Mango Mango vol.#1- Bem Vinda

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mango mango / marta supernova

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. volume #1 - bemvinda

mango mango / textos

algumas palavras e consequentemente textos organizados em um recipiente sem forma. Bemvinda diz bom dia e boa tarde. Bemvinda é capaz de apresentar um mundo de possibilidades em poucos minutos. Bemvinda lida muito bem com números e sabe tudo sobre papel. Bemvinda é um portal. _ projeto gráfico rodrigorosm.org organização rodrigorosm.org _ tiragem sob demanda distribuição editora casa 27 [ org ]


a mulher que caiu no horizonte

mango mango ... ĂŠ um recipiente editorial independente de palavras e consequentemente textos.

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[ rodrigorosm.org ]


mango mango / textos . volume # 1 - bemvinda gabriela gaia / nota sobre indigestão marta supernova / a mulher caiu no horizonte natália mansur / a cada pedaço meu que se vai heitor alvarenga / a rocha, a luz e o texto joão alvares / sem título pedro pessanha / fevereiro quase março igor valamiel / O cadáver ultrajado ou A morte e a morte d’um domingo miriam struz / celestes odaraya mello / fagun kauã vasconcelos / se encantou !

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a mulher que caiu no horizonte

mango mango ... ĂŠ um recipiente editorial independente de palavras e consequentemente textos.

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mango mango / marta supernova

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notas sobre a indigestão a mulher que caiu no horizonte

I. ele varreu, a água, o cimento. as flores boiavam pelas beiradas. eram amarelas, as pétalas. voavam líquidas pelo asfalto. por um momento, jurou escorrer junto. foi golpe. foi golpe. foi golpe. e mais água rolando.

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dali formulava metáforas varridas. viveu sua vida como um cachorro num bar. as cervejas meio quentes nos copos meio velhos. os pratos requentados onde o arroz e o feijão se uniam numa massa homogênea, pastosa, areia arranhando na goela. as tarde entrecortadas por risos e mesas de plástico. risos de plástico, felicidades vorazmente fugazes. no enterro, talvez, se ainda alguém presente, proferiria: aqui jaz um corpo que comeu do mal e bebeu do pior. mas não seria essa a descrição de todos os seres humanos? repousou a taça de vinho barato mais uma vez na mesa azul. certamente poderia desaparecer naquele instante, enquanto seu joaquim não chegava com o pastel de carne moída. seus ossos, completamente muito mais que moídos, molhavam-se de sangue podre. a chuva caía do lado de fora. os prédios de janelas pixadas murmurando uma sinfonia ininteligível. a água enxotando as cinzas e as flores, todas rolando pelo chão. sua vida, um chão de pedras portuguesas irregulares. preto, branco e respingos de tintas mil. tintas meio....


pegou o celular e discou o número. o pensamento nas flores. o não pensamento. na tv, o anúncio: a presidente deposta despejando discurso. foi golpe, sabia. a barriga ainda doía do soco dado. democracia fajuta, vergonha de rabo de olho. mais uma taça. ou melhor, cerveja. a de sempre. se quente, tudo continua igual. se gelada, é que o golpe já muda a dinâmica das relações. começou a se sentir vigiado. e o telefone chamando e chamando e chamando e chamada encaminhada para caixa de mensagem. a cerveja vem quente, a cerveja vem sempre rente à carne, corte à navalha. deixe o seu recado após o -----

notas sobre a indigestão

enfim, a gororoba chegando. a gororoba no prato. não fazia o menor sentido nada daquilo. talvez por isso tantas noites sufocantes e chamadas perdidas. talvez precisamente por isso essa dor a céu aberto, esse desquerer constante.

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coçando a orelha como o cão que coça a pele sardenta, enquanto Botafogo amanhece cinza e pestilento num Domingo sem importância, o ar entupido de fuligem sendo aspirado pela milésima vez. Os amores, todos deixados na prateleira ontem, quando o dia se fez noite quente e a cerveja quase quebem gelada rolava goela abaixo.

mango mango / gabrieka gaia

II. eu

Embaixo do cobertor, contando mentalmente a quantidade de dias para sair dessa espelunca, desse moquifo, desse quarto mal iluminado que mal cabe para um ser (e seus sonhos disformes, distópicos, envoltos em papel celofane. Se possível fosse, calçar agora mesmo algum par de sapato que voa à jato, e dar o fora right away. Far farfarfarfarfar away from here. o arfar no peito já castigado por esses desencontros, são tantos e tantos. só queria uma nova janela pela qual olhar, mesmo. ou que o cavalo fosse o nome da coisa e nada mais. mas nem sempre é só o que se quer. a vida é uma gelatina de surpresas. ou então, quem sabe pegar essa gelatina e estraçalhar com a colher de metal encardida. pegar a gelatina e tacar embaixo da água corrente da pia entupida. ver gelatina virar água vermelha escorrendo pelo ralo. ver o ralo. deixar a vida enfim varrer pelo ralo qualquer resto de comida que tenha ficado entupido no cano (porque ao menos cenoura certamente tem entupida no cano) e enfim desobstruir tudo que é pedra no rim ou no meio do caminho. fumar um cigarro para parecer sexy. envolver-se numa aura de mistério, algo mais profissional que só essas olheiras cansadas, essas coleiras amarradas na cabeça, esse martelar constante, esse gigante de pedra correndo atrás


above-wireless: enrolados na teia, completamente. foi teu dedo que cruzou minha costela, eu acho. e tu, tá m’olhando por que? eu não, é que tem remela no teu olho. tá, vira de

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lado. o que é? e se --IV. vômito

mango mango / gabrieka gaia

vomitar toda a pizza gosmenta de sexta à noite. dar descarga nessa carga sexual. viver em paz com tudo que jaz entre o jazz e o soul. soltar enfim o ar preso. o peso. o ardor.

III. nós

notas sobre a indigestão

e arrastando o que passa pelo caminho. descolonizar o caminho, desinfetar com colônia de rosas, prova do crime vadio, toda essa merda que. Vazar pelas esquinas da Voluntários. Mas então, quem seriam os voluntários da pátria, me pergunto. apática. o que seria a pátria, terra adorada, entre outras mil és tu brasil, quem? quem és tu, brasil? pau sangrando vermelho? cana sendo cortada? cabeça de gado? mergulho na água repleta de coliformes, salve ipanema? a garota envelheceu tem tanto tempo, e ainda assim aquele calçadão volúpia, curvas nefastas de pedras portuguesas por toda a área, raízes aéreas nas árvores da Lagoa, para lembrar que a dona fulana, empregada do apartamento ao lado, deveria saber nome, merda, deveria saber o nome, aquela que está sempre de uniforme branco e cabelo crespo esticado no coque rente à nuca, flamejando decência no hall do elevador, merda, dona martina, talvez dona marina, merda, qual é o nome da rosa, o nome da rosa, o nome da rosa não há não é ou não sei já não lembro só daquele dia acho que leva 2 horas para chegar em casa quando rápido, e eu que, que, como, é,, talvez não tenha sido exatamente esse dia ou talvez foi quando eu -

diria que amei. em aceno breve, amei três rios inteiros. como então explicar? amar um homem pela metade é como comer uma goiaba pelada. falta algo, como cascas e caroços que dão emoção ao ato de mastigar. falta uma suculência, um sumo que só quem deu a primeira mordida sentiu na boca. cuspo


disparate, o gosto amargo

notas sobre a indigestĂŁo

em

ainda entre os dentes. se me --corroeria-me: ainda assim, amei.

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esse número não pode receber ligaçþes. _

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gabriela gaia / ggaiameirelles@gmail.com


a mulher caiu no horizonte a mulher que caiu no horizonte

#A1. Marta, a mulher que caiu no horizonte. Não foi hoje nem ontem. Correu e caiu. Simples. Dentre todas as peças da investigação realizada em 1997 a que mais me chamou atenção foi a seguinte: Aos meus, Dentre todas as peças que a vida me pregou a que eu mais gosto é a de ser eu. 19

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Vi numa Cybershot antiga um vídeo meu com 12 anos. Eu já tinha 1,65m em Janeiro de 2007. Minha pequena barriga infantil era determinante para eu não entrar na piscina da escola e fugir das praias do Rio de Janeiro. Na realidade eu não tenho dimensão exata do meu corpo. Todas as fotos que vejo parecem não ser o que eu vivia. O real era que eu tinha uns 20 centímetros a mais do que a 2° maior menina e 70% a mais de melanina do que qualquer outra pessoa “mais morena” da série. E eu rezava todos os dias antes de dormir: #A) Com Deus me deito, com Deus me levanto,


Parte interativa :

Chorei na frente do espelho com aquele cabelo gigante encaixado no prendedor rosa prestes a estourar. Fui mas de táxi. E continuei indo de táxi.

a mulher que caiu no horizonte

com a graça de Deus e do Espírito Santo; #B) São Benedito vou me deitar e às 6 horas vou me acordar; #C) Pai Nosso; #D) Ave Maria; #E) Santo Anjo do Senhor;

#F.1) Pedidos (opcional); #F.2) Agradecimentos.

Pesquisei diversos acidentes automobilísticos com vítimas que sobreviveram. Parecia possível encontrar naqueles escombros alguém que após uma grande colisão acorda com seus pedidos contemplados, cabelos e olhos sedosos. Depois de 3 anos refazendo todo mês, tirei minhas tranças. Tinha que ir para a casa do meu avô com o cabelo que não cabia em nenhuma xuxinha. Eram exatamente 5 quarteirões se eu andasse pelo lado direito da rua.

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Saio hoje, então, de férias também, com minha malinha atrás da curva que não deixa que o mundo seja bloco e se encaixe. 20/01/1997 mango mango / marta supernova

Nessa época eu geralmente pedia para ficar mais magra, acordar com o cabelo um pouco mais liso, talvez olhos mais claros, embora gostasse dos meus. Eu sabia que Deus não me atenderia assim. Nunca conheci alguém que realmente havia sido atendido por Ele e já faziam 7 anos de escola jesuíta e de amor ao próximo.

Até entender que a xuxinha seria sempre pequena, a barriga e os ombros sempre grandes, a boca carnuda tamparia alguns dentes ao sorrir, a perna sempre longa demais e eu desencaixada. Quando entendi esse meu lugar peguei uma mala com uns bichinhos desenhados que minha falecida avó havia me dado. Segundo vivos, ela era bonita, elegante, querida e polêmica. Ela morreu quando eu tinha 5 anos e eu não acreditei muito nessa versão sobre sua ausência; ela saiu de férias pois não conseguia lidar com algumas questões e algumas pessoas.

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marta supernova / martalopesfs@gmail.com


a cada pedaço meu que se vai a mulher que caiu no horizonte

eu sinto como se não tivesse voz pra tirar de dentro o que fica preso aqui parece que dizer em voz alta transforma em realidade mas é real - sinto sair por cada um dos poros do meu corpo guardar em mim não te anula deixar só aqui faz parecer que não existe não quero admitir que voltei praquele lugar na verdade as vezes eu acho que nunca saí de lá

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mango mango / natália mansur

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tenho a impressão de que não vou dar conta como sustentar o peso do mundo se nem a minha existência eu tenho braço pra segurar

ele não teve a intenção não teve maldade ele não é ruim e continuar repetindo talvez eu tenha entendido tudo errado talvez ele não tenha tido a intenção talvez não tenha tido maldade talvez ele não seja ruim e continuar vendo


_ natália mansur / nataliamansur@icloud.com

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mango mango / marta supernova

a cabeça num lugar que não existe mais e talvez nunca tenha existido o que é buscar terra firma sem saber onde devo aportar meu barco?

a cada pedaço meu que se vai

meu espaço invadido meu não ultrapassado eu disse três vezes não quero não quero não quero ele quis


a rocha, a luz e o texto a mulher que caiu no horizonte

a rocha

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mango mango / heitor alvarenga

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Como o velho marinheiro, levo a vida devagar porque me conformei que n existirá costa que me salve do impacto com uma pedra maior e mais voraz que minha embarcação. Sim, uma montanha onde a frota dos ordinários e os especiais andam débeis, estão destinados a se chocar, não existe a possibilidade de mudança de rota, n existe salvação, só existem formas de fazer a viagem valer a pena. Porque não gastar todo o dinheiro Rocha Como o velho marinheiro, levo a vida devagar porque me conformei que n existirá costa que me salve do impacto com uma pedra maior e mais voraz que minha embarcação. Sim, uma montanha onde a frota dos ordinários e os especiais andam débeis, estão destinados a se chocar, não existe a possibilidade de mudança de rota, n existe salvação, só existem formas de fazer a viagem valer a pena. Porque não gastar todo o dinheiro em enfeites para a embarcação? Julgue como futilidade, a alegria plena deve ser atingida individualmente. Por que não, convidar novos barcos para andar lado a lado? Convidar, não obrigar, esse é um fato importante, pois o choque é sempre individual. Lado a lado, assim os dois, ou três ou mil barcos tem a plena consciência onde, como e em que direção estão seguindo. Por que não colocar novos marinheiros no mar revolto? Por mais contra-


cada mudança de brisa! Um brinde a viagem, e um brinde a Rocha. _

a rocha, a luz e o texto

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luz.

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mango mango / heitor alvarenga

ditório que isso pareça, quanto mais tempo, mais pudor, quanto mais privarmos esses futuros capitães dos primeiros acidentes, mais os prejudicamos, em sua viagem. Tanto faz se a mesma durará 90,60 ou 30 anos. Os melhores marinheiros são aqueles que conseguem entender o sentido da maré nas primeiras ondas. Tolos são aqueles que acham que existirão outros marinheiros que os ensinem como navegar. Não, não se pode conhecer tanto o mar ao ponto de ensinar a se navegar, pelo menos não esse mar, de combinações e probabilidades infinitas. Claro que existem marinheiros que optam por navegar mais rápido, e curtir os balanços mais fortes, até preferindo por isso, geralmente esses são os responsáveis pelos choques precoces. Outros preferem olhar a vista, e sugar tudo o que a maré traz, e chorar por tudo o que a maré leva, outra opção. Outros viajam bem devagar concentrando-se ao máximo em aumentar seu barco, modernizando-o a todo estante, vale a pena frisar que isso não livra da Rocha. O choque é sempre solitário, sempre. Mas não desanime, marujo! Que possamos abrir um sorriso ao ver parede da Rocha dura! Que possamos olhar para atrás sem querer viver aquelas ondas e balanços passados pelo respeito aos que estão por vir, que tenhamos a humildade e inteligência de saber que a força do oceano é muito maior que nós, mas ainda lembrar como foi gozoso

Coração ou cérebro, qual dos dois te levam a tomar uma decisão? Na minha humilde opinião, nenhum dos dois. Tenho uma ótica muito particular sobre isso, acredito que o que aponta o próximo passo são as pupilas. Aquela parte dos olhos que regula a quantidade de luz que pode penetrar em nossa visão, dilatando para que mais luz entre e contraindo para que o contrário aconteça. A premissa principal da minha teoria é: todas as ações tomadas voluntariamente por nós, tem como objetivo principal dilatar as pupilas. Somos todos viciados em luz. Por isso boates piscam neons, smartphones ficam a um palmo dos olhos, os carros mais caros são os que mais brilham , bebidas douradas reluzem e usa-se toda a sorte de drogas com o intuito de dilata-las (sim, cada um encara seu vício de uma maneira individual). Fazemos faculdade, cursos, especializações, lemos livros dificílimos só para parecermos um pouco mais inteligentes, e no final das contas somos como aqueles insetos que voam em volta da lâmpada durante o verão. _


_ heitor alvarenga / heitordealvarenga21.gmail.com 30

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mango mango / heitor alvarenga

Ufa! Achei que não iria sair. Nem me apresentei. E aí, tudo bem? Eu sou isso mesmo que você está vendo, um texto! Escapei de dentro de uma bic, enquanto o Heitor menos esperava, ele agora sai falando por aí que me escreveu, que me criou, o que realmente acontece é que eu estava voando por aí, de cabeça em cabeça, de orelha em orelha, pela lapa, e fiquei preso em uma esferográfica meia bomba largada no bolso do mais torto dentro do 238. Eu ficava mais tonto que em caneta de médico, mas enfim saí. Tive que passar na frente de uma receita de bolo, me espremer com um bilhetinho de adolescente, mas saí! É claro, meu irmão, eu lá sou homem de morrer preso? Quer dizer, texto. Mas vai com calma, vai com calma que você tá descendo esse olho muito rápido pro meu gosto, tá achando que eu sou o que? Romance de banca? Eu sou um texto de respeito, de respeito rapaz, posso estar até pregado em página em facebook, mas já estive nas melhores canetas. Isso mesmo, já estivem em canetas de presidentes, de jornalistas e muitos outros escritores, que pensam que mandam em nós, papo furado! O máximo que fazem é escolher qual de nós vai sair primeiro, mas nos criar? Nós nos criamos sozinhos. Enfim, eu acabo por aqui, porque eu sou para ser escrito em guardanapo, se esse mala que me escreve

achar algum outro perdido por aí vocês vão saber. E lembre-se: em toda caneta cabe tanto a carta que ordena o fim de uma guerra, quanto uma assinatura que valida uma pena de morte, quem escolhe qual se liberta e qual se encaneta para sempre é o escritor.

a rocha, a luz e o texto

o texto


a mulher que caiu no horizonte

sem título

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_ mango mango / joão alvares

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Francisco Onde está sua fala? Não há quem escute sua prosa. Seu café, ralo. Seu pires, lama. Enquanto o restaurante vira bar. Francisco só pensa na cama. O papo é o mesmo igual ao de ontem Assim como no dia anterior, Francisco não fala e sempre vomita termos. Sem tempo. Almoça e janta na mesma hora. Economiza uma grana no sono que vira pestana. E já que fez turno dobrado Só volta à casa de bico molhado. Francisco não tem fala. Ele só faz o vice e versa.

Proibida a passagem de pedestres, enquanto durar a construção. Então levantem os alicerces, que eles sirvam de ocasião. Aos banqueiros mais falidos. E os transeuntes mais sofridos. Pois na terra da mentira,


Sua vida também não importa. Só o quanto se gasta enquanto ela dura. Sabe aquele desenho animado? você se foi antes dele. E eu sou invisível. Você é invisível. E essa poesia nunca existiu. Morreu antes que pudesse comprar alguma coisa. Que pena.

sem título

onde um não quer, dois não fazem. Bom seria se fosse verdade. Apertos de mão são mera vaidade. Se mexeu comigo, mexeu com ele. Então mistura essa merda logo, que de caldo já tem um tanto e de sangue também. Quais são suas palavras mágicas? Só depende de quem pergunta, alguns dizem por favor, outros indagam quanto custa. A sua vida quanto custa? Cabe dentro da carteira? No bolso dessa calça? Que de dono só tem a marca? Mesmo quando se trabalha Pra fingir que tudo é seu.

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Eu sou o pássaro sem asa. Já não preciso delas pra ver lá de cima. Tudo é muito claro. Afinal, quem precisa de visão além do alcance. Nossos medos são intinerantes. Eles apenas mudam de canal. Sua história não me diz nada. Seus quinze minutos de morte Não te levaram a fama. Pra dizer a verdade.

mango mango / joão alvares

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joão alvares / jdaalvares@gmail.com


a mulher que caiu no horizonte

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mango mango / pedro pessanha

fevereiro quase março

fevereiro quase março os ataques difusos de uma caixa pautavam os passos descompassados de uns sessenta calango fortes o suficiente para ainda seguir a tolice do boi até a quarta hora da madrugada de sexta-feira de carnaval. sopros desconexos batiam tortos nos muros de pedra de santa teresa e voltavam irreconhecíveis; nada que incomodasse os sorrisos que, iluminados pelo xodó da Metileno Dioxi Metanfetamina, estalavam nas línguas e faziam a pele abrir fendas lascivas de euforia sintética. o ar entrava gostoso nos pulmões e girava gosto de quase manhã. vi ela do outro lado do bloco, atracada num malandro que nunca vi tão gordo, maquiagem borrada no canto do olho. esperei chegar o ciúme, não chegou nada além de uma vontade de rir pelo jeito que as mãos se erravam nos corpos suados. nenhum de nós esperava que funcionasse, mas tava funcionando a ideia de deixar a coisa livre durante o carnaval. comprei uma água quente por cinco reais. pela a vigésima vez que o cara do sax tentava puxar aquela música da jardineira e o que saia do seu judiado sopro era algo que parecia o hino da Iugoslávia. riscou meu flanco esquerdo uma amiga antiga trincada até a alma com uma asa de fada caída nas costas e me enfia uma dose de cachaça goela a baixo, se pendura no meu pescoço rouba um beijo e sai saltitando até uma menina dez metros na frente e repete o mesmo procedimento. uma profusão de desalmados rolava na minha


“boa noite, aloísio” “bom dia, dona Agnes” evitei olhar o espelho do elevador. ela me encarou do segundo ao sexto andar. desviou no

os calçados foram os primeiros a serem abandonados, arremessados com prazer cada qual numa direção da sala. os adereços das fantasias que ainda sobravam cairam sem grande esforços. secamos todo o filtro de barro que ela mantinha em cima de um banquinho na cozinha miúda daquele apartamento, e o resto foi da bica mesmo. boca seca, perna bamba. “vou dormir no sofá aqui, sem problema”

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“não, dorme comigo” pegou minha mão com as pontas dos dedos e abriu a porta do quarto. um colchão, uma luminária e um vasinho com uma samambaia pendurada na janela. o armário dela era o chão de taco. despencamos na cama e desmaiamos no ato. o cheiro dela encheu meu sono.

mango mango / pedro pessanha

o bloco foi afinando conforme a ladeira ia ficando mais ingrime, até que inevitavelmente a margem esquerda onde eu fluia encostou na direita que ela girava. se apoiamos ombro a ombro companheiros e trocamos um olhar de carinho cansado. não trocamos uma palavra e caímos pela escadaria da joaquim murtinho caminho pra casa dela. nessa epóca ela morava na glória. o sol subia sem pressa esgueirando pelo céu nublado e encarava a gente de frente enquanto lidavamos com a rivalidade histórica decorrente do encontro entre bebados e degraus. o caminho todo foi silencioso, enquanto a anfetamina ia se esvaziando e deixando nossas carcaças mais pesadas. o porteiro dela sempre me olhava estranho.

sétimo. teve uma certa dificuldade em acertar o buraco da fechadura.

fevereiro quase março

frente. um bloco é uma coisa que você nunca pode abstrair e olhar de fora senão fica constrangedor — uma horda de carcaças espremendo cada minuto, olhares esbugalhados e dentes saltados brilham a purpurina numa poça de chorume adocicado. como eu amo isso tudo. espero que acabe logo.

despertei com uma flecha que a fresta da cortina deixava o sol flechar. minhas pálpebras mal abriam os vermelhos ressecados dos olhos. gosto de tabaco e pinga na boca, saliva espessa. ergui um pouco o tronco e olhei pro lado. a silhueta subia e descia tranquila acompanhando os ombros e os quadris colinas. as escapulas respiravam atravessadas nas costas queimadas


_ pedro pessanha / pcpessanha@gmail.com

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mango mango / marta supernova

me encostei e dividi o parapeito com o olhar dela quase fechado de sono. já devia ser umas duas e os blocos já rugiam fazia tempo. dava pra sentir os passos de lá de cima. a cidade fervendo e fritando seus asfaltos e angustias num escarcéu de som e fúria. parecia tão inofensivo dali de cima. acompanhei um cacho do cabelo dela serpenteando do pescoço a orelha e ela se virou pra mim e sorriu. foi o ultimo carnaval de rua do rio.

fevereiro quase março

coroando os cabelos derramando no resto da cama. acho que nenhuma vez que a gente dormiu junto ela acordou antes de mim. levantei e fui até a cozinha passar um café. a menina que morava com ela ou já tinha saído ou nem tinha voltado. abri a geladeira pra ver o que dava pra improvisar. tinha um ovo e meio pacote de doritos. peguei uma xícara e ia levando pro quarto, me senti tentado pelo tabaco e a seda jogados em cima da mesa. o pulmão ainda amassado de ontem. me virei pro corredor e ela de pé, uma carinha inchada e o lençol marcado no seio esquerdo. pegou a xícara e encostou a boca num canto do meu rosto, bom dia rouco. acendeu um cigarro sem nenhuma culpa e soprou na cidade lá fora.


O cadáver ultrajado ou A morte e a morte d’um domingo

mango mango / igor valamiel

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Foi num domingo chuvoso e entristecido, já perto das seis horas, que eu vi a primeira pessoa morta, um corpo morto. Foi em 1999. Chegava do shopping com a minha mãe, brincando com algum brinquedo que veio na surpresinha do Mcdonalds, descemos do verdinho em frente à clínica psiquiátrica da rua Floresta Miranda, andamos pela rua em direção a nossa casa. Na esquina, entre a loja de doces e o açougue – entre a nossa reverberação carnivoramente animal e as bombas de açúcar que estimulam a ansiedade moderna - uma aglomeração de pessoas, um pé deitado sobressaía do círculo de cabeças curiosas. A mãe, como todas as mães, percebeu o que se passava e tentou mudar o caminho. A curiosidade, motor dos homens e professora dos desavisados, é um inseto que tresvoa por nossas cabeças, seu zanzinar enquanto zumbe provoca aquele passo adiante no abismo, o desconhecido. Vendo aquela gente num lugar tão familiar, na esquina de casa, fui enxergar o que eles viam. Uma pessoa morta, imagina, m-o-r-t-a! Sangue seco, pé inerte, boca torta, olhar entreabertamente perdido pra sempre. Naquele meu mundo só tinha sabido de uma nossa tartaruga que os ratos a roeram toda deixando só o casco, e minha bisavó, que morreu no verão de 96, mas eu nem soube e nem vi,


Nunca tinha passado pela minha cabeça o que era morrer. Como era morrer. Se podia morrer? Todos os meus estavam vivos e bem vivos, os que se tinham ido viraram histórias e pra mim eram tão familiares quanto os vivos, gostava de saber da história dos ausentes, dos avós dos meus avós, das suas terras, andanças, dores e vitórias, dos seus hábitos, das suas tristezas, mas eles eram só histórias pra mim. Até aquele homem morto me mostrar que entre as histórias do passado e o presente temos uma linha tênue, na verdade, é só questão de ir lá ver...chegar perto, abrir espaço no contrapelo das gentes, e de repente uma bala na boca de um cidadão virou história.

o cadáver ultrajado ou a morte e a morte d’um domingo

estava de férias. Aliás, foi bem assim mesmo, tirei férias com avó e quando voltei quem tirou férias de nós foi ela.

Espiritismos provocados pela mãe.

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_ igor valamiel / valamieligor@gmail.com

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mango mango / igor valamiel

Histórias. Então tudo pode sumir? Então minha mãe pode morrer? Mas então porque a gente não fica junto pra sempre, sem se desgrudar, pra fugir da morte, pra fugir do tiro. Essa tarde durou semanas, enquanto eu des-cobria a morte, enquanto o luto não era estado mas ação de uma mente nova num mundo velho, que lutava pra começar a entender o que é o fim. A morte é o fim-final ou é passagem?

A morte e a morte. Mas aí...descobri histórias também. Porque vocês não viram o homem. Não andaram no verdinho da niturvia. Não desceram a rua Floresta Miranda. Aliás, quem será que morreu? Disseram que foi tentativa de assalto. Disseram? E 17 anos depois eu lembro...lembro ou conto? Será que acabei de matar o homem ao não saber se bem sei sua história? E dá pra matar duas vezes alguém morto? E dá pra bem saber uma história enquanto se conta ou quando se conta a gente transfaz o sabor de poder saber? Porra...mataram o cara na minha esquina.


celestes a mulher que caiu no horizonte

Tirou o relógio da parede e saiu. Traça a vertigem, ergue o arco dos acontecimentos: é o ciclo lunar, presença solar na cadência da noite. A decadência da grande metrópole, ruínas em contraste com a visão que qualquer um que atravessa a cidade pode ter do céu. Mirando as constelações, o manto celeste - tantos azuis, o grande satélite orbitando quase imperceptivelmente em seu próprio ritmo. Pula o muro pro lado de fora. Perde o mapa, mas tem o sonho. Acelera o tempo, e imagina o som do giro da Lua. 47

mango mango / miriam struz

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EXTERIOR. NOITE. O lugar ficou todo encantado quando ele apareceu, o raro charme de um sujeito soturno. “Eu só queria não ser visto”, ele diz. 1/4 - A visão panorâmica das ruínas descoloria tudo. A massa marrom do amontoado, a destruição das coisas; já estavam destituídas de todos seus sentidos originais e também daqueles inventados por qualquer passante com um pouco mais de imaginação – as coisas não eram mais claras. Não inspiravam nada além de um enorme vazio, como o daquela vultuosa praça. Perceberam um ponto brilhante. Aos poucos, a silhueta cintilante dilatava-se. A menina com o cabelo azul de fogo. À medida que se aproximavam, percebiam que quanto mais intensos os movimentos, mais alta a chama


Além disso, depois de tantas noites juntos, sabiam sobre um gozo mais profundo. A vida como eles conheciam parecia mais um labirinto do que aquela linha reta, cronológica, que compartilha sensibilidades germinadas no senso comum.

celestes

se formava, coloria, se dissipava no meio da noite; Anil espesso e flamejante emaranhado sobre sua cabeça. Os membros se desgarravam do corpo, dançavam em volta dele. Era estranho, e deu vontade de se queimar naquele confuso convite. “Mas está fria”. Sinuosa, a cigana se desfez em uma grande nuvem turquesa de borboletas, tão efêmeras quanto a sensação que havia despertado nos passantes.

“Nunca vou entregar minha cabeça já cortada”.

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mango mango / miriam struz

2/4 –A grande ruína vez em quando se movia sem alegoria, sem fantasia. A náusea da imagem repetitiva, de uma história sem mais enigmas, encerrada em si. Uma bancada estendida. As pessoas descolavam voluntariamente a própria cabeça do corpo, dispondo-as em bandejas sobre aquela grande mesa, que ia a perder de vista; um grande banquete. Tentavam ouvir o que elas diziam. Tanta empáfia, gentes a mil, era melhor falar bem rápido; a possibilidade de deter-se era o tempo de se apertar um botão leve. As cabeças propagavam coisas parecidas, pareciam falando as mesmas coisas de maneira diferente. O fato mais grotesco da brincadeira era ver o corpo que serviu a cabeça se excitar quando sentia ter ganhado algum tipo de atenção explícita.

3/4 – O mundo, grande fábrica de memórias, afundava. Os olhos já estavam acostumados com a falta da luz solar. Mas as noites de lua cheia se anunciavam; enfrentar a treva: soldados da legião do inefável, guiados por aquela que alta brilha. Tentaram agarrar um livro que submergia no caldo guloso negrolama. Quando perceberam que seus pés começavam a ser igualmente tragados, desistiram. Nem decifrado, nem devorado. Mlehor encontrar as suas próprias palavras. Depois de fumar uma boa erva pensaram que o pântano do esquecimento é um interessante destino para um poeta de merda. 4/4 - Finalmente, a paisagem mudou. A copa das árvores não tinha o verde vivo que a memória ainda conseguia evocar. Na boca da noite, o vento movimentava as folhas, a memória sensação da água fria já começava a purificar o corpo. Mergulho. O líquido que nos transporta para


celesstes

a primeira sensação – esquecida - de humanidade, uterinidade, origem, a grande metamoforse que nos molda e o tempo que dura até nascer. Perderam toda a pressa. Sensação de pertencer a cada instante fugidio. À liberdade. Emergiram das águas. Os corpos leves, nus, brincavam, pulavam, sorriam, deleitando-se por aceitar a renovação. E então ele viu o violão que guardava poeira estrelar. _

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mango mango / miriam struz

miriam struz / miriamstruz@gmail.com


fagun a mulher que caiu no horizonte

ÒRÍ

Parto, Lavo a bagagem com os cauris de minha família Inundo o céu Pesando a ave E me desvio da via 53

mango mango / odaraya mello

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Há bênção em todas as línguas ÀWRÉ é boa sorte na minha. Piso em todos os territórios Anúncio a minha seguida,

anicca Meus Pais me disseram: - Todos os caminhos são longos Minhas Mães me disseram: - Você carrega muito peso. Sigo Quem me resgata? Me salva, Me guarda Ilumina a direção e se confunde com o brilho de meus idés. Agora não preciso de meus idés. Permaneço forte, Ele me alivia. Chego ao porto, se seguisse alguma dessas baleias esta


fagun

parte se partiria. As baleias da baia, vão e vêm cheias em todos os sentidos, Encurtam as distâncias no abismo do tempo entre, o agora e o ainda não sei onde… De cima da baleia na beira, pela ponta, da parte mais alta o Vento forte e os faguns d’ água dão na cara Parece longe mangue, folhas, almas, gente crente a fala da fresca que nunca tarda tudo diz: maré vaza a maré enche entre navegar e submergir

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cachapuço o mar molda a cerca de pedra movimento entre corongondé a procura da casa Que intensidade é feita a areia que sustenta tanta terra? _ odaraya mello / odarayamello@gmail.com

mango mango / odaraya mello

Afogamento ou asfixia?


a mulher que caiu no horizonte

se encantou !

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mango mango / kauã vasconcelos

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Dizem que se encantou numa manhã de sábado enquanto tomava café na padaria de esquina do Cosme, em Deodoro. Nunca mais se viu o homem. Tinha na minha cabeça de moço do norte que essas coisas não se davam por aqui no Rio de Janeiro. Se encantar é sina de ribeirinho, e os rios daqui eram mais esgoto mesmo – “rio só no nome”, me falou um compadre certa vez. Mas o caso é que o cabra tinha se encantado, me contaram. Tinha vezes de sambista e se trajava como se vivesse num Rio de outro século – mas não com nada velho, vivia mesmo “na estica”, como dizia. Passava noites e noites no Largo do Estácio tomando sua cerveja e contando causos com ar de saudoso. Lembro da noite que o conheci, tinha acabado de bater uma laje no Catumbi e cai pelos bares dali. Estávamos comendo uns torresmos e ele falava de outros carnavais – “Tá tudo por ai ainda, consegue ouvir?” -; é que Sebastião tinha uma teoria de que o tempo, desses de marcar no relógio, pouco sabia do tempo das coisas, das vidas, dos sons, dos cheiros. “Esse tempo ai é pobre, sabe pouco, só é coisa que serve pra organizar. Tu já foi em algum terreiro meu jovem? Então vá! Lá você vai entender do que estou falando”. Daquela noite pra cá sempre me encontrava com Sebastião pra ouvir sua filosofia da vida. Das coisas que crescem e tão vivas, dos outros que tão por ai que nós não vê – do respeito, de pedir licença, de


se encantou !

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mango mango / kauã vasconcelos

pedir benção. Descobri que tinha um cá de norte aqui. Vivendo longe dos apartamentos de luxo, dos shoppings center, das boates e noites cariocas – nos bares, rodas de samba e pagode, num forrozinho escondido. Uns malandros como Sebastião aqui e acolá. Era mesmo um malandro, me contavam. Já tinha dado um tanto de golpe em patrão – pendurava conta em restaurante chique, saí com o que precisava das lojas e sempre sorrindo - sabia até enredar a legislação ao seu favor! Pouco trabalhava e gastava pouco. “Sou fodido, Gil!” me disse uma vez, “mas sou feliz!” – e era mesmo. Ainda mais quando puxava um samba de Candeia dentro do Japeri, cantando as passageiras e distribuindo abraços nas dúzias de amigos. Era certamente, já em vida, uma entidade! Dizem então que, enfim, se encantou. Era curioso. Fui atrás de bar em bar – instituição dessas mais sérias pra se saber sobre Sebastião – perguntar que história era aquela. Foi o Luís que me disse que a suspeita geral era de que tinha virado um porco – “Não parava de comer o torresmo!” – e que o tinham visto ciscando pelas esquinas lá em Vicente de Carvalho. E num é que ouvi a mesma história várias vezes, ora de que “é um suíno destes grandes que fuçam lixo subúrbio a fora, cê sabe?”, ou que ele “tá nas redondezas do Juramento, gordo que só!” – “não vai deixar as esquinas, aquele Malandro! Mas me disseram que virou um porco”. E mal terminavam

seu “lero” e caiam na risada. Era uma coisa de levar a sério e fazer piada. Mas foi Judite, baiana de acarajé muito próxima de Sebastião, que me disse o mais curioso: “deve ter virado Boto na Maré!”. Eu logo me assustei. Boto? E foi daí que descobri que num é que tinha Boto aqui no Rio? Mas não dos Botos vermelhos, malinas, lá dos nossos rios não. Era daqueles acanhadinhos e cinza. O bicho tá até no brasão da cidade! Mas Judite me disse que num dava mais pra achar o bicho por ai. Tinha muito pouco nos dias de hoje – quase tudo morreu. Só ficou lá no símbolo mesmo. “Mas quando Sebastião era novo”, ela me contou, “costumava pescar lá na Maré. E lá era cheinho assim dos bichos!”. Rapaz. Essas histórias deram um nó na minha cabeça. Pensava que essas conversas eram só de povo “atrasado” – como me diziam -, e diziam que a luz, os automóveis, os edifícios, levavam é todo o atraso pra longe. “Num tem Encantado que ature essa loucura!” – me dizia minha vó. Mas vai que o tempo é que nem Sebastião me falou – cheio de riqueza que nós não sabe é nada! Do que tá atrasado ou do que tá lá na frente. Dai foi que decidi ir num terreiro lá em Nova Iguaçu na semana que vem, ver se os Orixás tem algo pra me dizer sobre essas coisas do tempo, dessa minha nova cidade e do meu amigo encantado. Apesar dos tiroteios a noite, dos choros, dos ódios resmungados e nos olhos dos outros, do medo


se encantou !

que as vezes dá na rua, desse povo sofrido que tá em todo canto e que não tem canto mesmo pra onde fugir, apesar disso tudo, acredito que essas estórias, esses causos, de que o mundo não é só isso, tão em toda parte. “Tá tudo por ai ainda” – como dizia meu amigo -, é só ouvir. E vou me indo ao som do samba dentro de um Japeri. Eu tenho pra mim mesmo que Sebastião se encantou é nisso, num Japeri! _

kauã vasconcelos / kauamonde@gmail.com

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colofรณn


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