido e o mundo midiático, o mundo simulado. Ele expõe a simulação. Mas neste movimento, utiliza a dissimulação. Ao evidenciar a verossimilhança, Coutinho a dissimula.

5.2

Referências bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991 [1981]. BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. BRAGANÇA, Felipe. Eu não vou falar sobre documentário brasileiro. Contracampo, Revista de Cinema. n. 92. Disponível em: <www.contracampo.com.br/60/ naoeumdocumentariobrasileiro.htm>. Acesso em 25.11.2015. 101


Volume 1

COUTINHO, Eduardo em entrevista à Neusa Barbosa. Eduardo Coutinho assume a diferença como trunfo de seu cinema-verdade. In: Cineweb. Disponível em: <http://cineweb.com.br/entrevistas/entrevista.php?id_entrevista=647>. Acesso em 29.11.2015. COUTINHO, Eduardo no painel de 14.08.2003 do seminário internacional Memória, rede e mudança social, promovido pelo Museu da Pessoa e SescSP, quando do lançamento do Instituto Museu da Pessoa.Net, www.museudapessoa.net, no período de 12 a 14.08.2003. FIGUEIRÔA, Alexandre, BEZERRA, Cláudio e FECHINE, Yvana. O documentário como encontro: entrevista com o cineasta Eduardo Coutinho. Galáxia: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Puc-SP, São Paulo, n. 6, p. 213-229, out. 2003. COUTINHO, Eduardo. O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Puc-SP, São Paulo, v. 15, p. 165-191, abr. 1997. DINIZ, Lilia. O avanço do mercado de documentários no Brasil. In: Observatório da Imprensa, ed. 670, nov. 2011. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/caderno-da-cidadania/o- avanco-domercado-de-documentarios-no-brasil>. Acesso em 1.6.2016. DUCLOS, Denis e JACQ, Valerie. Du documentaire au “cinéma des gens”. Le monde diplomatique. Paris: Le monde diplomatique, 2005, p. 28, maio 2005. Disponível em: <www.monde-diplomatique.fr/2005/05/DUCLOS/12199>. Acesso em 25.11.2015. FREIRE, Marcius. Relação, encontro e reciprocidade: algumas reflexões sobre a ética no cinema documentário contemporâneo. Galáxia: revista transdisciplinar de comunicação, semiótica, cultura. Programa PósGraduado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. São Paulo: Educ; Brasília: CNPq, 2007, n. 14, p. 13-28, dez. 2007. FREIRE, Marcius. Fronteiras imprecisas: o documentário antropológico entre a exploração do exótico e a representação do outro. Revista Famecos: mídia, cultura e tecnologia. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-RS. n. 28, p. 107-114, dez. 2005. Porto Alegre: Edipucrs, 2005.

102


Caderno Comunicação, Educação e Artes

FREITAS, Ana Carolina. A hora e a vez do documentário. Ciência e Cultura. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. v. 56, n. 4, p. 58-59, out./dez. 2004. São Paulo: SBPC, 2004. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S000967252004000400026&script=sci_arttext>. Acesso em 25.11.2015. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. São Paulo: Jorge Zahar, 2004. LOTMAN, Yuri L. Universe of the mind: a semiotic theory of culture. Bloomington, Indianapolis: Indiana University Press, 2001 [1990]. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2007. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008 [2001]. RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs.). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Editora Senac, 2000. SARNO Geraldo. Quatro notas (e um depoimento) sobre o documentário. Revista Filme Cultura. Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Centro Técnico Audiovisual, 1984, n. 44, p. 61-64, abr./ago. 1984. Referências filmográficas Babilônia 2000. Dir. Eduardo Coutinho. Brasil. 2001. Cabra marcado para morrer. Dir. Eduardo Coutinho. Brasil. 1964-1984. Edifício Master. Dir. Eduardo Coutinho. Brasil. 2002. Entreatos. Dir. João Moreira Salles. Brasil. 2004. Jogo de Cena. Dir. Eduardo Coutinho. Brasil. 2006. Nanook of the North. Dir. Robert Joseph Flaherty. Estados Unidos. 1922. Peões. Dir. Eduardo Coutinho. Brasil. 2004. Santa Marta, duas semanas no morro. Dir. Eduardo Coutinho. Brasil. 1987. Santo Forte. Dir. Eduardo Coutinho. Brasil. 1999. Viramundo. Dir. Geraldo Sarno. Brasil. 1965.

----------------------------------------

Débora Cristine ROCHA – Doutora em Comunicação e Semiótica (Puc-SP), membro do grupo de pesquisa Espacc (Puc-SP), email: deborarocha111@yahoo.com.br. 103


Volume 1

104


Caderno Comunicação, Educação e Artes

6. Avaliações externas e sua relevância na fundamentação de índices de qualidade da educação: Um diagnóstico das políticas públicas que avaliam o ensino no Brasil Diego da Silva DAVOGLIO Resumo O presente artigo busca retratar o sistema de avaliações oficiais em larga escala que aferem a qualidade da educação no Brasil. As avaliações externas tornaram-se mecanismos nacionais, estaduais e municipais que servem de parâmetro para o planejamento da educação, principalmente devido o diagnóstico de descritores – habilidades e competências cognitivas apresentadas pelos alunos através de testes – orientando a ação pedagógica em razão da busca por melhores resultados nos índices oficiais, delimitando a função do ato de educar e contrariando aspectos de autonomia previstos em Lei e presentes nas mais diversas linhas pedagógicas. O objetivo é informar os mecanismos de avaliações externas, apresentando incoerências entre a reflexão sobre o ato de avaliar adotado em tendências pedagógicas predominantes no ensino brasileiro e os mecanismos do sistema de avaliação do ensino, revelando sua função política paralela aos interesses da educação como direito social para exercício da plena cidadania. Palavras-chave: Avaliações externas. Enem. Políticas educacionais.

105


Volume 1

6.1

Introdução

Os mecanismos de aferição da qualidade do ensino são importantes ferramentas para elaboração de índices que orientam as políticas educacionais em todas as esferas e modalidades de ensino no Brasil. Constituem, portanto, um assunto que interessa à população que, através da Educação, exerce o direito social previsto na Constituição Federal (1988, art. 205) “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Seja através do acesso à informação – hoje potencializado pelas redes e pela internet35 –, seja através de assembleias, conselhos de classe ou participação dos pais e responsáveis pelos alunos nas escolas, a realização deste direito constitucional se dá também, e principalmente, quando a população conhece e entende o papel que desempenha a escola dentro da comunidade, e de onde e de que forma surgem os parâmetros que mantêm a qualidade do ensino através de mecanismos de avaliação. Historicamente no Brasil, pode-se considerar o Plano de Reconstrução Educacional pensado por Anísio Teixeira nos anos de 1952 a 1964 como o esforço empregado para reconsiderar o papel escolar na área das ciências sociais que mais bem ilustrou os métodos, as técnicas e os objetivos da educação à sociedade, fazendo dela interesse da população, que cada vez mais busca entender a função social da escola (ARAÚJO, 2007, p.24). A escola como instituição de transmissão da cultura é elevada à categoria de instância fundamental da sociedade moderna para o exercício da plena cidadania (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, art. 6º) e daí em diante passa a ser objeto de debate cada vez mais intenso. Entretanto, não há como transformar a linguagem técnica da pedagogia para apresenta-la de forma simples, de modo que seja possível informar à população índices, relatórios, diagramas ou diagnósticos precisos sobre a qualidade do ensino

35

http://www.acessoainformacao.gov.br/ 106


Caderno Comunicação, Educação e Artes

ou os objetivos alcançados, apenas para que a Educação se faça presente no bojo do interesse social, pois nestes casos serão invalidadas quaisquer interpretações técnico-práticas (LUCKESI, 2005). Por outro lado, se é necessária a informação clara à população para que sejam debatidos os caminhos para melhoria da qualidade do ensino no país, haverá sempre um desencontro entre as políticas educacionais e o papel da educação. Para o professor Paulo Freire, há dois grandes grupos de interpretações sobre a função da escola e do ensino: aqueles que, de um lado, têm por objetivo a domesticação dos educandos para atingir determinados fins e, de outro, as que pretendem a humanização dos educandos através do ensino libertador (FREIRE, 1975) A Lei de Diretrizes e Bases da Educação n. 9394 de 20 de dezembro de 1996 (LDB) prevê no artigo quinto que a educação pública é um direito fundamental de todo cidadão, e através do parágrafo sexto do artigo nono atribui à União a responsabilidade de monitorar e garantir a qualidade da educação nas esferas do ensino fundamental, médio e superior. As reponsabilidades do Governo Federal realizam-se através de avaliações nacionais que verificam o rendimento e a qualidade da educação e aferem as exigências para o exercício da cidadania plena dos educandos. Surgiram na década de 1990 as primeiras políticas públicas que sustentam o sistema de avaliação do ensino nacional, empregando exames para aferir a qualidade da educação no país com base em parâmetros, e têm funcionado assim até os dias de hoje. Alguns destes instrumentos de avaliação são aplicados de modo homogêneo em todo país. O Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, foi elaborado em 1998 pelo ministro da educação Paulo Renato através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC). O Enem propõe, desde a origem, uma avaliação geral dos alunos que encerram o ensino médio, traçando um panorama anual qualitativo com base no conhecimento apresentado por aqueles que realizam a prova, que não é obrigatória. A Avaliação Nacional de Rendimento Escolar (Anresc), mais conhecida 107


Volume 1

como Prova Brasil, surgiu em 2005 e é aplicada aos alunos do quinto e nono ano do Ensino Fundamental de modo padronizado com objetivo de aferir as competências e habilidades dos educandos nos diferentes descritores que compõem a prova a fim de atribuir o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) para cada escola e cada município do país. Apesar de a LDB prever que a escola, como instituição pedagógica de escolarização, tenha autonomia, identidade e modelos próprios36, desde que balize seu currículo nas propostas de orientação dos parâmetros apresentados pela Lei, as avaliações oficiais que aferem a qualidade do ensino nas escolas agem, contraditoriamente, como delimitadores dessa prática autônoma, pois elegem habilidades cognitivas que se tornam prioridades dos gestores de educação que, muitas vezes sob pressão para atingir melhores índices, renunciam à autonomia do ensino (TRAVITZKI, 2013): Nota-se, portanto, certa garantia legal à pluralidade pedagógica e autonomia escolas, que podem vir a ser prejudicadas pelo estabelecimento de padrões de qualidade únicos e finalidades rígidas para atividade educativa. 6.2

Os parâmetros da qualidade do ensino

Definir qualidade é uma tarefa que requer cautela, uma vez que envolve o risco de especularmos sobre as possibilidades técnicas ou teóricas de maneira desarticulada do que ocorre na realidade escolar (BARBOSA, 2015). É necessário esclarecer quais são os parâmetros dessa qualificação. Tudo aquilo que não atende ao parâmetro descrito é desqualificado? Diante desse paradigma do ato de avaliar a qualidade de algo, pode-se recorrer à

36

Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público. 108


Caderno Comunicação, Educação e Artes

luz da filosofia da educação, que apresenta a avaliação educacional como uma “prática amorosa, inclusiva, dinâmica e construtiva, diversa dos exames, que não são amorosos, são excludentes, não são construtivos, mas classificatórios, a avaliação inclui; os exames selecionam, excluem, marginalizam” (LUCKESI, 2000). A cada uma das habilidades e competências avaliadas nos educandos para que se tenha parâmetro para qualidade do ensino dá-se o nome descritor, saberes específicos julgados fundamentais para o exercício da plena cidadania. Os descritores são definidos em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). As DCNs têm origem na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, e gera diretrizes para a educação infantil, fundamental e o ensino médio, orientando os currículos e os seus conteúdos mínimos, assegurando a formação básica como previsto na resolução nº 4 de 13 de julho de 2010. Art. 1º A presente Resolução define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para o conjunto orgânico, sequencial e articulado das etapas e modalidades da Educação Básica, baseando-se no direito de toda pessoa ao seu pleno desenvolvimento, à preparação para o exercício da cidadania e à qualificação para o trabalho, na vivência e convivência em ambiente educativo, e tendo como fundamento a responsabilidade que o Estado brasileiro, a família e a sociedade têm de garantir a democratização do acesso, a inclusão, a permanência e a conclusão com sucesso das crianças, dos jovens e adultos na instituição educacional, a aprendizagem para continuidade dos estudos e a extensão da obrigatoriedade e da gratuidade da Educação Básica. Organizadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), as diretrizes preveem sistematizar princípios contidos na LDB, estimulando a reflexão crítica, subsidiando a formulação, execução e avaliação do projeto político-pedagógico das escolas em todo país. As DCNs orientam os profissionais da educação dos diferentes entes federados, indistintamente

109


Volume 1

da rede a que pertençam. De acordo com o projeto desenvolvido pelas DCN’s, avalia-se que: As Diretrizes Curriculares Nacionais constituem-se, portanto, atribuição federal, que é exercida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), nos termos da LDB e da Lei nº 9.131/95, que o instituiu. Esta lei define, na alínea “c” do seu artigo 9º, entre as atribuições de sua Câmara de Educação Básica (CEB), deliberar sobre as Diretrizes Curriculares propostas pelo Ministério da Educação. Esta competência para definir as Diretrizes Curriculares Nacionais torna-as mandatórias para todos os sistemas. [...] O sentido adotado neste Parecer para diretrizes está formulado na Resolução CNE/CEB nº 2/98, que as delimita como conjunto de definições doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentos na Educação Básica que orientarão as escolas brasileiras dos sistemas de ensino, na organização, na articulação, no desenvolvimento e na avaliação de suas propostas pedagógicas. Um exemplo de diretriz avaliada nos educandos é que todo indivíduo deve conhecer a função social da língua, requisito básico que serve de ingresso para o mundo letrado. Ler e escrever constituem particularidades formais e funcionais, e são competências desenvolvidas no ambiente escolar, assim como a interpretação crítica e o saber cultural contextualizado. Daí a importância de se promover uma avaliação nacional competente que se pauta por tais descritores. Entretanto, segundo Barbosa (2015), “os resultados apresentados pelos índices de qualidade do ensino carregam a forte implicação de que as escolas podem fazer muito para melhorar a qualidade do ensino e o desempenho escolar”. Razão pela qual se pode apontar para a elaboração de uma prática avaliativa qualitativamente mais significativa. Todavia, para se repensar o parâmetro do índice se faz necessário oferecer subsídio para a comunidade escolar questionar até que ponto os índices de qualidade do ensino apenas reforçam a necessidade de se priorizar o ensino dos alunos com base no padrão de qualidade (BARBOSA, 2015).

110


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Para aferição da qualidade do ensino, buscam-se parâmetros externos bastante semelhantes aos internos, ou seja, às condutas docentes durante o ato de avaliar dentro da sala da aula, no decorrer de um conteúdo programático. Têm-se, nestes casos, mecanismos diversos de avaliação inclusiva, que pretende identificar dificuldades de aprendizagem nos educados e desenvolvê-las na busca da apreensão do assunto por estes estudantes e não através da exclusão. Luckesi traz os instrumentos políticos de avaliação da qualidade do ensino à luz da natureza da avaliação dos alunos em sala de aula: Quaisquer que sejam os instrumentos – prova, teste, redação, monografia, dramatização, exposição oral, argüição, etc. – necessitam manifestar qualidade satisfatória como instrumento para ser utilizado na avaliação da aprendizagem escolar, sob pena de estarmos qualificando inadequadamente nossos educandos e, conseqüentemente, praticando injustiças. Muitas vezes, nossos educandos são competentes em suas habilidades, mas nossos instrumentos de coleta de dados são inadequados e, por isso, os julgamos, incorretamente, como incompetentes. Na verdade, o defeito está em nossos instrumentos, e não no seu desempenho. Bons instrumentos de avaliação da aprendizagem são condições de uma prática satisfatória de avaliação na escola. (LUCKESI, 2000, p. 5) Nota-se, portanto que o ato de avaliar não pressupõe apenas a atribuição de valor à determinada escola ou município de acordo com a proximidade do padrão eleito, ou atribuição de valor como é definido o verbo avaliar em qualquer dicionário básico de Língua Portuguesa. A avaliação não é um processo de controle dos educandos ou da educação, mas tem feito parte desse processo (LUCKESI, 1992, p.31). Com base no paradigma da avaliação apresentado pela filosofia da educação, faz-se necessário um levantamento da eficácia dos índices gerados pelas avaliações oficiais como mecanismos de aferimento da qualidade real do ensino no país e do estímulo à elaboração de novas políticas públicas para elevar a qualidade. De acordo com Méndez (2002, 111


Volume 1

p.98, apud ZANON, 2008, p.2) “mais que o instrumento, importa o tipo de conhecimento que põe à prova, o tipo de qualidade que se exige e as respostas que se espera obter conforme o conteúdo das perguntas ou problemas que são formulados”. Entre as duas famosas avaliações externas produzidas pelo Governo Federal, o Enem e a Prova Brasil, existe uma importante diferença que interessa à filosofia da educação. A primeira é classificatória, pois é exame, e para Luckesi (2005) o exame é sempre excludente, enquanto que a avaliação deve ser includente, pois “a avaliação é um julgamento de valor sobre manifestações relevantes da realidade, tendo em vista uma tomada de decisão para melhorar essa realidade” (LUCKESI, 1978); a segunda é censitária e avalia o rendimento escolar a cada dois anos, desde 2005, para gerar o Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico (Ideb).

6.3

O ENEM

O Enem tem o objetivo de avaliar a qualidade do ensino médio ofertado pelas redes públicas e particulares do país. Em 1998, primeiro ano de aplicação cerca 150 mil estudantes se inscreveram no exame segundo dados do Inep. A popularização do Enem se deu a partir de 2004 quando o MEC instituiu o Programa Universidade para Todos (ProUni), e vinculou a concessão de bolsas em instituições de ensino superior (IES) privadas à nota obtida no exame. Por causa desta mudança, no ano seguinte, o Enem alcançou a marca de três milhões de inscritos Em 2009, o ministro da educação Fernando Haddad foi autor de uma mudança histórica na estrutura e no objetivo do exame. Deu-lhe características de vestibular, com o objetivo de unificar a porta de entrada para as universidades federais do país. Atualmente mais de 700 instituições utilizam os resultados do Enem como processo seletivo. O principal incentivo para que os concluintes do ensino médio fizessem o Enem foi a possibilidade concreta de carimbar o passaporte rumo ao ensino superior. Com o passar dos anos, mais e mais universidades adotaram ao exame como vestibular, algumas parcialmente e

112


Caderno Comunicação, Educação e Artes

outras totalmente, considerando, portanto, apenas o desempenho do estudante no exame. A tabela37 a seguir apresenta dados retirados do site do Inep e expõe saltos exponenciais. A abrangência da finalidade do exame e a conexão com diversos programas sociais deu visibilidade e fez crescer o número de participantes. No entanto, nota-se mais um problema: a divergência entre o número de inscritos no exame e o número de participantes que de fato compareceram à avaliação. Ano

Inscritos

Participantes

1998

157.221

115.575

1999

346.953

315.960

2000

390.180

352.487

2001

1.624.131

1.200.883

2002

1.829.170

1.318.820

2003

1.882.393

1.322.645

2004

1.552.316

1.035.642

2005

3.004.491

2.200.618

2006

3.743.370

2.784.192

2007

3.580.667

2.742.548

2008

4.018.070

2.920.589

2009

4.147.527

2.583.909

2010

4.611.505

3.312.060

2011

5.367.092

3.950.080

37

Tabela retirada do site do Ministério da Educação http://portal.mec.gov.br/ disponível em 20 de março de 2015. 113

e

Cultura


Volume 1

A realização do Enem se dá de modo concomitante em todo Brasil. As inscrições podem ser feitas, de acordo com o Inep, por todos os alunos do segundo e terceiro anos do ensino médio; todos os indivíduos que já concluíram o ensino médio ou que possuem pendências acadêmicas, como o abandono de escola, pois o Enem passou a servir como certificação de conclusão do ensino médio em cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA), antigo supletivo, e substitui o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). Nota-se que diversos inscritos não comparecem ao exame, o que aponta desperdício de planejamento e gastos da União. Em 2013, a ausência dos estudantes que se inscreveram e não compareceram no dia do exame correspondeu a um gasto de 58 milhões de reais, segundo estimativa exposta no site do Inep. Além do prejuízo financeiro e do retrabalho, o esforço de muitos alunos é desprezado quando há problemas como vazamento das questões da prova, como ocorreu em 2011, ou ainda em 2014, quando houve divulgação de uma foto da página de redação por meio de mídias sociais. Outrossim, no ano de 2014, cerca de 9,5 milhões de pessoas se inscreveram para o exame, entretanto apenas 5 milhões compareceram à avaliação. Segundo o MEC, no mesmo ano foram impressas cerca de 18,3 milhões de cadernos de provas (incluindo normal, ampliada, ledor3 e braile), sem considerar o número real de inscrições de indivíduos com essas necessidades, e essa média se repete todos os anos. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) busca desde 2005 possibilitar a comparação entre estudantes e instituições a partir dos resultados no Enem com objetivo de identificar deficiências e boas práticas pedagógicas. No entanto, essas medidas não contemplam a maioria das escolas do ensino médio - já que não são obrigatórias.

114


Caderno Comunicação, Educação e Artes

E por valorizar demasiadamente o imaginário geral sobre o exame, o ranking do Enem torna-se uma importante política de responsabilização fraca no sistema nacional de educação, e embora este caráter de ranqueamento seja valorizado pelo senso comum, o uso do exame como diagnóstico ou instrumento de identificação de qualidades pedagógicas é incipiente. (TRAVITZKI, 2013)

6.4

Os índices

O Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico (Ideb). Ideb surgiu oficialmente com o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, em 2007, sua fundamentação foi apresentada por Reynaldo Fernandes, presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), e rapidamente se tonou um dos aspectos mais relevantes do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) por Fernando Haddad, Ministro da Educação à época. Sendo o principal índice de qualidade do ensino, o Ideb combina os resultados de desempenho na Prova Brasil com taxas de aprovação dos estudantes, fornecendo diagnóstico do Ensino Básico e atribuindo a cada rede municipal e a cada escola uma pontuação que vai de zero a dez. Para difundir o Ideb, o Ministério da Educação dispõe dados em 115


Volume 1

documentos oficiais que tornam público tanto a metodologia empregada na produção do índice quanto os objetivos almejados e os descritores que orientam o que será avaliado nas provas. Uma plataforma digital, aliás, que permite a qualquer cidadão apreciar o resultado do índice de cada escola pública, e de cada município do país por meio dos sites do MEC (www.mec.gov.br) e do Inep (www.inep.gov.br). Outro ambiente digital, chamado QEdu, dispõe de uma plataforma com dados regionais das principais avaliações externas aplicadas ao ensino básico. Situado no endereço digital www.qedu.org.br, permite consulta dos dados sobre o que será ensinado aos alunos de cada ano letivo, e notas do Ideb de cada escola ou região do Brasil. Há diversas críticas positivas e negativas dos profissionais da educação sobre a divulgação dos resultados do Ideb, que, sem a orientação técnica necessária para a interpretação eficaz, colabora para construção de estereótipos. Para Regina Shudo, especialista em educação infantil “o Ideb não representa a qualidade real do aprendizado de um aluno, ou da qualidade do ensino da rede38”. Um projeto proposto pelo economista Gustavo Ioschpe, e defendido pelo ex-deputado Lelo Coimbra (PMDB-ES) em maio de 2012 propunha às escolas que expusessem o resultado da nota do Ideb na porta de entrada. Na época em que foi defendida a proposta a secretária-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) Marta Vanelli pronunciou-se publicamente alegando que o Ideb “não é recurso de avaliação dos estabelecimentos da educação do País, mas sim um instrumento de diagnóstico39”. A divulgação do índice, segundo a secretária-geral, serviria de estímulo para que a família tirasse o filho da escola pública e levasse para a escola particular, o que seria prejudicial ao sistema educacional como um todo. Nota-se, a partir das críticas, que há consenso no que diz respeito à importante de índices como o Ideb, mas que

38 Transcrição da fala de Regina Shudo em entrevista disponível no livro Diagnósticos da Educação, 2015. 39 Matéria disponível em http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2012-0510/ideb-na-porta-da-escola-e-criticado-em-comissao-na-camara.html

116


Caderno Comunicação, Educação e Artes

para a divulgação dos resultados deve ser levada em consideração todos os aspectos pedagógicos, políticos e demográficos, entre outros que não caberiam num quadro parafusado à porta de cada escola, como aponta o arte-educador que leciona há duas décadas na cidade de Guarulhos, Tiago Ortaet, em entrevista. O Ideb é uma espécie de termômetro do ensino básico, ele atribui a cada rede municipal e a cada escola uma pontuação que vai de zero a dez, por isso é considerado o principal indicador de qualidade da educação no Brasil. A escola cria artifícios para se conseguir estatísticas de promoção, nas quais o que importa socialmente é dizer ‘tantos alunos passaram de ano’. E assim vai criando uma série de artifícios em que o compromisso e a preocupação do aluno acabam sendo jogados para segundo plano40. Segundo Barbosa (2015) “há fortes evidências de que os fatores que tornam uma escola mais eficaz que outra em promover bons resultados em testes padronizados perpassam pelas estratégias dos professores e pela organização da sala de aula”. Os dados das avaliações de larga escala que apresentam o desempenho da educação básica através do Ideb sinalizam a importância de se ter uma visão crítica sobre o que se pauta na avaliação do ensino e a natureza dos resultados, pois a projeção dada ao índice através da mídia transcende o espaço escolar e instaura a cultura de centralização e controle dos mecanismos de avaliação, em que as responsabilidade pelo fracasso ou êxito da qualidade da educacional municipal são imputadas a cada escola e a cada secretaria de ensino (PASCHOALINO; FIDALGO, 2011 apud BARBOSA, 2015). A construção de um sistema avaliativo de larga escala deve ser cauteloso ao divulgar seus métodos e resultados, uma vez que devem orientar políticas públicas através de julgamentos oriundos de interpretação técnica dos resultados e não orientar o tecnicismo da gestão e do planejamento 40

Transcrição da entrevista de Tiago Ortaet disponível no livro Diagnósticos da Educação, 2015 117


Volume 1

pedagógico da instituição de ensino no sentido de ensinar para o exame (CASASSUS, 2009), levando até mesmo à redução dos currículos, delimitando-os aos tópicos abrangidos pela avaliação padronizada, de modo que "os professores ocupem o tempo exercitando os alunos a escolher uma resposta entre as apresentadas" (CASASSUS, 2009, p.75) No que tange ao Ensino Superior, em agosto de 2003 foi proposto um novo sistema - SINAES – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, que foi formalmente instituído através da Lei 10.861 (BRASIL, 2004), aprovada em abril de 2004. O sistema inclui abordagem para o exame de cursos de ensino superior denominado ENADE – Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, que, em suma, apresenta semelhantes divergências entre os resultados e a realidade no que diz respeito á qualidade em si: Muitas das promessas do ENADE ainda não foram concretizadas. Dentre elas, algumas são pontuais, como a nãodivulgação de um relatório técnico-científico do ENADE 2004, e outras são estruturais e mais sérias, como: a) as dificuldades para a análise das diferenças entre ingressantes e concluintes, criadas a partir da opção, pelo INEP, de composição de uma nota única, em lugar de uma nota dos ingressantes, e outra dos concluintes (DANTAS, 2006) Nota-se, por fim, que há um ecletismo de modas pedagógicas e tendências de educação no Brasil e que estas influenciam nosso olhar sobre as Leis, os parâmetros e quaisquer mecanismos que aferem a qualidade da educação.

6.5

A tendência

Segundo Saviani (2005) deve-se “compreender a questão educacional com base no desenvolvimento histórico objetivo”, com isso o autor propõe a visão da pedagogia histórico-crítica buscando superar as modas pedagógicas não críticas, pois estas não consideram ou não reconhecem o entendimento histórico sobre a educação, tampouco o materialista cultural. Para essas concepções, a educação é isolada dos fenômenos sociais e 118


Caderno Comunicação, Educação e Artes

também dos fenômenos históricos. A pedagogia construtivista vê a cognição como um fenômeno que se desenvolve por meio da mediação e do contexto. Não se pode simplesmente depositar conteúdos no aluno e esperar resultados de memorização sem reflexão. Com base nesse pensamento dialético aprendiz-mediador-ambiente, torna-se necessário pensar a cidadania como uma realidade dentro da qual se deve constituir uma análise qualitativa competente. A Pedagogia atual reitera categoricamente o papel do sujeito no processo de construção do conhecimento. Compreender e saber utilizar-se do contexto vivo do educando orienta a maior parte dos educadores desde suas licenciaturas até o papel diário de educar, que à luz das ideias de Freire (1996) “não é um ato de consumir ideias prontas, mas de cria-las e recriálas”. Ainda para Freire (1996) “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquela. Linguagem e realidade prendem-se dinamicamente”. Ou seja, a compreensão do texto a ser alcançada pela leitura crítica implica na percepção das relações entre o texto e o contexto. [...] parece que a crise atual é diversa daquelas do passado. Os desafios do nosso tempo infligem um duro golpe à verdadeira essência da ideia de pedagogia formada nos albores da longa história da civilização: problematizam-se as “invariantes” da ideia, as características constitutivas da própria pedagogia[...] [...]Nenhuma reviravolta da história humana pôs os educadores diante de desafios comparáveis a esses decisivos de nossos dias.. (BAUMAN, 2009). É preciso haver uma discussão ampla sobre os objetivos da educação formal das escolas e, em particular, dos mecanismos de avaliação da qualidade do ensino. O desafio é descobrir elementos comuns à prática da plena cidadania que se aplicam às experiências do alunado sem que sejam centralizados saberes e sem que se perca o viés da escola enquanto instância de transmissão da cultura e do saber acumulado. Talvez mais importante que tudo isso seja manter o debate que construa opiniões e mantenha os mecanismos e as políticas públicas sob a luz da crítica e das 119


Volume 1

características intrínsecas da filosofia da educação. E que os alunos, em seus diversos aspectos sociais, culturais, econômicos e familiares, em um compromisso com a análise dos aspectos positivos e negativos de cada tipo de ensino sejam respeitados durante o processo de construção do conhecimento e de possibilidades para o exercício da cidadania.

6.6

Referências

ARAÚJO, Marta Maria. Plasticidade do Plano de Reconstrução Educacional de Anísio Teixeira (1952-1964). Educativa, Goiânia. V. 10, n. 1, p. 9-27. jan/jun 2007 BARBOSA, José Márcio Silva. O Ideb como instrumento de avaliação da aprendizagem escolar: uma visão crítica. Rev. Eletrônica Pesquiseduca, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, v. 07, nº13, p. 106-123, janjun. 2015. CASASSUS, Juan. Uma nota crítica sobre a avaliação estandartizada: a perda da qualidade e a segmentação social. Sísifo: Revista de Ciências da Educação, 2009. DANTAS, L. M. V., SOARES, J. F. VERHINE, R. E. Do provão ao ENADE: uma análise comparativa dos exames nacionais utilizados no Ensino Superior Brasileiro. Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.52, p. 291-310, jul./set. 2006 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Ed. 25ª. São Paulo: Paz e Terra, 1996. LUCKESI, CIPRIANO CARLOS. O que é mesmo o ato de avaliar a aprendizagem? Pátio. Porto alegre: ARTMED. Ano 3, n. 12 fev./abr. 2000. LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da Aprendizagem Escolas: Sendas Percorridas. 1992. 542 p. Tese (Doutorado em Filosofia da Educação) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. MEC. 2014 Plano Nacional de Educação 2014-24. Legislação. Brasília, 2014 MÉNDEZ, J. M. A. Avaliar para conhecer, examinar para excluir. Porto Alegre: Artmed, 2002.Moretto, V.P. Prova: um momento privilegiado de estudo – não um acerto de contas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. PASCHOALINO, J. B.; FIDALGO, F. A lógica brasileira da avaliação: impactos no currículo escolar a partir do sacrossanto IDEB. Educação, Sociedade & Cultura, n. 34, 2011, 103-116.

120


Caderno Comunicação, Educação e Artes

SAVIANI, Dermeval. Ensino público e algumas falas sobre universidade. 1984. In: Revista , ano, volume, número SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 9.ed. Campinas: Autores Associados, 2005. TRAVITZKI, R. ENEM: Limites e possibilidades do Exame Nacional do Ensino Médio enquanto indicador de qualidade escolas; Tese de Doutorado; São Paulo, 2013, 322 p. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. Ed. 4ª. São Paulo: Martins Fontes, 1991 ZANON, Denise Puglia INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA UNIVERSITÁRIA. Creative Commons 2.5 Brasil. 2008, 26p. WEBLIOGRAFIA PDE/Saeb 2011. BRASIL. (disponível pdf em http://portal.mec.gov.br/ Acessado em 17 de abril de 2015 às 20h) http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/files/programa-de-metas-2013-2016.pdf (Acessado em 5 de março 2015 às 12h45) http://pensenovotv.com.br/files/Programa_de_Governo_Haddad.pdf (Acessado em 6 de março 2015 às 11h) http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/o-enem-2014-as-criticas-e-aeducacao-brasileira/ (Acessado em 25 de Maio de 2015 às 12h33) http://www.sinepepr.org.br/inep/ENEM.pdf (Análise do Sindicado das Escolas Particulares Contribuição da Escola Particular Brasileira para o Exame Nacional do Ensino Médio). (Acessado em 22 de Maio de 2015 às 12h) http://www.scielo.br/pdf/cp/v39n137/v39n137a16.pdf https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/2511.pdf http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_08_p071-080_c.pdf

----------------------------------------Diego da Silva Davoglio – Graduado em jornalismo pela UnG – Universidade Guarulhos; Escritor de livros paradidáticos e projetos educacionais.

121


Volume 1

122


Caderno Comunicação, Educação e Artes

7. O efeito prismático da informação nas redes sociais Fábio Martins Resumo A comunicação vem se transformando desde o surgimento da internet. Os últimos 10 anos foram pródigos nessa evolução e presencia-se, atualmente, uma das mais importantes mudanças na forma como os usuários da rede se relacionam entre si e a forma como buscam informação e entretenimento. Neste cenário é importante para os comunicólogos digitais preverem quais transformações a informação pode sofrer entre o emissor e o receptor. Assim, o objetivo deste artigo é pensar a comunicação não somente como ação e interação, mas como uma mobilizadora e condutora de ideias e conceitos. Um simples comentário em uma notícia compartilhada, pensando na velocidade da informação atual, pode alterar seu sentido, já que o resumo vale como a leitura completa para o usuário médio das redes sociais. Palavras-chave: Redes Sociais. Ambiente Digital. Teoria da Comunicação.

7.1

Introdução

As redes sociais se transformaram em importantes ferramentas, não somente de interação e entretenimento, mas, como fonte de informação, mobilização e formação de opinião. Isso fica evidenciado pelas diversas manifestações sociais, culturais e políticas que saem do ambiente digital e se materializam nas ruas, avenidas e tradicionais pontos

123


Volume 1

de mobilização. Exemplos não faltam: os “rolezinhos”, flash mobs41, manifestações pela redução de tarifas de ônibus, pró e contra impeachment, entre muitos outros. A questão é que muitos tomam partido por um lado, ou se mobilizam influenciados por informações não necessariamente precisas, que muitas vezes são deturpadas com o único objetivo de persuadir pessoas. Assim, se anteriormente havia o emissor de um lado e o receptor de outro e, entre eles, a possibilidade do ruído, há, atualmente uma mudança deste paradigma. O emissor faz seu trabalho corretamente, porém, não se comunica, necessariamente, com o receptor da informação e sim com um intermediário, que pode apresentar somente parte dessa informação, se aproveitando da celeridade das redes sociais, em que, cada vez mais, interpreta-se a informação pelo título e não por seu conteúdo. Ou seja, não se trata necessariamente de um ruído, mas da interpretação parcial da informação, transformando seu significado antes que seja entregue ao receptor. Assim, uma mesma informação pode ter diversas “legendas” diferentes. Considerando o que fora anteriormente exposto, é possível realizar analogia com um efeito ótico conhecido como prisma, que se trata da separação da luz em suas cores do espectro (arco íris). Ou seja, a mesma luz se decompõe em (7) sete cores distintas. Sob outro aspecto é possível comparar este efeito nas redes sociais ao efeito de refração da luz, que, como parte do efeito prismático, causa alteração da percepção da localização real de um objeto a partir do ponto de emissão da luz. Dessa maneira, o objetivo desta revisão bibliográfica é abordar a forma como a informação poder ter o seu sentido alterado não por um ruído específico ou pela forma como uma informação é concebida pelo emissor, 41Flash mob: Mobilização rápida envolvendo um grupo de pessoas em local público. São, normalmente, organizadas através das redes sociais. Em essência os movimentos forjam atitudes naturais, iniciam, desenvolvem e terminam, sem que seja clara sua organização.

124


Caderno Comunicação, Educação e Artes

pela fonte de informação, mas, pela intervenção de quem partilha e viraliza uma informação e de quem a recebe e interpreta, muitas vezes por fragmentos de fatos e dados.

7.2

Revisão bibliográfica

A linguagem também já foi pensada como instrumento de comunicação. Por essa concepção, a língua é concebida como um código por meio do qual se estabelece a comunicação entre um emissor (aquele que codifica) e um receptor (aquele que decodifica). Tal concepção foi bastante difundida. O conhecido esquema da comunicação proposto por Roman Jakobson serviu, durante muito tempo, de fundamento para o ensino de língua materna e esteve presente inclusive em livros didáticos de língua portuguesa (TERRA; ERNANI, 2009). É preciso compreender mais claramente a diferença entre comunicação e informação. Informação é quando um emissor passa para um receptor um conjunto de dados codificados que elimina uma série de indefinições e dúvidas. Ou seja, a informação pressupõe a figura de um emissor, uma mensagem e um receptor. A comunicação acontece somente quando a informação recebida pelo receptor é compreendida, interpretada (decodificada) e encaminhada de volta ao emissor, o que caracteriza a retroalimentação do processo. Esse retorno da informação recebida designado também como feedback - é o principal elemento que caracteriza e dinamiza o processo de comunicação.O ruído é todo sinal considerado indesejável na transmissão de uma mensagem por um canal. Tudo que dificulta a comunicação interfere na transmissão e perturba a recepção ou a compreensão da mensagem (MATOS; GUSTAVO, 2014).

125


Volume 1

Figura 1 – Fluxograma do processo de comunicação Fonte: MATOS (2014, p. 4). A lei da refração explica por que uma régua parcialmente submersa ou um canudo em um copo de suco parece dobrado; a luz proveniente da parte submersa muda de direção quando atravessa a interface ar-água, dando a impressão de que os raios estão vindo de uma posição acima de seu ponto de origem real (Figura 2) (YOUNG; FREEDMAN, 2016, p. 5)

Figura 2 – Régua reta parcialmente imersa na água Fonte: YOUNG; FREEDMAN (2016, p. 5). A Figura 3 ilustra um feixe de luz branca incidindo sobre um prisma e sendo decomposta em diversas cores. Estas, que compõem a luz branca, sofrem desvios diferentes, pois o 126


Caderno Comunicação, Educação e Artes

índice de refração do material do prisma depende do comprimento de onda. Quanto menor o comprimento de onda, maior o índice de refração e maior o desvio sofrido pelo raio incidente. Dessa forma, quando a luz emerge do prisma, cada cor sai com um ângulo diferente, mostrando todo o espectro. Assim, diz-se que a luz sofreu dispersão (SGUAZZARDI, 2015).

Figura 3 – Dispersão da luz por um prisma Fonte: SGUAZZARDI (2015, p. 104). Entendem-se as redes sociais como um agrupamento de indivíduos ligados por um interesse ou objetivo comum, dentro ou fora do meio digital, e designamos mídias sociais com as ferramentas e/ou veículos utilizados para o contato mediado desses grupos. Assim, mídias sociais famosas como Facebook, Twitter, LinkedIn, entre outras, têm potencial para formar redes sociais, desde que grupos ou comunidades com interesses comuns se estabeleçam dentro desses sites (MAIO, 2015). Ainda segundo Maio (2015, p. 25): No início da Idade Média, o problema havia sido a falta de livros, a escassez. No século XVI, foi o oposto. Um escritor italiano queixou-se em 1550 de que havia ‘tantos livros que não temos nem tempo de ler os títulos’. Os volumes eram uma floresta em que os leitores podiam se perder, de acordo com o 127


Volume 1

reformador João Calvino (1509-64). Era um oceano no qual os leitores tinham de navegar, ou uma enchente de material impresso em que será difícil não se afogar. A sensação hodierna, proporcionada pela enxurrada de informação disponibilizada na internet, não é diferente. Por outro lado, há abordagens deslumbradas em relação às novas tecnologias de informação e comunicação, que ignoram até mesmo preceitos teóricos e metodológicos em nome da tão sonhada democratização da informação. Esse grupo de investigadores costuma classificar, os não apaixonados como céticos e conservadores, por não compartilharem da mesma vibração dos tecnofílicos (MAIO, 2015). “Hoje, as grandes mudanças nos computadores e nas telecomunicações emanam dos aplicativos, das necessidades humanas básicas, muito mais do que das ciências materiais básicas” (NEGROPONTE, 2002, p. 77). As mídias sociais diferem fundamentalmente das mídias tradicionais no aspecto da interatividade da discussão e na integração das informações por meio dos diversos públicos. As facilidades do uso dessa nova ferramenta, somadas à interação e à liberdade de opinião, fazem desse instrumento uma das mais promissoras formas de mídia na atualidade (GARCIA, 2015). A cada minuto mais de 72 horas de conteúdo em formato de vídeos são publicados no Youtube. Além do que são produzidos por blogs especializados e mídias sociais. Um infográfico criado pela Domo empresa especializada em pesquisar volume de dados, descreve o que acontece a cada sessenta segundos na Internet: 4 milhões de buscas são feitas no Google; 277 mil novos tweets são geradas no Twitter; 2.460.000 atualizações de status no Facebook; 204 milhões de novos e-mails são enviados; 216 mil fotos são publicadas no Instagram; 48 mil downloads de apps são feitos na loja da Apple (OLIVEIRA, 2014) Há nos textos postados na internet uma abertura dialógica. Há ruptura com o contexto unidirecional dos meios de massa, uma tendência que procura a participação do espectador internauta, que tem, agora, através desses

128


Caderno Comunicação, Educação e Artes

canais, a possibilidade de modificar a notícia postada na internet pela Folha.com, Portal R7, Rede Globo, Jovem Pan, interpretando os fatos e, muitas vezes, dando sua visão dos acontecimentos (MARADEI, 2011). O repórter vivencia uma poética ao interpretar determinada ideia; e o receptor, ao reinterpretá-la, vivencia uma experiência estética, que poderá ser outra ideia. E isso acarreta um desdobramento na Web, na medida em que o mesmo receptor da notícia de um portal (Globo, Folha, Estado) pode tornar-se, a qualquer tempo, autor de um post em seu blog, em sua página do Twitter, em seu Facebook, chegando a um ato mobilizador (MARADEI, 2011). Uma das questões relevantes a serem analisadas é que o receptor nas redes sociais é mais do que nunca sujeito. Hoje, há nas redes sociais um novo contexto, há hibridações no fazer e consumir comunicacional (MARADEI, 2011). No Facebook, por exemplo, para o internauta manifestar sua opinião sobre uma crise, basta ele curtir o comentário postado em um blog, uma notícia ou um post de um colega. No Twitter, poucas palavras bastam para expressar a indignação com um episódio de tamanhas proporções como um acidente ambiental, um crime hediondo, um escândalo político ou financeiro. Sem palavras, do local dos fatos, através da postagem de um vídeo no Youtube, pelo celular, muitos internautas têm ganhado espaço na mídia com informações relevantes sobre notícias de destaque, como ocorreu com o próprio acidente do Playcenter. Nos últimos anos, não são poucos os fatos do cotidiano que têm percorrido as redes sociais, chegando à grande imprensa dentro da frenética dinâmica desses canais. Alguns são de maior impacto, como a queda dos oito visitantes do brinquedo do Playcenter, outros, de menor relevância e que terminam ganhando grande visibilidade (MARADEI, 2011). Assim, fica clara a compreensão de que todos os dados, informações e notícias que são veiculadas atualmente são dinâmicos e acrescentados das ações e percepções dos que interagem com eles. Além de receber informações, os receptores também as produzem direta ou indiretamente. 129


Volume 1

Dessa forma, a disseminação de uma mesma informação por diferentes receptores a faz ser vista sobdiversos prismas, tirando assim a plena importância da fonte e amplificando seu potencial de acordo com a reputação de quem a replica.

7.3

Considerações Finais

Nota-se que a internet, e com ela as redes sociais, estão em pleno processo de desenvolvimento. Parece claro que o poder transformador das mídias sociais afetou, afeta e afetará a forma como os usuários da rede se comportam, interagem e interpretam a informação. A ansiedade pela informação e pela interação muitas vezes pode atropelar a lógica e fazer com que empresas, instituições e pessoas sejam erroneamente rotuladas ou classificadas por conta do efeito prismático que a informação ganha na internet atualmente. Essa é uma tendência que não demonstra nenhuma perspectiva de declínio. Assim, cada pessoa que compartilha uma informação é capaz de alterar a percepção dela, incluindo suas próprias experiências. Em tempos de informações rápidas, isso permite que alguém interprete algo sem sequer ter tido contato com a informação original e sem decodificar nada. Sem precisar de signos, significados ou significantes. A informação está lá somente para referendar um ponto de vista, sem necessariamente compô-la. Conclui-se que, do ponto de vista prático, a informação perde valor e relevância e é utilizada como ferramenta de persuasão. A notícia torna-se fugaz, a verdade torna-se fugaz sob a refração das redes sociais. Mas, a internet possui a memória infinita, que permite o resgate de uma informação algum tempo depois, voltando a abalar reputações no ambiente digital e na vida real. Os comunicólogos digitais devem buscar formas de controlar o efeito prismático, seja com a tecnologia, seja com o aculturamento e até mesmo buscando regulamentação governamental, afinal, a manipulação da informação pode causar danos permanentes e, como uma meia verdade, colocar-se como fato quando se transforma em comunicação, ao ser decodificado pelo receptor. 130


Caderno Comunicação, Educação e Artes

7.4

Referências

BROWN, Tim. Design Thinking - Uma Metodologia Poderosa para Decretar o Fim das Velhas Ideias - São Paulo - Campus – 2010 FREEDMAN, Roger A.; YOUNG, Hugh D. Física IV - Ótica e Física Moderna. 14ª ed. São Paulo: Pearson, 2016. GARCIA, PAULO. Gestão de crise no contexto das novas tecnologias de comunicação e informação. BUENO, W. (org.). Estratégia de comunicação nas mídias sociais. 1ª ed. São Paulo: Manole, 2015. MAIO, ANA MARIA. Das mídias sociais aos encontros presenciais: a opção pela comunicação face a face. BUENO, W. (org.). Estratégia de comunicação nas mídias sociais. 1ª ed. São Paulo: Manole, 2015. MARADEI, A. As crises organizacionais nas redes sociais. BUENO, W. (org.). Comunicação empresarial. Leituras contemporâneas. 1ª ed. São Paulo: All Print Editora, 2011. MATOS, Gustavo. Comunicação empresarial sem complicação. 2ª ed. São Paulo: Manole, 2009. NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. OLIVEIRA, Rosália. Curadoria de conteúdo como ferramenta para o contexto informação digital. São Paulo: 2014. SGUAZZARDI, MONICA (org.). Óticas e movimentos ondulatórios. São Paulo: Pearson, 2015. TERRA, Ernani. Linguagem, língua e fala. 1ª ed. São Paulo: Scipione, 2009. TORRES, Claudio. A Bíblia do Marketing Digital - São Paulo - Novatec – 2009

------------------------------------------Fábio Martins – Bacharel em Propaganda & Marketing; MBA em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas; Pós-graduado em Gestão de Marketing Digital pela Faculdade Dom Bosco; Publicitário; Diretor de Planejamento da Agência Tait; Professor universitário e orientador em Trabalhos de Conclusão de Curso; Cursando MBA em Design Thinking pela Alfa.

131


Volume 1

132


Caderno Comunicação, Educação e Artes

8. Redes sociais e rastreabilidade digital: reflexões sobre as menções públicas em torno do acidente ambiental da Samarco em Mariana Flavia Daniela Pereira DELGADO Resumo O presente artigo trata das conversações e o engajamento expressos em redes sociais públicas acerca do rompimento da barragem da mineradora Samarco/Vale, ocorrido no interior de Minas Gerais em novembro de 2015. O estudo tem como base a análise de um relatório cuja metodologia baseou-se na análise do big data (tecnologia que qualifica o grande número de informações disponíveis na Internet), apontando tendências de discussões dos usuários das redes acerca do tema nos dias que sucederam ao acidente, além de refletir sobre os rastros digitais, a partir da perspectiva da Teoria Ator-Rede. Palavras-chave: Redes sociais; acidente ambiental; Samarco; opinião pública; TAR

8.1

Introdução

As ruas e praças já não são mais lugares de manifestação primários, como foram a ágora grega e o fórum romano. Essas áreas de circulação do mundo da vida são completamente ressignificadas nos dias atuais, agora no ambiente virtual. Ao conectar cerca de um bilhão de pessoas no mundo inteiro, redes sociais como Twitter, Youtube e Facebook são capazes de transmitir praticamente em tempo real e sem limitações de volume ou de

133


Volume 1

fronteiras, mensagens híbridas em distintas combinações de textos, áudio, foto e vídeo. Essa nova conectividade entre os participantes das redes, associada a novas formas de criar significações comunitariamente, está produzindo efeitos que se propagam de uma maneira que está mudando rapidamente a comunicação social. Especialmente no Brasil, onde há hoje 94,2 milhões de usuários de internet e 32,3 milhões de domicílios com acesso à web42. O objetivo deste artigo é apontar a repercussão em algumas redes sociais43 sobre o maior acidente ambiental no Brasil, a partir da análise de diferentes conversações44, tentando compreender tendências dos trânsito de informaçao nesses ambientes on line nos primeiros dias que se sucederam à tragédia. O acidente aconteceu no dia 05 de novembro de 2015 e consistiu no rompimento de duas barragens de rejeitos químicos da mineradora Samarco que liberou um “tsunami” de lama, devastando os povoados de Bento Rodrigues e Paracatu, subdistritos rurais do município de Mariana (a 110 km de Belo Horizonte). A “onda” de lama química arrastou casas e construções, plantações e criações de animais, percorrendo 10 km em 40 minutos e deixando um rastro de destruição à medida que avançava pelo Rio Doce. A lama seguiu até a praia de Regência (área de preservação ambiental e sede do Projeto Tamar,45), no litoral norte do Espírito Santo e atingiu o mar, formando uma

42 Segundo pesquisa de setembro de 2015, referente ao ano de 2014. Disponível em: http://www.cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2014_coletiva_de_imprensa.pdf 43 As menções públicas referem-se citações em sites, blogs, twitter, Instagram, fóruns e perfis públicos do Facebook. Portanto, não estão contabilizadas citações em perfis, páginas e grupos do Facebook que possuem restrições de privacidade. 44 A análise foi possível graças ao levantamento realizado pela empresa Trend.Info Inteligência Digital em dois distintos momentos: de 05 a 09 de novembro e nos dia 16 e 17 de novembro de 2016 como forma de compreender a evolução da percepção pública em torno do acidente. 45 Projeto que há 35 anos trabalha na pesquisa, proteção e manejo de espécies de tartarugas ameaçadas de extinção nos 1100 km de litoral brasileiro. Disponível em: http://www.tamar.org.br/noticia1.php?cod=655

134


Caderno Comunicação, Educação e Artes

imensa mancha de poluição. Segundo especialistas, os impactos ambientais do acidente foram incalculáveis e irreversíveis. O acidente liberou aproximadamente 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, formados, principalmente, por óxido de ferro, água e lama. Cerca de 1.265 moradores ficaram desabrigados, sendo alocados em hotéis e pousadas da região. Aproximadamente 1,5 mil hectares de vegetação foram destruídos pela lama entre Mariana e Linhares (município a 115 km de Vitória, ES). A extensão da lama no mar, no litoral de Linhares era de 80 km, o que acarretou a morte de 11 toneladas de peixes. Impactos ambientais e econômicos afetaram 40 cidades (35 em Minas Gerais e quatro no Espírito Santo46). Uma tragédia ambiental sem precedentes no país, que matou 19 pessoas. A Samarco é uma empresa brasileira de mineração fundada em 1977, de capital fechado, controlada em partes iguais por dois acionistas: a angloaustraliana Billiton Brasil Ltda. (BHP) e Vale S/A. Com sede em Belo Horizonte, a mineradora em seu portal47 faz questão de ressaltar as conquistas que a reconhecem como uma empresa séria e preocupada com o meio ambiente: eleita por três anos consecutivos como melhor mineradora e segunda maior mineradora pela Revista Exame, ganhadora do prêmio Época Empresa Verde em 2013 e por duas vezes no ranking da Revista Exame “150 melhores empresas para se trabalhar no Brasil”. Seu principal produto são pelotas de minério de ferro comercializadas para a indústria siderúrgica mundial. A empresa é uma grande exportadora e tem clientes em 19 países das Américas, Oriente Médio, Ásia e Europa. Quase dois anos após o acidente, além de diversas autuações administrativas e multas emitidas pelos governos de Minas Gerais e Espírito Santo e órgãos ambientais, a Samarco também depositou R$ 1 bilhão como caução para reparação dos danos e R$ 8 milhões em multas

46Disponível

em http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/11/veja-lista-dedesaparecidos-no-rompimento-de-barragens.html 47 Disponível em http://www.samarco.com/institucional/a-empresa/ 135


Volume 1

foram pagos ao Ministério Público. A mineradora teve cerca de R$300 milhões bloqueados pela Justiça, montante que em parte foi utilizado no pagamento das primeiras indenizações. A tragédia de Mariana representou um forte revés na reputação da empresa, graças ao conteúdo negativo do noticiário no Brasil e no mundo. E foi também amplificada pelas redes sociais.

8.2

Opinião pública e sites de redes sociais

A história mostra em quase todas as eras a força da opinião pública se faz presente. Nas comunidades democráticas da Grécia clássica, na república e no império romanos, nas sucessivas revoluções na França nos séculos XVIII e XIX, na Declaração da Independência dos EUA e em vários outros momentos sua força se não garantiu, ao menos impulsionou importantes acontecimentos políticos e sociais. Em geral, a noção que se dá ao termo “opinião pública” é o da representação de um conjunto de opiniões individuais semelhantes entre si a respeito de termas de interesse coletivo. Já no século XIX, o historiador escocês James Bryce foi pioneiro ao formular a noção de que a opinião pública é um agregado de opiniões individuais mais ou menos parecidas de pessoas que podem ser integrantes de grupos sociais orgânicos diferentes. Joseph Pulitzer (2009) entendia de forma mais ampla a opinião pública, enquanto uma convicção baseada em evidências, um consentimento sustentado por argumentos ou uma visão de adquirir talvez inconscientemente, através do hábito da leitura. A opinião pública pode ser descrita como a soma das opiniões privadas. É aquilo que a massa ou a maioria das pessoas sente ou acredita.Um governo popular é o governo da opinião pública, expressa nas eleições e registrada nas leis. A opinião pública ao regular a conduta de uma comunidade é uma lei não escrita e um sentimento dominante, representando um acordo coletivo ou um código de moral ou comportamento (PULITZER, 2009, p.57). 136


Caderno Comunicação, Educação e Artes

O filósofo e jornalista Walter Lipman foi quem mais se dedicou ao assunto. Em seu livro “Opinão Pública”, publicado em 1922 conceitua que: Aqueles aspectos do mundo que têm a ver com o comportamento de outros seres humanos na medida em que o comportamento cruza com o nosso, que é dependente do nosso ou que nos é interessante, podemos chamar rudemente de opinião.A imagem de si próprio, dos outros, de suas necessidades, propósitos e relacionamentos são suas opiniões públicas. (LIPPMANN, 2008, p. 40) A opinião pública parece ser uma força moral e política que sempre encontra inspiração e expressão na imprensa, verdadeiro tribunal dos anseios das sociedades. Se até o seculo XX este papel foi desempenhado pelos tradicionais meios de comunicação de massa, nesta segunda década do século XXI, esse protagonismo parece deslocar-se para as redes sociais. Definidas por Manuel Castells (2012, p. 565) como uma morfologia social de nossas sociedades, cuja difusão tem modificado de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e da experiência de poder e cultura, a redes sociais constituem uma antiga forma de organização na experiência humana, existente muito antes do advento da internet. Em Sociologia, por exemplo, toda uma área de estudos, inaugurada pelo trabalho de Jacob Moreno, buscou estudar as “redes sociais”. Trata-se de um enfoque de viés estruturalista, que busca entender os grupos sociais através de suas conexões, nos quais os atores sociais são os nós (ou nodos) da rede e suas conexões, os laços sociais. Rede social no mundo real, como a própria expressão indica, é nada mais que o relacionamento entre membros de um sistema social, isto é, entre indivíduos de uma sociedade em diferentes dimensões e status. Nesse viés, os conceitos para rede social no mundo real ou no virtual são os mesmos, diferencia-se apenas a forma de conexão. De acordo com Park e Thelwall: uma rede social é composta de nós (pessoas, grupos, organizações ou outras formações sociais tais como países) conectados por meio de relacionamentos. 137


Volume 1

Comparativamente, uma rede de comunicação é uma rede composta por ―indivíduos interconectados ligados entre si por meio de padrões de fluxos de informação. (PARK; THELWALL, 2008, p.194) Mas, na chamada Era da Informação, as tecnologias digitais possibilitaram sua infinita expansão e reconfiguração. Fundamental nesse processo foi o avanço das chamadas TIC’s (tecnologias da informação e comunicação), que possibilitaram uma mudança no compartilhamento de informaçoes do tradicional broadcasting unidirecional das empresas de comunicação de massa ao microcasting muldirecional e dos usuários das redes, em que cada um dos participantes tem a liberdade para se conectar aos demais, ao mesmo tempo em que desaparece o conceito de centralidade: nas redes sociais, o centro esta em toda parte. É o que sustenta Romanini: Por conta desta hiperconectividade virtual, de sua penetração no cotidiano das pessoas, da facilidade de acesso e da rapidez na veiculação das mensagens, as redes sociais estão se tornando o principal agente catalisador dos novos comportamentos sociais e das grandes mudanças em várias partes do mundo. Os tradicionais poderes do Estado, as instituições públicas, e os organismos como partidos políticos, sindicatos, igrejas, veículos de comunicação – todos baseados em formas de hierarquização mais ou menos rígidas – entraram em rápida obsolescência. (ROMANINI, 2012, p. 62). Segundo Raquel Recuero (2014), a mediação pelo computador gerou uma serie de elementos complexificadores dos processos de comunicação. Modificou a estrutura da comunicação interpessoal, permitindo o surgimento de conversações assíncronas mantidas por sofwares entre um grande numero de pessoas, gerando grandes fóruns públicos de discussão. “Também concedeu maior poder aos usuarios, permitindo que cada um consiga amplificar suas mensagens para grandes audiências participativas (...) gerando novas práticas sociais com impacto na interconexao entre os indivíduos e no capital social construído”. (RECUERO, 2014 p. 409). 138


Caderno Comunicação, Educação e Artes

A autora sustenta que as redes sociais na internet são representaçoes de grupos sociais, constituídas com o apoio dos sites de rede social – estruturas estabelecidas através da apropriação desses sites que por sua vez, constituem-se em ferramentas que permitem aos atores a construção de um perfil individual e a publicação de suas conexões sociais (Boyd & Ellison, 2007). Tais redes constituem-se em novos tipos de espaços públicos, os chamados públicos em rede (Boyd, 2010). As especificidades dos públicos nos sites de redes sociais têm ensejado um novo campo de estudo em comunicação, a Análise das Redes Sociais (ARS). Esses públicos têm características específicas – compreendem ao mesmo tempo, o espaço construído pelas tecnologias e o coletivo emerge do uso dessas tecnologias. Por isso, os públicos em rede têm dois tipos de características, as relacionadas a este espaço e as relacionadas às suas apropriações ou dinâmicas. Dentre as características do espaço, estão: 1) a permanência dos textos, ou seja, o fato de que as interações (textos) tendem a ficar inscritas na rede e ali permanecerem; 2) a “buscabilidade” dos textos, que são recuperáveis; 3) a replicabilidade dos textos, que podem ser reproduzidos facilmente e de forma fiel, o que leva a :4) a escalabilidade, ou seja, o potencial de alcance e multiplicação desses textos. Assim, o mapeamento dessas redes ganha novo potencial, com ares de “big data”, no sentido de que pela primeira vez é possível mapear gostos, tendências, ideias e conexões de milhares de pessoas, procurar e estabelecer padrões entre essas múltiplas redes. (RECUERO, 2009). Há que se frisar ainda que a emergência das redes sociais transformaram também o conceito de líder de opinião, o gatekeeper, que na teoria tradicional da comunicação de assa assumia um papel de amplificador de opiniões e difusor de hábitos políticos ou culturais. Identificado por Lazarsfeld anda na década de 50, o líder de opinião tinha um rosto e uma posição social bem definida, e por isso mesmo era capaz de amplificar e direcionar os efeito da comunicação, determinando em grande parte o sucesso de uma mensagem. “Nas redes sociais, qualquer dos usuários é um 139


Volume 1

potencial gatekeeper e pode por algum tempo assumir o papel de hub numa teia de conexões. Esse é um tipo de empoderamento novo na história da humanidade”. (ROMANINI, 2012, p 63).

8.3

Análise das menções públicas nos sites de redes sociais

Nos dias observados foram encontradas 55.688 menções públicas com o termo Samarco. As menções públicas referem-se às reportagens em jornais online, citações em sites, blogs e Twitter.

Gráfico 1 – Evolução das menções à Samarco na WEB

O gráfico acima mostra que, a partir da crise, a Samarco chegou a atingir 16 mil menções públicas diárias. A nuvem de palavras48 abaixo mostra as 50 palavras mais citadas no dia do acidente, 5 de novembro.

48

Nuvem de palavras , nuvem de tags ou nuvem de etiquetas é uma lista hierarquizada, um representação visual, uma forma de apresentar os itens de conteúdo/palavras em um website. Quanto maior a frequência de aparição, maior será o seu destaque na nuve 140


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Imagem 1- Nuvem de tags - termos mais mencionados na web em 05.11.15

Nota-se que no dia em que ocorreu o acidente em Minas Gerais os internautas se preocuparam, basicamente, em relatar o ocorrido. Somente o termo “barragem” foi citado 5.537 vezes, em contextos como os que exemplificamos a seguir:

Imagem 2- relatos de internautas no twitter em 05.11.16

Já no dia posterior ao acidente, 06.11, a nuvem de palavras foi a seguinte:

141


Volume 1

Imagem 3 – Nuvem de tags- termos mais mencionado na web em 06.11.16

Pode-se perceber que no segundo dia, as palavras “barragem” e “rompimento” foram os principais focos de repercussão do caso. Pode-se notar ainda um crescimento de notícias e menções relacionadas aos “desabrigados”. Nesse dia, a hashtag (etiqueta de identificação) #mariana também cresceu. Foi a segunda fase da tragédia, que ganhou contornos mais emocionais, envolvendo sentimentos em relação às vítimas. No mesmo dia também passaram a surgir termos como “alertaram”. Isso começou a colocar em causa a responsabilidade da empresa com a segurança da barragem e, consequentemente, a Samarco começou a ser acusada de negligência.

Imagem 4 – exemplos de posts de internautas no dia seguinte ao acidente da Samarco.

As palavras que haviam obtido destaque nos dias anteriores continuaram a ser mencionadas, mas passou a haver também um volume de notícias internacionais. Novas hashtags como #nãofoiacidente ganharam força, 142


Caderno Comunicação, Educação e Artes

iniciando um movimento de cobrança. Podemos ainda ver as palavras “Espírito” e “Santo”, mostrando que as redes começaram a se preocupar com a trajetória da lama no leito do Rio Doce. Iniciou-se também um movimento de cobrança em relação às autoridades políticas, o que demonstra que a crise agora se alastrou para uma esfera institucional, relacionada aos poderes. A tendência é que governos e entidades evitem ser responsabilizados pela catástrofe.

Imagem 6- exemplos de tuítes de internautas no dia 07.11.15

Foram vários os termos em destaque, o que mostra que o problema se espalhou por diversas esferas e se fragmentou em vários subtópicos como: o rompimento em si; o prefeito de Mariana; trajeto da lama; a relação Samarco – BHP (que repercutiu bastante internacionalmente), o governador de Minas Gerais Fernando Pimentel etc.

Imagem 8- exemplos de posts de internautas com os subtópicos apontados

143


Volume 1

Cinco dias após o acidente, as menções na internet tiveram o seguinte comportamento:

Imagem 9: Nuvem de tags 09.11.15

O dia foi profundamente focado na Samarco. Isso ocorreu porque os grupos de conversação passaram a se conectar no ciberespaço, criando um forte capital social relacionado à empresa. Ou seja, a Samarco acabou por concentrar a convergência das interações nas redes, que antes estavam mais difusas. Podemos ver que "Samarco" foi o único termo em vermelho da nuvem, e com um grande destaque. Notamos ainda um crescimento de palavras em inglês (sete termos na nuvem). Uma vez que os discursos ficaram mais unificados, as redes se voltarão agora para uma cobrança mais radical de medidas. Isso incluiu além da Samarco, também o poder público personificados pelos governos de MG e ES, como se depreende dos seguintes posts:

144


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Imagem 10 : posts com cobranças à responsabilidade do poder público na tragédia ambiental em MG

Nos cinco dias que se sucederam à tragédia ambiental, o levantamento mostrou ainda as hashtags mais utilizadas e suas difusões nas redes sociais monitoradas. As hashtags têm o poder de unificar os discursos online, criando campanhas que se difundem de maneira viral. A hashtag #mariana chegou a alcançar mais 16 milhões de usuários da internet, seguidas por #BentoRodrigues (sete milhões), #Samarco (seis milhões) e #Nãofoiacidente (com 237 mil repercussões).

145


Volume 1

Imagem 11– Posts de usuários de Facebook, Instagram e Twitter com hashtags mais usadas pelos internautas.

O levantamento49 constatou ainda que o caso foi pauta de conversações e publicações on line em 90 países, com destaque para o Brasil e Estados Unidos (a análise foi feita com o termo “Samarco”, mas ela pode ser estendida para termos que designem a empresa em países orientais, como a China, por exemplo, onde a grafia do nome é diferente).

Gráfico 2- Países onde houve maior repercussão nas redes sociais sobre o acidente da Samarco

49

Levantamento de menções possível graças à ferramenta de geolocalização 146


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Imagem 12- Posts sobre o acidente em inglês e espanhol

8.4

Rastreabilidade digital e a perspectiva da TAR

Define-se comumente rastro digital como sendo o vestígio de uma ação efetuada por um indivíduo qualquer no ciberespaço. Quantidade e a qualidade dos rastros digitais, hoje presentes na internet oferecem às ciências sociais, segundo Bruno Latour, a possibilidade de renovar tanto suas metodologias quanto suas abordagens teórico-conceituais. Essa grade fonte de dados deve ser também, uma ocasião para se experimentar

147


Volume 1

estratégias cognitivas e políticas diferenciadas. Exploramos, nesta direção, pistas encaminhadas pela teoria ator-rede (TAR). La médiation numérique s’étale comme un immense papiercarbone offrant aux sciences sociales plus de données qu’elles n’en ont jamais rêvées. Grâce à la traçabilité numérique, les chercheurs ne sont plus obligés de choisir entre la précision et l’ampleur de leurs observations: il est désormais possible de suivre une multitude d’interactions et, simultanément, de distinguer la contribution spécifique que chacune apporte à la construction des phénomènes collectifs. Nées dans une époque de pénurie, les sciences sociales entrent dans un âge d’abondance.” (LATOUR e VENTURINI, 2010, pp. 5-6). É preciso entender o estatuto do rastro digital a partir da noção de ação e seu papel na redefinição do social, proposta por Latour. Esta redefinição implica abrir mão do modelo explicativo vigente em grande parte da sociologia: aquele que postula a sociedade ou “o social” como um domínio ou substância especial da realidade, capaz de explicar porque processos e seres se mantêm juntos. Decorre dessa concepção essencialista ou substancialista, a ideia de que a sociedade ou qualquer outra grande estrutura – o poder, o mercado, o capital, o contexto, o simbólico – é o que explica uma série de processos ditos “sociais”. Latour provoca esta tradição afirmando: “o social não existe”! O que isto quer dizer? Significa que o “social” não é o que explica, mas o que merece ser explicado. Na esteira da TAR, Latour convida a inverter os termos e retomar o trabalho de explicar como se tece o social. Em linhas muito gerais, compreender a rastreabilidade digital consiste em retraçar as ações que múltiplos e heterogêneos atores efetuam, descrevendo as associações e redes que se formam na composição de um coletivo qualquer. O “social é aquilo que emerge dessas ações, associações e redes, e não algo que paira sobre ou sob elas”. Importante lembrar uma série de princípios da TAR diretamente atrelados a esta reflexão: a) nenhum critério substancialista define de antemão o que é 148


Caderno Comunicação, Educação e Artes

um ator; b) a ação nunca é individual, e sim coletiva e distribuída; c) quando há ação, há rastro; d) o trabalho de descrição das redes implica seguir os rastros das ações, sendo a um só tempo cognitivo e político. O primeiro princípio remete à heterogeneidade dos modos de existência que compõem o social. Como se sabe, a TAR reivindica um social de composição híbrida, entendido como coletivo sociotécnico de entidades humanas e não humanas. Tais entidades não são, por algum atributo especial, atores (actantes). Um actante não se define por sua natureza (humana ou não humana; animada ou inanimada), mas pelo modo como age. Vê-se que o actante se diferencia do sentido sociológico clássico de “ator social”, privilégio do domínio humano. Agir, segundo a TAR, é produzir uma diferença, um desvio, um deslocamento qualquer no curso dos acontecimentos e das associações. Mediação e tradução são termos que buscam definir esta ação que é transformação, “traição”. Os dois termos implicam deslocamentos de objetivos, interesses, dispositivos, entidades, tempos, lugares. Implicam desvios de percurso, criação de elos até então inexistentes e, que de algum modo, transformam os elementos imbricados. Qualquer entidade que produza uma diferença no curso de uma situação deve ter o estatuto de actante, participando assim da composição de um coletivo. Esta composição deve ser descrita segundo a noção de rede, ou seja, como um “encadeamento de ações onde cada participante é tratado, em todos os aspectos, como mediador” (Latour, 2007). Um mediador é algo que age transformando; diferentemente do simples intermediário, que transporta sem alterar. Um simples quebra-molas, diz Latour (1994), opera uma transformação decisiva ao nos fazer agir como seres morais (diminuindo prudentemente a velocidade), ainda que estejamos apenas interessados em preservar a suspensão dos nossos carros. As cadeias de ações e associações que constituem as redes não são, assim, meros veículos por onde há transporte – de informação, sentido, objeto – sem transformação. Ao contrário, as redes são aquilo mesmo que emerge do trabalho de mediação e tradução de atores heterogêneos. Em sua composição, há uma série de 149


Volume 1

disputas, negociações, controvérsias que redefinem continuamente os atores, suas ações, associações, bem como, a própria rede. Assim, as redes não existem como um objeto que estaria aí antes de haver ação, ou que subsiste após cessarem as ações. Topologicamente, a rede se define “por suas conexões, seus pontos de convergência e bifurcação. Ela é uma lógica de superfícies, definida por seus agenciamentos internos e não por seus limites externos” (Moraes, 2000). Daí a importância de não se confundir a noção de rede proposta pela TAR com qualquer representação ou objeto técnico específico. Uma rede lembra Latour, é menos a coisa descrita, do que um modo de descrição. E esta descrição é menos a de uma coisa estabilizada, do que a de um coletivo em seu movimento de formação. O segundo princípio – que afirma a natureza coletiva e distribuída da ação – permite compreender melhor o caráter da rede. A ação jamais é individual ou local. Nunca agimos sós, quando agimos, outros passam à ação e, se agimos, é porque fomos acionados por outros. Daí o termo contínuo ator-rede. A ação é sempre distribuída, em rede, e não há nenhum princípio essencialista capaz de estabelecer, de antemão, que atores serão mobilizados para a construção de uma rede. Neste ponto, Latour (2007) retoma uma das intuições fundadoras das ciências humanas e sociais na Modernidade: a de que não somos senhores de nossa própria ação, seja porque nunca agimos sós (outros agem em nós), seja porque nunca somos plenamente conscientes de nossas ações, seja ainda porque nossas ações nos ultrapassam e produzem efeitos inesperados, que nos escapam. Quando agimos, devemos perguntar: quem mais age ao mesmo tempo em que nós? Quantas entidades invocamos? Como não fazemos jamais o que queremos? Estas são também as questões que se colocam quando se trata de explicar como as redes e coletivos sociotécnicos se constituem. Explicação, afinal, que define a tarefa da TAR: “seguir as coisas através das redes em que elas se transportam descrevê-las em seus enredos” (Latour, 2004, p. 397). Mas como “seguir as coisas”? Pelos seus rastros.

150


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Quando há ação, há rastro. Quando se age, quando se produz uma diferença, produz-se um rastro que pode ser recuperado, ainda que estes rastros sejam intermitentes (Latour, 2007). Uma das tarefas de descrição de como as redes e coletivos sociotécnicos se constituem, consiste em retraçar os rastros das ações, traduções, associações inscritos em documentos, arquivos, notas e registros de toda ordem. Eis porque a rastreabilidade digital pode ser interessante, se explorada segundo a perspectiva da TAR. A rastreabilidade das ações de inúmeros atores nas redes digitais de comunicação torna extremamente mais simples a tarefa de se retraçar a tessitura mesma dos coletivos sociotécnicos.

8.5

Conclusão

Com o passar dos dias, a repercussão do caso desenhou uma trajetória nas redes, refletindo diretamente na imprensa, e na formação de opinião no Brasil e nos demais países que acompanharam o desenrolar do caso nos 12 dias após a crise. Após a primeira semana, outros fatos ganhariam destaque nas conversações – como a visita da então presidente a Minas, o atentado em Paris e uma tentativa de cerceamento ao trabalho jornalístico do programa CQC, que dedicou ampla e detalhada cobertura sobre o estado em que se encontravam os vilarejos onde aconteceram o acidente. A partir deste relatório e de outros estudos realizados, nota-se a seguinte movimentação da opinião pública no espaço virtual, com base na análise das conversações:

*Dia 5 – Preocupação inicial dos internautas com o fato, ou seja, com a divulgação do rompimento da barragem. * Dia 6 – Consternação em relação às vítimas. * Dia 7 – Intensificou-se a presença da hashtag #nãofoiacidente. A timidez e ausência da Samarco perante as conversações acabaram por levantar suspeitas sobre a boa fé da empresa em resolver os problemas e amenizar os impactos decorrentes do acidente. 151


Volume 1

Também no dia 7 começou-se a falar da trajetória da lama pelo leito do Rio Doce. * Dia 8 – Devido aos múltiplos estragos do rompimento da barragem, os internautas começaram a fragmentar os tópicos. As interações de personalidades conhecidas ganharam espaço nas redes. * Dia 9 – No dia 9, a Samarco já era o grande alvo das redes e a crise se aproximava da Vale. Houve também uma intensificação de interações no exterior. * Dia 10 - Apareceram posts sobre a ligação Samarco – Vale, e também pudemos observar o aparecimento de menções à BHP. As preocupações com o Rio Doce começaram a ganhar mais destaque. * Dia 11 - A situação de Governador Valadares passou a ter proporções maiores. Notou-se o crescimento da preocupação das redes com as consequências da tragédia para as pessoas. * Dia 12 - A crise chegou a outras esferas culturais, econômicas, sociais e ambientais. Nesse dia, a presença da presidente da República foi muito comentada, dando uma maior amplitude política ao acidente. * Dia 13 - Foi a consagração da crise em torno da Vale. Os internautas deixaram de separar as duas empresas, tratando-as como uma só. As notícias sobre o rompimento da barragem perderam força e deram espaço aos danos ambientais e eventuais medidas que poderiam reduzi-los. * Dia 14 - Mariana voltou para o centro da conversa devido ao risco de um novo rompimento. O Rio Doce começou a ser percebido como um rio sem salvação. 152


Caderno Comunicação, Educação e Artes

* Dia 15 - Os atentados em Paris influenciam as redes relacionadas ao acidente. Os internautas passaram a se referir aos dois casos, em publicações que narravam dramas na França e no Brasil. Há uma nova onda passional de apoio às vítimas brasileiras, em decorrência da solidariedade expressada pelos franceses. *Dia 16 - O volume de menções volta a crescer, atingindo níveis mais altos do que os anteriores aos atentados de Paris. O episódio relacionado ao CQC amplia a ideia de que a Samarco estaria ocultando informações. * Dia 17 - Declarações da direção da Samarco de que o acidente não seria "caso para pedir desculpas" irritou os internautas. O anúncio do risco de rompimento de outras barragens gerou apreensão nas redes. Mas, apesar dessas preocupações, o tema principal se consolidou como sendo o Rio Doce. O Rio deve dominar a agenda das redes nos próximos dias, até que a lama chegue ao mar. Uma vez no mar, setores de turismo e outros setores econômicos devem entrar nas conversações. Internautas da Bahia tendem se a juntar ao tema, uma vez que se levantam suspeitas de que o litoral baiano poderia ser contaminado. Nota-se também um amadurecimento da crise em termos jurídicos. Levantam-se vozes da magistratura exigindo medidas. Tabela 1 – Análise resumida do comportamento nas redes sociais durante os 12 primeiros dias pós acidente.

Observamos que as ações da Samarco nas redes foram pouco efetivas. A tentativa de se criar páginas de apoio se revelou ineficiente. O foco em torno dos empregos e da economia das cidades que dependiam dos recursos da mineração, não foi suficiente para engajar os internautas. Um dos temas principais após 10 dias do acidente passou a ser a morte do Rio Doce.

153


Volume 1

As redes se estabelecem pela conversação, que forma um capital social, construído no ciberespaço, por meio da chamada inteligência coletiva. Como esse capital social inclui opiniões diversas, as informações oficiais devem transparentes e concretas. As redes se formam ainda com base na "economia da atenção", onde cada interlocutor tem potencial para ser um influenciador e despertar a atenção de outros agentes. Nessa interação, cada um mostra uma face moldada em opiniões e difusão de fatos. Os rastros digitais, frutos de ações, interações e declarações de toda sorte, além de vastos e diversificados, podem ter sua trajetória retraçada de forma relativamente simples, se comparada aos meios tradicionais de recuperação de associações constitutivas de fenômenos sociais. Instrumentos convencionalmente custosos e lentos (questionários, enquetes, cálculos estatísticos) dão lugar a ferramentas mais ágeis e simples (sistemas automatizados de coleta, registro e visualização), oferecendo às ciências sociais não apenas uma riqueza de dados, mas a possibilidade de observar e descrever os processos sociais segundo uma perspectiva que dispense as grandes partições com as quais a sociologia classicamente trabalhou: micro e macro social, interações locais e estruturas globais, individual e coletivo, subjetivo e social. O que as redes digitais favorecem é precisamente esta rastreabilidade, de modo que se pode, ao mesmo tempo, seguir uma série de ações e associações locais e ver como cada uma delas participa da construção de coletivos. Por meio da rastreabilidade digital é possível mapear disputas, controvérsias que animam fenômenos coletivos e sociais na internet e traçar espécies de cartografias da participação pública, ampliando a margem de participação de atores diversos.

154


Caderno Comunicação, Educação e Artes

8.6

Referências

BAVARESCO, A. A teoria hegeliana da imagem pública. São Paulo: LPM, s/d. PP 90-114. BOYD, D.. Social Network Sites as Networked Publics: Affordances, Dynamics, and Implications.In: Networked Self: Identity, Community, and Culture on Social Network Sites (ed. Zizi Papacharissi), pp. 39-58, 2010. BOYD, D. M., e ELLISON, N. B. Social Network Sites: Definition, History, and Scholarship. Journal of Computer-Mediated Communication, 13(1), 210-230, 2007. BRUNO, F. “Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede”. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 19, n. 3, pp. 681-704, setembro/dezembro, 2012 CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2012. COSTA, M.C.C. No que você está pensando? Redes Sociais e sociedade contemporânea. IN Revista USP. Redes Sociais. São Paulo, SP: USP Dezembro/janeiro/fevereiro/2012. JENKINS, H; GREEN, J.; FORD, S. Cultura da conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2015. LATOUR, B. Reagregando o Social. Uma introdução à teoria do Ator-Rede. São Paulo: EDUFBA e EDUSC, 2012. LATOUR, B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 1994. LEMOS, A. Cultura da Mobilidade. Em Nomadismos tecnológicos. São Paulo: Editora Sesc Senac, 2011. ______.. “VOCÊ ESTÁ AQUI!. Mídia locativa e teorias. Materialidades da Comunicação. Revista Comunicação & Sociedade, Ano 32, n. 54, p. 5-29, jul/dez. 2012 LIPPMANN, W. Opinião Pública. São Paulo: Vozes, 2008. MATHEUS, C. As opiniões se movem nas sombras. São Paulo: Atlas, 2012. PARK, H. W. THELWALL, M. Rede de Hiperlinks: estudo da estrutura social na internet. In: DUARTE, F; QUANDT, C.; SOUZA, Q. (Org.). O Tempo das Redes. São Paulo: Perspectiva, 2008. PULITZER J. A escola de Jornalismo na Universidade de Columbia: o poder da opinião pública. Florianópolis: Insular, 2009. RECUERO, R. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. 155


Volume 1

____________ Redes Sociais. IN CITELLI, A. (Org). Dicionário de Comunicação: escolas, teorias e autores.. São Paulo: CONTEXTO, 2014. PP 403-411 ROMANINI, V. Tudo Azul no universo das redes. IN Revista USP. Redes Sociais. São Paulo, SP: USP Dezembro/janeiro/fevereiro/2012. ROSA, M. A reputação sob lógica do tempo real. IN Organicom. Ano 4, número 7. http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151110_ministro_mariana_ms <acesso em 01.07.2016>. http://www.folhavitoria.com.br/geral/noticia/2016/05/turismo-de-regencia-acabouafirmam-moradores-e-comerciantes-de-balneario-capixaba.html <acesso em 12.07.2016> http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/11/veja-lista-de-desaparecidos-norompimento-de-barragens.html <acesso em 13.07.2016> http://cetic.br/pesquisa/domicilios/ <acesso em 15.07.2016> http://www.samarco.com/institucional/a-empresa/ <acesso em 10.07.16> http://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-ambiental-emmariana/noticia/2016/05/ministro-nao-assina-termo-sobre-volta-de-atividadesda-samarco-em-mg.html <acesso em 01/07/2016> http://tvuol.uol.com.br/video/samarco-recebe-multa-milionaria-por-rompimentode-barragem-04020C9A3160C0C95326/ <acesso em 18.07.2016> http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/06/1784196-samarco-cogitouremover-vila-de-mariana-antes-de-tragedia-em-mg.shtml <acesso em 20.07.2016>

-------------------------------------------------

Flávia Daniela Pereira Delgado – Doutoranda em Comunicação Social pela ECA – USP – Universidade de São Paulo; Mestre em Comunicação Social pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo; Especialista em Comunicação Organizacional pela Cândido Mendes; Graduada em Jornalismo e Direito pela UFES – Universidade Federal do Espírito Santo.

156


Caderno Comunicação, Educação e Artes

9. O Jornalismo e o Cinema: Uma análise de produções fílmicas com a temática direcionadas à profissão Lislei do Carmo Tavares CARRILO Resumo Este trabalho propõe uma discussão sobre produções fílmicas com a temática - Jornalismo. Sabe-se que inúmeros filmes e documentários foram produzidos no decorrer da história do cinema, refletindo a profissão do Jornalista. De maneiras diferentes estes podem influenciar e agregar valores no desenvolvimento profissional. Para este estudo optou-se por escolher somente filmes longa-metragem, excluindo os documentários e os curtas-metragens, pois a premissa é o foco deste objeto são os diálogos longos. Optouse pela seleção e compilação de filmes por décadas para compor a listagem, e pesquisou-se uma relação de 103 filmes longa metragem50. Após este processo, fez-se um recorte de um filme por década. Destas produções selecionadas diálogos foram selecionados com a finalidade da observação da linguagem e do discurso da fala de algumas personagens. PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; Filmes; Análise fílmica; Cinema.

50

Pesquisas elaboradas devido à compilação em livros e sites sobre cinema (Observatório da Impressa, ANCINE) 157


Volume 1

9.1

Introduçâo

O cinema faz parte do campo de produção simbólica e do mito moderno, delimitado no “Manifesto das Sete Artes”, por Ricciatto Canudo51, em 1912, ele ganha a medalha da sétima posição entre as grandes artes, esta com seu lugar de destaque na modernidade. O cinema exibe poder e visibilidade a cada década, mostrando imagens, sons, histórias reais ou de ficção que atingem diferentes classes sociais. Com esta visibilidade, algumas histórias mostradas nos filmes retrata a profissão do jornalista, tanto de maneira fictícia ou real. Em diferentes momentos cinematográficos diretores e roteiristas bebem da imprensa para inspirações fílmicas, o que exibe a personagem jornalista como protagonista ou coadjuvante. Observando esta premissa o objeto de estudo retratado aqui são filmes que exibem a profissão ou o jornalista como personagem, bem como qual é a ética exercida por ele ou pelo órgão em que trabalha. Optou-se por compilar desde a década de 1930 – quando se observou o primeiro filme com jornalistas como personagens atuantes, até início do ano de 2014 pesquisando somente longas-metragens, pontuando uma relação de 103 filmes com a temática a ser pesquisadas. Obras fílmicas possuem seus dispositivos narrativos ou discursivos, uma estrutura dramática e rítmica e, de acordo com Vanoye, F. e Gloiot-Lété, A (2006, pág.143), forma-sentido que “produz seu impacto de maneira evidente, isso provavelmente porque a apreensão dos elementos tem seu tempo de ser diluída nos meandros de uma história ou distraída pela identificação com personagens ou emoções”. De essa forma analisar o objeto por meio de alguns filmes direcionados a profissão Jornalista e qual o contexto em que este se agrega. Na compilação dos filmes com a temática jornalística fez-se a pesquisa tendo o

51

Teórico e crítico de cinema pertencente ao futurismo italiano. 158


Caderno Comunicação, Educação e Artes

início em 1930 até o ano de 2012, o início do período se deu por ter sido o primeiro registro de um filme com a temática apresentado em 1939. Para a análise do objeto optou-se pelos filmes: Jejum de Amor (1939); A Montanha dos Sete Abutres (1951); Todos os homens do Presidente (1976); Nos Bastidores da Notícia (1984); Assassinos por Natureza (1994); Doces Poderes (1996); Boa Noite, Boa Sorte (2005); O Diário de um Jornalista Bêbado (2011). Observar o conteúdo desses filmes direcionados à profissão e propor análise de discurso de como eles se “comunicam” com a profissão. Em um primeiro momento fez-se a pesquisa e a coleta de filmes referentes a esta temática - Jornalismo. Para que a etapa obtivesse êxito foi necessária uma elaborada e focada busca sobre autores, sites e produtos referentes ao cinema, que delimitassem quais e quantos seriam os filmes. Na escolha dos oito filmes para gerar a análise, observou-se uma recorrência, cenas geralmente são exposta dentro de uma redação, existe sempre a tensão da investigação, jornalistas correndo e se movimentando sempre na busca de um furo ou algo que lhes renda alguma visibilidade.

9.2

Relação - O Cinema e o Jornalismo

Foi utilizada para a busca dos filmes a pesquisa qualitativa, pois se trata de uma metodologia que, “está inserida em dados sistematicamente coletados e analisados. A teoria surge durante a própria pesquisa e isso ocorre através da interação contínua entre a coleta e a análise de dados” (STRAUSS; CORBIN, 1994). A pesquisa qualitativa poderá auxiliar por meio da observação dos dados indicadores do funcionamento das estruturas, no caso do objeto de pesquisa – os filmes, que são difíceis de mensurar quantitativamente. Para este objetivo foi produzido a priori um quadro, separando por décadas, com filmes referentes à temática. Optou-se por buscar filmes que aparecem e/ou tem personagens jornalistas (protagonistas ou não), estes vivenciando a rotina da profissão. Após esta 159


Volume 1

compilação e produção do quadro a pesquisa partirá para uma próxima etapa. Fez-se um recorde do objeto e, a partir deste, as análises fílmicas foram produzidas. Relação de filmes com temática - Jornalismo Filme

Ano

Diretor

Década 1930 1.

Outubro

1928

John Reed

2.

Última Hora

1931

Lewis Milestone

3.

Aconteceu Naquela Noite

1934

Frank Capra

4.

A Mulher Faz o Homem

1939

Frank Capra

Década 1940 5.

Cidadão Kane

1941

Orson Welles

6.

O tempo é uma ilusão

1944

René Clair

7.

Jejum de Amor

1940

Howard Hawks

8.

A luz é para todos

1947

Elia Kazan

9.

Laura

1944

Otto Preminger

10.

A mulher do Dia

1942

George Stevens

11.

Correspondente Estrangeiro

1940

Alfred Hitchcock

Década 1950 12.

A Embriaguez do Sucesso

1957

Alexander Mackendrick

13.

Nascida Ontem

1950

George kucor

14.

A Dama de Preto

1952

Samuel Fuller

15.

A Montanha dos Sete Abutres

1951

Billy Wilder

16.

A Princesa e o Plebeu

1953

William Wyler

17.

Amor Eletrônico

1957

Walter Lang

18.

No Silêncio de uma Cidade

1956

Fritz Lang

19.

À hora da vingança (Deadline -

1952

Richard Brooks

160


Caderno Comunicação, Educação e Artes

USA) 20.

Domador de Motins

1951

Edwin L. Marin

21.

Um Rosto na Multidão

1957

Elia Kazan

Década 1960 22.

A Doce Vida

1960

Federico Fellini

23.

Terra em Transe

1967

Glauber Rocha

24.

Z

1969

Costa Gravas

Década 1970 25.

A Primeira Página

1974

Billy Wilder

26.

Rede de Intrigas

1976

Sidney Lumet

27. Todos os Homens do Presidente

1976

Alan J. Pakula

28. O Passageiro, Profissão Repórter

1975

Michelangelo Antonioni

29.

Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia

1977

Hector Babenco

30.

O candidato

1972

Michael Ritchie

31.

O Cavaleiro Elétrico

1979

Sydney Pollack

Década 1980 32.

O Ano em que Vivemos em Perigo

1983

Peter Weir

33.

Sob Fogo Cerrado

1983

Roger Spottiswoode

34.

Salvador

1986

Oliver Stone

35.

Temporada Sangrenta

1985

Phillip Borsos

36.

A falsificação

1981

Volker Schlöndorff

37.

Morte ao vivo

1980

Bertrand Tavernier

38.

Armação Perigosa

1987

Jerry Schatzberg

39.

Assassinato por encomenda

1985

Michael Ritchie

161


Volume 1

40.

Ausência de Malícia

1981

Sydney Pollack

41.

Bar esperança

1983

Hugo Carvana

42.

Bom dia, Vietnã

1987

Barry Levinson

43.

Eternamente Pagú

1988

Norma Bengell

44.

Nos Bastidores da Notícia.

1987

James L. Brooks

45.

O Beijo no Asfalto

1981

Bruno Barreto

46.

Os Donos do Poder

1986

Sidney Lumet

47.

Os Gritos do Silêncio

1985

Roland Joffé

48.

REDS

1981

Warren Beatty

Década 1990 49.

O Ano de Fúeria

1991

John Frankenheimer

50.

O Informante

1999

Michael Mann

51.

Velvet Goldmine

1998

Todd Haynes

52.

A Fogueira das Vaidades

1990

Brian De Palma

53. Assassinato Sob Duas Bandeiras

1990

Bruno Barreto

54.

Assassinos por Natureza

1994

Oliver Stone

55.

Bem-Vindo a Sarajevo

1997

Michael Winterbottom

56.

Crime Verdadeiro

1998

Clint Eastwood

57.

De Amor e de Sombras

1994

Betty Kaplan

58.

Doces Poderes

1995

Lucia Murat

59.

Herói Por Acidente

1992

Stephen Frears

60.

Íntimo e Pessoal

1995

Jon Avnet

61.

Medo e Delírio

1998

Terry Gilliam

62.

Mera Coincidência

1997

Barry Levinson

63.

O Ano da Fúria

1991

John Frankenheimer

64.

O Dossiê Pelicano

1993

Alan J. Pakula

162


Caderno Comunicação, Educação e Artes

65.

O Jornal

1994

Ron Howard

66.

O Poder da Imagem

1990

Peter Werner

67.

O Povo Contra Larry Flynt

1996

Milos Forman

68.

O Quarto Poder

1997

Costa-Gavras

69.

Páginas da Revolução

1996

Roberto Faenza

70. Quiz Show – A verdade sobre os bastidores

1994

Robert Redford

71.

1995

Gus Van Sant

Um Sonho Sem Limites Década 2000

72.

Os Garotos Estão de Volta

2009

Scott Hicks

73.

Coração Louco

2009

Scott Cooper

74.

Acima de Qualquer suspeita

2009

Peter Hyams

75.

Os Homens que Encaravam Cabras

2009

Grant Heslov

76.

O Solista

2009

Joe Wright

77.

Leões e Cordeiros

2007

Robert Redford

78.

Patrulha da Montanha

2004

Chuan Lu

79.

Quase Famosos

2000

Cameron Crowe

80.

O Preço de Uma Verdade

2003

Billy Ray

81.

Boa Noite e Boa Sorte

2005

George Clooney

82.

Central Al JAzeera

2004

Jehane Noujaim

83.

A Vida de David Gale

2002

Alan Parker

84.

Alto Risco

2001

John Mackenzie

85.

As faces da verdade

2008

Rod Lurie

86.

Chegadas e Partidas

2001

Lasse Hallström

87.

Cidade do silêncio

2006

Gregory Nava

88.

Crônica de Uma Certa Nova York

2000

Stanley Tucci

89.

Frost Nixon

2008

Ron Howard

163


Volume 1

90.

Intrigas de Estado

2009

Kevin Macdonald

91.

O âncora: a lenda de Ron Burgundy

2004

Adam McKay

92.

O americano tranquilo

2002

Phillip Noyce

93.

O custo da coragem

2003

Joel Schumacher

94.

Uma onda no ar

2002

Helvécio Ratton

95.

Capote

2005

Bennett Miller

96.

Scoop – O grande Furo

2006

Woody Allen

Década 2010 97.

Uma manhã Gloriosa

2010

Roger Michell

98.

5 Days of War

2011

Renny Harlin

99.

Lutando Contra o Tempo

2011

Ernie Barbarash

100.

Bel Ami- O Sedutor

2012

Declan Donnellan, Nick Ormerod

101.

Hemingway & Martha

2012

Philip Kaufman

102.

Histórias Cruzadas

2012

Tate Taylor

103.

118 dias

2014

Jon Stewart

9.3

A exibição do jornalismo visto no cinema

Após a pesquisa e a produção do quadro com 96 filmes. Todos encontrados sobre a temática – Jornalismo, o resumo de cada um deles foi compilado e discutido para observar em quais pontos a função do jornalista se exibia. Na observação comprovou-se que as narrativas, geralmente, eram desenvolvidas em redações, salas de redações, com destaque para cenas que demonstravam o trabalho de jornalistas, bem como sua rotina e os conflitos recorrentes em uma empresa jornalística. De certa forma, atuando como reprodutoras dos bastidores dos jornais (BERGER, 2002).

164


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Optou-se por um fazer um recorte para a produção da análise, e foram escolhidos filmes aleatórios por décadas, e que permitissem fácil acesso a visualização e, portanto uma análise detalhada sobre o mesmo. Para isso entraram na análise os filmes, da década de 1930: Jejum de Amor; década de 1950, A Montanha dos Sete Abutres; década de 1960: década de 1970, Todos os Homens do Presidente; década de 1980, Nos Bastidores da Notícia; década de 1990: Assassinos por Natureza e Doces Poderes; década 2000: Boa Noite, Boa Sorte; década de 2010: Diário de um Jornalista Bêbado. Para tal em primeiro fez-se um resumo de cada filme com a finalidade de situar o contexto fílmico e, em seguida, a observação e captação de diálogos e discursos referentes à temática pesquisada. Esta sempre recorrente o que expõe uma associação da linguagem nos filmes a linguagem jornalística, que não se dissolve com o tempo, mesmo que a prática atual diária mostre o contrário (SENRA, 1996)

9.3.1 Filme – Jejum de Amor (1939) Título em inglês His Girl Friday, uma comédia de Howard Hawks, produzida em 1939. Narrado de maneira rápida, conta a história de um editor chefe que após apaixonar-se por uma de suas jornalistas, e recebe a noticia de que a jornalista se casará e deixará de trabalhar em seu jornal. Desesperado, o editor faz diversas confusões para não perder sua profissional e amada. A jornalista que deixaria a profissão para levar uma vida tranquila de casada, é convidada pelo chefe a cobrir o caso de um homem sentenciado a pena de morte que se dizia inocente. Ambos editor e jornalista amada se envolvem em diversas confusões, o que acarreta na união do casal. O filme traz Walter Burns (o editor-chefe) e Hildy Johnson (a repórter) mostra o jornalismo como um sacerdócio, uma vocação da qual é impossível fugir quando existe talento. Por outro lado, Howard Hawks também critica a imprensa que aborda notícias polêmicas, como verdadeiros “abutres” ou de maneira antiética. Cenas exibidas mostram 165


Volume 1

alguns repórteres na sala de imprensa de um tribunal, jogando cartas, fumando charutos e fazendo piadas sobre um prisioneiro prestes a ser executado, sem o uso da ética profissional. Uma das frases do ator principal diz: Walter: – “(...) Tenho orgulho disso. Batemos o país inteiro com aquela matéria”. Ou em outra fala dele: “(...) Tudo aconteceu na ‘idade das trevas’ do jogo do jornalismo – quando para um repórter ‘conseguir aquela matéria’ tudo se justificava, menos assassinato. Pronto? Era uma vez…Hitler? Ponha na página de humor”. O diretor Hawks em alguns momentos se mostra contraditório, exibindo jornalistas como abutres sedentos de notícias polêmicas e sem ética, e ao mesmo tempo as personagens sugerem o jornalismo como vocação ou trabalho que só pode ser exercido por quem já nasceu com talento para a profissão.

9.3.2 Filme – A Montanha dos Sete Abutres (1951) Título em inglês Ace in the hole, produzido e dirigido por Billy Wilder, conta a história de um jornalista chamado Charlie Tatum, interpretado por Kirk Douglas. A história é baseada em um acontecimento real de 1925, em que um homem ficou preso em uma caverna e a imprensa norte-americana sensacionalista transformou o caso em um show. O jornalista Tatum (Kirk Douglas) corre o risco de ser despedido pela sua reputação e decadência, ele trabalha em um jornal provinciano. Mas, após um desabamento de uma montanha que o jornalista presencia, um homem fica preso, soterrado em uma fenda. Obcecado pela chance de obter mais uma vez a ascensão no jornalismo, Tatum manipula o fato, dando-lhe grandiosidade, de maneira que a situação passa não só a ser escrita, mas também produzida unicamente pelo jornalista. Ele se torna o manipulador da noticia, guiando-a de acordo com seus interesses. A tragédia passa a ser um espetáculo que atrai um grande público e a vítima morre de pneumonia. O jornalista poderia ter salvado a vida do homem soterrado, mas preferiu ser o protagonista da notícia, não o reportador. 166


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Em algumas falas do jornalista Tatum fica evidente sua falta de ética: “Eu posso cuidar de grandes notícias e pequenas notícias, e se não houver notícias eu saio e mordo um cachorro", “Más notícias são as que mais vendem, porque boas notícias, não são notícias”.

9.3.3 Filme – Todos os homens do Presidente (1976) Título em inglês All the President´s Men, considerado por pesquisadores e teóricos de jornalismo uma aula de jornalismo investigativo. Baseado no escândalo de Watergate, incidente ocorrido em Washington em 1972, que resultou na renúncia de Richard Nixon algum tempo depois, o filme mostra a busca incansável de dois repórteres do Washington Post pela verdade dos fatos. A partir daí, o espectador se vê frente a um jornalismo romanceado. As personagens Bob Woodward (Robert Redford) e Carl Bernstein (Dustin Hoffman), fiéis a técnicas e valores descritos eticamente pela profissão, que de acordo com Pereira, (2003, págs. 34-35), (...) mas, que talvez tenham se perdido no tempo – ou até mesmo nunca tenham existido. Beberam do mesmo modelo narrativo romanesco que consagrou, no cinema, o padrão narrativo ‘hollywoodiano’, e no jornalismo, o modelo americano dominante de apresentação das notícias. Esta ação se desenvolve dentro de um princípio de causalidade, ou seja, o personagem apresenta-se com um objetivo claro dentro da trama – mesmo que pessoal – e um papel a desempenhar. As situações vividas e decisões tomadas por tais personagens conduzirão ao sucesso ou fracasso. Desta forma, algumas falas das personagens se destacam no decorrer do filme: - “Lembra-se de quando você era um jovem repórter, cheio de garra?”, pergunta o editor Rosenfeld para o secretário Simmons. Em outra cena, o diretor do jornal senta-se em cima de uma mesa, questiona a dupla de repórteres – Estão seguros? Aquilo é literalmente o que o figurão falou? Ele de fato disse o nome da Sra. Graham? Têm certeza? E o direto de redação decide: - “Tirem a palavra tetas e publiquem”. Mas, Bernstein 167


Volume 1

questiona, queria publicar a frase inteira. Bernstein grita: – “Por quê?” E, o diretor responde: – “Porque este é um jornal de família”. Em outra fala Bradlee se dirige a Woodward e Bernstein e expõe: - “Nada está guiando isso, exceto a primeira emenda da Constituição, liberdade de imprensa e talvez o futuro desta nação”. E termina em uma linguagem dita como tipicamente jornalística, de acordo com (BUTCHER, 1998): - “o estúpido e o sensacional são mais importantes do que a verdade e a notícia”.

9.3.4 Filme – Nos Bastidores da Notícia (1984) Título em inglês Broadcast News, direção de James L. Brooks, que satiriza o meio jornalístico neste filme. A produtora de televisão Jane Craig (Holly Hunter) se apaixona por um apresentador de telejornal, o bonitão Tom Grunick (William Hurt). O problema é que ele representa tudo o que a produtora sempre odiou dentro do meio profissional: um jornalista que nunca escreve os textos que lê e, às vezes, não compreende os assuntos que apresenta no programa. Sobre ética jornalística uma passagem mostra o que deveria ser a posição jornalística na rotina de trabalho, os atores principais durante a cobertura de uma guerrilha na América Central – Nicarágua, Jane ouve o cinegrafista pedindo para que o guerrilheiro calce de novo a bota para filmar a cena, a repórter irritada intervém: – “Não! Pare! Não vamos inventar nada. Espere e veja o que ele vai fazer”. Ao fazer aquele pequeno gesto que pedia uma mentira, o cinegrafista estava cruzando a tênue fronteira, o fio da navalha que separa a verdade da mentira. De acordo (SENRA, 1996, p.54), todo o processo culmina com “a revelação da ‘verdade’ pelo jornalista”, este é um processo ético discursado o tempo todo durante o filme. O cinegrafista não estaria inventando algo, ou “criando” uma cena para grava-la, apenas tentando registrar uma cena que havia perdido o momento exato em que o guerrilheiro ao final do dia tira a sua bota, e queria que ele repetisse o movimento, a ação.

168


Caderno Comunicação, Educação e Artes

9.3.5 Filme – Assassinos por Natureza (1994) Título em inglês Natural Born Killers, dirigido por Oliver Stone, possui roteiro de Quentin Tarantino. O filme narra a historia de um casal serial killer, Mickey Knox (Woody Harrelson) e Mallory Wilson (Juliette Lewis), um açougueiro e entregador de carne que se apaixona por uma jovem problemática e logo se tornam assassinos. Neste filme analisado o casal assassino aparece como coadjuvantes, explorando e instigando a mídia para que esta produza conteúdo tendo por base suas vidas. Vários jogos de imagens surgem no decorrer do filme, mostrando o que a mídia veicula e, se tratando destes casos. O filme possui efeitos visuais que ilustram as cenas de violências e assassinatos, criando planos diferenciados, com a finalidade de provocação, mistura cenas coloridas e em preto e branco. O filme é uma traça uma critica a imprensa, O repórter Gale, tem frases que fazem alusão à manipulação da opinião pública, a transmissão incorreta da informação, e que passa a ser utilizada na promoção de um show midiático. Prova disso são inúmeras imagens televisivas em todos os planos. Pode-se identificar uma manipulação, quando do discurso reproduzido pelo jornalista a seu editor: “Repetições funcionam, repetições funcionam. Acha que aqueles zumbis idiotas lembram-se de algo? É fast food para o cérebro”. Um tema muitas vezes explorado pela mídia, em uma eterna busca pela audiência ou uma fixação, somada à cobertura da imprensa sensacionalista, faz Mickey e Mallory se transformem celebridades.

9.3.6 Filme – Doces Poderes (1996) Filme brasileiro que mostra, em época eleitoral, a disputa suja e acirrada entre dois candidatos (esquerda versus direita). A jornalista Bia Jordão (Marisa Orth) aceita um cargo de chefe em uma rede de televisão e mudase para Brasília, buscando realizar um jornalismo sério e imparcial da campanha política. Contudo, encontra-se diante de um grande obstáculo: a mídia utilizada como poder, contribuinte ao favorecimento de segundos e desfavorecendo terceiros. 169


Volume 1

O tempo todo Bia tem sua integridade e ética testadas, mesmo se vendo pressionada, inclusive pelos chefes. Ela se obrigada por questões morais próprias a se demitir e deixa claro que sua saída é somente uma questão de caráter e acaba denunciando a emissora, sem grandes repercussões, pois de acordo com Senra, 1996, “o cinismo está associado ao conhecimento que o jornalista possui sobre o funcionamento, uso e abuso do poder da imprensa”. O filme foi gravado dentro de uma redação, agregando credibilidade para as cenas. Entre umas das falas de Bia, ela afirma que “vivemos num mundo onde à razão cínica não se contrapõe mais a razão utópica”. E ainda questiona: “como sobreviver a todas estas contradições, se não existe mais um mito no fim do túnel?”.

9.3.7 Filme – Boa Noite, Boa Sorte (2005) Título em inglês Good Night and Good Luck, retrata o período de “caça as bruxas” que os Estados Unidos viveram durante a Guerra Fria. Ele foi criado para um celebrar a historia da empresa. A trama é desenvolvida com um embate político, que Edward R. Murrow (David Strathairn), um jornalista-âncora da rede CBS de televisão trava com o senador conservador, logo, o político, utiliza a indústria cultural ao seu favor para incumbir seus ideais políticos. Quando Murrow acusa o senador de estar perseguindo pessoas inocentes e este lhe oferece o direito de resposta a McCarthy, porém, o político abdica do seu direito e prefere intimidar o jornalista, travando um confronto público que fez história da então, recém-implantada televisão norte americana. Entre as falas ocorridas no filme estão a do âncora: - “Um repórter está sempre preocupado com o amanhã. Não há nada tangível no ontem. Tudo o que posso dizer que tenho feito é agitar o ar por dez ou quinze minutos e então bum, já era”. Neste discurso Murrow também coloca durante uma solenidade: - “o que vou dizer não deve agradar ninguém. No fim, algumas pessoas talvez acusem este repórter de cuspir no próprio prato e, a 170


Caderno Comunicação, Educação e Artes

organização talvez seja acusada de acolher ideias hereges, perigosas, mas a complexa estrutura das redes de tevê publicidade e patrocinadores não será abalada ou alterada”. No decorrer do filme Murrow tem falas que expõem a expressão ética do jornalismo, o que credita o autor (MARTIN, 2001, pág. 28) “a imagem fílmica suscita, portanto, no espectador um sentimento de realidade em certos casos suficientemente forte para provocar a crença na existência objetiva de que aparece na tela”. Esta realidade aparece expressada na fala do jornalista-âncora, “a nossa história é o resultado do que fazemos atos. Se houver historiadores em 50 ou 100 anos e, se houver material de uma semana das três emissoras, haverá provas em preto-e-branco e em cores da decadência, alienação e falta de cobertura da realidade que vivemos.” (...) “A nossa mídia reflete essa atitude. Mas, exceto se esquecer dos lucros e reconhecer que a televisão está sendo usada para distrair, enganar, entreter e nos isolar, então a tevê e os que a patrocinam, assiste e que nela trabalham terão uma visão diferente, mas tarde demais”.

9.3.8 Filme – O Diário de um Jornalista Bêbado (2011) Título em inglês The Run Diary é baseado no segundo romance escrito pelo jornalista e escritor Hunter S. Thompson, uma espécie de autobiografia romantizada e ficcional. O personagem principal Paul Kemp, um jornalista que começa a trabalhar em um jornal de Porto Rico, logo ele se vê obrigado a obedecer a ordens de seu chefe e dos milionários da região. Kemp é um jornalista irreverente e distorce a pauta com doses de rum e LSD, perdendo a imparcialidade. Ele tenta manter um comportamento investigativo para desvendar à corrupção do mercado imobiliário da região. Durante as falas do filme algumas do editor-chefe Lotterman ganham visibilidade: - “Tem apenas três ou quatro jornalistas para dar conta do show”; “Adjetivos demais, cinismo demais no texto”; “Quase todos os 171


Volume 1

jornais são financiados pelos anunciantes. Sem anunciantes não só não há “Lá Zonga”, como também não há jornal”. Isso expõe a representação do jornalismo. Senra (1996, pág. 13), descreve esta capacidade como algo peculiar, algo que a narrativa cinematográfica tem de criar imagens com existência autônoma e de poder registrar, reproduzir e conservar, “confere a esta forma de representação um poder inusitado: o de gerar e manter vivas todas as suas construções até mesmo aquelas cuja correspondência com as figuras da prática cotidiana o tempo já se encarregou de anular”.

9.4

Considerações Finais

Nas análises dos filmes escolhidos pelo recorte exibem diferentes diretores e décadas, mas observa-se que alguns deles podem abordar uma lista de posturas antiéticas no jornalismo e desrespeito a suas condutas. Bem como existe a monopolização da noticia, obtendo acordos com autoridades para a retenção de informações e usando-as para obter vantagens econômicas. O jornalista confronta também a ética quando cria vínculos com a sua fonte, bem como em alguns momentos quando se divulga algumas notícias de caráter mórbido e sensacionalista, desrespeitando os valores humanos, dicotomia e dubialidade mostradas em alguns filmes com a temática jornalística. As produções cinematográficas por vezes criticam o papel e o poder da mídia nas sociedades contemporâneas. O lucro e o individual tornam-se uma ideologia e os métodos para obtê-los ultrapassam as barreiras da desonestidade e desvalorização do ser como humano, tornando a massa um público e a vítima um elemento-chave para a criação de uma grande e repercutida reportagem. Apesar de a pesquisa Senra (1996), apontar “estereótipos associados aos jornalistas como: mercenários, ignorantes, alcoólatras, cínicos, bem como um profissional romântico, de certa forma, idealista e generoso”, Dicotomia que Pereira (2003) define este processo como “uma imagem 172


Caderno Comunicação, Educação e Artes

simplificada do mundo, formada a partir de generalizações, nem sempre corretas, sobre grupos ou pessoas, com o objetivo de satisfazer a necessidade de se ver o mundo de modo mais compreensível do que ele realmente o é”. Berger aponta que “ninguém soube traduzir tão bem o imaginário coletivo que associa a profissão à investigação, à aventura, à independência, ao arrojo, e, igualmente, ao cinismo, à falta de escrúpulos, à arrogância, como o cinema americano” (2002, p. 17). Mas, não compete o extremismo e a generalização da profissão demonstrada nos filmes. Isto traduz que, teoricamente, a maneira como os profissionais da imprensa desenvolvem suas atividades seria a representação social da profissão, mas se o cinema reproduzir apenas o jornalista como vilão ou herói, não será uma representação legítima. Então, tem-se a hipótese de um estereótipo que pode ficar no senso comum, expondo uma personagem que permeia por todas as nuances e linguagens – sem o contexto extremista do bom ou ruim.

9.5

Referências

BAZIN, André. O que é o cinema? Livros Horizonte, 1992. BERGER, Christa (Org.). O Jornalismo no Cinema. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. BUTCHER, Pedro. O quarto poder refletido no telão. In: Observatório da Imprensa. São Paulo, 1998, online. Disponível em <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/aspas/ent200898a.htm>. Acesso em 29 de outubro de 2013. MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense. 2001 NOGUEIRA, Lisandro. Cinema, jornalismo: lições para o ensino em sala de aula. In: 10º Encontro Nacional de Professores de Jornalismo, Goiânia, 2007, on line. Disponível em < http://www.fnpj.org.br/soac/ocs/viewpaper.php?id=65&cf=1>. Acesso em 14 de fevereiro de 2014

173


Volume 1

PEREIRA, Reinaldo Maximiano. O trabalho jornalístico como elemento de composição ficcional no cinema americano. In: XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – INTERCOM. Belo Horizonte, 2003. SANTOS, Macelle Khouri. Um olhar sobre o Jornalismo: Análise da Representação do Jornalismo no Cinema Hollywoodiano, de 1930 a 2000. Orientador, Francisco José Castilhos Karam. - Florianópolis, SC, 2009. SENRA, Stella. Cinema e Jornalismo. In: XAVIER, Ismail. O Cinema no Século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 87-105. STRAUSS, Ansel L.; CORBIN Juliet. Métodos de Pesquisa - Pesquisa Qualitativa: Técnicas e Procedimentos para o Desenvolvimento. Editora:

ARTMED - Bookman, 1994. TRAVANCAS, Isabel. Jornalista como personagem de cinema. In: XXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – INTERCOM. Campo Grande, 2002. VANOYE, F., GLOIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994. Lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos. Disponível em <http://www.revistabula.com/3165-lista-dos-100-melhores-filmes-de-todos-ostempos-segundo-hollywood/>. Acesso em 26 de setembro 2014 Os melhores filmes de todos os tempos. <https://www.melhoresfilmes.com.br/listas/melhores>. Acesso em 14 de agosto de 2014

-------------------------------------------Lislei do Carmo Tavares Carrilo - Mestre em Comunicação Social Jornalismo Cultural: Espaço público da produção cultural, pela UMSP – Universidade Metodista de São Paulo; graduada em Jornalismo pela UMC – Universidade de Mogi das Cruzes SP; Storryteller; Escritora; Professora Universitária e orientadora de projetos experimentais – TCC.

174


Caderno Comunicação, Educação e Artes

10. Responsabilidade não faz mal a ninguém: artistas e intelectuais na construção da TV brasileira na década de 1970 Maria Aparecida RUIZ* Resumo O presente trabalho tem por finalidade refletir sobre a teledramaturgia brasileira a partir de alguns textos do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) que discutiu com paixão a responsabilidade de artistas e intelectuais na construção da TV brasileira na década de 1970. Palavras-chave: Teatro, Televisão, Teledramaturgia, Indústria Cultural, Cultura Brasileira.

10.1 Introdução Atualmente, quando pensamos em ficção na TV, automaticamente surgem em nossas mentes autores como Jorge Furtado, Benedito Rui Barbosa, e diretores como Guel Arraes e Luiz Fernando de Carvalho entre tantos outros que nos surpreendem com a qualidade do trabalho ficcional televisivo. No Brasil, ver teledramaturgia é cultural**. Muitas das questões da educação, que não pretendemos discutir aqui, passam pelas as mãos da Televisão. Olhamos e discutimos a realidade muitas vezes citando o que vimos na TV. É Cultura no Brasil e oferece um amplo campo de pesquisa. Não se pensa ou discute Cultura Brasileira sem considerar a produção da TV.

175


Volume 1

Neste artigo, queremos destacar a relevância de alguns temas colocados em debate por Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) contemporâneo de Barbosa que, ao lado de tantos outros autores, influenciou na construção do ofício dos artistas e intelectuais que temos ainda na TV brasileira. A mais recente referência a Vianinha pôde ser vista nos créditos do seriado A Grande Família da Rede Globo de Televisão (2001-2014)52. O dramaturgo participou dos principais movimentos culturais das décadas de 1950 a 1970 no Brasil; conviveu com atores, diretores, autores e intelectuais marcantes desse momento cultural: José Celso Martinez, Glauber Rocha, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Dias Gomes, Francisco de Assis, Paulo Pontes, Cacá Diegues, Milton Gonçalves e José Renato Pécora, entre outros. Foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e defendeu com veemência a democracia e a transformação da sociedade. Vianinha ocupa uma posição de destaque entre os articuladores do cenário artístico em função das idéias que defendeu sobre o papel da produção cultural no Brasil53.

10.2 O Teatro Após o golpe militar de 1964 e, principalmente após 1968, com o endurecimento da censura, Vianinha tornou-se um dos principais debatedores da produção cultural no Brasil. Seus textos teatrais tem a preocupação em explorar questões em torno da crise dos intelectuais e dos artistas brasileiros envolvidos no processo de consolidação da Indústria Cultural54. Os temas abordados mostravam o desafio dos meios de comunicação no confronto entre a arte popular revolucionária versus a arte 52

Além de Vianinha, nos créditos, também está o nome de Armando Costa, grande amigo que depois, foi responsável pelo sucesso do seriado Malu Mulher, na década de 80. 53 A respeito da obra e momento histórico cultural de Vianinha utilizo nesse trabalho MORAES, DÊNIS DE. Vianinha, cúmplice da Paixão - uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho, Rio de Janeiro Editora Record, 2000) 54

Sobre a consolidação da Indústria Cultural no Brasil indico ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira – Cultura Brasileira e Indústria Cultura, São Paulo, Brasiliense, 1988) 176


Caderno Comunicação, Educação e Artes

para as massas. A Longa Noite de Cristal (1969), Corpo a Corpo (1970), Mamãe, papai está ficando roxo (1973) e Allegro Desbundaccio (1973) foram trabalhos que trouxeram esse debate. Os protagonistas dos quatro textos têm algo em comum: viviam os impasses da modernização no Brasil, entre o final da década de 1960 e início de 1970. Vianinha coloca em xeque a crise de identidade que se estampava na sociedade brasileira. No primeiro, A Longa Noite de Cristal, o personagem principal é o apresentador de telejornais Celso Gagliano (conhecido como Cristal, apelido adquirido nos tempos de Rádio) que vive o conflito de ter se tornado um mero transmissor de notícias. A carreira foi construída através de antigos critérios de profissionalismo – improvisação, melhor cobertura – habilidades que não eram requeridas pelo novo veículo, a Televisão, no qual a modernização era a palavra de ordem. O conflito de Cristal terá eco em Corpo a Corpo, cujo personagem central, Vivácqua, é um publicitário que vive as angústias e as dúvidas entre a ascensão social e o trabalho engajado. Formado em sociologia, ele acabou indo para o ramo da publicidade, alcançando sucesso com um comercial de latas de cera. O tormento do personagem fica evidente em uma noite de crise, quando questiona seus valores mais profundos, que, aos poucos, vão sendo deixados de lado em troca do desejo de ser aceito e obter sucesso. Em ambos surgem às discussões éticas que envolviam o fortalecimento da Indústria Cultural naquele momento, uma divisão interna quando os personagens criticam e ao mesmo tempo criam para os meios de comunicação de massa – o Rádio e a TV – ou a Publicidade. Tanto Cristal quanto Vivácqua experimentam a banalização de seu trabalho, perdendo os referenciais que, até aquele momento de suas vidas, os tinham orientado. O primeiro personagem tem uma história honesta e coerente com seus valores pessoais. Ele termina, no entanto, vencido pelo sistema imposto pela TV. Cristal representa os profissionais que vivenciaram a consolidação da Televisão, veículo que substituiu o sucesso de seu antecessor, o Rádio. O segundo personagem, que durante os anos da faculdade tinha sido um crítico do sistema capitalista, torna-se um 177


Volume 1

“propagandista” dos valores que antes havia condenado. Ambos entram em crise quando se dão conta da exploração e das perdas a que estão submetidos, mas acabam aprisionados numa situação sem aparente saída. As reavaliações dos personagens representam muitos dos que escolheram atuar na TV diante das imposições do sistema político autoritário. O cansaço frente a ditadura havia tirado muito mais do que a liberdade política, havia mesmo transgredido os limites da consciência das pessoas. O final de um conflito como esse não podia ser feliz e, anos mais tarde, após ter escrito as peças, Vianinha desabafava: “nós não somos porra nenhuma, somos é explorados. Diariamente tiram tudo da gente.” 55 Nos dois textos posteriores, Mamãe, papai está ficando roxo56 inspirado na obra de Martins Pena e Allegro Desbundaccio57, Vianinha busca na comédia de costumes58, debater uma de suas preocupações com o País: o consumo desenfreado que assolava a classe média na década de 1970. Mais uma vez sua dramaturgia retoma no cotidiano da sociedade de consumo a crise já vivenciada pelos marcantes personagens Cristal e Vivácqua agora revelados nas escolhas e aventuras de Napoleão, personagem de Mamãe, papai está ficando roxo, e de Buja, protagonista de Allegro Desbundaccio.

55

Ibidem, p. 183. Vianinha escreve Mamãe, papai está ficando roxo em 1973. O protagonista Napoleão é um médico, proprietário de uma clínica e vive às voltas com os hábitos ensandecidos de consumo das mulheres de sua vida: a esposa, as duas filhas e até a empregada. Mais uma vez o autor direciona sua atenção ao consumismo da classe média, dessa vez através de uma comédia de costumes. 57 Com o subtítulo de Se Martins Pena fosse vivo, Alegro Desbundaccio é uma farsa, influenciada pela obra de Martins Pena. Buja, o protagonista, é um redator de textos de publicidade que tenta, o quanto lhe for possível, escapar das práticas do mundo moderno: aparelhos eletrônicos, determinações econômicas. Sua resistência e isolamento o levam a perder a namorada e, no final, ele fica em companhia de um travesti. Apesar das críticas recebidas por esse trabalho – descompromisso, puro entretenimento, a experiência com esses dois textos, serviram como importante exercício dramatúrgico, além de inspirar episódios d’A Grande Família (1972 - 1974), principalmente, no que se refere ao emprego do humor. 56

58

fortemente influenciado pelo trabalho do pai, Oduvaldo Vianna e pela mãe Deocélia Vianna. VER: VIANNA, Deocélia. Companheiros de Viagem, São Paulo,Brasiliense,1984), 178


Caderno Comunicação, Educação e Artes

O início da década de 1970 pode ser reconhecido, historicamente, como o momento em que o trator da modernização e os sonhos mirabolantes de chegada ao Primeiro Mundo tomavam conta, principalmente, do imaginário da classe média. Enquanto isso, os intelectuais de esquerda, que viveram entre ditadura e democracia passavam, agora, novamente pelos anos de chumbo. A pergunta era o que aconteceria com as conquistas de um passado tão recente que, com o processo de estrangulamento da esquerda, corria o perigo de ser apagado da História do país. As preocupações de Vianinha em abordar as contradições que cercavam artistas, intelectuais e a classe média se justificavam à medida que desaparecia a participação política e social.

10.3 A Televisão Vianinha inicia seu trabalho na Televisão, junto com o dramaturgo Paulo Pontes, escrevendo para o programa de Bibi Ferreira, na TV Tupi. Em 1972, ingressa na Rede Globo de Televisão para fazer parte da equipe que escrevia os programas Caso Especial e Sexta Nobre. Nessa atividade, a “intenção da emissora de nacionalizar e atualizar as obras clássicas, fornecendo delas uma versão compacta e tecnicamente bem realizada”59. No programa Caso Especial, o autor foi responsável pelas adaptações de textos clássicos: A dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho; Medéia, de Eurípides; Mirandolina, de Goldoni (com Gilberto Braga); Noites Brancas, de Dostoievski (com Gilberto Braga) e Ratos e Homens, de John Steinbeck, todas de 1972. A participação nesse projeto também pode ser entendida como uma atitude de resistência, como ocupação de espaços do autor brasileiro na TV. Era de suma importância garantir trabalho para o autor nacional no veículo, além de desenvolver uma

59

BETTI, Maria Silvia. Vianinha. São Paulo: Edusp, 1997. p. 394. 179


Volume 1

teledramaturgia que, através de uma temática universal, preparasse terreno para personagens brasileiros. 60 A ida de Vianinha e de tantos outros autores para a Rede Globo foi criticada duramente por diferentes grupos da esquerda política. A emissora era considerada, por esses setores, como uma das mais comprometidas com o governo militar. A essas críticas, o autor respondia: “recusar-se a trabalhar em televisão em pleno século XX seria, no mínimo, uma burrice.” 61 Suas convicções sobre Televisão, a partir de 1968, estão em um de seus textos mais polêmicos: “Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”62. Na publicação fica evidente o amadurecimento político e artístico de Vianinha. O início da discussão já surge na ambigüidade do título, uma referência ao posicionamento de duas posições ideológicas distintas no momento. A expressão pessedismo lembra o Partido Social Democrático, que contava com grande influência política no pré-64, e que era conhecido politicamente como aquele que sempre ficava “em cima do muro”, devido aos vínculos que mantinha com o governo. Por outro lado, o termo utilizado também pode ser pensado como uma referência ao Partido

60

Um texto que demonstra a importância e alcance desse trabalho é a Medéia de Vianinha. O texto de Eurípides, com a adaptação, passa-se num morro carioca. O mesmo texto foi “transformado” na peça Gota d’água, de Paulo Pontes e Chico Buarque de Hollanda, ainda na década de 70. Sobre isso, ver MACIEL, Diógenes André Vieira. Das naus argivas ao subúrbio carioca – percursos de um mito grego da Medéia (1972) à Gota d’água (1975). Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, out.-dez. 2004, v.I, ano I, n. 1. Disponível em <www.revistafenix.pro.br>. Além desses textos, outro trabalho de Vianinha também obteve excelente repercussão na TV, transformado depois em filme para o cinema: Aventuras de uma moça grávida 60, apresentado em 1973.Este é considerado um texto autobiográfico. Nele, o Vianinha relata as dificuldades de um casal à espera de seu primeiro filho. No caso do autor, seria o nascimento de Pedro Ivo, seu segundo filho. Esse texto foi transformado no filme O casal, pelas mãos do diretor Daniel Filho. 61 PEIXOTO, p. 183. 62 Publicado em julho de 1968, na segunda edição especial da Revista Civilização Brasileira – Teatro e realidade brasileira, Para este trabalho, utilizamos a seguinte re-edição do texto: VIANNA FILHO, Oduvaldo. Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém. In: PEIXOTO, op. cit., p. 120 a 130. 180


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Comunista Brasileiro (“pecedismo”), grupo que sempre o autor sempre militara. As provocações do título e do conteúdo do texto, além de suscitar severas críticas por parte de alguns, explicam o posicionamento do autor frente à repressão do AI-5 e, coerentemente, o acompanham no seu trabalho artístico na década de 1970. Citando o texto de Luís Carlos Maciel63, Vianinha justifica “o empenho do homem de teatro brasileiro, objetivamente marginalizado mas subjetivamente vinculado à vida social de seu país”64. Traçando um cuidadoso painel sobre a participação da classe média na construção de uma tradição teatral brasileira, criada a partir do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e das companhias que surgiram dele, passando pelos movimentos de reação a essa tendência, como o Arena e o Opinião, ele chega a apresentar pressupostos em defesa da “classe” teatral, propondo a revisão que, a partir dela, deveria brotar. Analisando as insatisfações que assolavam o Teatro Brasileiro, que vivia um momento de divisão interna decorrente da instabilidade política, da censura e da repressão, o dramaturgo propõe, nesse texto, a união de forças, com a intenção de reavaliar o trabalho que estava sendo desenvolvido e reivindicar saídas de maior valor para a vitória da Cultura Brasileira.65 Os pontos que Vianinha discute demostram seu posicionamento tanto como homem de teatro quanto como militante do PCB. Não podemos esquecer que a política adotada pelo Partido no pós-64 implicava a necessidade de se articular à Frente Democrática, ou seja, “os militantes deveriam se aliar a todos que se opunham à ditadura. O partido defendia que a derrubada do regime deveria se dar através de soluções politicamente negociadas”66. O dramaturgo, então, discutia com o grupo do qual fazia parte o isolamento a

63

O texto a que Vianinha se refere é “Quem é quem no teatro brasileiro - Estudo sóciopsicanalítico de três gerações”, publicado na Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial n.2: Teatro e realidade brasileira, Rio de Janeiro, julho de 1968. 64 VIANNA FILHO, p. 122. 65 Ibidem, p. 125 e 127. 66 PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros – história e memória do PCB. Rio de Janeiro: Relume – Dumará/ Fundação Roberto Marinho, 1995, p. 207). 181


Volume 1

que estavam expostos e a necessidade de sobrevivência através do entendimento dos seus membros. Muitas pessoas não admiravam essas ideias, chegando a chamar Vianinha de “reformista”67, mas é a partir dessa escolha histórica que ele defende seu trabalho na TV. Um forte argumento utilizado pelo dramaturgo é a afirmação de que que o contato entre as classes sociais havia desaparecido depois do Ato Institucional nº 5 que acabou com toda liberdade de expressão. Uma parcela da classe média brasileira, que, anteriormente, ora se aproximava, ora se afastava da esquerda, acuada, acabou por fazer a opção pró-regime. Em sua reavaliação da experiência dos Centros Popular de Cultura (CPCs), ele percebera que, durante aquele processo criativo, apesar de alguns erros de avaliação que os participantes do grupo haviam cometido, também ocorrera uma significativa adesão de intelectuais ao trabalho, proporcionando a construção de um elo entre as diversas camadas da sociedade. Dessa forma, essa aproximação mais intensa criou a oportunidade que os intelectuais tiveram de “beber das classes trabalhadoras todas a informações sobre a sua situação, sobre as suas condições de luta, sobre as suas aspirações”68. Para o dramaturgo, a maneira como a sociedade vinha se transformando promoveria, em breve, um isolamento que, fatalmente, distanciaria cada vez mais os indivíduos, a ponto de não enxergarem mais os problemas da sociedade como um todo. Segundo Vianinha, nesse processo de mudança, o povo desaparecera e dera

67

Segundo Rosangela Patriota, “Vianinha foi um dos primeiros intelectuais e militantes a aderir a esta nova determinação do Partido, defendendo a união contra um inimigo maior: a ditadura. [...] Estas atitudes públicas acarretaram-lhe dissabores e discussão sobre seu comprometimento revolucionário. [...] Segundo Vera Gertel, ‘Vianinha não deixava transparecer, mas saía do Gláucio Gil (teatro) deprimido. Se ele ou Gullar levantavam a voz, uma avalanche de impropérios era disparada pelo lado. [...] O fato de não aderir a radicalização pela luta armada representava para o Vianna ser chamado de velho, como se estivesse superado. Ele se torturou muito na época por causa disso. [...] Continuou achando que deveria se manter na linha do partido e que a luta armada era uma proposta equivocada’.” PATRIOTA, Rosangela. Vianinha – um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 121-122. 68 PEIXOTO, p. 174. 182


Caderno Comunicação, Educação e Artes

lugar às massas69, pois, com o aniquilamento de suas principais reivindicações e com o processo de perda de sua voz, deixava de ser fonte criadora e passava a ser fonte deformadora da cultura. Assim, ‘o povo’ passava a ser visto, por alguns setores intelectuais, como algo a ser evitado, pois era o responsável pelo embrutecimento da cultura. Nessa direção, o dramaturgo afirmava que o refinamento dos produtos dos meios de comunicação de massa é que era o responsável pela reprodução de valores que embruteciam a sociedade, porque esses veículos produziam e reproduziam profissionais especializados que instauravam um contínuo processo de deformação da mentalidade social. A Televisão se alimentava dos altos investimentos que os anunciantes, que eram os representantes das classes que dominavam economicamente o país, faziam em publicidade, facilitando, portanto, o distanciamento entre os diferentes setores da sociedade. Dessa forma, afirmava que a TV e a Publicidade trabalhavam para a elaboração desse processo e precisavam de profissionais que conhecessem a realidade e a linguagem do país. Foi nessa proposta que o dramaturgo enxergou uma oportunidade de subverter, assim esse seria seu papel dentro do veículo. Enquanto a ditadura se encarregou de dissolver a esquerda, a TV tratou de cooptar alguns de seus membros. Vianinha compreendeu a razão disso ocorrer: eram eles, artistas com ampla militância, que conheciam de perto o público que a TV almejava conquistar. Para muitos artistas e intelectuais da geração de Vianinha o fato de conhecer mais de perto as classes com menos privilégios, era uma experiência alimentadora que serviu para a TV se apoiar e construir uma programação de forte apelo popular para promoção da integração nacional. Ele também entendeu que a difícil tarefa a que se dedicava a Televisão era “reduzir uma sociedade de mais de cem milhões de pessoas, a um mercado

69

Ibidem, p. 178. 183


Volume 1

de vinte milhões de pessoas”, algo de difícil execução, e que, para tanto, “seria preciso um processo cultural muito intenso, muito elaborado”70. Vianinha enxergava uma possível saída para a essa dominação da produção cultural (sobretudo na TV) com a aproximação de intelectuais e de artistas desse veículo. Defendia que se esses profissionais trabalhassem na contramão daquilo que a TV propunha, o estreitamento da realidade. Nesse aspecto, a visão do autor abre um leque de perspectivas importantes para o trabalho na TV. Suas afirmações iam além das meras observações sobre o veículo de comunicação, mas consideravam questões mais profundas da produção cultural. Para ele, a Cultura Brasileira era extremamente rica, porém existia um problema fundamental a ser superado pela intelectualidade: o sectarismo e o nível de profundidade. Segundo esse raciocínio, o artista brasileiro ainda possuía uma visão monolítica do processo cultural e era imaturo artisticamente, pois não analisava as conexões que eram intrínsecas à idéia do subdesenvolvimento. Mudar isso exigiria um nível muito profundo de maturidade e, se esse processo não se tinha completado até 1968, naquelas circunstâncias do pós-68 (período mais duro de fechamento político), é que elas teriam menos condição de aparecer. Essa avaliação estava baseada na busca de um trabalho que atingisse a profundidade cultural, que, para Vianinha, só seria completo se fosse produzido com o povo (agora as massas), pois o “processo cultural, tem de ser feito diante das forças que absorvem cultura na sociedade brasileira”71. Havia nas declarações de Vianinha algo que o diferenciava de alguns outros artistas que também atuavam na TV; quando ele respondia às indagações sobre como encarava seu trabalho, mantinha sua posição de militante comunista e permanecia questionando a realidade, promovendo um debate acerca da responsabilidade do artista na produção cultural: era necessário ao intelectual “descobrir a face cultural e os aspectos da cultura

70 71

Ibidem, p. 180. PEIXOTO, p. 175. 184


Caderno Comunicação, Educação e Artes

que fazem do subdesenvolvido um subdesenvolvido”72. Sim, a TV brasileira de certa maneira, colaborava na manutenção de um Brasil com sérios problemas sociais, políticos e econômicos, mas virar às costas à ela era abandonar um setor da cultura de grande força, que ainda estava em processo de formação: “a Televisão cria um campo de trabalho para a intelectualidade da maior importância, de maior significado, porque exatamente a Televisão tem um lado que nós todos somos contra, em relação ao que ela deixa de mostrar. ”73 O que as observações de Vianinha tentam evitar é o nascimento de um sentimento de imobilidade frente às dificuldades, por parte da intelectualidade e da classe artística. Se, antes de 1964, o debate e a participação política faziam parte da realidade de amplos setores da sociedade brasileira, o desaparecimento dos canais de expressão e o isolamento a que se submetiam artistas e intelectuais não poderiam justificar que esses profissionais se eximissem de sua responsabilidade de atuação. Há aqui a ideia de resistência a padrões antidemocráticos dentro dos grandes meios de comunicação de massa, e, de certa forma, essa força que resistiu e foi um dos componentes que mais contribuíram para a consolidação da TV como principal motor da Indústria Cultural durante a década de 1970. Com elementos das experiências anteriores a 1964 (Teatro de Arena, CPC, Opinião), o autor, entre outros artistas, destacou traços do movimento do qual sempre fez parte: o nacional e o popular. 74

72

PEIXOTO, p. 169. PEIXOTO, p. 184. 74 Segundo Sérgio Paulo Rouanet (Folha de São Paulo, 12 de março de 1988): “Do modelo cultural das esquerdas, como os CPCs, tirou-se a ideia de autenticidade que a mídia interpreta como defesa do mercado brasileiro contra os enlatados americanos, e a preocupação com a identidade cultural, que a televisão procura resgatar reservando um espaço para programações regionais, intercaladas entre programas de âmbito nacional [...] Seriam inegáveis as afinidades estruturais importantes entre a autolegitimação nacionalista e populista da indústria cultural brasileira e as antigas bandeiras nacionalistas e populares.” 73

185


Volume 1

Em suma, o dramaturgo observava que o processo de consolidação de um mercado cultural estava em curso e só seria possível reverter esse quadro mediante o aprofundamento das questões culturais acompanhadas da discussão das relações internas da sociedade brasileira, cabendo a responsabilidade dessa discussão a artistas e intelectuais. Portanto, não era a simplista colaboração de militantes comunistas com o regime que estava em curso, mas a demonstração de que a produção cultural brasileira deveria ter amadurecido com a experiência pré-68. Era isso que Vianinha apontava: amadurecimento e aprofundamento como um exercício da militância. Ainda hoje reconhecido e citado por inúmeros autores de Teatro e Televisão Vianinha morreu prematuramente em 1974 aos 38 anos de idade. Deixou textos inéditos e premiados. Alguns engavetados devido à censura da época e que só foram encenados no momento da reabertura política nos anos 80. Para encerrar essa reflexão lembramos a pergunta feita a Vianinha em 1974 e sua resposta: “ Vianinha, por que fazer TV? (...) O problema da TV não é o que ela exibe, é o que deixa de exibir. Este problema foge à alçada decisória da própria TV. A omissão fatual da grande realidade é uma constante de todos os meios de comunicação. No plano da informação, portanto, a televisão não tem autonomia decisória. No plano da formação cultural, a televisão não é criadora – é extensiva, é democratizadora, difusora de valores vigentes socialmente e também difusora de valores espirituais conquistados pela humanidade ao longo de sua grande aventura espiritual. Há valores vigentes que a publicidade divulga: de competição, representação, status, individuação, etc. Há valores de sempre que precisam ser permanentemente veiculados, como a solidariedade, o direito ao fracasso, a beleza da justiça, da liberdade, do amor conquistado, da rebeldia diante da injustiça, a igualdade dos seres humanos, o direito à busca da felicidade. Não criei em tudo que escrevi para a televisão. Mas sempre procurei tornar extensivos estes valores mais

186


Caderno Comunicação, Educação e Artes

nobres criados pela humanidade à custa de séculos.” Oduvaldo Vianna Filho – 1974

10.4 Referências “Quem é quem no teatro brasileiro - Estudo sócio-psicanalítico de três gerações”, Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial n.2: Teatro e realidade brasileira, Rio de Janeiro, julho de 1968. BETTI, Maria Silvia. Vianinha. São Paulo: Edusp, 1997 MACIEL, Diógenes (Org.). ANDRADE, Valéria (Org.). “Por uma militância teatral”, João Pessoa: Editora Bagagem/idéia, 2005 MACIEL, Diógenes André Vieira. Das naus argivas ao subúrbio carioca – percursos de um mito grego da Medéia (1972) à Gota d’água (1975). Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, out.-dez. 2004, v.I, ano I, n. 1. Disponível em <www.revistafenix.pro.br>. MORAES, dênis de. Vianinha, cúmplice da Paixão - uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira – Cultura Brasileira e Indústria Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1988

PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros – história e memória do PCB. Rio de Janeiro: Relume – Dumará/ Fundação Roberto Marinho, 1995. PATRIOTA, Rosangela. Vianinha – um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999

VIANNA, Deocélia. Companheiros de Viagem. São Paulo: Brasiliense,1984.

---------------------------------------

Maria Aparecida Ruiz - Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e graduada em Estudos Sociais: História pela Universidade Guarulhos.

187


Volume 1

11. AB, 18-35, Ambos os Sexos. Público-Alvo. Afinal, o que é isso? Rodolfo NAKAMURA Resumo A definição de público-alvo é essencial na atividade de comunicação. Em publicidade e propaganda, em que uma única veiculação tem um alto valor de investimento, o erro estratégico pode resultar em um alto custo – não apenas na quantidade de dinheiro a ser investido, mas o preço de se utilizar uma estratégia equivocada. Este artigo tem o objetivo de elucidar os principais fatores relacionados à definição de público-alvo, sob a ótica de diversos fatores como objetivos de marketing, comunicação e campanha, bem como fatores de segmentação de mercado. Palavras-chave: público-alvo, publicidade e propaganda, campanha publicitária, comunicação.

11.1 Introdução O termo público-alvo, ou target, em inglês, é um dos termos mais utilizados nas áres de publicidade, propaganda e marketing. Para estudar este assunto, vamos começar nossa pesquisa pelo dicionário. RABAÇA e BARBOSA (1987, p. 486) nos fornece a seguinte definição: “Parcela da população a qual é dirigida a mensagem. Segmento do público que se pretende atingir e sensibilizar com uma campanha, um anúncio, uma notícia, etc.”. Em tempos de competitividade crescente, a identificação correta esta informação é valiosa, pois representa uma otimização dos investimentos em comunicação e demais ações mercadológicas. Roberto Correa, em seu 188


Caderno Comunicação, Educação e Artes

livro “Planejamento de Propaganda” dá ênfase a esse aspecto, nos esclarecendo sobre a importância da segmentação de mercado: “Considerando a massa humana como uma grande máquina devoradora de produtos e serviços, parece lógico que basta produzir para que o bem seja consumido. Assim se pensava no início da era industrial onde o mercado, ávido por produtos, tinha que adquirir o que lhe era oferecido. Com o aparecimento da concorrência e com o avanço tecnológico, os produtos foram-se assemelhando muito, tornando cada vez mais difícil sua diferenciação. Chegou-se, então, a uma inversão de processos. O mercado é que passou a determinar o que deseja, cabendo ao fabricante produzir o que lhe está sendo solicitado. Acontece que a massa consumidora não pensa de forma homogênea, apresentando grupos que se diferenciam pelas suas preferências. Chegamos, assim, ao princípio da segmentação.” (CORREA, 1998, p.108). McKENNA (1992) complementa que “O posicionamento do produto não se baseia exclusivamente em suas características, sejam elas tangíveis ou intangíveis. Baseia-se também na forma de se estabelecer um alvo para o produto. As empresas podem desenvolver posições sólidas para seus produtos concentrando-se em segmentos específicos do mercado”. Embora haja consenso de que a identificação do público-alvo é relevante, seja no mercado profissional ou no âmbito acadêmico, nem sempre está claro quais são as informações importantes sobre como defini-lo. Na maioria das vezes, as descrições de público-alvo acabam sendo reduzidas a singelos dados como “classe social, faixa etária e natureza sexual”, sendo acrescentados, normalmente, informações sobre sua distribuição geográfica. Mesmo neste ponto, é fácil encontrar disparates como “Classe Social ABC, ambos os sexos, de 18 a 65 anos”, como se essa grande gama de

189


Volume 1

possibilidades pudesse ser chamada de alvo (a menos que fosse de um meteoro ao encontro da superfície do nosso planeta). “Uma das tarefas mais árduas no planejamento da comunicação é definir o público-alvo da campanha. É o momento de ‘fazer escolhas’ sobre quem deve ser atingido e quem ficará em segundo plano. A dificuldade está, justamente, no fato de que, na maior parte das vezes, não é viável falar com todos”, o que significa utilizar “uma mensagem menos personalizada, que tenta atingir uma faixa de público bastante ampla, supostamente menos homogênea. Portanto, a resposta esperada do público seria menor do que uma mensagem mais personalizada e focada em um perfil de público mais homogêneo”. PREDEBOM et alli (2004, p.89) 11.2 Porque o assunto é relevante Kotler (1997) nos informa que “nenhuma empresa pode operar em todos os mercados e satisfazer a todas as necessidades. Nem pode fazer um bom trabalho dentro de um mercado muito amplo”. Ele continua, dizendo que “As empresas trabalham melhor quando definem cuidadosamente seu(s) mercado(s)-alvo(s) e preparam um programa de marketing sob medida”. Ora, confrontando as duas definições anteriores, de Kotler e inicialmente fornecida por Rabaça & Barbosa, verificamos que público-alvo é um grupo menor, retirado de uma dada população, que será atingida pela nossa mensagem. Além disso, a maior contribuição para o estudo aprofundado do público-alvo está na necessidade de se rentabilizar os investimentos, uma vez que não é possível atingir a todos os nossos públicos de uma vez. Em um artigo a que se referia sobre o público-alvo “50+”, Márcia Pudelko75 enfatiza que não basta fornecer poucos dados demográficos sobre essa faixa etária.

75

PUDELKO (2005). 190


Caderno Comunicação, Educação e Artes

“Contextualizando, estamos falando do tão aclamado perfil baby-boomer, geração que nasceu entre o fim da 2ª Guerra Mundial e o começo dos anos 60. Geração esta que vivenciou e ainda vivencia importantes revoluções nas esferas econômica, política e social. Como brasileiros, sofremos com a ditadura, vivemos o momento de alienação obrigatória, passamos pela abertura, voltamos à democracia, elegemos para comandar o país um sonho que se transformou em pesadelo – um sociólogo e um operário. Enfretamos vários planos econômicos, entramos na era da globalização e participamos dos grandes movimentos culturais, tanto no âmbito nacional como internacional.”. Ao ilustrar todos esses fatos, Pudelko complementa que “sem dúvida, estamos falando de uma geração muito rica em conteúdo e com uma capacidade de adaptação bastante intensa, o que lhe confere hoje um espírito de vida bastante diferente das gerações anteriores.

11.3 Diferentes âmbitos de Públicos-Alvo É importante ressaltar que a necessidade de público-alvo varia também de acordo com o tipo de planejamento que estamos lidando: •

Um planejamento de marketing leva em consideração o público com uma determinada necessidade para o qual o produto é a solução. Portanto, a definição do target está mais relacionada ao usuário.

Já o planejamento de comunicação, de forma global, envolve o desenvolvimento de ações para público interno e externo. Neste caso, a definição do target está ligado a quais são os públicos que devem ser atendidos pela comunicação global.

Um planejamento de campanha publicitária e de mídia pode envolver a comunicação a públicos específicos tais como o trade, especificadores, equipe de distribuição e logística, além do 191


Volume 1

público-alvo consumidor. Nesta definição, é importante estudar os agentes de compra, uma vez que a campanha pode ter um caráter de buscar resultados pontuais, ao contrário do plano de comunicação que envolve um estudo de longo prazo. Desta forma, os departamentos de criação e mídia das agências devem receber as informações pertinentes à natureza do trabalho e a qual target se destina para que possa desenvolver melhor seu trabalho.

11.3.1 Público interno São todos aqueles relacionados à produção ou comercialização de produtos/serviços da empresa. ZANONE e BUAIRIDE (2002, p. 108) consideram que, embora alguns autores defendam que deva existir um vínculo de exclusividade com a empresa, na prática a realidade demonstra que nem sempre esta condição é possível, pois, no caso de equipe de vendas, os volumes podem ser pequenos demais a ponto de serem desmotivadores da exclusividade proposta. Ainda de acordo com esses autores, fazem parte desta lista os fornecedores, clientes, instituições financeiras, equipe de vendas (vendedores contratados, representantes de vendas, distribuidores, atacadistas e varejistas), além de todos os demais colaboradores da empresa (demais funcionários incluindo os administrativos, produtivos e operacionais).

11.3.2 Público externo Público externo “é todo aquele que não tem ligação direta com a empresa, no que diz respeito a vínculo empregatício ou contrato de representação” (ZANONE E BUAIRIDE, 2002). Portanto, estão incluídos nesta categoria os formadores de opinião, órgãos de imprensa, governo, consumidores potenciais e atuais e agentes de compra.

192


Caderno Comunicação, Educação e Artes

11.4 Objetivos da Campanha e Agentes de compra Em uma campanha publicitária, é necessário considerar os níveis de conhecimento que o mercado tem sobre o nosso produto. De acordo com KOTLER (2000), após identificar o mercado-alvo e suas percepções, o comunicador deve decidir sobre a resposta desejada pelo público. Entre os modelos propostos, o autor esclarece sobre os modelos de hierarquia de respostas mais conhecidos: -

Conscientização: quando a maioria do público-alvo não está consciente do objeto, a tarefa do comunicador é desenvolver a conscientização, podendo resumir apenas a um reconhecimento do nome.

-

Conhecimento: quando já há consciência do produto, mas nada mais sabe-se sobre ele, é importante ampliar o conhecimento a respeito do produto. Quanto mais se conhecer sobre o produto/serviço/empresa, melhor para o desenvolvimento mercadológico;

-

Simpatia: está relacionada a qual impressão o público tem do produto. Se há opiniões desfavoráveis, é importante descobrir quais são as causas. Nem sempre, inclusive, a comunicação consegue, isoladamente, resolver os problemas de imagem.

-

Preferência: o público pode gostar do produto, mas não preferilos. Por isso, nesta etapa, é necessário conquistar a preferência do consumidor, promovendo qualidade, valor, desempenho e demais características do produto.

-

Convicção: embora prefira determinado produto, pode ser que o consumidor ainda não esteja convicto de que esta é a melhor alternativa de consumo. Por isso, muitas vezes, é necessário argumentos que convençam o público de que determinado produto é a melhor escolha.

193


Volume 1

-

Compra: Embora estejam convencidas, pode ocorrer que o público ainda não resolva a compra. Entre as opções do comunicador, estão envolvidas a promoção de preço, ou demais benefícios adicionais, ou ainda o convite à experimentação.

Verifique que há, neste caso, uma ligação intensa com o aspecto de marketing conhecido como “Ciclo de Vida” do produto ou da marca (no caso de campanha institucional). Apenas para lembrar, são, didaticamente, divididos em 4 estágios (lançamento, crescimento, maturidade e declínio). -

Iniciador: aquele de quem parte a iniciativa da compra do produto/serviço, normalmente quem detecta a necessidade.

-

Influenciador: aqueles que ajudam a definir as especificações do produto, oferecendo informações para avaliação das alternativas. Agindo como conselheiros,

-

Decisor: Têm o poder formal ou informal para selecionar e aprovar os fornecedores e a compra, em si.

-

Comprador: Muitas vezes o decisor e o comprador são a mesma pessoa. Nem sempre, porém, isso ocorre. O comprador pode auxiliar na especificação do produto, mas o principal papel é selecionar fornecedores e negociar com eles.

-

Usuário: efetivamente, quem utiliza o produto ou serviço. Em muitos casos, exercem o mesmo papel do iniciador.

O exemplo clássico dos agentes está na compra de um brinquedo, por exemplo. Os avós lembram que, no dia das crianças, uma data especial, é importante a compra de um presentinho (iniciador); na busca pelas melhores opções, a mãe ouve os colegas de trabalho que comentam sobre as novidades que foram lançadas recentemente – e que viram em anúncios, ou in loco (influenciador); com uma idéia do que poderá ser o presente, ela conversa com o marido e, juntos, decidem sobre opções o orçamento (decisor); na etapa seguinte, o marido vai as compras, negocia o melhor

194


Caderno Comunicação, Educação e Artes

preço e realiza a compra, efetivamente (comprador). Finalmente, a criança ganha o presente e, feliz, brinca com seu novo presente (usuário).

11.5 Onde encontrar o público-alvo Quando desenvolvem maneiras de desenvolver comunicações eficazes, PEREZ e BAIRON (2002) dão indicadores de onde buscar informações sobre o target. “Inicia-se a análise do público a que sera destinada a comunicação. Esse público poderá ser os clientes atuais da organização, os potenciais e até mesmo os influenciadores do processo de compra”. CORREA (1998, p. 109) colabora com sua lista para determinação do perfil do consumidor: -

Dados Demográficos: sexo, idade, grau de instrução, estado civil, grupo étnico, local de residência.

-

Dados Sócio-Culturais: classe social a que pertence, grupos profissionais, artísticos, esportivos, tradições, folclore.

-

Dados Econômicos: classe econômica a que pertence, renda discricionária, outros dados relativos à situaçào econômicafinanceira.

-

Dados Religiosos: religião a que pertence, seitas e crenças.

-

Dados Psicológicos: relativos a atitudes, opiniões, reações e motivações de cada grupo.

-

Hábitos de compra/consumo/uso: procedimentos diferenças de comportamento entre diversos públicos.

usuais,

Pode-se acrescentar, ainda, os aspectos geográficos (localização geográfica, topografia, clima da região, entre outros fatores) que podem ser decisivos na estratégia de comunicação e marketing do cliente.

195


Volume 1

11.6 Relação do Público-Alvo com Macroambiente Mais importante do que gerar as informações obtidas pela lista acima é complementá-las com uma análise a partir de variáveis do ambiente de marketing (micro e macroambiente) e também com o comportamento psicossocial do target. Os dados demográficos podem dar indícios para uma abordagem diferenciada conforme o grupo formado. É certo que, separados pela demografia, cada grupo apresentará padrões de comportamento, anseios, motivações e necessidades diferentes uns dos outros. Da mesma forma acontecerá para as demais variáveis. Também o comportamento do mercado, visto do ponto de vista do macroambiente, pode dar indícios de oportunidades ou barreiras que podem ser enfrentados pelo nosso produto/serviço em virtude do posicionamento mercadológico adotado. Assim, produtos e serviços destinados à classe social com idade acima de 50 anos encontram oportunidades de expansão, visto que esse grupo etário é crescente no Brasil, segundo estatísticas do IBGE. Também é um grupo social que está surgindo em um novo contexto, vivenciando as mudanças do pós-guerra e trazendo uma série de novos pontos de vista, diferentes dos maduros e idosos de tempos atrás.

11.7 Bagagem Cultural O modelo de comunicação proposto por Shannon e Weaver76 nos demonstra que a comunicação eficaz ocorre quando há retorno da comunicação (feedback). Ao lembrarmos que, além da mensagem ser entregue corretamente ao destinatário, também deve-se prever os ruídos de comunicação, de forma a viabilizar a troca de idéias. 76

Tupã Corrêa. Contato Imediato com Opinião Pública. São Paulo, Global, 1988, p.19. 196


Caderno Comunicação, Educação e Artes

Ru íd os Remetente

Mensagem

(Emissor)

Destinatário (Receptor)

Veículo Código > Signos

Retorno (Feedback)

Neste sentido, é importante levar-se em consideração os aspectos culturais do destinatário. Afinal, dependendo da linguagem a ser utilizada (código) ou ainda da forma como será transmitida (simbologia/signos de comunicação), poderá haver maior eficácia e até mesmo maior eficiència na comunicação. Assim, faz-se ainda mais necessário a determinação de outros fatores – incluindo aspectos culturais e hábitos do destinatário –, além dos tradicionais aspectos demográficos, na determinação do público-alvo.

11.8 Conclusão Palavras como segmentação e posicionamento de mercado foram introduzidas há algumas décadas no rol de técnicas de administradores, profissionais de marketing e de comunicação. No entanto, ainda hoje o mercado carece da correta utilização dessas ferramentas. Com a maior competição no mercado, estes itens tornam-se ainda mais relevantes, maximizando o retorno sobre os investimentos propostos. Por isso, a correta definição de público-alvo é um assunto que deve ganhar mais importância por parte dos profissionais, sempre considerando-se todas as variáveis possíveis sobre o assunto. Também é importante observar que, para diferentes disciplinas, o públicoalvo pode também sofrer alterações. Para o marketing, o público-alvo do 197


Volume 1

produto pode ser o usuário, com design, manuais e todas as informações coerentes com ele. Para a comunicação, o público pode ser mais amplo, já considerando diferenças de estratégia para público interno e externo e, nesta primeira divisão, direcionar a mensagem para públicos ainda mais restritos, conforme a necessidade e a ser suprida. Em uma estratégia on-line, como uma presença internet, vários públicos podem estar relacionados (investidores, consumidores potenciais e reais, colaboradores, e público interno), podendo apresentar setores com diferenças de formatação e linguagem para cada um dos públicos.

11.9 Bibliografia COBRA, Marcos. Vendas: Como ampliar seu negócio. São Paulo: Marcos Cobra, 1994. CORREA, Roberto. Planejamento de Propaganda. 4ª Ed. São Paulo: Global, 1988. CORREA, Tupã. Contato Imediato com Opinião Pública. São Paulo: Global, 1988. KOTLER, Philip. Administração de Marketing. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 1997. KOTLER, Philip. Administração de Marketing: a edição do novo milênio. São Paulo: Prentice Hall, 2000. McKENNA, Regis. Marketing de Relacionamento. São Paulo: Campus, 1997. PEREZ, Clotilde; BAIRON, Sérgio. Comunicação & Marketing. São Paulo: Futura, 2002. PREDEBOM, José (Coordenador). Curso de Propaganda: do anúncio à comunicação integrada. São Paulo: Atlas, 2004. RABAÇA, Carlos A.; BARBOSA, Gustavo G. Dicionário de Comunicação. São Paulo: Ática, 1987. SAMPAIO, Rafael. Propaganda de A a Z. 2ª ed. São Paulo: Campus, 1999. SANT’ANNA, Armando. Propaganda – Teoria, Técnica e Prática. 7ª ed. São Paulo: Pioneira, 1998. ZENONE, Luiz C.; BUARIDE, Ana Maria R.Marketing da Comunicação. São Paulo: Futura, 2002.

198


Caderno Comunicação, Educação e Artes

PUDELKO, Márcia. Público Alvo: 50 anos +, in Jornal Meio & Mensagem, Ano XXVI, nº 147, p.10, 20 de Fevereiro, 2005.

----------------------------------------

Rodolfo Nakamura – Especialista em Gestão de Novas Tecnologias (E-business) pela Faculdade Tancredo Neves, graduado em Comunicação Social, habilitação Publicidade e Propaganda (Universidade Metodista de São Paulo), Professor universitário em cursos de graduação e pós-graduação. Autor de livros, editor. profnakamura@gmail.com.

199


Farol do Forte Editora: 2017 200


C a d e r n o

Comunicação Educação Artes

&

O Caderno de Comunicação, Educação e Artes pretende documentar produções científicas realizadas por acadêmicos e convidados da Coordenação de Comunicação Social e Fotografia - UnG - Universidade Guarulhos – Unidade Centro. Trata-se de um periódico aberto às reflexões sobre as inovações e transformações acadêmicas, preservando o horizonte inter e transdisciplinar nos aspectos teóricos e práticos. Acreditamos que a veiculação de pesquisas gera inovação e contribuição para o desenvolvimento social e econômico, proporcionando intercâmbio entre as comunidades acadêmicas e profissionais que a norteiam.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.