ge ladera
ge la de ra
©2013 ge ladera
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ilustração da capa:
ge ladera projeto gráfico:
daniel minchoni revisão:
heitor coelho
catalogação na fonte: fundação biblioteca nacional ___________________________________________________________ ge ladera conserve-se / ge ladera – são paulo (sp) selo doburro, 2013. 62p. : il. isbn 978-85-915898-0-7 1.poesia brasileira. I. ge ladera, pseudônimo de geraldo franca de araújo. II. conserve-se ___________________________________________________________
conserve-se
primeira edição. 2013
pra mĂĄ
nĂŁo era assim estudo era andar em esteira sem contar com mapa acontecendo em cadeia um dia vocĂŞ chega orientando certezas os rumos do nosso ir a vida juntos. a vida inteira
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agradeço zezé & joão marília daniel. heitor. bruno. edu cada copo cheio. os versos em saraus. as boas vontades. os pontos de ônibus. as vergonhas dosadas. os sons passados e transferidos. as mesas em que esperei. os meses em que me esperaram. cada copo vazio.
dedico a todos que me ajudam a ser e a deixar de ser
“chame isso de qualquer coisa�
(miles davis. isle of wight festival. 1970)
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o músico e compositor itamar assumpção, nascido em tietê, dizia-se absolutamente confundido com a cidade de são paulo: “não, são paulo é outra coisa. não é amor, é identificação absoluta. sou eu.”, dizia. tanto o espírito do nego dito, referenciado explicitamente, quanto a identificação com a cidade estão presentes ao longo dos versos de ge ladera aqui reunidos. em seu conjunto, os poemas de ge ladera são capazes de formar, na imaginação do leitor, cenário e personagem. o tom de crônica ligeira perpassa muitos dos versos, ambienta as cenas sempre urbanas – “promessa de simba nesse urbano safári / nos vales asfaltados dessa cidade”. o poeta-personagem tem o olhar de alguém que circula pelas ruas; de alguém que as conhece como integrante do tecido por elas formado. tramadas a partir do filtro desse personagem-cronista, as imagens, pouco a pouco, criam a dimensão de uma são paulo agressiva, inóspita, na qual intensos contatos, embora fugidios, entrelaçam-se cotidianamente. a cumplicidade pode durar pouco tempo. instantes necessários para pessoas percorrerem uma avenida em um ônibus. a imensidão – das ruas, das distâncias, dos itinerários – fazem a cidade. fazem-na, porém, de forma parcelada: por cancelas, guetos, espaços segregados – “chovem cancelas/ acredito no infinito/ mas em poucas parcelas”. há ainda versos amorosos, que brincam com imagens urbanas numa chave
mais leve, caracterizando os personagens desta cidade – “ela é meu pagamento em dia. eu sou seu suborno/ ela é toda regata e sainha. eu sou casaco e gorro” – que não perguntam “por quê” nem querem “saber como”. a agressividade insana e desmedida − de “chão que afunda” quando as colunas são removidas – que desfaz acordos de convivência, que tranca as casas, de alguma forma se incrusta no sujeito calejado pelos tombos que leva. como no poema “olhando/ torto apenas / por precisão”, o cenário hostil manifesta-se por meio do personagem na necessidade do olhar torto, concomitantemente indispensável e exato. desconfiado e disfarçado, esse olhar – usado por quem atravessa “a rua em cores / passos pela batida”, torcendo para não ser notado e, em seguida, “torcido sem ter sido” – tem sua utilidade: passa-se despercebido. já a versão precisa, certeira e ameaçadora do olhar é também necessária e frequentemente utilizada para a sobrevivência na metrópole. a mesma agressividade é manifestada pelo personagem-narrador nos versos em que assume um tom mais impositivo, denunciando os problemas da cidade que o atormentam cotidianamente. nesse aspecto, as referências ao universo do hip-hop emergem nos poemas de ge ladera. “conserve-se// temos falta de tempo e conhecimentos de sobra/ temos o suficiente em cimento e gosto pela obra/ temos um retrovisor e espaço para manobra/ temos um desfibrilador para um coração que assopra// conserve-se”. um caráter combativo, num discurso direto e com alvo certo. a mira do olhar torto, com um discurso reto. são paulo, junho de 2013 eduardo dimitrov
todo mundo com sono com frio com fone
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como todo mundo n達o sorrio ao passar a fome
em alguns vidros pescando em alguns cacos sorrindo pesado estive por fora carregando sempre comigo mais um canto virado marcado no mesmo risco mato meses & buscas
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uma hora sei que me viro
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entre tiros e culatras removi colunas mas o teto não cai é o chão que afunda
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saio pra saber daquela vez da nossa areia buraco a gente cava junto enche d’ågua e aà festeja
no meio da rua penso em avenidas e coço meu ouvido calibro: meus instintos minha próxima caída essa cabeça que não pega e minhas pernas desativadas
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uma política do “quem diria” mal proposta uma curva sem freio no final da reta oposta
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observando minha volta numa ducha de 谩gua fria pouco importa panos quentes por conta do enj么o que sentia
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foi tudo despistado descrito e revisado direto da calmaria discreta que encurtava as idéias depois de um expresso com uma só diversão: aquela em que aperto um do cão que o diabo amaldiçoou saudosa maloca. eu com samba makossa num profile low escapo em sampa midnight assessorado eu sei que vou com mais alguns chegados comemorar nem sei o quê não lembro o que fazia. não me acostumei com o que sentia se tinha um endereço não saberia dizer sabedoria eu sei pelo menos que nunca vou ter exceto quando esperto for aquele que flutua discreto sem sinto muito sem sintaxe ou cinto de utilidades. certo?
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oito e meia da manhã segunda lata. metade do primeiro cigarro. contras e baixos você longe de um jeito que nem imagino conduções. vamos resistindo (existindo)
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olhando torto apenas por precis達o
ouço um estrondo (já não me surpreendo) sementes alinham-se sem propósito vacas magras disparam ao notar a fumaça fatos lamentam o curso da travessia excesso de messias sem licença para pregação matutina tina sem gelo. desespero. viver em testemunhos alheios
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despenco a qualquer momento do meio fio da calçada da fonte que nem sequer existiu
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no vestĂgio da tela atirada pela janela o impulso sadio
continuam irregulares à prova de cáries os doces roubados de crianças em portas de bares promessa de simba nesse urbano safári nos vales asfaltados dessa cidade
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não importa a falta de sutileza. a mesa continua posta e paraíso-eldorado ainda é um itinerário paulistano
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trocando viadutos por sentimentos de culpa infelizmente daqui para frente as chances continuam como antes: suas
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ciĂşme retroativo nĂŁo pague multa deposite em juĂzo
conserve-se não em um estacionamento vinte e quatro horas gratuito essa conversa não serve. conserve-se não com a fé de quem sabe até onde na água da pé e se mudar a maré? conserve-se temos falta de tempo e conhecimentos de sobra temos o suficiente em cimento e gosto pela obra temos um retrovisor e espaço para manobra temos um desfibrilador para um coração que assopra conserve-se tomem goles. tomem sustos. tomem nota tomem gosto pela cena. tomem com a cara na porta hoje em dia é comprometimento e andar pela corda com tantos bambas para quantas rodas enquanto santas são pelas corjas familiares é o cotidiano conserve-se
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digamos que a hérnia nesse disco riscado seja devido a desvios posturais que a falta de atitude acarreta então para tantas retas queremos curvas para respostas certas queremos dúvidas temos obstetras para partos sem luva não bastam pernas abertas. nós as queremos úmidas
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chovem cancelas acredito no infinito mas em poucas parcelas
quem sabe na vida ainda um dia deságua tudo. desarma tudo. destrava tudo ainda um dia respira um pouco. refaz o acordo. reparte o bolo ainda um dia não passa raiva. não corta asas. não tranca casas
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quem sabe na vida ainda um dia deságua tudo e não vive a pena de saber sozinho
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por mais esterco continua pulando cerca at茅 que consiga fertilizar a pr贸pria lama
natural desaguador de idéias pensamento antigo batendo com um que estréia mania velha. confia nas suas manilhas e uma dose de dreher fica alto na roda e se cala pensando nela parte luna. parte estela. parte benjor num som de fela (bate forte. atropela) não desespera improvisa se vira o bote bate mais a perna. se flutua ele envolve corre todo campo não desanima nem com nove (não é bom de rosto nem consegue guardar nome) some por ora enquanto cicatriza o corte porque ela partiu mas com prazo para que retorne
hoje fartura. amanhã na seca forte lição de economia (não é questão de sorte) acham a arma mas não comprovam o porte de assumpção nego dito ou de um baptista loki cobre apostas às vezes dá rebote por ela é serenata até à luz de poste sola miles em so what. salve deus enquanto entorte as sua vias: por onde vá e por onde volte
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fuma mono ouve estéreo papel carbono cópia zero pede outono entrega inverno tinha trono falta cetro (samba só por ela perto) um dia ele é caça. outro dia é mais esperto
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boquiaberticamente complexa vida essa que me deixa alerta
um dia ainda v達o apontar e descarregar a senten巽a:
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horas marcadas pelo resto das vidas n達o evitar達o seus desencontros
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folia cedo de tudo sabendo sĂł do que podia queimava minha passagem nĂŁo fazia conta com os nĂşmeros que tinha
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bem antes que era t達o bom t達o bom que era bem antes
ela pensa o que fazer em dobro eu acho que tô ficando doido ela é séria em seus contornos eu começo a entender o jogo a gente sofre um pouco ela chega tarde. eu passo o dia morto eu sou pedro. ela não é o lobo ela é leonore. eu sou o corvo ela ladra quando eu não mordo ela vem com drible. eu entro com jogo de corpo ela não da trégua. eu costuro um acordo eu trago prensado. ela deixa solto ela é minha vacina. eu sou seu soro eu fui indicado. ela foi eleita pelo povo eu sou seu fusca azul. ela é meu soco ela é meu banquete. eu sou seu tira-gosto eu tiro as pedradas que saem do forno ela lança os pesos que me botam torto eu registro meus tags. ela espalha seus logos ela é meu pagamento em dia. eu sou seu suborno ela é toda regata e sainha. eu sou casaco e gorro eu sou seu haikai de 3 linhas. ela é meu poema longo
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ela não pergunta por que. eu não quero saber como mas todos os dias são pra gente. é o suficiente. pronto
atravesso a rua em cores passos pela batida
daqui a pouco chego em casa torcido sem ter sido
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(tinha outra noite comigo)
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estudo de vĂŠspera para ensinar sĂł amanhĂŁ
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um bom dia seria outro desses de escapamento solto
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gosto dessa presença de balcão e fico pensando se começar a beber em copos menores talvez minha vida não rendesse tanto
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aquele nosso lance aquela cumplicidade não durou uma avenida chegou seu ponto você pediu licença e desceu pra sua vila
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mordomo mor do meu domo mas bons modos se não eu mordo e não solto todo a dispor mas não sobro sóbrio se me falta copo assopro pra cuidar do fogo sofro se me testam óbvio imóvel quando falta pouco mordomo mor do meu domo domo tigres e leões prum dia viver no circo
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ensaio lĂĄbios em meus sonhos sĂŁo estragos
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tentando viver a diferença entre observar à distância e a ânsia de estar satisfeito com lembranças de um dia feliz
não é em qualquer lugar que afundo
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nem sempre sou bosta nem sempre flutuo tenho meus barrancos tenho meus deslizes light blitz and coca entupidos não só narizes
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n達o sei mais onde me encaixo ando com medo de virar caixa
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distrações com pouco distorções pelo belo pelo povo
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num conflito correto comigo Ă s vezes consigo um teto Ă s vezes perco um abrigo
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pergunte se já é dia se o que passa você realmente vê e se aquela garota que está andando grita de raiva ou por simples adereço
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deixo de ser exatamente quem puder na hora das minhas oportunidades
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sem projeto. sem previsão. na tarefa de reformar o trajeto manutenção. recapeamento asfáltico. nada é concreto
em meio a dilemas de meias pretas (brancas) ou cinzas reconstruo criações perdidas. situações em vida até que consiga algum conforto idéias serão mais que bem-vindas
quem sou observo na frente do espelho quem fui percebo pela corrente no meu tornozelo
quais assuntos pendentes ainda me prendem? ainda me rendem? ainda vendem casas em bom estado mas é bom andar pelo teto para ver o estrago do piso ainda penso se estouro os miolos se for preciso atingir um juízo e escorrer os limites tudo esta úmido. os rótulos descolaram não há registro nas caixas pretas. aviões nunca decolaram sem ofertas recomendaram a retirada do escalpo no laudo médico não fraudo meu saldo. não saúdo meu crédito
o que aconteceu?
começo todo santo dia que passa pensando em soluções para problemas mal resolvidos a profundidade do corte em um golpe de sorte um ouvido absoluto. um luto não absorvido recolho estilhaços de vidro tentando um outro sentido novamente
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quem sou eu de novo nessa rotina? sem d贸 nem dias de sobra para perceber que as vias os jeitos que eu a via eram iguais. simetricamente iguais
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para poder partir atrás de carreiras maiores me perco na manutenção de elevadores em arranha-céus comerciais trabalho justo merece quem faz previsões de custo e mudanças de curso entre tantos andares
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o ato de pertencer o trato que era pra ser o fato de n茫o parecer d贸i
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capitaneio sonhos cobran莽as e paran贸ias um copo para tudo quem em mim precisar se ap贸ia
amor eu desço hoje desço para faltar contigo assumo logo de vez para não correr perigo de ser visto com outros olhos ser de novo confundido
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escapei daquela transa, amor, mas não de ser fudido
em seu conjunto, os poemas aqui são capazes de formar, na imaginação do leitor, cenário e personagem. o tom de crônica ligeira perpassa muitos dos versos, ambienta as cenas sempre urbanas. o poeta-personagem tem o olhar de alguém que circula pelas ruas; de alguém que as conhece como integrante do tecido por elas formado. tramadas a partir do filtro desse personagem-cronista, as imagens, pouco a pouco, criam a dimensão de uma são paulo agressiva, inóspita, na qual intensos contatos, embora fugidios, entrelaçam-se cotidianamente. o cenário hostil manifesta-se por meio do personagem na necessidade do olhar torto, concomitantemente indispensável e exato. desconfiado e disfarçado. a mira do olhar torto, com um discurso reto. são paulo, junho de 2013 eduardo dimitrov