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Agricultura regenerativa
by RUMINANTES
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ORDENAMENTO DA PAISAGEM DESENHAR O FUTURO
FOI BUCKMINSTER FULLER, UM VISIONÁRIO, PENSADOR, INVENTOR, FILÓSOFO E ARQUITETO, RECONHECIDO POR MUITOS COMO O LEONARDO DA VINCI DO SÉCULO XX, QUE DISSE QUE A MELHOR MANEIRA DE PREVER O FUTURO ERA DESENHÁ-LO. DESTA IDEIA PARTILHA NUNO MAMEDE SANTOS, FUNDADOR E DIRETOR DA TERRACRUA DESIGN, E UM APAIXONADO POR PROJETAR O ORDENAMENTO DAS PAISAGENS, QUE TIVEMOS O GOSTO DE ENTREVISTAR PARA A RUMINANTES NUMA MANHÃ QUENTE DO FINAL DE AGOSTO.
Encontrámo-nos com Nuno Mamede Santos no café da Aldeia do Monte da Estrada, uma pequena povoação no concelho de Odemira. A nossa conversa com o fundador e diretor da equipa de planificação e design de paisagem/território da Terracrua Design começou à volta duma mesa, debaixo dum guarda-sol, enquanto uma senhora mais velha, perto de nós, descascava as batatas que haviam de acompanhar as carnes deliciosas que almoçámos mais tarde.
Foi nesta zona do país que Nuno decidiu “estabilizar”, como o próprio diz, há três anos. Nascido em Lisboa e criado no Algarve, andou durante quase 20 anos por outros lugares, sempre em busca de aprender: “Motivos diferentes levaram-me a diversos sítios. Corri muitas comunidades de Espanha e França, sempre em busca de sistemas alternativos ecológicos, agrícolas, de construção, sociais e económicos. Durante este tempo, tive oportunidade de experimentar com as minhas mãos tudo aquilo que queria fazer, desde o vinho à aguardente, à carne e aos legumes, à construção natural. Tinha e tenho uma paixão grande pela construção tradicional e pela construção ecológica local - daí veio o nome Terracrua Design.”
A Terracrua Design é uma equipa de consultoria e planeamento que atua profissionalmente na prestação de serviços especializados na assessoria, planeamento, implementação e gestão de quintas e herdades de agricultura regenerativa.
Foi da paixão pela construção que lhe veio o gosto por desenhar a paisagem?
Sim. Dei conta que estávamos muitas vezes a construir casas em sítios errados. Na arquitectura existem critérios nesse sentido, mas estão limitados a uma propriedade e não à paisagem como um todo.
Como chegaram ao método que usam na Terracrua Design?
A nossa abordagem assenta num pano de fundo agro-regenerativo e inspira-se nos princípios do design de permacultura (Bill Mollison e David Holmgren), no Design em Key-line (P.A. Yeomans), Agricultura Natural (Masanobu Fukuoka), no Pastoreio Holístico (Allan Savory, Kirk Gadzia e Joel Salatin) e na agricultura biodinâmica (Rudolph Steiner).
Pode ser aplicada em espaços e paisagens produtivas, em áreas e zonas com funções puramente ecológicas ou em espaços de lazer. Para tal, o território é abordado sempre de forma holística: como um todo. E como parte de um sistema maior, dentro do qual se visa a integração equilibrada: entre economia e necessidade de retorno, produtividade, ecologia regenerativa e bem-estar social.
Qual a tipologia de projetos dos vossos clientes?
Temos projetos mais pequenos, abaixo dos 50 ha, e intensos, com mais detalhe. São mais virados para a auto-suficiência e regeneração. Depois, temos quintas e herdades maiores, de 200, 300 ha, com uma forte componente agro-pecuária. Em Angola, estamos com projectos de grande dimensão. Um deles é uma fazenda em produção de fruta e horticolas, de 10.000 ha, e outro, mais pequeno, de 100 ha, é um projeto de gestão comunitária que envolve 400 famílias.
Como interpreta a Escala da Permanência de Yeomans?
Primeiro, trata-se de perceber onde é que a paisagem pode armazenar água: em corpos de água, nos solos, com socalcos, swales, charcas, barragens. Depois, definir os acessos: de que forma nos podemos e devemos mover pela paisagem e como é que as estradas e caminhos podem ser usados para captar e conduzir a água, não fomentando a erosão. A seguir, vem a floresta permanente ou de habitat (zona 5) que nós, como utilizadores, deveríamos repor, não só pelos serviços ecológicos mas também para honrarmos os antepassados e proporcionarmos um farol às gerações que aí vêm. Por exclusão de partes, chegamos à zona 4 (a floresta de gestão, de colheita), à zona 3 (a zona de cultivos comerciais) e às zonas 2 e 1 (em volta das casas). Assim que desenhamos o zonamento, passamos às infraestruturas. No final, fica uma matriz.
De que vantagens usufrui um produtor pecuário, de média ou grande dimensão, do método que desenvolveram?
Os acessos, as infraestruturas e até a escolha de zonas produtivas numa quinta, foram muitas vezes definidas ou localizadas, em reação a um imprevisto, ou na pressa em tomada de decisão, por um ou outro motivo. Isto tem a ver com a capacidade de investimento das pessoas. Um projecto nosso é entregue em 3 "frentes": os mapas georeferenciados, os mapas de medições/estimativas de custo, e o cronograma de implementações; tudo esquematizado segundo a sequência baseada na escala da permanência.
Em Portugal não há o hábito de investir de início numa herdade, de modo que nós expomos numa linha temporal, ao proprietário, aquilo que é possível fazer, e porquê, e depois adaptamos o projeto às possibilidades financeiras. É necessário ter uma visão de longo prazo e nós tentamos dá-la, ao longo de várias fases de investimento.
O produtor pecuário é um dos que mais pode beneficiar com esta abordagem, a começar pela questão da água. Acho que é do conhecimento comum que cada vez há menos capacidade de infiltração de água nos solos em Portugal. Por isso, passamos de inundações para secas e fogos e vice-versa. Ao criarmos, mesmo apenas em 100 ha, 50 corpos de água de várias dimensões, mais ou menos passivos e com ou sem necessidade de licenciamento, conseguimos aumentar a água disponível que, ao mesmo tempo, se infiltra no aquífero a jusante, beneficiando o ecossistema. A seguir, os acessos. A má planificação dá origem a muita erosão e a custos de manutenção altíssimos. Com uma planificação cuidada, isto pode evitar-se e resolvem-se muitos problemas, ao mesmo tempo que se delimitam e acessam zonas. Depois, a planificação e implantação de vegetação permanente reduz o impacto da chuva, dos ventos e a erosão que daí advém, e ajuda a criar zonas de descontinuidade que são a génese da biodiversidade e resiliência futuras. A implantação de vegetação permanente em zonas altas acaba por criar polos de fertilidade onde normalmente não existiriam. Também proporciona sombra e forragem alternativa para os animais. O
Nuno Mamede Santos, fundador e diretor da Terracrua Design.
facto de as vedações estarem em contorno, ou em keyline, também influencia a acumulação de detritos e a criação de solo pelo efeito do calcamento dos animais. Em relação ao pastoreio holistico, esquematizamos as zonas de pastagem, e criamos as condições para se poder efectivamente, fazer uma boa rotação nas parcelas em keyline. A calendarização e todo o espectro da gestão holistica, não concebemos.
Como é o processo desde que alguém vos contrata até assinarem contrato?
Existe um um formulário no site da Terracrua Design que já filtra muito bem os contactos. Desde logo, pedimos um mapa do local, as coordenadas e uma ideia do que é pretendido. Se a ideia original for muito concentrada apenas num segmento ou atividade, e limitada, tentamos mostrar outros caminhos mais abrangentes mas sempre respeitando as ideias do cliente. Tentamos trazer a perspetiva económica a quem pensa só em restauro ecológico e vice-versa. Começamos até a ser vistos na comunidade da Permacultura como “os gajos que pensam demasiado em dinheiro (risos)”.
Numa visita técnica feita posteriormente, em que conhecemos o cliente, percebemos a flexibilidade para modelar o terreno e gerir o orçamento, na medida em que os projetos normalmente são a 20 anos. O projeto tem 3 fases: - fase 1: o desenho padrão, em que o terreno nos indica o caminho a seguir, pede-nos coisas - onde é definida a água, os acessos e a vegetação permanente. Trabalhamos com dados em cloud e tablet GPS com georreferenciação e um erro máximo de 1 a 2 cm, ou em telemóvel com 2 ou 3 m de erro. Isto permite ao cliente andar pelos terrenos e visualizar o desenho futuro com SIG e possibilita a obtenção de volumes, perímetros, alturas, etc.; - fase 2: após a aprovação e familiarização do cliente com o desenho, entramos no fluxo da água - como fazer a água circular o mais lentamente possível, de modo a infiltrar-se melhor. Aqui vamos mais ao detalhe e atualizamos em tempo real, em cloud; - fase 3: já com acesso dado ao cliente a tudo o que já foi citado, e as infraestruturas, passamos às estimativas de orçamentação de trabalhos e ao cronograma, nunca a menos de 3 anos e idealmente a 5. No final do projeto, conforme a vontade do cliente, podemos, ou não, fazer uma coordenação de implementações.
No final de cada fase, é feita uma visita. O mapeamento inicial é subcontratado.
Como vê as planificações em grandes escalas, usando o conceito de Baldios ou Commons (usando o termo britânico)?
Acho importante haver uma visão integral para o território. Se há uma urgência tão grande em, por exemplo, reflorestar, temos de saber onde e como o queremos fazer. Especialmente quando há grandes organizações, instituições e fundações a investir fortemente, sem planos de impacto duradouro para as próximas gerações. Isto evitaria as ações eminentemente reativas, tipo plantações de fim-de-semana ou após incêndios de efeito de inspiração da massa civil. Pedrógão é um bom exemplo: em vez de se ter feito um plano regional e ordenar de vez as plantações para celulose, até para lhes tirar continuidade, investiu-se em outdoors e em plantações desordenadas, inclusivamente em mais eucaliptos. Muitas vezes, existe falha na parte de planificação, outras na de implementação.
Isto faz-me pensar no conceito dos commons, que nós perdemos quase por completo, tendo-se mantido de forma ténue nos baldios no norte. Ainda assim, temos uma história de destruição mais ou menos acelerada da floresta, desde os tempos da Reconquista. Foi sempre a tirar camadas à floresta, por razões diversas, até ficarmos com o que temos agora, que é pouco. A reposição planificada vai ajudar a fixar a biodiversidade e a melhorar o ciclo da água no solo. Não são precisos milagres. Milagre é ainda haver água a correr nas fontes no Alentejo — é fascinante, especialmente quando não há floresta nos pontos altos. Eu escolhi esta zona para viver porque tem muito nevoeiro — aliás temos um projecto de fog-catching na calha. A precipitação real pode ir até 3 vezes mais do normalmente considerado. Se, por exemplo, nos pusermos por baixo de um sobreiro - que hoje em dia é uma árvore muito fragilizada pelas más técnicas agrícolas - em muitas manhãs de agosto, verificamos que está cheio de água, pinga até ao meio-dia devido à condensação do nevoeiro noturno.
Se tivermos floresta estruturada ao longo de uma cumeada, há captação de água em cota e recarregamento de aquíferos. Pode parecer impossível, mas isso apenas acontece porque, desde há muito, não sabemos qual é o potencial máximo do ecossistema. O montado que temos hoje, em que predominam 2 espécies de árvores com espaçamentos muito largos, não existe há assim tanto tempo, apenas há umas poucas centenas de anos. Quando combinado com uma cultura cerealífera intensiva e uma pecuária mal gerida, torna-se muito pouco resiliente a nível hidrológico. Pergunto-me se o montado mais comum é uma espécie de resultado
da purga que se fez à floresta. É necessário considerá-lo com um sistema silvopastoril multi-espécies com atenção ao renovo a acontecer por baixo. Felizmente, temos alguns casos de proprietários já despertos para este facto. Devido à desflorestação desregulada para fins agrícolas ou urbanos, houve uma linha de quase não-retorno que foi ultrapassada. É necessário pôr um travão e retroceder. O país devia ser quase todo redesenhado.
Refere-se também às zonas urbanas?
Sim, no passado, as cidades nunca foram edificadas nos deltas, ali apenas existiam fortificações. Lisboa seria em Santarém e Portimão em Silves. Demos cabo dos sistemas ripícolas na sua zona mais a jusante e agora é complicado voltar atrás. Contudo, nada disto é irreversível. Talvez, apenas, se destruirmos a atmosfera. A Natureza tem uma capacidade notável de se adaptar e os humanos também. O importante é pôr em causa o que parece irrefutável: a água, os acessos e o zonamento.
Fale-nos do projeto que estão a desenvolver da Bacia do Mira e do Sado.
É um projeto que fazemos por paixão, que tem um aspecto de planificação de visão para o território. Escolhemos estas duas bacias porque se tocam, mas também porque queremos trabalhar em ideias com um alcance significativo. É um projeto baseado no sistema SIG com uso de associações de algoritmos - com automatização dos sistemas de informação geográfica e, no fundo, usando a questão dos commons, da floresta e do enquadramento do gado. Partindo da estratégia.
De momento estamos a subdividir as grandes bacias do Mira e do Sado. Quando temos trabalhos para clientes dentro de uma sub-bacia, trabalhamos o enquadramento da mesma por inteiro, antes de fazer o projeto: a localização dos acessos, corpos de água, etc. e a interação desta herdade com o resto do território. É uma planificação territorial mais holística e com visão de longo prazo. Por exemplo, a herdade em causa vai ter floresta e essa floresta vai ser parte de um corredor florestal que envolve toda a sub-bacia que, por sua vez, envolve a bacia e por aí em diante.
Também queremos trazer para a mesa a planificação das aldeias e povoações, trazendo todas a áreas já focadas e também a da soberania alimentar. Estes projetos, para já, têm como intenção servir de piloto para poder escalar e criar modelos para outras zonas da Península Ibérica, trabalhando com colegas da mesma área. Isto pouparia anos de tentativa e erro às pessoas. Através da automatização do SIG, podemos definir os zonamentos, a água, os acessos, as estruturas, etc. Em muitos países, as entidades de gestão territorial já usam o SIG para algumas automatizações, mas as variáveis deles são outras que não são tão valiosas para uma planificação hidrológica e florestal resiliente, a longo prazo. Por exemplo, não existe um reconhecimento real das bacias hidrográficas e da repercussão que deveriam ter na organização territorial, política, financeira e económica. Com o SIG conseguimos também criar volumes de negócios potenciais de determinadas zonas. Já desenhámos aldeias em conjunto com a população - por exemplo Ferraria de São João, em Penela. O que falta é, depois, enquadrá-las dentro da região.
Tentamos prever, aqui nesta zona, de onde pode vir o dinheiro para investir na floresta, por exemplo. Pode vir do carbono.
O que pensa do mercado dos certificados de carbono?
Tem tudo o que é preciso para se tornar em mais uma artimanha ao serviço dos interesses corporativos globais. Mas recuso-me a ser contra somente. Não se muda o mundo só por não se fazer o que parece mau, ou pior; muda-se o mundo a fazer o que acreditamos ser melhor. Estamos a trabalhar com uma empresa que tem uma perspetiva diferente do habitual, ao considerar uma quinta como um projeto heterogéneo, com diferentes graus de potencial sequestro de carbono, em vez da mais comum que é focar-se em monoculturas de árvores para tornar a prova do sequestro de CO2 mais fácil. Os clientes que investirem neste crédito vão poder depois visitar, presencialmente ou online, os projetos e ver os resultados de forma muito mais satisfatória. Com o SIG, podemos depois calcular, de forma rápida, se um cliente tem uma zona disponível para florestar e se é numa área de interesse ecológico, como uma cumeada. Podemos instalar um programa de pastoreio dirigido, com recuperação/ instalação florestal, encontrando forma de financiar tudo. Concordo com o Allan Savory, quando ele diz que o impacto animal é essencial nestes ambientes mais secos, para evitar a decomposição química - oxidação - da matéria vegetal, incorporando-a no solo, fertilizando com o estrume e quebrando a crosta superficial.
Plantar árvores em escala, em solos degradados, no nosso clima e com a contextualização sócio-económica do nosso país, seja ou não com técnicas avançadas de agroflorestação, não será o modelo a seguir…
Ninguém inventou nada. Há uma tendência de registar patentes, criar modelos e práticas e logo se segue o desejo de procurar a fama com ou sem resultados concretos. É preciso humildade para dizer: "Isto é experimental, vamos estudar os resultados e adaptar o modelo a seguir a partir daí". São as estratégias que importam, e não as técnicas, se não arriscamos seguir um modelo reducionista e dogmático como o que nos trouxe até aqui. Devemos começar com ética, depois partir para princípios seguidos por estratégias e só depois técnicas. Há confusão, por esse mundo fora, com esses conceitos. Ninguém deve ser penalizado por usar uma palavra mal uma vez, mas várias não é aceitável.
O sucesso de uma plantação em espaço público (como as frequentemente feitas em resposta aos incêndios) tem um efeito muito positivo na moral das pessoas que participaram, mas também nas que por lá passam e vão ano após ano, vê-la crescer.
O fracasso tem o oposto impacto: "desempodera" e desanima, e só reforça a velha máxima Portuguesa do "Isto aqui não dá".
Parece-me mais importante plantarmos qualidade em vez de quantidade.
Há que olhar bem para Portugal e entender as bioregiões (delimitação baseada na geografia das bacias hidrográficas), e de que forma cada uma deve ter a sua estrutura natural de florestas e parques naturais, as suas zonas de floresta gerida, as suas reservas de água e de sementes. Numa visão assim, há muito espaço para plantarmos florestas, e isso poderia trazer um sério crescimento económico ao nosso país.
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