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Iemanjá, festa da resistência
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Jean Duvignaud (1983) relata que os caminhões dos umbandistas vinham de muito longe e traziam grupos de pessoas de vários lugares da costa e do interior do Ceará para a Festa de Iemanjá da Praia do Futuro, no final da década de 1960. Ele calcula que cerca de duas ou três mil pessoas praticavam a magia transmitida da África e transformada pela influência dos santos católicos. Ora, o autor está falando de uma crença que mistura influências religiosas e causa uma confusão animada e cantante em que os gestos e ritos desafiam o mundo pulsante da extraordinária Umbanda, religião genuinamente brasileira. O autor nos chama a atenção para o fato de que o mar se torna lugar de passagem, elemento comum entre o Brasil e a África, imagem de uma natureza agitada e indomável. O mar é lugar sagrado e Iemanjá tem o rosto com aparência de Virgem Maria e corpo de peixe, revelando um mundo intermediário, um fantástico entremeio onde colaboram cultura e natureza e cuja ambiguidade será a relação assustada e necessariamente confusa de uma grande festa. A Umbanda brasileira é essa grande novidade e esse encontro que torna a religião e a cultura um lugar de fascínio. Mãe Júlia, em entrevista ao professor Ismael Pordeus Jr., em 1979, revela:
Foi nesse tempo, depois que saiu o registro do Diário Oficial, parou a perseguição, não havia mais fantasma no jornal, aí pronto, eu não sosseguei mais. Fazia festa de São Jorge (Caboclos) e fazia festa de Iemanjá. A Praia do Futuro não era a Praia do Futuro (no sentido ‘urbanizada’) era toda esburacada. Eu cansei de ir com essas meninas me atolando naquele areal. Mas hoje a Praia do Futuro é outra, tanto que dizem que vão botar uma estátua muito grande de Iemanjá, no dia 15 de agosto. Eu já tenho dito aqui que não ia mais fazer essa festa, como eu faço todos os anos, os filiados, vai tudo pra praia. Não vou mais por causa da anarquia de muitas pessoas que vão tomar banho e não respeita.
(PORDEUS Jr., 2002, p. 93)
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Foto de Luiz Alves
Mãe Júlia Barbosa Condante, mulher negra, portuguesa e filha de mulher escravizada, trouxe a tradição da Festa de Iemanjá do Rio de Janeiro onde, dia 15 de agosto, havia celebrações para a Rainha do Mar, no mesmo dia da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Glória. As festas públicas, em homenagem aos orixás, sempre são feitas nos mesmos dias dos santos católicos. Seljan (1973) confirma que, no Rio, Iemanjá e Nossa Senhora da Glória recebiam homenagens no mesmo dia, 15 de agosto. Louvar a santa e louvar o orixá não era problema para os umbandistas cariocas, que se aprontavam com longas batas, saias de muitas anáguas, turbantes, panos da costa. Tudo muito alvo, muito engomado, de uma brancura de doer a vista, para as solenidades religiosas daquele dia.
Zora A. O. Seljan (1973) revela, também, que os cultos a Iemanjá, no Rio de Janeiro, nem sempre foram realizados de forma pública. Apenas a partir de 1952 a festa começou a ser feita publicamente. Isso significa que, antes disso, as celebrações para Iemanjá sofriam perseguições da polícia e só podiam ser realizadas em lugares ermos. As barcas enchiamse de grande número de centros e pessoas que levavam flores brancas e presentes para serem atirados durante a travessia e ofertados a Iemanjá. Os presentes são uma forma de agradecimento a Iemanjá pelas graças alcançadas. É preciso lembrar que os cultos de origem africana e indígena foram, por muito tempo, considerados “coisa de demônio”. Pai Raimundinho Dente de Ouro tem suas lembranças mais antigas da perseguição que sofria. Pai Neto lembra que, até 1965, a palavra Umbanda não era usada por conta das perseguições que o povo de santo sofria. Usava-se ainda o nome de Espiritismo. Assim como no Rio de Janeiro, em Fortaleza as festas públicas de Iemanjá só puderam acontecer muito depois da abolição da escravidão africana, pois a perseguição aos cultos fora da religião dominante, o cristianismo católico, continuou fortemente com o aparato do Estado. Antes, eram realizadas em lugares escondidos e de difícil acesso, dificultando, inclusive, a pesquisa sobre o tema, como indica Silva (2005).
Mãe Júlia Condante foi ao Rio de Janeiro e voltou, como conta sua filha de santo, Mãe Stela.
Aí, quando foi um dia, a Mãe Júlia disse que queria ir ao Rio de Janeiro. “Minha filha você vai com quem?” “Vou só.” Aí ficou, foi uma luta, foi uma luta, mas ela queria ir. Porque uma pessoa, um senhor, ela disse que não sabe quem foi, que lembrava bem as feições dele: bem velhinho, branquinho, cheio de sarna. Aí disse pra ela: “Você vai nessa rua tal, aqui no Rio de Janeiro, e fala com esta pessoa aqui, que ela vai dar um jeito na tua vida.” Aí a mãe Júlia nova, a vozinha não queria deixar ela ir só pro Rio de Janeiro, sem conhecer nada, sem ‘corra’ nenhuma. Ela fugiu. Fugiu foi sozinha. E foi bater lá onde esse senhor disse que ela fosse lá, que dava um jeito na vida dela. Ela chegou lá na casa da Vó Laura, no Rio de Janeiro. Que era uma mãe de santo que tinha lá. Aí ela tinha uns desmaios. Ela desmaiava em qualquer canto, mas não sabia o que era. Quando chegou lá, aí a vó Laura foi e disse a ela: “Minha filha, isso aí é uma mediunidade, você é de caboclo, você tem que...” Aí ela: “Como é que eu vou fazer isso?” Aí ela foi e disse assim: “Você veio com quem?” Aí ela foi, contou tudo para vó Laura, como tinha chegado lá. Através de um sonho q ue ela tinha sonhado e queria realizar aquele sonho. Aí ela foi e disse: “Então para. Aqui, daqui você não vai mais pra frente. Aqui você fica.” Aí ela volta, conversa com a vozinha e fala as coisas e diz que vai voltar, que tem que fazer isso, tem que fazer o que a mãe de santo lá tinha dito. Ela aceitou. Ela voltou para o Rio de Janeiro e ela vinha de três em três meses ela vinha. Mas até que ela desenvolveu a mediunidade dela e... Aí ela ficou indo e voltando. Quando foi uma vez, aí ela disse: “Eu vou embora e não volto mais não. Que minha mãe tá muito velha, muito doente e é só nós duas, nós não temos ninguém.” Ela foi e disse: “Tá certo, mas sempre me dê notícias. Agora você vai ter que fazer as suas obrigações e vai ter que arrumar uma pessoa que confie, que queira entender, que queira conversar com você para você estender a Umbanda no Ceará”.
(Mãe Stela, 2016)
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Ser de caboclo significa que Mãe Júlia era de Umbanda, afinal os caboclos se incorporam nessa religião. Mãe Júlia se desenvolveu, isto é, organizou sua espiritualidade, na Umbanda carioca, e trouxe para a Fortaleza não só a possibilidade de registrar os terreiros de Umbanda na Federação que fundou, mas também a realização daquela que seria a maior festa pública da cidade: a Festa de Iemanjá. Segundo Mãe Júlia, em entrevista em 1978:
Quando, dia 15 de agosto, ia com meus médiuns, ia cantar, aí levava flores, perfumes, champanhe para ela e tal, fazia aquela mesinha e botava tudo aqui, viu, pra ela, pros meninos. Agora quando eu comecei a fazer as festas levando Iemanjá, era tanta gente, tanta gente, ia até freira pra ver como era, como não era, viu? Eu levava a turma toda, os meninos, esse povo curioso, né? E eu, tudo bem, e de forma que aí foi chegando o tempo, o pessoal vendo e tal e teve uma ocasião que eu acabei de falar pela TV, o bispo entrou também falando... Ora, se parecia que tava... Nossa Senhora da Glória, que é a padroeira daqui, né? Pra nós, é da Nossa Senhora da Glória e é a Nossa Senhora da Assunção, parece que tava esquecida, não falar de procissão nem nada e eu fazia a minha, né? E a gente, quando esse pessoal viram isso, aí danou-se. A Praia do Futuro hoje tá outra, mas quem fez a Praia do Futuro foi Iemanjá.
(PORDEUS Jr., 2002, p. 113)
74 A importância de se perceber que Iemanjá se aproxima de Nossa Senhora de forma intensa, não só em Fortaleza, mas em todo Brasil. No livro “Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá”, percebeu-se que, em entrevistas realizadas com aproximadamente cinquenta pessoas, 50% identificam Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes como uma só:
“Iemanjá ou Nossa Senhora dos Navegantes é a mesma coisa”; “É tudo igual”; “Eu considero todas elas iguais”; “Ela (a Imagem da Santa) representa as duas, mas pra para mim ela é um só”; “Ela (a Imagem da Santa) é uma só. Para mim, elas são iguais, as duas”; “Eu gosto das duas: para mim é a mesma santa”; “Eu, é das duas”; “Elas são iguais”; “As duas santas são a mesma”; “As duas santas são a mesma; só a diferença é as religiões”; “É a mesma Nossa Senhora”; “Para mim, as duas são a mesma coisa: as duas são santas, as duas são milagrosas”; “A santa é a mesma, a diferença é só a religião”; “As duas são Rainha do Mar, né?”; “Não consigo muito separar Nossa Senhora da Iemanjá”; “Eu acho que não tem diferença nenhuma, o que difere é a religião: uma é católica, a outra é umbanda”. (ORO, 2009, p. 51)
30% dos entrevistados disseram que não reconheciam Iemanjá; os outros 20% afirmaram que Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes não eram as mesmas entidades. A pesquisa é reveladora, pois identifica ambas as entidades “rainhas” e “donas do mar”. A santa é Nossa Senhora dos Navegantes, mas também é Iemanjá. Ambas compartilham os mesmos símbolos e cores. Mãe Stela nos confirma:
Iemanjá, para mim, é Nossa Senhora das Candeias, eu acho, no meu pensamento. Que é uma santa milagrosa, que em outras partes por aí ela é Nossa Senhora das Candeias, explicação da minha mãe de santo, se eu estiver errada é porque ela me ensinou errado, mas que eu acho que tá certo. Ela foi uma santa de passar mão por cima de todos, de escutar as pessoas, só em você pedir e ela escutar e a pessoa alcançar, não precisava ver ela, nem pegar na mão dela. Porque tem muita história dela, de Iemanjá, e essas pessoas do mar.
(Entrevista de Mãe Stela, 2016)
A Umbanda é uma religião que permite encontros e diálogos entre crenças. E, na Festa de Iemanjá de Fortaleza, encontramos pessoas que também têm devoção por Nossa Senhora da Assunção, padroeira da cidade. É comum, nos terreiros de Umbanda de Fortaleza, a presença de imagens de santos católicos e a invocação de seus cultos, como Santa Bárbara, São Jorge e São Sebastião. Nossa Senhora é presença constante nos altares umbandistas. Ela não concorre com Iemanjá, pelo contrário, as santas se complementam. Mãe Mona de Oiá, em entrevista à professora Zelma Madeira (2009, p. 103), explica:
Iemanjá, orixá feminino muito divulgado no Brasil por meio de comemorações anuais em várias cidades, sempre movimenta o grande número de pessoas adeptas das religiões afro-brasileiras e os simpatizantes. Há também uma analogia entre Iemanjá e Nossa Senhora da religião católica, pois ela é identificada com Maria, mãe de Jesus. Representa a Grande Mãe, deusa das águas, Rainha do Mar. Veja a forma como a mãe de santo define essa mãe. “Iemanjá, como mãe, pra mim, é tudo. A mãe de todas as cabeças, minha filha. Ela é a Grande Mãe, ela é o seio que todos mamam. Ela quem toma conta de nossas cabeças, apesar de termos os nossos orixás. Mas ela é a mãe que toma conta, até mesmo porque é a mãe de todos”.
(CANTUÁRIO, 2009, p. 103)
Foto de Thiago Matine
A importância da Festa de Iemanjá é expressa na tese de doutoramento da Prof.ª Dr.ª Maria Zelma de Araújo Madeira Cantuário (2009), em que ela mostra o Orixá como o princípio gerador receptivo, matriz dos poderes da água. É a padroeira da fecundidade, protetora e nutridora, que sustenta, acalenta e mitiga o sofrimento dos seus filhos. Torna comum o ato de entregar no mar as oferendas, renovar a legitimidade da religião pelo ritual, partilhando a música, a dança, as indumentárias, nos tons claros do branco e do azul.
Assisti, a cada ano, desde 2004, a Festa de Iemanjá, como evento público com o significado sagrado de uma experiência religiosa. Trata-se de uma festa celebrada não no terreiro, mas na praia, onde ganha a grande audiência. Tornou-se parte da cultura do povo de Fortaleza e de outros municípios, que saem em caravana de ônibus para a Praia do Futuro.
(CANTUÁRIO, 2009, p. 104)
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Em outro trabalho acadêmico, Pereira (2012), em sua dissertação de Mestrado, recorre às suas próprias memórias para escrever sobre a Festa de Iemanjá.
Comecei então a tentar remontar os quebra-cabeças da minha infância, a respeito do que se ouvia falar na década de 1980 e do que lembrava com mais intensidade. Recordei-me claramente de um final de tarde em que fui levado pelos meus pais para a festa de Iemanjá, que acontece no dia 15 de agosto na Praia do Futuro. Relembro de um grande movimento de pessoas. Na época, estava com oito anos de idade e o ano era 1987, fazia a segunda série do Ensino Fundamental I, e as lembranças ainda são nítidas, porque fomos depois que meus pais me buscaram na escola e já era perto do crepúsculo. O som dos tambores e o cheiro de alfazema tomavam conta do ar, lembro de rosas brancas jogadas ao mar e muitas mulheres trajando branco. Minha mãe nesse dia lavou minha cabeça com água de cheiro, mas não deixou tomar banho, disse que o dia não era feito para isso e logo fomos acender velas brancas na beira da praia para Iemanjá.
(PEREIRA, 2012, p. 23)
Aprende-se, com as memórias, que a Festa de Iemanjá se expande, foge de qualquer controle, não é um objeto fechado, estagnado. É uma festividade viva e dinâmica, é um “emaranhado de acontecimentos”, é gente que frequenta, é rito que se faz, crença que se partilha, a música cantada, o que se come, aquilo que é bebido, é a roupa que se usa e o lugar do acontecido. Para além disso, a festa é feita de memórias, sejam as daqueles que a idealizaram, dos que vão desde o início e até a daqueles que foram e hoje apenas lembram. A festa é um processo que, mesmo possuindo elementos que se perpetuam, está em renovação a cada celebração. As “contações de um vivido” experienciado nas narrativas (RICOEUR, 1994) daqueles que têm mais autoridade para contar: seus próprios frequentadores.
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Foto de Thiago Matine
A partir das experiências do povo de terreiro que frequenta a festa, dá-se conta de tal empreendimento. E é sempre bom lembrar que narrações não são lineares, é outro tipo de real, o que é bom, pois não se fia na ideia de um real que é concreto, possuidor de uma linearidade, temporalidade precisa e estagnada. Constrói-se um arquivo onde caberão não apenas fotos, reportagens e listas de objetos da festa, mas, mais que isso, será um arquivo de vivências, de lutas e de resistências. Tem-se um arquivo das relações de uma festa viva e pulsante.
A equipe de pesquisa, junto com o povo de terreiro convidado, teve uma oficina chamada “É possível biografar uma festa?”, com a Prof.ª Dr.ª Cristina Maria da Silva, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC). Sobre a formação, é impossível não mencionar a maestria da professora Cristina, sua condução às sutilezas dos conceitos, aos meandros das narrativas, das histórias, suas desconstruções epistemológicas sobre o fazer de uma biografia. Trazendo relatos, experiências e, ainda assim, abrindo constantemente o tempo para que os pais e as mães de santo também partilhassem seus saberes, fez com que o encontro fosse um momento cheio de aprendizagens e fortalecesse, particularmente, as ferramentas metodológicas que pesquisadores e pesquisadoras utilizariam nas entrevistas que aconteceriam a partir dali.
Foto de Allan Taissuke Foto de Luiz Alves Foto de Thiago Matine
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A formação também trouxe questões importantes sobre o significado das narrativas, a relação da história da festa com a história da cidade, a importância da escuta ativa, sobre o peso político na fala de algumas intervenções que reivindicavam a legitimidade da celebração da festa na Praia de Iracema, sobre como temos a constante prática de arquivar coisas (sejam fotos, cartas, lembranças…), ou mesmo sobre o caráter socio-metodológico do inventário sobre o qual nos deteremos. Cabe lembrar algo que consegue representar todo este arcabouço. Trata-se de uma fala proferida pela professora que dizia, salvo algum engano, que “uma colcha é tão boa quanto seus retalhos e, na construção da colcha, precisamos escolher com cuidado cada um dos retalhos e como ele harmoniza com as demais partes da colcha”. Pensa-se na Festa de Iemanjá e na responsabilidade de coletar as partes que comporão esse construto e que essa lição diz muito sobre a responsabilidade da equipe da pesquisa, diante da beleza do universo a ser pesquisado.
A pergunta que dá nome à oficina nos impulsiona a realizar uma pesquisa como quem tece uma rede de artesanatos de vidas entrelaçadas. A festa é, como já se disse, uma tessitura de memórias de vida e tradições em movimentos. Este trabalho é construído como se faz uma rede de pescador a muitas mãos. As mãos de quem faz participam e celebram a festa.
Arquivo/DN – 1989 Mulher representa Iemanjá na Praia do Futuro
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