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ASPECTOS HISTÓRICOS

HERESIOLOGIA I

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ASPECTOS HISTÓRICOS

As seitas e suas devidas heresias de hoje como bem disse o Dr. Van Baalen “são as contas vencidas da Igreja”. Todo instrumental teológico, para se entender a questão da heresia no seio da Igreja de ontem e de hoje, é fornecido pela história da mesma, que deixou um legado para se detectar que a confusão que reina hoje, no tocante a heresias (seitas), muitas vezes não passa de uma repetição de idéias que no passado surgiram no transcurso da igreja.

A história da teologia cristã, portanto, é a história da reflexão sobre a natureza de Deus e da revelação que Ele fez de si mesmo, na pessoa de seu filho Jesus Cristo, e sobre muitas outras crenças ligadas à salvação.

Essa preocupação com a salvação ficou evidente principalmente nas etapas formativas e reformativas do desenvolvimento da doutrina cristã. Os grandes debates sobre o que se deveria crer em relação a Deus, Jesus Cristo, ao pecado e à graça que consumiam a atenção dos primeiros pais da igreja, entre aproximadamente 330 e 500, basicamente visavam resguardar e proteger o evangelho da salvação.

Desde o apóstolo Paulo, houve a necessidade de um confronto dos cristãos com os judeus e gregos legalistas. Na cidade de Corinto, Paulo se confrontou com os gnósticos, o que representou a primeira grande crise interna que a comunidade cristã-gentia teve de enfrentar.

Nos primeiros séculos, a Igreja teve que se confrontar como montanismo, donatismo, pelagianismo, arianismo, iconoclastia e outros movimentos considerados heréticos e contrários à sã doutrina.

Foi a partir do 2º século que começaram as maiores divergências ou controvérsias em relação às doutrinas sobre Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo. O primeiro herege mencionado em Atos 8.9-25 foi Simão, o mago, que quis comprar a força

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do Espírito Santo, atitude que deu origem a simonia, 17 sempre condenada.

Após Simão aparece Marcião (ou Marción), que pretendia a reforma da Igreja judaizada. Repudiava o Antigo Testamento, constatando que o Antigo Testamento não apresentava os traços de misericórdia do Deus anunciado por Jesus Cristo, distinguiu, então o Deus benévolo e Pai de Jesus, que salva livremente e por amor, do Deus vingador e iroso do Antigo Testamento, Senhor deste mundo. No esforço de afastar e eliminar do cristianismo todos os elementos judaicos das Escrituras do Novo testamento, com o objetivo de “desjudaizar” a religião cristã, Marcião depura dos escritos neotestamentários os evangelhos de Marcos, Mateus e João. Elabora pessoalmente um cânone contextos selecionados de Lucas e da tradição paulina. De seu contato com os gnósticos, aceitou dois deuses. Marcião impôs uma moral rígida, austera, interditando o matrimônio, o vinho e o uso de carne. Desprezou também a criação, a matéria e o corpo, repudiando a ressurreição dos mortos.

Outro movimento herético surgido nos primórdios do cristianismo foi o gnosticismo, cujo objetivo foi confundir a fé dos primeiros cristãos, pois objetivava transformar o cristianismo em mistérios sincretistas, reunindo elementos filosóficos e religiosos, oriundos do Oriente, e fundido-os com o cristianismo. O nome provém da palavra grega gnosis, que significa “conhecimento” ou “sabedoria”.

Em resumo acreditavam ser a matéria, incluindo o corpo, uma prisão inerentemente limitante ou até mesmo um obstáculo maligno para a boa alma ou espírito do ser humano e que o espírito, essencialmente divino, uma “centelha de Deus”, habitava o túmulo do corpo. Para todos os gnósticos, a salvação significava alcançar um tipo especial de conhecimento que não seria geralmente conhecido pelos cristãos comuns nem sequer estaria a sua disposição. Tal gnosis ou conhecimento, implicava reconhecer a verdadeira origem celestial do espírito, sua natureza divina essencial, como uma parte do próprio ser de Deus (como afirmam hoje os adeptos da Nova Era).

O montanismo surgiu na Frígia, no século 2º, cujo líder chamava-se Montano, identificado como o “parácleto”. Seus adeptos chamavam esse movimento de

17. Tráfico de coisas sagradas ou espirituais, tais como sacramentos, dignidades, benefícios eclesiásticos, etc. Dicionário Aurélio.

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Nova Revelação e Nova Profecia e seus oponentes de Montanismo.

Montano reuniu em volta de si um grupo de seguidores em Papuza e construiu ali uma comunidade. Duas mulheres, Priscila e Maximila, uniram-se a ele e o trio passou a profetizar. A característica mais excêntrica do montanismo foi sua mensagem escatológica: o breve retorno de Cristo e a inauguração de Jerusalém celestial. Aqui fica uma advertência: sempre e onde quer que for que a profecia de um líder espiritual for elevada a uma posição igual ou superior às escrituras, lá estará o montanismo em ação.

O donatismo foi outra heresia que surgiu no seio da Igreja nascente e que provocou um verdadeiro cisma na Igreja em 312. O líder principal e o teólogo incentivador chamavam-se, ambos, Donato. Julgavam-se, assim, os donatistas, como sendo os autênticos herdeiros da verdadeira Igreja. Isso os tornava conservadores em termos litúrgicos, nomeando seus próprios bispos, incentivava o martírio voluntário como meio eficaz de apagar os pecados cometidos após o batismo. Opunham-se ao monarquismo e continuavam usando a Bíblia africana, enquanto a Igreja romana já lia a Vulgata.

Por essas razões a verdadeira Igreja era donatista, pois só ela se conservava “santa e imaculada”. Faz-te lembrar de algumas denominações da atualidade? Por exemplo, as Testemunhas de Jeová, os mórmons, os Adventistas do Sétimo Dia etc.

O pelagianismo surgiu para se contrapor ao gnosticismo maniqueísta. Seu principal expoente foi Pelágio, para quem o homem sozinho podia praticar o bem; não existia pecado original; era contra o batismo e a remissão dos pecados. Para ele o sacrifíco de Cristo não teve objetivo. No século 18, essas idéias foram tomadas pelo jansenismo.

Doutrina atribuída a Pelágio e a Celéstio, discípulo de Pelágio:

1. Adão foi criado mortal e teria morrido com pecado ou sem pecado; 2. O pecado de Adão prejudicou somente a ele, e não à estirpe humana; 3. A lei conduz ao reino tão bem quanto o Evangelho; 4. Houve homens sem pecados antes da vinda de Cristo; 5. As crianças recém-nascidas estão nas mesmas condições de Adão antes da queda; 6. Não é através da queda ou morte de Adão que morre toda a raça humana,

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nem é através da ressurreição de Cristo que ele ressurgirá.

Ainda outros pontos foram levantados contra ele, sob fiança de seu próprio nome: - que o homem, querendo-o, pode estar sem pecado; - que as crianças, mesmo morrendo sem batismo, gozam a vida eterna; - que os ricos, ainda que batizados, não terão méritos em qualquer caridade que façam, a menos que abandonem tudo o que possuem; do contrário, não entrarão no Reino de Deus.18

Celéstio foi combatido no Sínodo de Cartago, em 412 d.C., e condenado. Pelágio foi combatido na Palestina por Jerônimo, mas dois sínodos, em 415 d.C., aprovaram sua doutrina. A Igreja Africana negou seu reconhecimento às decisões da Palestina. Dois sínodos, em 416 d.C., novamente condenaram Celéstio, no que foram aprovados por Inocêncio I. Mas, morrendo o Papa Inocêncio, seu sucessor, o Papa Zósimo, deu apoio a Pelágio e Celéstio. O concílo de Cartago, porém, definitivamente condenou as idéias pelagianas. Mais uma vez conseguiram-se editos imperiais contra os hereges e, finalmente, Zósimo concordou com o ponto de vista africano. Muitos bispos,no entanto, subscreveram com reticências e dezoito foram depostos.

O arianismo perturbou o cristianismo por muitos anos e foi muito perigoso. Seu fundador foi Ário, pormenores de sua vida são desconhecidos, talvez tenha nascido na região da África do Norte onde atualmente está a Líbia.

A controvérsia surgiu na cidade de Alexandria, quando Licínio ainda governava no leste e Constantino no oeste. Tudo começou com uma série de desacordos teológicos entre Alexandre, bispo de Alexandria, e Ário, um dos presbíteros de mais prestígio e popularidade na cidade.

Ário tinha a idéia dominante que era o princípio monoteísta, ou seja, há um só Deus eterno que não é criado, não gerado, não originado. Para Ário, o λογος (logos)19 era uma espécie de energia divina que encarnara no homem Jesus, e esse λογος teve um princí-

18. BETTENSON, H. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 1998, p. 104. 19. λογος (logos) é traduzido por Verbo em João 1.1: “No Princípio era o Verbo (logos)”.

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pio, um começo, uma criação. O verbo, numa certa altura da história, foi criado por Deus, se bem que antes de toda criação. Jesus não tinha essência divina, pois o λογος encarnou no homem Jesus que é uma criatura, sendo a primeira criatura feita por Deus Pai, e portanto uma criatura não pode ter a mesma essência/substância do Criador.

Para Ário Jesus é um ser mutável e foi chamado filho de Deus devido sua glória futura, a qual foi escolhido. O Filho não tem como ser igual ao Pai, mas está acima de todas as outras criaturas inclusive o homem, por isso não é errado venerar o Filho. Ário via em Jesus um ser intermediário entre Deus e os homens, mas Deus é somente o Pai que é Uno e Indivisível. Ele abalou a época com suas idéias, porém não fora com argumentos vazios, mas fundamentou-se nas Escrituras para apoiar a sua idéia.

Assim estava formado o conflito e se tornou público quando Alexandre reunido no sínodo em Alexandria em 318 condenaram Ário e seus ensinos a respeito de Cristo como heréticos e depuseram de sua condição de presbítero. Foi ele obrigado a deixar a cidade. Inconformado buscou consolo de seu antigo amigo Eusébio de Nicomédia, que já era bispo influente. Ambos começaram a persuadir os bispos que não compareceram ao sínodo de Alexandria.

Logo houve protestos populares na cidade de Alexandria, onde o povo marchava pelas ruas cantando as máximas teológicas de Ário. Os bispos a quem havia escrito responderam que Ário estava com a razão e que Alexandre estava ensinando doutrinas falsas.

O imperador Constantino resolveu intervir enviando o bispo Ósio de Córdoba, seu conselheiro em assuntos eclesiásticos, para que tentasse reconciliar este conflito. Ósio constatou que as raízes teológicas do conflito eram profundas e que a questão não poderia ser resolvida individualmente.

Diante desse fato, o Imperador ordenou que todos os bispos cristãos comparecessem para deliberar a respeito da pessoa de Cristo e a Trindade, em uma reunião que ele presidiria em Nicéia, em 325. A grande assembléia realizou-se com a presença de 318 bispos católicos e, somente 22 eram declaradamente arianos desde o início.20 O próprio Ário não obteve licença para participar do concílio por não ser bispo. Foi representado por Eusébio de Nicomédia e Teogno de Nicéia. Alexandre de Alexandria dirigiu o

20. AGOSTINHO, Santo. A Trindade. São Paulo: Editora Paullus. 2ª ed. 1994, p. 11.

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processo jurídico contra Ário e o arianismo sendo auxiliado por seu jovem assistente Atanásio, que viria a sucedê-lo no bispado de Alexandria poucos anos depois.

Neste concílio chegou-se a seguinte fórmula, conhecida como Credo de Nicéia:

Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor, Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, sendo da mesma substância21 do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância22 com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem23, e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo.

E a todos que dizem: “Ele era quando não era”, e

“Antes de nascer, Ele não era”, ou que

“foi feito do não existente”,24 bem como aqueles que alegam ser o Filho de Deus

“de outra substância ou essência”, ou

“feito”, ou

“mutável”,25 ou

“alterável “26 a todos esses a Igreja Católica e Apostólica anatematiza.27

Com este credo, que depois foram acrescentadas diversas cláusulas – e foram tirados os anátemas do último parágrafo – se tornou a base do que hoje chamamos de Credo Niceno, o credo cristão universalmente mais aceito.

21. Ek tes oysías toy patrós – “do mais intímo ser do Pai” – unido inseparavelmente. 22. Homooysion to patrí – ser único intimamente com o Pai; embora distintos em existência, estão essencialmente unidos. 23. Enanthôpésanta – tomando sobre si tudo aquilo que faz homem ao homem, alargando sarkôthénta, “fez-se carne”; ou, talvez, “viveu como homem entre os homens”, alargando e salvaguardando o credo de Cesaréia “viveu entre os homens”, em anthrôpis politeysámenon. Mas isto parece menos provável. 24. Eks oyk óntôn –“do nada”. 25. Isto é, moralmente mutável. 26. Isto é, moralmente mutável. 27. BETTENSON, H. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 1998, p. 62.

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