o a mo r o s s o zine do vocacional literatura da biblioteca alceu amoroso lima ano I 2016
o a m o ro ss o zine do vocacional literatura da biblioteca alceu amoroso lima ano I 2016
anna zêpa clara zopa daniel minchoni eduardo xavier emanoel conceição fer nanda senna jorge antônio ribeiro natalie sutherland paul ivan pedro blanco ramilla souza tatiana minchoni
...quem fala que sou esquisito hermético é porque não dou sopa estou sempre elétrico nada que se aproxima nada me é estranho fulano sicrano beltrano seja pedra seja planta seja bicho seja humano quando quero saber o que ocorre à minha volta ligo a tomada abro a janela escancaro a porta experimento invento tudo nunca jamais me iludo quero crer no que vem por aí beco escuro me iludo passado presente futuro urro arre i urro viro balanço reviro na palma da mão o dado futuro presente passado tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão e na sequência de diferentes naipes quem fala de mim tem paixão experimentar o experimental. a fala da favela. o nódulo decisivo nunca deixou de ser o ânimo de plasmar uma linguagem convite para uma viagem. e agora? quer dizer, e o que que eu sou? meu nome é walli salomão, um nome árabe, walli dias salomão. nasci numa pequena cidade na caatinga baiana, do sertão baiano. filho de pai árabe e uma sertaneja baiana. a memória é uma ilha de edição. nasci sob um teto sossegado. meu sonho era um pequenino sonho meu. na ciência dos cuidados fui treinado. agora entre o meu ser e o ser alheio a linha de fronteiras se rompeu. câmara de egos. eu tenho o pé no chão porque sou de virgem, mas a cabeça gosto que “avoe”.
esse poema do wally salomão bem define o que é o vocacional e as experiências que passamos na biblioteca alceu amoroso lima no ano de 2016. organizando textos para o livreto do vocacional literatura constatamos a quantidade de produção e especialmente a qualidade dos textos produzidos pelo coletivo. fez-se, então, a necessidade de documentarmos um pouco do nosso trabalho. mais não digo. eis que se segue. EU TU LIA. da nie l minc hon i
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Spe n d i ng m y t i m e Anna Zê p a
Filosofia, ciências, poesia nacional. A sessão mais visitada daquele pedaço de livraria era a dos guias de viagem. Casais bem vestidos. Uns se segurando pelas mãos. Outros não. Mãe e filho. Pai e filhas. Alguéns. Sentada na poltrona, eu me segurava na poesia reunida de Adélia Prado enquanto o som do ambiente cantava Listen to your heart e outros sucessos de Roxette que já se soltaram da minha memória. Caí pra dentro do livro Bagagem e, numa viagem rápida por Adélia, percebi que as coisas duras buscam disfarce nas palavras. Por trás de cada junção de letras tem uma costura de aparências. Tem até o que não se sente. Na próxima vida eu quero ser livro, com o peso de carregar todos os disfarces.
I don’t have to write it pretty or in poetry
in black or white
All I need are your everyday eyes Because mine are everyday eyes too. Na t a lie Su t he rla n d
B a b y Sp a r r o w Na t a lie Su t he rla n d
“Porque você não respondeu meu email?” queria berrar, latir, cuspir na cara dele (aquele cuspe que o ator principal solta no monólogo mais impactante). Seu cabelo, agora puxado pro ruivo quente, meio quebrado no chocolate glacê, formava uma onda volumosa que encapsulava o rosto estatuesco. Tinha um pescoço magro, desenhado no Alemão, olhos que agora pingavam com o ardor de uma mulher desprezada. E o ditado diz, o inferno não tem fúria como tal criatura. O pingente de ouro (tá – poderia ser de algum latão bem brilhante)
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da Santa Rita das Causas Impossíveis balançava com a respiração. Ela nem acreditava em Deus nem nos Santos, tampouco em olhar pra cima, na imensa escuridão se perguntando o porquê de tudo aquilo – aliás, teve um ser uma vez que falou que a mania, a mania da psicologia mesmo, estava definido nos anéis de Saturno. Ridículo. O email se referia ao dia mais feliz da sua vida, em que ela viu uma andorinha baby subindo a Av. Pompéia. Tudo daria certo naquele dia por causa daquela criaturinha. Mas não deu, ele não respondeu. A superstição caiu por água abaixo. Hora de tomar o chá de laudanum, o bom e velho ópio, e esquecer tudo – como nos romances de antigamente. Hora de delirar na solidão e na escuridão, se deliciar nas toxinasAh... não há sentido nisso. Ela pensava. “Você nem sempre consegue o que você quer”, já disse o Mick Jagger, ela ponderou. “Mas se tentar, às vezes, você consegue o que precisa”
Se d uzi d a E sq u ec i d a o u L i n d a Mu lhe r Pa u l Ivan
Pobre Cordélia agora ali fotografada, Deixou-se alcançar e o perfume esvanecerá. Pobre ingênua seduziu-se pelo desejo do caçador, Pelas juras de lua resistiu seis instantes Foi possuída, foi registrada antes que [a chama queimasse Livrou o admirador de arder todo e sempre. Desprendeu o prego que o prendia, O amor oxidou sem os requintes e aromas. Era carne e durou enquanto fremia, Não era donzela nem estrela, Era brasa e tornou-se lembrança, Um estandarte na parede do colecionador. Bela Xerazade lambeu suas moléculas de mulher, Tomou lições de recato, Aprendeu feitiços de musa, Iluminou sonetos em melodias e rimas. Aprendeu volteios, firulas e negaças. Dançou, sambou e estremeceu a avenida, Forte e frágil encantou a tantos. Em seus mil braços de donzela, Renderam-se velhos e novos caçadores, E fingindo-se laçada ou presa , Colecionou colecionadores.
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Sa l, e x t ra t o d e sa u d ad e
Ta t ia na Minc hon i
A saudade do mar contava de uma seca que esturricava. Como se o puro concreto dos muros tivesse, aos poucos, sugado todo o mar que havia em mim. Resta o sal que fica da seca. Salinidade. Enorme. Montanhas de sal dadas ao vento. O aroma da saudade busca umedecer, misturar-se em líquidos. Do estático ao fluido movimento das ondas. Adentram suavemente, esgueiram em circuitos ímpares, criam fluxos rizomáticos. Inundam o peito de terra batida. Ra-cha-da. pelo sol a pino. No corpo, lágrimas saudosas escorrem Me visto de mar.
Nessa cidade Hora da Saudade rios amorfos cortam seivas secas Banham de lembranças fins da tarde vazios de vento Rochas encharcadas por milênios esperam leitos molhados Águas paradas se movem entre entranhas de peixes-jovens Quando se molham meninos grudam-se roupas nas coxas O abocanhar da noite com luas mínguas Sorriem línguas com saudade do futuro-ontem, passado-homem. Cla ra Zopa
Acida d e Fe r na nda Se nn a
Pára. Escuta. Os sons que a cidade toca ela toma de volta. Os sons, não os sonhos. Ela faz melodia de desejos come e devolve tons impossíveis.
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s a n g ue f r i o Anna Zê p a
O vento gelado dança com as árvores da grande praça. Estou a pé. É noite. Os caminhos se tornam maiores quando tudo é deserto. Tem um banco. E um homem. Sentado. Tem eu. Tem eu andando. Eu correndo.Eu nadando. Tudo vira uma grande água. Sem fim. O homem vira um bicho. Nado mais rápido. De nada adianta nadar. Não! Não! Me solta! A água é vermelha. Minha cabeça se afoga no chão. Sangue raso. É frio.
wo man Cla ra Zopa
minhas sardas e rugas minhas saias sem nesga minha brancura com olheiras você vem e me toma pelo que pareço meus tons vivos meus sons graves meus dons inexplicáveis você me retoma quando anoiteço meu doce café meu bom tempero meu extraordiário pé você me adora quando te teço estou tua, sempre que pela manhã caminho nua na nossa imaginada e exclusiva rua.
fazendo pipi no muro da rua três tinha ar nobre e era mulher. fazer o que se a mãe lhe deu pênis? o importante era que era mulher, nestas horas é preciso sentir e se sentindo sentia-se ali uma mulher. se houvesse flores na rua três, se tivesse estrelas na rua três, havia lua. só uma coisa triste aconteceu: enquanto ela chacoalhava ele apareceram eles: os zome. apesar de ser rua três não a trataram/ como dama. Pa u l Ivan
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Lim pa vi d r o Fe r na nda Se nn a
a chuva escorre gota suja no vidro geométrica mente fumê.
Tr â n s i t o p a u l i st a, b ra s ilei r o, l a t i no - am e ri can o
Edu a rdo Xa vier
- Guarda o celular. “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”. Não tenho certeza se trato disso ou sigo. Um homem negro aparenta quarenta e sete anos ou mais, talvez, tenha menos. “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”. Dia um. Possível relacionamento. Oito da noite. Estão, dentro de um carro, dois personagens, passeiam. O condutor obediente na indicação – LUZ VERMELHA – do semáforo, para o veículo. “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”. - E aí, brow, vai levar? – Fala do trabalhador – personagem vendedor de amendoim torrado. O trabalhador aproxima-se do veículo com intimidade. - E aí, beleza? – Fala do condutor. O condutor abaixa por completo o vidro lado esquerdo, lado do motorista do veículo. - Ahh! Olha só! Tá acompanhado. Vai levar? - Tá afim? – O condutor dirige a fala ao passageiro. O passageiro não pronuncia palavras. O passageiro força os lábios, os olhos, o rosto, o sorriso. Faz que não com a cabeça. - Não, hoje não. – Fala do condutor para o trabalhador. - Tá certo. Ó lá, brow, abriu! - Valeu! - Falou! Vão com Deus. - Valeu. – O veículo parte. Dia dois. Confusão. Semáforo. LUZ AMARELA. Os veículos param. O trabalhador caminha no corredor formado entre os carros. “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”.
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O trabalhador nota o passageiro do dia um. O passageiro do dia um está novamente no passageiro. Outro veículo. - Boa noite. – Fala do trabalhador diretamente para o passageiro. – Vai levar? O passageiro guarda o celular. O passageiro, novamente, sem pronunciar uma palavra faz que não com a cabeça. O trabalhador curva o torso. O trabalhador aproxima-se do veículo com a mesma intimidade do dia anterior. - E o parceirinho, vai? – Fala do trabalhador para o condutor do veículo. – Opa! Desculpa. – O condutor é outro. O condutor não é o mesmo do dia um. – Perdão. Os veículos partem. Dia três. Erro. Veículos parados no trânsito. Semáforo. Ponto de trabalho do trabalhador. “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”, “ Amendoim! ”. - Salve, parça! Condutor um. Volume médio. Sozinho. O condutor um desce o vidro do veículo, lado esquerdo, lado do motorista. O trabalhador continua a fala. - Beleza? Passou ontem por aqui o passageiro um, no passageiro. Outro carro. Outro condutor. O condutor um trava o sorriso. O condutor um abaixa o volume, tira o som. O condutor um está mudo. Semáforo. LUZ VERDE. Um, dois, três, quatro, cinco segundos, buzinas. - Abriu, parça! Abriu. – O trabalhador chama atenção do condutor um. O condutor um tem os olhos cheios d’água. Mais buzinas. O trabalhador aproxima-se do veículo. O trabalhador abre a porta do motorista. - Brow. Ei, brow. Cai pro lado. O condutor um esparrama-se para o passageiro. O trabalhador abre a mala do veículo. O trabalhador exige calma dos outros condutores. O trabalhador põe na mala um forno a carvão feito latão de tinta dezoito litros. O trabalhador assume a direção. Gratidão.
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Fo m e d e d i nh ei r o Jorg e Ant ônio Rib e ir o
Não morro. Antes de ficar rico, não morro. Era seu mantra, obsessivo. Abriu pequena empresa de transportes e cresceu. Contratava moços para dirigir os caminhões, fazia seguro alto em nome da firma. Um dos jovens dirigindo sozinho na noite, na estrada. O dono da empresa mandava gente de carro, simulavam assalto, matavam o rapaz e a firma recebia o dinheiro. Isso aconteceu várias vezes. O saldo no banco dilatou. Estou rico, até morrer já posso. Mas o dinheiro traz distração. Desatento, o dono não viu que contratou um motorista esperto, prevenido, que usava colete à prova de balas. No falso assalto, esse rapaz levou tiros, no peito e fingiu que morreu, mas gravou bem a placa do carro. No outro dia, o dono da empresa pagaria o funeral, iria ao enterro, confortaria a família, choraria. E foi. Mas deitado, com flores nos pés, chumaço de algodão nas narinas, mãos cruzadas no peito. Um tiro sem rosto tinha tirado seu apetite.
C o mo p erd er d i nhe i ro Na t a lie Su t he rla n d
“10 centavos, te dou 10 centavos se você me falar o que está pensando agora...” Falei isso depois de uns 7 minutos de silêncio no nosso café da manhã de sempre; Ele estava irritadamente na pegada nova dele de comer devagar, mais devagar que de costume, que de mim, e de qualquer pessoa normal. Ele me olhava de vez em quando enquanto eu despedaçava pedaços do meu pão francês e da minha alma e do nosso relacionamento fantasioso. “EI CARALHO” Eu penso, bem alto, jorrando fogos de artifício das minhas extremidades. Bom, falei dos 10 centavos. E ele falou do novo filme da Juliette Lewis.
Fo l h in ha Fe r na nda Se nn a
Registro de dias caleidoscópio do tempo que marca o rápido que a vida passa.
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Ampu l h et a Jorg e Ant ônio Rib e ir o
Há curvas em minhas mãos em que as palavras tombam. Há curvas em minhas mãos onde as palavras tropeçam. Há curvas em minhas palavras onde poemas engasgam E tossem rimas invertidas E vão embora escorrendo Pelas curvas, tombos, tropeços E me largam sob o céu Desabitado Cruel.
P ro du ç ã o L S D (colagem de Ao som do mar e à luz do céu profundo. de Nelson Motta) Pa u l Ivan
Ave-Maria recolhe-se em Copacabana, 1960 Ingênuo Adãozinho de dona Eva [sempre aceita a primeira lança-perfume Simon toca Calipso de Harry Belafonte [e twist de Chubby Checker no baile O bambolê ajuda dar lascívia a Come on everybody, [clap your hands... Oh! Carol, oh Eva e Noronha balançam Bafanfan na Babilônia de corpo e alma Fardas e vestidos entrelaçam amores e amizades Buscas e capturas de novos segredos Meninas e meninos sem medo e mistério (Kleber é nosso homem traído no Rio Ouve Dolores Duran Está em mar de lágrimas entre eflúvios etéreos [de cheiro de carnaval esperando o fim de festa, a volta ao lar [sob o mesmo teto) Nenhuma terra à vista Remói ódio de corno e vontade de vatapá Não adianta chicote na mão e orgulho no bolso Ninguém está em casa a fim de escaramuças [no portão Ainda é sábado de tempo quente Jogo de fogo de carnaval no fogo Toda a quaresma para perdoar Juscelino vai sair, Jânio renunciar e Jango cair.
o d e a o â nu s ou boca s u ja Cla ra Zopa
os arrogantes, pretensiosos e sabichões nasceram com o cu no lugar da boca no desfrute da vida (e) privada alimentam o conteúdo que se instala [entre as duas orelhas para então devida evacuação quando então tornam o espaço público privado ou privada desvie, cuidado!
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já reparou quanto privatizar lembra privada? já reparou o quanto de privada há em privatizar? dizem as más línguas de quem não é cidadão de bem que vão privatizar tudo aquilo que Brecht -não oderbrecht... o Brecht memo, fodão, pancada. não tem outro!então vão privatizar ate o que ele esqueceu de dizer que privatizaram como o seu café suas posições sexuais seu jeito de rezar e pra quem você reza privatizar os milagres a mistura da sua marmita... ...o arroz e feijão tudo bem, se forem privatizados senão é trafico! ah! o tráfico -principalmente- será privatizado... mais ainda já reparou quanto privatizar lembra privada? já reparou o quanto de privada há em privatizar? primeiro eles começarão com as coisas fúteis : como o seu aniversário , o horóscopo, sua doença crônica, a televisão, seus vícios o net flix, as selfies, as redes sociais -aliás, qualquer bate papo, independente do meio de comunicação ...se privatizar o meio entao... o ambiente uma vez privatizado, sempre privatizado... a privatização determina o homem ...e por falar em meio ambiente como é que anda, mariana? nada... como é que nada, mariana?
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tem tanto peixe né, mariana? ...nem tem tanta lama né, mariana? tem... mariana, você que era tão doce... foi sá privatizar acabou-se mais fácil do que roubar de criança... você que de tanto rio, munca quis ser mar foi so pri-va-ti-zar aí cê virou privada... já reparou o quanto dá merda privatizar? eles também não esquecerão de privatizar as coisas úteis : como seu aniversário, as histórias que os avós contam, os beijos de mãe nos machucados as bicicletas sem freio, as pipas das lajes, as brincadeiras de criança -os esconde esconde, por exemplo, se privatizados, serão desculpa perfeita pra polícia trabalhar... polícia e ladarão então... ...se privatizar... ... já reparou o quanto de merda há em privatizar? já reparou quanto privatizar lembra privada? já reparou o quanto de privada há em privatizar? já reparou o quanto de merda dá em privatizar ? vão privatizar os beijos vão privatizar as lágrimas vão privatizar a poesia a prosa os versos ...a lua
-mas os poetas... ... os poetas nunca! -. Pe dro B la nc o
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E xe rcí c i o d e p a rale li s m o, re to r n o, re pe ti ç ã o ( ex p l o rar o s te m po s d o s e r) Ema noe l Conc e iç ã o
eu sou o vídeo game na mão da criança a sogra que não morre, chamada Esperança sou DST em fevereiro no Rio de Janeiro sou bobo sem corte com cortes serei Tarsila, Borges Almodóvar pizza de aspargos com anchova já fui a única negra da Dinamarca o último marajoara o primeiro europeu nas Índias (o maior dos filhos da puta) já fui Colombo renegado príncipe enganado Não sou chegado a delegado, deputado não sou obrigado prefiro viado e sendo samaumeira amazônica peste bulbônica tremor da placa tectônica já fui musa, Medusa hoje sou pedra já fui poeta sem angústia cebola sem camadas alpinista com medo o silêncio do zinco quando chove granito e sendo amora silvestre filme de extraterrestre e sendo o calor do Nordeste cabra-da peste e sendo aquele que me detesta o vizinho em noite de seresta suor pingando na testa indumenta distinta e modesta besta dourada em dia de festa serei rima idiota, assunto de fofoca o bater da última porta Seria labirinto ou labirintite princípio de hepatite uretrite colite Laringotraqueobronquite seria dinamite pintura de Magritte apenas um palpite frescurite estamos quite teria sido mendigo livro lido
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violeiro vivido roludo marido só fui o morro dos ventos uivantes 3 cidades invisíveis só fui objecto quase ilha desconhecida sendo rato, sapato, relato, bola-gato, capitão-domato sendo sol, fá, lá, si, que dó sendo marcha ré a paz que tange os tiroteios a favela e o vento, devaneio a faísca e o gás vazando sem freio teria sido a última noite de amor de uma gueixa teria sido talvez, professora de Português ensinando separação silábica, bê-a-bá fui parto sem dor paleta de cor miché galanteador exposição sem curador flecha na testa do desbravador porra na boca do vereador conservador serei o último filme cliché de amor sou um poema tridimensional de uma trama desclassificada
C o rp o / c or p se Fe r na nda Se nn a
Um corpo Um corpo que menos cada vez menos E se sabe de cada passo que não será dado Um corpo que passa que detém milésimos de tempo e dilata e se expande. Que não alcança mas tenta incansável manter-se pulso, manter-se tenso. Um corpo que espera pretérito memória e canto mais ou menos vento Um corpo se.
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f o n é ti c o Ema noe l Conc e iç ã o
que alegria teus dentes nesse sorriso um amarelo simpático entre teus lábios aquece os pólos de meu antártico fecho os olhos e sinto seu sêmen telepático desejo de um eclesiástico à beira de um ataque epiléptico delírio de um promíscuo frenético na sauna seca um aroma eucalíptico que rídiculo nem existe essa palavra aqui jaz um poema estapafúrdico
tua língua já canta hora extra na vagina tuas unhas ainda se enfiam nos cabelos teu pau sonha com minha ordenha tá osso já tá pele e osso esse roçar tua pele lixa meu corpo maltrapilho tardou esse meter sem trepar tardou de acabar jogar as cinzas para debaixo dos lábios e glandes teus pelos que se entalem no desejo e assim morremos antes limpo-te poro a poro tuas sobras, salivas tua porra toda da minha puta existência Cla ra Zopa
C e rtif i ca d a Fe r na nda Se nn a
Fiz do corpo Passagem ao claustro Exigindo exclusivo espaço Em sua cama. Escolher amor É decidir-se onda Incerteza daquilo que é, vaga Do que se desmancha e refaz em espuma
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Onda que leva pedra, galho, gente, fé e volta porque quer voltar porque só, não acostuma. Como quem mastiga areia como fosse pérola Uma pérola que não chegou lá Porque se recusou a prender. Só se pode ser com propriedade De si.
O RGASM O Pa u l Ivan
Não imagino um derradeiro crepúsculo Enquanto a bexiga a gás levita no céu Quando a claridade nos abandona Estamos contornos difusos no dilúvio Somos o que restamos de essências pares Você me espalha e espelha referência de ausência Não mudamos o mundo Nem somos donos do ocaso Apenas renovamos o voo do ovo Nesse orgasmo
C á e n t r e nó s Pa u l Ivan
Meu amor tem bundinha Minha tia tem nádegas Minha mãe não tem nada Minha irmã é de escola de freiras Minha filha jura inocência Minha vizinha pediu açúcar Na libido e política reinam a hipocrisia
Ré u Jorg e Ant ônio Rib e ir o
O sexo entrou no cérebro daquele homem. Ele permitiu. Disseram que ele abusou de uma menina de doze anos. O pai e a mãe dela fizeram denúncia. Anos de cadeia. Saiu por bom comportamento. Ligou pro filho na capital. Querido, saí da prisão, tô livre. Só que não tenho trabalho nem dinheiro. Você me ajuda, filho? Pai, eu não sou seu filho e você não é meu pai. Desligou o telefone, nem deixou o pai falar direito. O homem ligou pra filha, ela mais suave vai me perdoar. Perdoo não, pai. Você estuprou todos nós.
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ce n tro c i r ú r gi c o Cla ra Zopa
se suas mãos pudessem acarinhar meus nervos por debaixo da pele por entre o músculo se mãos apertassem os átrios do coração pulsasse sangue aplacasse coágulos para grudar a veias circular o plasma se mãos amaciassem o revestimento de alma da tez da pele para unificar vísceras sobre joelhos e pernas se mãos fincassem todos os ossos tanta cartilagem faria o ombro suportar o peso do corpo todo e talvez se morresse pouco
ma n h ã Cla ra Zopa
sabe aquela camisola antiga amarela? sabe quando acordas com brilho nos olhos [e ramela? sabe o cabelo remexido? sabe o cheiro de cama amanhecida? sabe os pés no chão ensolarado? sabe um risinho sonado? sem sem sem sem
as máscaras maquiadas esconder lindas feiúras abafar desesperos d’alma acanhar as dúvidas
sem sem sem sem
meias meias verdades vestidos inteiros amor trapaceiro
meu coração tão cheio repousa quente nesse travesseiro
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AS HORAS Paul Iva n
exatamente quatro horas e dezessete minutos da madrugada quatro horas e dezessete minutos no rรกdio relรณgio tarde? cedo?
horas e dezessete minutos e dezessete minutos
sรณ restam
dezessete minutos
de vida
minutos
Paul Ivan, muito antigo
Pa u l Iva n
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O ra b o d o c ã o
Fe r na nda Se nn a
Um rabo de cão balança. Metrônomo de felicidade. Felicidade posta a prova na disputa por sobras no café da manhã. Quem come o último pedaço morre só, dizem. O cão não liga, se anima, insiste em cada migalha de pão e amor que deixem cair. O cão nasce só. E quando encontra um dono nunca mais dorme em paz. Seu sono é do outro e o único medo – abandono – mantém olhos sempre entreabertos, orelhas agudas, afeto. O cão é o desejo de entrega que o homem não permite ser. Mas libera dedos, sorriso de canto, jornal. E aceita lambidas, atenção e um rabo, que balança, e recupera o ritmo. Um cão – este cão – estranho e hirsuto espera. Paciência e fé em quem vai, mas volta e desta vez demorou demais. Procura por traços e cheiros esquecidos pelo caminho, sem pistas. O homem vestiu sapatos de sair, tomou o casaco, as chaves, partiu. E deixou o cão e o silêncio a portas fechadas. Há ainda água, comida e almofadas. E tudo habita calado o apartamento. Os jornais acumulam passado e urina. O cão demorou-se para aprender a usar o jornal. Pudera: a babel de odores que as páginas destacam ofende o olfato. Ele, animal instinto, no entanto, prefere evitar a competição por espaço e memória. Outrora todo canto era poste, todo chão era chão. Educado, sabe agora que o chão que pisa é piso, porcelanato, e que deve cagar na primeira página. O tempo passa. O cão não sabe medir, mas sente falta. E o homem que não chega. O cão aprendeu que o cheiro do homem vem buscá-lo a uma quadra e, por isso, não deve distrair-se. A qualquer momento, a qualquer momento. Banho é coisa que este cão até gosta. Sente cócegas com a água fria da mangueira na barriga. Já tomou no balde e na banheira, mas isso era quando cabia. O homem esfrega sabão gasto no lombo, nas patas e no rabo, que no banho fica entre as pernas. E o toca firme, um carinho forte e molhado e fresco. O banho só vem um sábado por mês. Vai ver, ontem foi sábado. Mas não era. Era terça-feira. O cão não sabe dos dias, mas espera. E sente que alguns dias são para banhos; outros para passeios, outros não. O cão sente que há dias não. No tapete da salinha descansa um osso deformado. A baba que o cão dedica ao osso molda o brinquedo à sua boca. O osso não se move, não lembra em nada o que veio a ser. Nada se move, além do cão e dos ponteiros do relógio velho. O cão senta no tapete e se confunde com ele, peludo. Lança um olhar superior ao osso. Eu estou vivo, me movo.
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Você, não mais. Escurece no apartamento. As janelas deixam a luz da rua e mosquitos e ar entrar. Há grades ocas nas janelas que fingem, assim como o cão, proteger a casa de todo o mal. O relicário empoeirado com a imagem de um são Jorge doloroso, já nem finge mais. Os quadros nas paredes revelam o gosto duvidoso de quem não lida bem com o vazio. De quem precisa preencher, porque dói o que não limita. O cão não sabe nada de arte ou metafísica, não se incomoda com os quadrinhos, nem com o vazio. Mas o homem sim. Parece que a comida acabou. A água ainda resta, decantada em pelos e pó, morna. Isso não importa muito. O homem não voltou. Uma vez ele fez isso: não voltou para casa. Foi para outra casa, tinha cheiro diferente quando chegou, escuro no apartamento. Voltou álcool, fumaça, saliva e secreção, que não eram só dele. O cão cheirou até guardar os odores todos. Vez ou outra relembra esses cheiros. Isso o deixa calmo – sentir que conhece tudo sobre o homem. Supor que se sabe do outro deixa tranquilo todo tipo de animal. Até o homem. Outra vez, o homem recebeu visita. Uma visita diferente, que não foi trocar encanamento ou entregar água. Era uma visita perfumada, uma mistura de rua e flor que enganava os sentidos. Do cão, e do homem também. O homem ficou animado nesse dia, mas não deixou sua melancolia azul. O cão conhece bem as cores do dono, ainda que não as veja – sente o cheiro da cor. E seu dono é azul. A visita era um pôr-do-sol cor de rosa, que perturbou o tom do apartamento por algum tempo. Até que o sol se pôs, a visita não voltou, e tudo ficou sombra azul de novo. O apartamento já é mais sombra que azul. O cão escuta pouco do que vem de fora. Em toda parte, o mundo adormeceu – misto de silêncio e morte breve. O cão, que não difere interior e exterior, permanece plácido e desperto. Ele renova forças a cada ruído perdido, se apruma. Nota o equívoco, debruça. Recomeça. O cão não sabe, mas começa a sentir que o homem não vai voltar. O cão, na verdade, já sabe disso. O rabo, baixo, não tem o que marcar. Mas está a postos para retomar seu compasso de presença. E vai ficar assim, de prontidão, olhos entreabertos e orelhas agudas, luta contra o sono, até o último dia em que conseguir ser cão. O homem não pode consigo mesmo, este é seu fardo. O cão tem a vantagem de existir para além do vazio. Um homem que já não é mais aguardado ansiosamente por um rabo. O cão não sabe, nem pensa, mas sente e espera.
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VÊ NUS E M E SCO RPI ÃO
R a milla Sou z a
Eu queria te contar que eu sou um erro. Que eu sou um acidente. Que a minha mãe não me queria. Eu queria te contar da queimadura de moto na minha perna. Eu queria te contar sobre Natal. Sobre como eu não sinto falta da minha mãe, mas sinto falta da beira-mar. Eu queria conversar horas sobre meus amores imaginários. Queria te dizer que você é um deles, que eu adoro procurar minha calcinha na sua sala, adoro quando você me come. Ainda que você nem exista. Eu queria te contar que eu nunca consegui ter fé. Que hoje, talvez, eu não queira trepar. Eu só queria te olhar de pau duro. Dizer que eu acho seu pau bonito, sua barriga bonita, seu nariz bonito. Eu acho você bonito e eu sempre quis ser bonita. Um incêndio que acontece ocasionalmente. Eu queria te contar que eu não quero envelhecer. Que eu morro de medo de envelhecer Que eu estou sempre correndo contra o tempo. Que eu sempre me senti só. Que eu não gosto da minha idade e não sei ter sorte. Que a sua pele me encanta. Que certas arvores me encantam. Que um dia eu vi um cego mascando chiclete na rua. *** Eu queria construir um prédio com você. Queria construir uma casa. Qualquer tarefa que nos mantivesse ocupados por muito tempo. Queria acreditar que o amor talvez se faça em passos. Como uma casa, como um prédio, como uma árvore. Queria te dizer que eu gosto de andar descalça na sua casa. Que meus pés se enraizaram em alguns lugares. No caminho entre o banheiro e o quarto. No chão da sala. Na sua cama. Longas raízes cresceram nos meus pés e mãos na sua cama. E eu virei uma árvore deitada e inerte que deixa folhas nos seus lençóis. Eu queria dizer que eu não quero nada com você. Que eu só queria mesmo era construir uma casa com você. Como um soldado que constrói seu próprio uniforme de ferro. Como um cachorro que cava seu próprio buraco para morrer. Como um cego que pede ajuda no trem. Como um cego que pede ajuda, eu encaixaria tijolo por tijolo. Ergueria os cômodos, rebocaria as paredes, encaixaria janelas no nosso quarto. Como um cego que pede ajuda, eu andaria nos cômodos da nossa casa. E eu ia desejar passar a mão nos teus cabelos. Chupar teu pau, teu saco, teus pelos, teus mamilos, teus olhos.
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Eu queria chupar teus olhos. Ou melhor, eu queria beijar teus olhos. Tuas pálpebras. Eu queria te desejar só enquanto você não me quisesse. E quando você viesse, eu queria escapar. Eu não sei nada sobre mim. Eu queria a sua mão na minha buceta. Eu queria te contar que eu sempre erro. Que eu me nego a abandonar os lugares. Que eu penso em você o tempo todo. Que pensar é minha falha. A estrutura frágil dos meus átomos. Eu queria te contar que eu não quero envelhecer. Que eu não quero envelhecer porque eu não quero perder. Eu me recuso a perder. Eu queria te contar do ônibus. Do cego que passa na rua debaixo da chuva. Um cego e uma bengala E eu não gritei seu nome. Eu também não sei nada sobre você. *** Eu queria te contar que eu posso atravessar o estomago com os dedos. Que a minha casa, a minha casa de verdade, está toda demolida. E eu danço em cima dos escombros. Danço para você que não existe. Danço sem sapatos. Escorrego. Danço como uma bruxa. Danço de olhos vendados. Danço com os olhos voltados para dentro. Danço e um nervo salta da minha testa. Danço e lembro dos meus pais se beijando na boca. Na violência dos seios da minha mãe. Grandes, absurdos. Os seios imensos da minha mãe. Eu danço com os cachorros da rua. Eu danço e a casa cai. Danço e não tenho nada. Danço com o coração na mão. Danço enquanto me toco. Eu não sou ninguém. Danço até desaparecer. Danço dentro do olho Na boca No dente Na cárie do dente. Quando todas as pedras rolam, eu ainda danço. Como Como Como Como
quem quem quem quem
arranca a pele. respira embaixo d’água. cai suavemente de um prédio alto. toca fogo no apartamento.
Um corpo que dança com sangue e folhas nos dedos. Um corpo-poeira. Um corpo-vapor. Ela está parada, mas os órgãos se mexem. Enquanto danço, eu tropeço e torço o pé. É inevitável. Está vindo. O rio transborda A enchente invade os escombros.
C UB Í CU L AS I NDAGAÇ Õ ES O n d e r esi d e, o q u e fi ca, o qu e re s ta? Pa u l Iva n
O cupim comeu a biblioteca de Alexandria Será que digeriu Sófocles, Ésquilo, [ Platão e companhia? Engoliu em rolos ou capítulos? O louco mutilou Apollo Será que desequilibrou a estética clássica? Antecipou Picasso ou os abstratos? A devotada velhinha atualizou Ecce Homo do Santuário deMisericórdia de Borja Será que salvou o afresco da deterioração? Foi piedoso tirar os espinhos da coroa do Cristo? O fogo consumiu a celuloide do melhor Fellini Será que o filme sumiu? A cópia pirata do camelô substitui?