Novo mundo, mt território, identidade e memória

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CENTRO UNIVERSITÁRIO SENAC BACHARELADO EM ARQUITETURA E URBANISMO

BRUNO ANTUNES

NOVO MUNDO, MT território, identidade e memória

SÃO PAULO 2017



BRUNO HENRIQUE ANTUNES

NOVO MUNDO, MT território, identidade e memória

Trabalho Final de Graduação, apresentado ao Curso de Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Senac, sob orientação do Prof. Ms. Ralf José Castanheira Flôres.

SÃO PAULO 2017


AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.




Aos meus pais e irmãos. Por toda inspiração e incentivo.


RESUMO Estre trabalho de conclusão de curso busca a documentação do processo histórico de formação de um território através dos olhos da dimensão cultural-simbólica, permitindo enxergar o imaginário urbano individual, a consciência social do espaço, a formação de identidade territorial. O trabalho foi desenvolvido no município de Novo Mundo, no Matro Grosso, e foi desenvolvido junta à atividades desenvolvidas no projeto de extensão universitário Projeto Rondon - Operação Serra do Cachimbo. PALAVRAS CHAVE: 1. Arquitetura 2. Território 3. Identidade 4. Memória 5. Patrimônio




SUMÁRIO

RESUMO 15 INTRODUÇÃO 17 1 | INQUIETAÇÕES 20 1.1 | Território e Poder 23 1.2 | Identidades e Territorialidades 25 1.3 | Mundo dos Sentidos 27 2 | NOVO MUNDO, MT 30 2.1 | Rondo em Novo Mundo 32 2.2 | De Fora e De Longe 33 2.3 | De Dentro e De Perto 44 3 | ARGUMENTO DO DOCUMENTÁRIO 76 BIBLIOGRAFIA 82



INTRODUÇÃO

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imersão neste estudo. Relacionar experiências de tantos indivíduos com as minhas próprias, me levaram a refletir que pensar a cidade é um exercício que vai além do entendimento das condicionantes físicas do território, pois, sobre o território, espacializa-se uma malha de relações socioculturais que articulam valores à materialidade da cidade. Valores interpretados e traduzidos pela memória, desencadeando sentido de lugar, identidade e pertencimento.

Fazer parte, pertencer, viver e sentir a cidade. Qualquer que seja a forma com a qual se faz, a interação nos possibilita crescer pessoal e intelectualmente. Particularidades de cada espaço provocam a inquietude e convidam para o entendimento das dinâmicas que o compõe. O espaço por si só é estimulante. Desperta em nós a possibilidade de percepção sensorial e nos permite ainda interagir com toda a sua materialidade. A resposta a tais percepções e interações é a criação em nós de um conceito individual, de caráter subjetivo e sociocultural, do mundo físico.

Esta vivência com diferentes culturas e cidades me proporcionaram novas experiências e novas relações com o espaço. As inquietações acerca a influência recíproca do espaço com o indivíduo foram tomando grandes proporções na minha cabeça, motivando a decisão pela graduação que contempla a formação de um profissional que estuda, desenha e promove o espaço, planeja e organiza as cidades, portanto, um profissional que também estuda toda subjetividade que constituí na relação do ser com o espaço.

Percorrendo além do lote, da rua, do bairro ou da cidade, o indivíduo se depara com um aumento exponencial de sons, formas, cores e tantos outros estímulos que se materializam e constroem memórias. Memória é processo de representação psíquica das coisas, é simbolização. A memória é sempre requisitada na construção subjetiva do real. Esse processo gerador de significados possibilita que o indivíduo relacionese consigo mesmo e com o mundo que o cerca.

Durante a graduação discutir a cidade tornou-se Viver e participar de diferentes cidades no rotina. A cidade transforma-se em objeto de estudo Brasil e no mundo me despertaram para a e de observação. A formação acadêmica oferece

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¹Projeto Rondon

é uma ação interministerial do Governo Federal que desde 1967 visa contribuir com o desenvolvimento local sustentável e na construção e promoção da cidadania, priorizando desenvolver ações que tragam benefícios para as comunidades, principalmente as relacionadas com, a melhoria do bem-estar social e a capacitação da gestão pública.

é a ferramenta que possibilitou relacionar as inquietações despertadas durante o curso e o desenvolvimento do estudo de caso. Nele destaco as atividades desenvolvidas no município de Novo Mundo, no Mato Grosso, onde em um período de quinze dias foram realizadas atividades de imersão e vivência com a cidade com o objetivo de conhecer as características que compõe a rotina cotidiana da cidade. O projeto possibilitou a investigação em situação real, diante de quem está fazendo história e simultaneamente promovendo o registro histórico da ocupação de um território.

meios para o entendimento das provocações acerca da apreensão e compreensão do espaço. Tal entendimento desperta em mim uma certa preocupação com relação a ausência de um corpo sensível na sociedade contemporânea. Hoje, o ser é predominantemente visual. Vive em um universo saturado de imagens onde, fora das aparências, nada conhece e que, pela razão, recusase a acreditar, deixando com isso de incluir nos processos de reprodução do espaço elementos que valorizem a percepção dos usuários da cidade. Portanto, este trabalho, composto por múltiplas experiências, surgiu com a pretensão de sintetizar reflexões sobre minha própria identidade no que diz respeito às minhas escolhas dentro desse universo de discussões possíveis na formação de um arquiteto urbanista. Um trabalho de conclusão de caráter documental da ocupação de um território com fragmentos que são costurados para representar uma cidade que é uma colcha de retalhos no tempo e no espaço.

Este caderno registra o processo de construção deste trabalho partindo das inquietações que motivaram a sua realização bem como a fundamentação teórica (Capítulo 1). A seguir descreve-se as duas etapas de aproximação com Novo Mundo (Capítulo 2). Em um primeiro momento, uma análise anterior a chegada na cidade, marcada pela identificação da necessidade de entendimento do espaço como a cidade propriamente dita, e posteriormente, descrevendo as atividades realizadas e o O objeto de estudo deste trabalho nasce do registro das informações obtidas. Finalmente vínculo com a extensão universitária Projeto apresenta-se o argumento do documentário Rondon – Operação Serra do Cachimbo¹. Rondon produzido a partir da investigação (Capítulo 3).

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INQUIETAÇÕES

“embora pareça paradoxal, muitas vezes é essa imensidão interior que dá seu verdadeiro significado a certas expressões referentes ao mundo que vemos.” (Gaston Bachelard, em “A poética do espaço)

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produzir sua existência os homens produzem não só sua história, mas também o espaço. O espaço é, pois, uma criação humana e sua produção coincide com o próprio modo pelo qual os homens produzem sua existência e a si mesmos, atribuindo a cada porção do espaço, um sentido simbólico, religioso, cultural, que ultrapassa os limites do espaço material e cria outra dimensão de valor na produção do espaço. O que quer dizer que, o espaço é um produto social em ininterrupto processo de reprodução e que envolve, ao mesmo tempo, mesmo em diferentes graus de correspondência e intensidade, uma dimensão cultural-simbólica, de apropriação, através de uma identidade atribuída pelos grupos sociais ao espaço onde vivem, e uma dimensão mais concreta e funcional, de dominação político-econômica, de controle do espaço como forma de domínio dos indivíduos.

A “Revolução Agrícola” permitiu que grupos humanos abandonassem o nomadismo e se fixassem de forma mais perene, marcando a mudança do homem caçador-coletor nômade para o homem agrícola sedentário, o que trouxe mudanças significativas na organização social, cultural e religiosa. A relação de grande dependência do homem com a natureza passa a ser modificada quando surge a atividade produtora. O desenvolvimento da agricultura e a domesticação de animais muda a relação do indivíduo com o meio. O território, já estabelecido, passa a ser reproduzido com sentimento. Nessa evolução de relações a sociedade cria novas técnicas para o suprimento de suas necessidades de sobrevivência. Os agrupamentos humanos se tornam mais numerosos, comportando uma explosão demográfica que originou as primeiras cidades e, posteriormente, as primeiras civilizações.

Hoje a cidade é o reflexo do processo de produção da humanidade sob o amparo das relações desencadeadas pela formação econômica e social capitalista, e ao analisá-la torna-se importante o resgate das emoções e sentimentos; a reabilitação dos sentidos humanos para pensar a cidade além das formas. A cidade é o modo de viver,

A relação que se estabelece entre o homem e o meio passa a ser mediada pelo processo de trabalho, onde as necessidades da sociedade estão relacionadas com a capacidade de produção, através do qual a sociedade produz um espaço no momento em que produz sua própria existência. Ou seja, ao

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relações enraizadas no trabalho, as quais formam os territórios. Desta maneira o território seria as relações de poder que se dão em um determinado espaço, por meio de diferentes atores, em uma troca constante de energia e informação que podem ter influências de ordem econômica, política, cultural e até mesmo do meio natural.

pensar, mas também sentir. O modo de vida urbano produz ideias, comportamentos, valores, conhecimentos, formas de lazer, e também cultura. Desta forma, o urbano é mais do que um modo de produzir, é também um modo de consumir, pensar, sentir, enfim, é um modo de vida. Observar o espaço através dos olhos da dimensão cultural-simbólica permite enxergar o imaginário urbano individual, a consciência social do espaço, a formação de identidade territorial, como o indivíduo “processa” o espaço e o território, de que forma se apropria do espaço, delimita suas fronteiras constituindo experiências simbólicas, sociais e econômicas, permite entender que a territorialidade exprime o modo de vida dos indivíduos e, também, o processo de reprodução espacial. Esse entendimento fortalece a leitura da cidade real.

Segundo Raffestin (1993), a produção do território provem das relações de produção, portanto, as relações de poder, do Estado ao indivíduo, através de malhas, nós e redes. O autor define território sendo: [...] um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder. [...] O território se apoia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder. (RAFFESTIN, 1993, p.144).

1.1 | TERRITÓRIO E PODER

Raffestin define poder como uma combinação de energia e informação (Raffestin, 1993, p.55), onde energia pode se transformar em informação, isto é, em saber, e a informação pode permitir que se libere energia, portanto poder (informação e energia) está relacionado com trabalho, capacidade

Diferentes abordagens discutem o conceito de território onde cada autor, conforme sua interpretação da realidade, define sua linha de pesquisa. Neste trabalho o conceito de território vai ser discutido por meio das relações de poder entre indivíduos, grupos de indivíduos e instituições,

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de transformar a natureza e as relações sociais. Então, é compreender que o território tem a Desta maneira Raffestin chega à conclusão que ver com poder, mas não apenas ao tradicional poder se enraíza no trabalho (Raffestin, 1993, p.56). “poder político”. Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, Haesbaert (2006), estabelece três aspectos quanto ao poder no sentido mais simbólico, de da construção territorial. Enquadra nas apropriação. Lefebvre distingue apropriação concepções política, cultural e econômica: de dominação, o primeiro sendo um processo muito mais simbólico, carregado das marcas —Política (referida às relações espaço- do “vivido”, do valor de uso, o segundo mais poder em geral) ou jurídico-política (relativa concreto, funcional e vinculado ao valor de troca: também a todas as relações espaço poder institucionalizadas): a mais difundida, onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na maioria das vezes – mas não exclusivamente – relacionado ao poder político do Estado. —Cultural: prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido. —Econômica: menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como produto da divisão “territorial” do trabalho, por exemplo. (HAESBAERT, 2006, p. 40).

O uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espaço, pois ele implica “apropriação” e não “propriedade”. Ora, a própria apropriação implica tempo e tempos, um ritmo ou ritmos, símbolos e uma prática. Tanto mais o espaço é funcionalizado, tanto mais ele é dominado pelos “agentes” que o manipulam tornando-o unifuncional, menos ele se presta à apropriação. Por quê? Porque ele se coloca fora do tempo vivido, aquele dos usuários, tempo diverso e complexo. (Lefebvre, 1986, p.411-412, grifo do autor).

Podemos tratar o espaço que Lefebvre se refere como território, pois trata-se de um espaço socialmente construído que passou pelos processos de apropriação e dominação por ele denominados.

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“atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos” (Sack, 1986, p.6).

obre as relações de poder, Foucault (1979) em “Microfísica do Poder”, analisa que o poder “rebelde por natureza” pode ser caracterizado de duas formas. Poder com ‘P’ maiúsculo representa o Poder do Estado, constituído através de seus aparelhos e elementos que submetem a população a um controle, um modelo de regulação social. Outra postulação define o poder com ‘p’ minúsculo, caracterizando o poder que se manifesta diariamente através das relações sociais. Segundo Raffestin (1993, p.53), “o poder se manifesta por ocasião da relação. É um processo de troca ou de comunicação quando, na relação que se estabelece, os dois polos fazem face um ao outro ou se confrontam”. Em todas as relações sociais existe a marca do poder. E é esta característica fundamental que vai dimensionar o território. Toda conceituação de território passa pela análise do poder.

1.2 | IDENTIDADES E TERRITORIALIDADES O conceito de territorialidade foi usado inicialmente com um sentido etológico em 1920, por H. E. Howard, que a definiu como “a conduta característica adotada por um organismo para tomar posse de um território e defendêlo contra os membros de sua própria espécie”.

Para Raffestin (1993), o conceito de territorialidade animal não expressa a complexidade da territorialidade humana, pois não leva em consideração a dimensão semiológica. Para ele “a territorialidade humana não é apenas constituída por relações com os territórios, mas também através de relações concretas Assim, devemos enxergar os territórios de acordo com áreas abstratas, tais como línguas, com os diferentes atores que os reproduzem, religiões, tecnologias” (Raffestin, 1993, p.267). sejam eles indivíduos, grupos de indivíduos e instituições. As razões do controle social Raffestin (1993) sustenta que a territorialidade pelo espaço variam conforme a sociedade ou deve ser entendida como multidimensional cultura, o grupo e, muitas vezes, com o próprio e inerente à vida em sociedade. Para o autor: indivíduo. Controla-se um território, visando [...] de acordo com nossa perspectiva, a

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territorialidade assume um valor bem particular, pois reflete o multidimensionamento do “vivido” territorial pelos membros de uma coletividade, pela sociedade em geral. Os homens “vivem” ao mesmo tempo, o processo territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas. (RAFFESTIN, 1993, p. 158).

territorialidade corresponde às relações sociais e às atividades diárias que os homens têm com sua natureza exterior. É o resultado do processo de produção de cada território, sendo fundamental para a construção da identidade e para a reorganização da vida quotidiana. (SAQUET, 2009, p. 8).

Ou seja, ela é multidimensional, conforme Partindo desse princípio Raffestin sustenta dito anteriormente por Raffestin (1993). que a “territorialidade pode ser definida como Ressaltando que este conjunto não representa um conjunto de relações que se originam num simplesmente um caráter “funcional”, já que: sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo” (Raffestin, 1993, p.160). Nessa perspectiva o [...] a territorialidade, além de incorporar uma dimensão mais estritamente política, diz próprio território ganha uma identidade, não respeito também às relações econômicas e em si mesma, mas na coletividade que nele culturais, pois está intimamente ligada ao modo vive e o produz, sempre em processo dinâmico, como as pessoas utilizam a terra, como elas flexível e contraditório (por isso dialético) próprias se organizam no espaço e como elas dão recheado de possibilidades que só se realizam significado ao lugar. (HAESBAERT, 2007, p,22). quando impressas e espacializadas no território. “Ela é consubstancial a todas as relações e seria Saquet (2010) acrescenta que o conjunto possível dizer que, de certa forma, é a ‘face daquilo que se vive cotidianamente vivida’ da ‘face agida’ do poder” (Raffestin, 1993, exprime a territorialidade. O autor cita: p.161-162). Sendo assim, a territorialidade tem a ver com um certo tipo de interação [...] compreendemos a noção de territorialidade entre homem e espaço, mas “conceber a como um processo de relações sociais, tanto territorialidade como uma simples ligação com econômicas, como políticas e culturais de um indivíduo ou de um grupo social. A o espaço seria fazer nascer um determinismo

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sem interesse. É sempre uma relação, mesmo um que diferenciada.” (RAFFESTIN, 1993, p. 161).

² A análise metafórica da Alegoria da Caverno revela uma importante teoria platônica, uma teoria de dualidade, onde tudo na natureza é composto por duas partes: uma que alcançamos por nossos sentidos, o mundo dos Sentidos; e outra que só é acessível pela razão, o mundo das Ideias.

Dessa forma, a territorialidade se materializa no lugar e parece refletir as dimensões culturais, políticas, econômicas e sociais, organizando-se na desordem e na complexidade das relações diversas. Assim, falar de territorialidade é falar de “todos os processos espaço-temporais e territoriais inerentes a nossa vida na sociedade e na natureza” (SAQUET, 2009, p. 85), uma vez que a territorialidade pode ser a dimensão simbólica, o referencial territorial (simbólico) para a construção de um território, que não obrigatoriamente existe de forma concreta.

determinado

espaço.

Xavier,

destaca:

que o modo como o ser espacializa, como geografiza o mundo é feito de forma simbólica uma vez que coloca um sentido neste habitar. O ser espacializa o mundo e o faz de forma poética. Na expressão de sua espacialidade ele apresenta seu ethos, sua cultura, seu habitus. Isto implica dizer que a produção humana no espaço não se resume a sua produção material ou econômica simplesmente. Ou seja, o espaço habitado obviamente é uma construção social. A apropriação do espaço aparece então como um processo psíquico que contribui para a socialização do indivíduo. (2008, p. 31).

1.3 | MUNDO DOS SENTIDOS

Nas palavras de Milton Santos (2007) a territorialidade não provém do simples fato de viver num lugar, mas da comunhão que com ele mantemos. Afinal, para este autor “o território em que vivemos é mais que um simples conjunto de objetos, mediante os quais trabalhamos, moramos, mas também um dado simbólico, sem o qual não se pode falar de territorialidade”. (SANTOS, 2007, p.83-84).

Quando Platão propõe, no mita da caverna, que, por uma operação do olhar, o homem se afaste do mundo sensível, estava ao mesmo tempo dirigindo o olhar para “um ver concentrado no mundo das Ideias”². No ensaio O encontro do mito e da ciência, Lévi-Strauss narra o início de um desencontro, origem de um esquecimento trágico. Para se afirmar contra velhas gerações de pensamento, diz ele, a ciência voltou as costas ao mundo dos sentidos, o mundo das paixões e desejos, o mundo que vemos e percebemos. O mundo sensorial é ilusório; “real

Neste caso, a cultura como objeto simbólico tem fator característico na definição de

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seria o mundo das propriedades matemáticas que Creio que há certas coisas que perdemos e que só podem ser descobertas pelo intelecto e que estão devíamos fazer um esforço para as conquistar de em contradição total com o mundo dos sentidos”³. novo. Tenho a sensação de que a ciência moderna, na sua evolução, não se está a afastar destas Lemos em alguns autores que o conhecimento matérias perdidas, e que, pelo contrário, tenta cada sensível é vago, confuso e inadequado porque vez mais reintegrá-las no campo da explicação Defrontemo-nos continuamente no mundo dos sentidos não há estabilidade nem científica. harmonia. A realidade sensível jamais pode com novas definições e novas diretrizes para produzir um saber porque as coisas sensíveis são ao o desenvolvimento de percepções do mundo, mesmo tempo dissemelhantes, muitas e múltiplas principalmente quando relacionadas à busca de nelas mesmas. Aquele que se deixa seduzir apenas uma economia e de uma vida social mais justas. Na pelos sentidos deve assumir os riscos da incerteza perspectiva interdisciplinar os objetos e assuntos ou perder-se naquilo que vê. Os sentidos, como são híbridos e por isto abrangem uma consideração as paixões, perturbam a alma, e, sem temperança, além da condição científica disciplinar. A conduzem ao vício e à loucura. O homem que interdisciplinaridade é, neste sentido, uma das contempla é absorvido pelo que contempla. Por essa formas de enfrentamento destes desafios no ensino razão, Platão nos convida a desconfiar da percepção, e na pesquisa. Em especial, destacados estudos que das pulsões e dos caprichos do corpo. A estabilidade relacionam arquitetura, urbanismo, meio ambiente, e harmonia estão no mundo suprassensível, nas sociologia, antropologia e história em tempo de ideias transcendentes e separadas do sensível, emergência do pensar a crise socioambiental. imutáveis, genéricas. Cada Ideia e todas as Ideias participam do Um transcendente, da Ideia Creio que há certas coisas que perdemos e que universal. Esta concepção teve uma influência devíamos fazer um esforço para as conquistar de doutrinal e prática considerável, em todas as novo. Tenho a sensação de que a ciência moderna, épocas e todos os domínios. Marca a grande na sua evolução, não se está a afastar destas cisão de dois reinos que subsistem paralelamente. matérias perdidas, e que, pelo contrário, tenta cada

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³ LÉVI-

STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Lisboa: Edições 70, 1989.


vez mais reintegrá-las no campo da explicação científica. Defrontemo-nos continuamente com novas definições e novas diretrizes para o desenvolvimento de percepções do mundo, principalmente quando relacionadas à busca de uma economia e de uma vida social mais justas. Na perspectiva interdisciplinar os objetos e assuntos são híbridos e por isto abrangem uma consideração além da condição científica disciplinar. A interdisciplinaridade é, neste sentido, uma das formas de enfrentamento destes desafios no ensino e na pesquisa. Em especial, destacados estudos que relacionam arquitetura, urbanismo, meio ambiente, sociologia, antropologia e história em tempo de emergência do pensar a crise socioambiental.

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HALL, Edward. “A dimensão oculta”. Apud ELALI, Gleice Azambuja. Psicologia e arquitetura: em busca do locus

Talvez E. Hall resuma dizendo que “o homem e suas extensões constituem um sistema interrelacionado. É um erro agir como se os homens fossem uma coisa e sua casa, suas cidades, sua tecnologia, ou sua língua, fossem algo diferente”4.

interdisciplinar.

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“[as histórias de vida] devem ser consideradas como instrumentos de reconstrução da identidade, e não apenas como relatos factuais. Por definição reconstrução a posteriori, a história de vida ordena acontecimentos que balizaram uma existência. […] Através desse trabalho de reconstrução de si o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros”. (Michael Pollak. Memórias, esquecimentos, silêncio, 1989)

NOVO MUNDO, MT

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integra toda pesquisa desenvolvida, com a equipe do Senac, sobre o território de Novo Mundo, que deu condições de aprofundamento da situação real do município para o desenvolvimento das ações que foram aplicadas no Projeto Rondon; e a pósprodução, de dentro e de perto, que abrange a reflexão sobre todo material coletado durante a atuação no Projeto Rondon e de aplicação deste trabalho.

O trabalho fez parte de um conjunto de ações multidisciplinares nas áreas de Comunicação; Tecnologia e Produção; Meio Ambiente e Trabalho, desenvolvidas durante a Operação Serra do Cachimbo, do Projeto Rondon, no município de Novo Mundo, Mato Grosso, contando com equipes do Centro Universitário Senac e da UFMT que atuaram durante 15 dias do mês de Julho de 2017 com intuito de contribuir com o desenvolvimento local sustentável e na construção e promoção da cidadania.

Durante o trabalho de desenvolvimento das ações a serem aplicadas pelo Projeto Rondon e com os dados coletados pelos coordenadores5 da equipe em visita técnica ao município, o grupo revelou certas demandas que abrangiam todos os povoados a serem atendidos, demandas relacionadas ao sentimento de pertencimento, construção de identidades territoriais e apropriação do espaço em território, entendíveis por se tratar de uma ocupação recente, e que, assim que identificados, tornaramse prioridade para o desenvolvimento das ações de capacitação da população, atrelando identidade territorial com políticas de desenvolvimento local.

Pelo caráter educativo das atividades exercidas através do Rondon, este trabalho misturouse com sala de aula, com discussões sobre patrimônio, com o projeto de extensão. Um trabalho de conclusão com fragmentos e múltiplas experiências que compõe a investigação sobre a ocupação e transformação do território.

Este capítulo apresenta as atividades desenvolvidas junto ao Rondon e parte, então, para mergulhar no caso de Novo Mundo, no extremo norte do Mato Grosso, divisa com Pará. Apresenta toda 2.1 | RONDON EM NOVO MUNDO análise a partir de dois momentos, duas escalas de aproximação: a pré-produção, de fora e de longe, que As ações dentro da área de Comunicação,

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Professores Ralf Flôres e Myrna Nascimento.


ocupação da região, sem a pretensão de iluminar ou traduzir o visível, mas exercitar o invisível.

apresentaram como escopo o desenvolvimento do conhecimento sobre comunicação digital e fotografia junto às rodas de conversa e entrevistas mediadas com temas relativos a cultura, ao território e a memória. Dentro dos registros das ações aplicadas, o projeto buscou do compartilhado tudo que pensa o espaço, tentando montar sua concepção, produção, ocupação e eventual destruição. Buscouse perceber a dimensão cultural do território diante da complexidade dos espaços, reforçando que cada sociedade inscreve suas marcas e valores também nos modos de ocupação do espaço.

2.2 | DE FORA E DE LONGE Neste momento as pesquisas buscavam o conhecimento da região, buscando nas fontes que tínhamos todo material sobre o município. Os primeiros contatos. A leitura do território, a identificação das especificidades locais e as demandas, já analisadas pela esquipe, deram consistência para o preparo das ações do projeto que coexistiu com o Rondon.

As atividades realizadas pelo Projeto Rondon estimularam o convívio e a aproximação com o público-alvo, permitindo um olhar mais cuidadoso das perspectivas dos usuários da cidade, enfatizando a necessidade de uma reflexão mais profunda sobre a preservação de especificidades locais, do contexto sociocultural, pensando a cidade como um conjunto de relações e fenômenos sociais, culturais e econômicos. O convívio com os moradores da região como pivô da situação possibilitou investigar, através da dimensão cultural-simbólica transformando o indizível em prosa, o processo histórico de

Inicialmente será apresentada uma aproximação ao município, contextualizando-o como parte da Amazônia Legal Brasileira (figura 01), para entendimento da região em que se insere Novo Mundo. A pesquisa apresentada provém da proposta de trabalho da nossa equipe apresentado ao Ministério da Defesa. O município de Novo Mundo encontra-se no extremo norte do estado do Mato Grosso, fazendo divisa com o estado do Pará, e para contextualização da região abrangida pela operação Serra do

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Figura 01 – Amazônia Legal Brasileira

Fonte: IBGE, 2014.

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de 1.247.954,32 km2 e uma densidade demográfica de 6,07hab/km2. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM), para 2010, é de 0,646, ou De acordo com o Censo Demográfico de 2000, seja, está na faixa de desenvolvimento médio. existem cerca de 20 milhões de pessoas vivendo Já o Mato Grosso, com cerca de 3.035.122 hab., na Amazônia Legal Brasileira, um recorte está distribuído em uma área de 903.378,29km2, territorial estabelecido no Art. 2º da Lei nº 5.173, com uma densidade que alcança 3,36hab/ de 27 de outubro de 1966, criado para incentivar km2 e possui IDHM de 0,725 – alto. O IDHM o desenvolvimento da Amazônia brasileira. será tratado mais detalhadamente adiante, na análise da situação econômica e social da região. Desta forma, em termos de geografia física, identifica-se uma região de serra, com relevo Em 2009, o Produto Interno Bruto (PIB) do vigoroso e rochas sedimentares com grande Pará atingiu a marca de 49,5 bilhões de reais; potencial para o ecoturismo e esportes radicais, o PIB per capita é de 7.707 reais. A participação sendo que a principal constituição geológica é do estado para o PIB brasileiro é de 1,9%; para a do arenito. A cobertura vegetal é exuberante, o PIB regional, essa contribuição é de 37,1%, predominantemente de floresta ombrófila aberta, sendo a maior da Região Norte. A composição em transição entre a floresta amazônica e o do PIB paraense é a seguinte: Agropecuária: cerrado, com clima tropical. Outro aspecto a ser 8,6% // Indústria: 31% // Serviços: 60,4%. destacado é o fato de fazer parte das sub-bacias do Xingu e do Tapajós, com presença numerosa Portanto, o segmento de serviços e comércio é o de nascentes, dando origem aos rios: Anta, Braço principal responsável pelo PIB do estado (60,4%). Norte, Braço Sul, Curuá, Curuaés, Flecha, Ipiranga, Essa atividade é impulsionada pelo turismo, Jamanxim (principal afluente do Tapajós) e Nilana. que tem apresentado destaque, principalmente em Belém, capital do Pará. Outros destinos Com cerca de 7.581.051 hab., o Pará tem uma área dos visitantes são Santarém, a porção noroeste Cachimbo, considerou-se um cruzamento de dados relacionados à Amazônia Legal e aos dois estados.

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do estado, que possui montanhas e inscrições ouro em grandes quantidades em Serra Pelada, pré-históricas, além do leste paraense, com conforme dados do Departamento Nacional de praias marítimas, como, por exemplo, Salinas. Produção Mineral (DNPM), somente no ano de 1983 foram extraídas cerca de 14 toneladas de ouro A agricultura baseia-se no cultivo de laranja, nessa área. Porém, o ouro esgotou-se, e, atualmente, banana, cana-de-açúcar, coco, arroz, mandioca, o projeto Ouro Serra Leste, da Companhia Vale do cacau, feijão e, principalmente, pimenta-do- Rio Doce, retira o minério de jazidas profundas. reino, cujo estado é o maior produtor nacional. A pecuária é mais desenvolvida na porção sudoeste Já o Mato Grosso, para dados de 2008, teve Produto do Pará, o rebanho bovino é de aproximadamente Interno Bruto (PIB) atingindo a marca de 42,7 bilhões 14 milhões de cabeças de gado. Também há de reais, correspondendo a 1,6% do PIB nacional; criações de aves, suínos, equinos e bubalinos, no âmbito regional, sua participação foi de 18,1%. esse último é mais comum na ilha de Marajó. A participação das atividades econômicas para o O extrativismo vegetal também é de grande PIB de Mato Grosso é a seguinte: Agropecuária: importância (madeira, castanha-do-pará, etc.). 28,1% // Indústria: 16,4% // Serviços: 55,5%. A agropecuária, apesar de corresponder a 28,1% das riquezas do estado, é a principal atividade econômica, pois o setor de serviços, que contribui com 55,5%, está diretamente ligado a ela. A comercialização de produtos e a instalação de hotéis e restaurantes, entre outros segmentos do setor de serviços, são alavancadas pelo desenvolvimento agropecuário, que também deu origem a novos municípios no estado.

O setor industrial concentra-se na Região Metropolitana de Belém. Os principais segmentos industriais são o madeireiro, alimentício, químico, alumínio, etc. O extrativismo mineral é a principal atividade econômica do Pará. Esse segmento baseiase na exploração da bauxita, ferro, manganês, calcário, ouro, estanho. O alumínio e o minério de ferro são os principais produtos de exportação. Durante a década de 1980, houve extração de

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Foto 1 – Vista aérea da área urbana e parte da área rural de Novo Mundo

Foto: Google Earth.

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Várias propriedades rurais de Mato Grosso são dotadas de aparatos tecnológicos que aumentam a produtividade e reduzem os custos, consequentemente, há uma grande lucratividade. Entre os principais cultivos estão o da soja, algodão, cereais, leguminosas e oleaginosas. O estado é o maior produtor nacional de algodão, abrigando 20 municípios dos 35 maiores produtores do Brasil. Também é responsável por produzir cerca de 20% da soja nacional. Mato Grosso também detém um dos maiores rebanhos bovino do país, com destaque para o gado de corte.

NOVO MUNDO, MT

O setor industrial, por sua vez, se concentra na capital, Cuiabá, e contribui com apenas 16,4% para o PIB estadual. Entretanto, ele está em expansão, sobretudo os segmentos alimentício, frigorífico, construção civil, cerâmica, couro-calçadista, celulose e papel, eletroeletrônica, farmacêutica, madeireira, mecânica e metalúrgica. O turismo é promovido, principalmente, no Parque Nacional do Pantanal e no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Esses dois locais possuem belas paisagens naturais, fato que atrai milhares de visitantes e impulsiona o ecoturismo no estado.

Em 1987, Novo Mundo tornou-se distrito de Guarantã do Norte e em 1996 se transformou em município (Lei nº 6.685, de 17/11/1995).

O município de Novo Mundo teve início a partir de 1979-1980, em uma pequena vila criada em função da vinda de muitas famílias para a região a procura de ouro. Ao mesmo tempo, os projetos de colonização, com incentivos do governo estadual e federal, entravam em fase de consolidação e os vazios demográficos, evidenciados diante da notoriedade do ouro, chamaram atenção do governo como possibilidade para realocar famílias de colonos agricultores vindas do sul do país.

O garimpo se manteve como um negócio rentável e base da economia, atraindo inclusive muitos agricultores. A partir de 2000, a atividade garimpeira entrou em decadência e poucos permaneceram nessa atividade. A maior parte da população voltouse para os setores agrícola, pecuário e madeireiro. Com cerca de 7.332 hab., o município de Novo Mundo tem uma área de 5.790,962 km² e uma

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Foto 2 – Construções em madeira em Novo Mundo

Fonte: Ralf Flôres em visita técnica.

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Foto 3 – Construções em madeira em Novo Mundo

Fonte: Ralf Flores em visita técnica.

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densidade demográfica de 1,27 hab/km². O Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM), para 2010, é de 0,674, ou seja, está na faixa de desenvolvimento médio. Entre 2000 e 2010, a dimensão que mais cresceu em termos absolutos foi Educação (com crescimento de 0,303).

Figura 02 – Principais atividades comerciais em Novo Mundo

Em 2013, o Produto Interno Bruto (PIB) de Novo Mundo atingiu uma marca de 102.613 milhões de reais; o PIB per capita é de 12.860,32 reais. A participação do município para o PIB estadual é de 0,12%. A composição do PIB de Novo Mundo é a seguinte: Agropecuária 37,30%, Serviços 16,7% e Indústria 7,22%. A agricultura baseia-se no cultivo de mandioca, abacaxi, melancia, melão, banana, cacau, café, guaraná, laranja, limão e maracujá. A pecuária de corte e leiteira é bem desenvolvida, contando com um rebanho bovino de aproximadamente 398.509 cabeças de gado. Também há criações de aves, suínos, ovinos, caprinos, equinos e bubalinos. O extrativismo vegetal também é de grande importância (madeira em tora e lenha).

Fonte: Prefeitura de Novo Mundo, 2008 – Perfil Socioeconômico

Com 70% da população residindo na zona rural, a agropecuária é a base da economia local, principal atividade econômica. Trata-se de uma população rural urbanizada constituída por migrantes, majoritariamente, do norte e do sul do país. A cultura e suas formas de manifestação nessa região têm sua origem na tradição dos colonos da região sul, no entanto existem traços marcantes deixados pelos garimpeiros que podem ser observados na linguagem, construções, alimentação e outros. Este grupo apesar do isolamento provocado pela distância dos grandes centros também é massificado pela cultura televisiva, que produz de norte a sul do país os mesmos hábitos, costumes, desejos e sonhos.

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Parque Estadual do Cristalino. Além de toda sua importância ambiental, a preservação do PEC também proporciona um atrativo para o ecoturismo.

Pelo curto espaço de tempo ainda não se pode falar de uma identidade com o local, entretanto essas pessoas pertencem ao grupo de indivíduos que trabalham na terra e com isso seu vínculo maior é com as suas formas de produção e a sua propriedade.

O Parque Estadual do Cristalino está situado nos municípios de Alta Floresta e Novo Mundo, no extremo norte de Mato Grosso, entre o rio Teles Pires e a divisa com o Pará. A maior parte da sua área localiza-se no município de Novo Mundo, sendo que a porção do extremo oeste do Parque encontrase no município de Alta Floresta. Ao norte, faz fronteira com a Base da Fora Aérea Brasileira, no Estado do Pará, a qual abriga uma extensa área de vegetação nativa. Na lacuna retangular que existe na sua porção sudoeste, estão as RPPNs6 Cristalino I, II e III. Seus demais limites a oeste, leste e sul fazem fronteiras com propriedades rurais.

As opções de lazer podem ser caracterizadas como atividades peculiares a pequenas cidades do interior, tais como passeios e acampamentos em rios e riachos; atividades esportivas, com jogos e gincanas e a realização de algumas festas tradicionais, como 7 de setembro, comemoração da colheita, festas juninas, aniversário da cidade, entre outras. Existem ainda atividades direcionadas para os Idosos, organizadas por grupos da terceira idade que promove bingos, bailes, caminhadas, passeios, etc. Por se tratar de um município novo, o que reflete visualmente na reprodução do espaço está diretamente associado à memória cultural da população. O material coletado em visita técnica no município apresenta construções em madeira, típicas do sul do país.

O Parque Estadual do Cristalino, com área total de 184.9000 hectares, possui significativa importância ambiental, principalmente por proteger as nascentes e o percurso dos rios Cristalino, Rochedo e Nhandu, suas corredeiras, cachoeiras e lagoas e as comunidades aquáticas que neles habitam, como Outro aspecto importante de análise, considerando também, pela heterogeneidade de sua vegetação e as potencialidades do território, é a presença do fauna associada e suas peculiaridades ambientais.

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A Reserva Particular do Patrimônio Natural é uma categoria de Unidade de Conservação particular criada em área privada, por ato voluntário do proprietário, em caráter perpétuo, instituída pelo poder público. Como depende da vontade do proprietário, é ele quem define o tamanho da área a ser instituída como RPPN.


Figura 03 – Região do Parque Estadual do Cristalino

Fonte: Plano de Manejo do Parque Estadual do Cristalino.

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2.2 | DE DENTRO E DE PERTO

Por sua localização estratégica, o Parque Estatual Cristalino contribui para a garantia do fluxo das espécies nativas da região, através dos corredores ecológicos da Amazônia Meridional e da bacia hidrográfica Teles Pires – Tapajós, mantendo a conectividade com outras áreas protegidas da região e servindo como barreira ao avano do arco de desmatamento no norte mato-grossense e sul do Pará.

“Para não nos esquecermos de lembrar”, roubando as palavras dos orientadores do Projeto Rondon em um discurso sobre a experiência, foram 15 dias imergidos, vivendo, trabalhando e participando da cidade de Novo Mundo. “Rotina de dia, tarde e noite, revesadas com reuniões de preparativos da agenda do dia seguinte, reformávamos oficinas, reajustadas Em termos ecológicos, o Parque Cristalino conforme as novas demandas percebidas, foi considerado como um dos mais ricos em providenciávamos materiais esgotados pelo biodiversidade da Amazônia. A efetivação da volume de adesões pelos moradores e pelo sucesso conservação dessa área também é de fundamental de algumas atividades que mereceram reedição.” importância para o desenvolvimento de pesquisas e disseminação do conhecimento Os dados foram coletados através de diversas e pelo alto potencial que representa para o abordagens e posicionamentos de observação desenvolvimento do ecoturismo e consequente para o reconhecimento da imagem da cidade compatibilização da presença das populações dos moradores e visitantes. A coleta aconteceu do entorno com os objetivos da unidade. em rodas de conversa, nas ações conjuntas ao Projeto Rondon, em produção de mapas mentais, Além da configuração institucional e demográfica, em entrevistas, em andanças pela cidade e em foi possível caracterizar o ambiente físico, a situação registro de fachadas. Buscou-se o cotidiano, o socioeconômica e de saneamento e qualidade desconhecido e, acima de tudo, a percepção dos ambiental. A análise destes aspectos tem em vista usuários da cidade. De todo material coletado, identificar atrativos, talentos, potencialidades, bem de tantos cartões de memória, filtrou-se, nesta como restrições e desafios específicos do município. escala de aproximação, por tudo que nos ajuda

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a construir a imagem da cidade, no plano da é ser e estar no espaço, resgatando a identidade percepção e representação, da imagem do espaço. que permite que o ser se enxergue no espaço. A análise do material coletado entende que a imagem é formada pelo conjunto de sensações experimentadas ao observar. Entretanto, o sentido que ele dá para o que vê pode variar entre diversos observadores e estas diferenças dependem das suas características individuais, mas também dos conhecimentos que são sociais e culturais. Neste sentido, torna-se relevante estudar as percepções dos usuários da área-alvo do projeto.

Oficina de Patrimônio Cultural e Natural, inciou-se a partir dos guanchos deixados na Oficina de Pertencimento e Identidade Cultural, as conversas aqui objetivaram amadurecer os assuntos tratados, trazendo a discussão para o agora omo se estabelece a relação dos moradores com o espaço que apropriam, tendo refletido sobre tudo que os compõe em termos de identidade cultural e pertencimento.

RODAS DE CONVERSA

As rodas de conversa marcaram o primeiro contato com os moradores e visitantes da região. Tirando vantagem da figura do estrangeiro, do estranho no espaço, atribuída às equipes que estavam atuando junto ao Projeto Rondon e que já participavam da cidade, criando um gancho para inciar o diálogo que, nas rodas de conversa, foi mediado em função do compartilhamento de relatos pessoais e coletivos dos vínculos com o espaço, a espacialidade do cotidiano, a relação do município, os fluxos, as distâncias, o modo de vida da cidade.

As rodas de conversa aconteceram em duas oficinas: Oficina de Pertencimento e Identidade Cultural, iniciadas com conceitos e estímulos para despertar a consciência sobre identidade cultural e o sentido de pertencimento, seguidas de diálogos sobre as origens dos participantes, toda sua identidade e pertencimento a uma cultura e sociedade. Foi importante para instigar a percepção individual sobre a relação do ser com o espaço, exercitar a reflexão das dimensões que nos compõe, das dimensões que envolvem o que As rodas de conversa encerravam voltando ao

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Fotos 4 a 7 – Oficina de Pertencimento e Identidade Cultural

Fonte: Acervo do autor.

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Fotos 8 a 11 – Oficina de Patrimônio Cultural e Natural

Fonte: Acervo do autor.

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da paisagem, a identificação de imagens públicas e da memória coletiva. Quando a paisagem descrita por alguém não se encontra inserida no espaço é porque está presente em outra dimensão, na memória, ou seja, para a paisagem existir é necessário uma referência simbólica. Portanto a As atividades duraram cinco dias e foram aplicadas paisagem é múltipla, pois, apesar de existir valores em dois povoados, Novo Mundo e Comunidade e crenças coletivas, cada ser humano possui Cinco Mil. Trouxeram como resultado a um conjunto de experiências individualizado. conscientização dos moradores sobre suas heranças naturais e culturais, iniciando debates sobre como Diante desta perspectiva, compreende-se que a manter esse patrimônio vivo na memória da paisagem não é somente uma porção física do população, e sobre como potencializar a exploração espaço, ela é imbricada de sentimentos, valores do mesmo em ações voltadas ao fortalecimento e crenças. E é a complexidade do conjunto de do desenvolvimento econômico local. experiências que interferem na percepção do sujeito. Porém a percepção apreendida pelo As oficinas foram aplicadas, em Novo sujeito, suas avaliações e preferências sobre o Mundo, na Escola Municipal Alcides ambiente, de caráter subjetivo, mas também Ferreira Primo e, na Comunidade Cinco sociocultural, não representa toda a cidade. Mil, na Escola Estadual Tarley Rossi Vilela. O público diverso que participou da oficina enriqueceu a aplicação do mapa. A situação para MAPAS MENTAIS a construção do mapa era a seguinte, produzir de Os Mapas Mentais, cartografando o forma livre um mapa de Novo Mundo para que processo de percepção dos usuários da cidade, um visitante conseguisse se localizar, apresentando permitem uma análise do processo de apreensão suas referências na imagem da cidade. Em seguida passado, aproveitando do diálogo em andamento e da maior intimidade adquirida com as conversas e atividades aplicadas. Investigou-se a memória da cidade, histórias ou lendas, recordações pessoais, relatos da ocupação e transformação do espaço.

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cada participante apresentava e explicava seu mapa.

Foto 12 – Escola Municipal Alcides Ferreira Primo

Tabelas 1 e 2 – Participantes dos mapas mentais NOVO MUNDO

CINCO MIL Foto 13 – Escola Estadual Tarley Rossi Vilela

Fonte: Acervo do autor.

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Foto 14 – Mapa Mental Eu

Fonte: Acervo do autor.

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“Me chamo Bruno. Sou de São Paulo e estou em Novo Mundo há 5 dias. Iniciei o mapa com a creque que está sendo nossa casa durante esta estadia na cidade. A creche é minha referência na cidade e a partir dela que partem todos meus percursos pela cidade. Meu mapa da cidade é limitado aos meus percursos a pé e não vão muito além da minha rotina de atividades exercidas com o Projeto Rondon. Todos os dias parto da creche em direção a Escola Alcides. Desenhei também os comércios que dão suporte e que também fazem parte da rotina. O mercado Lima perto da rotatória, a farmácia na avenida principal, a sorveteria que costumamos passar retornando para creche no final do dia. O Bar Mar foi o primeiro comércio que tive contato, então ficou bem marcado como referência. Para o outro lado da avenida desenhei as igrejas que passamos divulgando a programação do Rondon no nosso primeiro dia na cidade. Meu mapa é curto e representa minha rotina espacializada em Novo Mundo.”

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Foto 15 – Mapa Mental AM

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Fonte: Acervo do autor.

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“Eu fiz o Sicredi, depois o Correio, a loja Atacadão da Economia, a igreja e minha casa. Esqueci do mercado que a gente compra chocolate. Eu não desenhei minha escola, porque fica no Módulo 3, não aqui na cidade. Mas eu apontei para onde fica e passa no posto para ir para o interior.”

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Foto 16 – Mapa Mental KW

Fonte: Acervo do autor.

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“Meu nome é Kawany vim de Matupá desde que eu nasci. Matupá fica bem perto de Guarantã do Norte. Então, eu comecei pela Delegacia, daí o Bom Jesus, atrás a Escola André Maggi. Fiz a lotérica, o Mercado Lima, daí tem a Martinelo, a padaria. Para trás tem a praça, a igreja católica e uma lanchonete. Lá pra cima tem o posto de saúde, a Escola Inovação e a Escola Alcides, o Detran, a farmácia, o posto de gasolina Paraíso, o atacadão da economia e o Banco Sicredi. Para o outro lado tem o Nortão e a Creche Mundo Mágico.”

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Foto 17 – Mapa Mental FE

Fonte: Acervo do autor.

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“Eu me chamo Fernanda. Nasci em Matupá e estou morando na cidade de Novo Munda faz uns 2 anos. Com meu mapa, você não entende nada. Eu não sei de nada daqui. Tem a casa da minha amiga, lá para o lado da creche. Depois tem a casa da minha tia, perto do redondo. Do outro lado da rua tem o Lima, a Constrular, atrás tem o meu trabalho onde eu cuido de criança. Daí eu fiz um posto de gasolina, mas está no lugar errado porque eu fiz a ponte muito perto. Aí vem a delegacia, atrás a minha casa. Tem a mercearia do outro lado da avenida e um posto. Para lá tem a prefeitura. Voltando para o lado de cá tem a sorveteria, o gás e a casa da Amanda, minha melhor amiga. Depois vem a creche e meu outro trabalho. Aí acabou a cidade.”

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Foto 18 – Mapa Mental VA

Fonte: Acervo do autor.

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“Meu nome é Vanessa Grazielle. Eu moro aqui há quase 30 anos. Trabalho na prefeitura na parte de Patrimônio. Meu desenho começou pela prefeitura. Depois vem o Nortão, a Primus e o Supermercado Bom Jesus. Do lado de cá botei o Lava Jato Cunha. Depois a avenida muda para duas ruas com um canteiro. Desenhei o Atacadão da Economia que é a loja da minha mãe e fica bem perto do redondo do prefeito. Tem rua para tudo que é lugar. Bem no redondo tem o ponto de táxi. Se você sobe na primeira rua já cai aqui na Escola Alcides. Subindo mais você chega na minha casa. Pronto.”

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Foto 19 – Mapa Mental DE

Fonte: Acervo do autor.

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Nortão, que vende pneus, depois o mercado Bom Jesus, e, na frente, o Lava Jato. Depois tem uma rua que antigamente levava à Prefeitura e agora está interditada, pois a ponte caiu. A rua entre o Bom Jesus e XXX vai para minha casa atual, mas eu não a desenhei. Ai fiz a cooperativa de crédito Sicredi e percebi agora que desenhei no lado errado da rua. Segui com o Posto Souza, e duas oficinas ao lado em sequência. Em frente fiz uma loja, a lotérica, a energisa, logo depois outra rua que leva à minha casa. Continuei com o Correio, coloquei mais umas lojas, o Siac e o Posto Paraíso. Desenhei a rotatória, onde tem a rua que desce para o Pesque e Pague e vem aqui para as escolas, e a rua que desce pelo Supermercado Lima e leva para as oficinas, também para a praça, a igreja. Não dei continuidade porque acabou o papel.”

“Meu nome é Denise. A maioria me conhece, pois sou professora. Nasci em Mago Grosso do Sul, em Ivinhema. Vim para Sonho Azul, no Mato Grosso, depois fui para Glória do Oeste, também no Mato Grosso. Em 1994, vim para Novo Mundo. Não lembro muito bem como a cidade era, já faz muito tempo. No meu mapa primeiro eu desenhei a caixa d’água, porque foi uma coisa que sempre chamou minha atenção quando eu ia para casa, eu morava no sítio na época, depois da aula. A caixa d’água estava sempre derramando. Depois eu fiz o secador de sementes, o Posto Lima, a Borracharia que tem ao lado que eu nunca lembro o nome, um lugar que conserta carro que eu também não sei o nome, uma revendedora de gás, logo depois uma rua que leva para secretaria, para a prefeitura, que eu não desenhei. Depois fiz a Primus, antes o

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Foto 20 – Mapa Mental EL

Fonte: Acervo do autor.

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aqui as ruas, passei por lá. A prefeitura está aqui em cima. Tem o lago com um cara pescando. É um senhorzinho que todo dia está pescando lá. Aí continua subindo e passa por um bar que, uma pena, está fechado ainda. Passa pelo rio. Eu acho que desenhei o Lava Jato no lado errado da rua. Em frente tem o mercado Bom Jesus, o material de construção Primus e a borracharia que eu esqueci de desenhar. Tem um posto na esquina e o Sicredi. Do outro lado tem ujma loja de pesca. O cara vende material de pescaria e eu vou lá pegar umas iscas. E é isso. Eu conhece bem mais este lado. Porque eu moro para o lado da prefeitura e circulo só por la. Não desenhei minha casa porque não coube.”

“Meu nome é Eliel e estou em Novo Mundo há 30 dias. Já conhecia a cidade, pois meu sogro mora aqui e, por isso, sempre vim para cá. Trabalho na prefeitura da cidade. Eu vim de Colíder, que fica a 180km daqui. Colíder é tipo a cidade mãe da região. Todos nascem lá, mas florescem em outro lugar. Bem, iniciei pelo secador de sementes que se você entrar na rua dele chega na rádio, que descobri domingo. Depois o Posto Lima que é na chegada, tem o Friboi, onde se encontra carne barata. Todo sábado e domingo tem promoção. Do lado esquerdo tem a polícia. Em frente tem o gás, que a Denise também desenhou. Se entrar no redondo do prefeito, chega no Hotel Paican. É desse jeito

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Foto 21 – Mapa Mental FR

Fonte: Acervo do autor.

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“Meu nome é Fernanda, eu sou do Sul do país, estou aqui há 7 meses e é obvio que eu desenhei só aquilo que mais me chama atenção. A ponte no rio maravilhoso, depois o secador de sementes com os caminhões e o redondo do prefeito com a prefeitura lá em cima. Aí o papel terminou e eu tive que fazer uma curva onde não existe. Segui com a outra ponte e com a avenida principal. A primeira rua leva à Escola Estadual. Na avenida fiz a loja de construção Primus, o mercado, depois pulei para o boteco, caso você se perca. Em frente desenhei o Sicredi, e as duas escolas onde estamos. Lá adiante, a creche. Em seguida, mais uma loja. Pronto. Acabou Novo Mundo. A metade da cidade eu deixei para trás.”

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representação mais realista da espacialização da cidade, o que fica claro na explicação dos mapas, quando percebemos que os participantes comentam sobre ter representado algum estabelecimento, por exemplo, no lado errado da rua.

A conversa foi muito importante, pois através dela foi possível compreender melhor as representações feitas, quando foram reveladas suas impressões e relações de vivência com a cidade. A avaliação dessas representações passa por três fases: a leitura do desenho feito; as revelações feitas por eles, e a interpretação .

Os espaços mais representados são de estabelecimentos de suporte ao cotidiano pela prestação de serviço, tais como: mercados, bancos, escolas, postos de gasolina, lotérica entre outros.

Através da comparação dos mapas foi possível destacar marcos na paisagem da cidade. Representações que se repetem Do ponto de vista da cartografia, verificamnos mapas mentais as seguintes entre as representação de espacialização se do cotidiano solicitada neste exercício. noções cartográficas: proporcionalidade entre os objetos representados, isto nos remete a Os mapas mentais são representações do uma noção de escala; orientação e direção vivido. No mapa mental o lugar se apresenta tal nos objetos representados; referência, quando como ele é, com sua forma, histórias concretas selecionam e elegem pontos mais significativos e simbólicas, cujo imaginário é reconhecido para representar no papel; além de outros como uma forma de apreensão do lugar. conceitos que poderiam ser explorados. Os mapas mentais revelam como o lugar é compreendido e vivido. Observando as imagens, pode-se considerar que elas revelam muitos pontos em A análise dos mapas desenvolvidos deixa clara comum: a representação da cidade a partir da avenida principal . A maioria dos mapas tentou uma

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BANCO SICREDI

POSTO PARAÍSO

MERCADO LIMA

Fonte: Acervo do autor.

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PREFEITURA


ENTREVISTAS

Fotos 22 e 23 – Entrevista Jeová

As entrevistas foram muito importante para a investigação. Com o convívio diário com os moradores através das atividades, história foi o que não faltou. Relatos pessoais durante aplicação das atividades, nos corredores da escola, tomando café ou andando pela cidade. Histórias de vida, da mudança para a cidade, da mudança da paisagem, das lendas e mitos, das vontades, do futuro. As histórias que compunham o processo de ocupação do território foram revelando os agentes envolvidos e suas intenções para com o lugar. As histórias foram esmiuçadas a fim de identificar semelhanças, buscar referências para o preparo das entrevistas pois o tempo era curto entre as brechas das atividades. Surgiram nomes de lugares, regiões da cidade, pioneiros e até quem chegou primeiro. SEU JEOVÁ “Cada igreja tem um padre e o sol só tem uma lua. Em Novo Mundo ninguém se perde, porque aqui só tem uma rua”. Fonte: Acervo do autor.

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passando por Peixoto de Azevedo já cidade, recordando da sua última passagem pela região, em 1979, onde só tinham 14 barracos de lona.

Personagem principal da cidade de Novo Mundo, seu nome sempre surgia quando se questionava sobre a história da região. Seu Jeová, como ele mesmo se apresentou, é um “homem sem formatura, só prática da vida. Faculdade adquiri na Amazônia”. Nordestino, da região do Ceará, mudou-se desde novo para o sertão maranhense, onde foi criado e casou-se em 1972 com sua menina, como gosta de chamar sua esposa. Tiveram oito filhos, cinco mulheres e três homens.

Comentou que quando chegou com seus três amigos garimpeiros, a região era de mata fechada, com muita caça provendo a permanência. Chamaram mais 26 garimpeiros do Pará para abrir clareiras em floresta bruta e começar a garimpar. A primeira clareira aberta foi onde hoje está uma fazenda de criação de gado. Detalha que Foi em busca do eldorado, entrando mata a dentro. onde é a ordenhadeira desta fazenda hoje era a Explorou Rio Bala, Rio Iriri, Rio Itacaiúnas, na pista de pouso para o recebimento de material. Serra dos Carajás, Curionópolis, Salobo, Serra Pelada etc. Em 1979, sem emprego, sem formação, Compartilha acontecimentos, por volta de Seu Jeová e mais três garimpeiros decidiram 1976, que alteraram a região para proporcionar subir as águas. Subiram o Rio Amazonas, projetos de assentamentos, por parte do Rio Tapajós, Rio São Manoel, Rio Teles Pires, Governo Federal, mostrando interesse de outros Rio Peixoto, e Rio Braço Norte, o grotão que agentes pela área. Em 1981 já existia o primeiro banha o atual município, encontrando ouro. acampamento na região. Denuncia que brigas Assim deu-se o nome para o lugar, pois para os entre os garimpeiros matava muito, mas o que quatro garimpeiros, ali era um “Novo Mundo”. assustava e movia gente, mesmo depois de beneficiados por terra, era a malária e a hepatite. Em 1981 saiu da região indo para Serra Pelada, Pessoas passavam terras em troca de passagem onde garimpou por seis anos. Resolveu voltar de ônibus para voltar a sua terra ou por bicicleta. em 1987 com a família para Novo Mundo,

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Largou o garimpo em 1991, dedicando-se à colônia, como disse. Plantou banana, mandioca, criou porco, gado, mas ainda tem a febre do ouro correndo pelas veias. “Eu não sou ex garimpeiro, eu sou garimpeiro. Onde eu achar ouro, não vou deixar para trás, não”. De 1984 a 1987 deu entrevista, em Serra Pelada, para o documentário Montanhas de Ouro, aparecendo na parte 1 e 2.

Fotos 24 e 25 – Entrevista Elder

Atualmente, com mais de 65 anos, está pensando em um convite de ir para Aldeia Santo Antônio, na beira do Rio Teles Pires, garimpar duas grotas achadas há vinte anos pelo cacique, único que sabe da localização. Mantém-se em Novo Mundo envolvido a projetos da igreja, onde é cozinheiro, fora os serviços como dentista prático, protético, que aprendeu logo cedo de seu pai. PROFESSOR ELDER Elder é professor de história e mudou-se em 1999 para Novo Mundo. Participou das rodas de conversa e propôs um passeio para apresentar a cidade e compartilhar a história, marcando no espaço as transformações. Fonte: Acervo do autor.

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Contou duas versões sobre o nome da cidade: uma em que o nome proveio de uma empresa aérea, chamada Novo Mundo, que atendia os garimpos da região; e outra em que o nome surgiu em uma roda de bar, amigos querendo estabilizar raízes na região, surgiram com a ideia de Novo Mundo, com referência a Mundo Novo, no Mato Grosso do Sul.

Fotos 26 e 27 – Motores de energia

Visitamos o local onde ficavam os motores que geravam energia para cidade, até meados de 1993, até surgir a ligação elétrica entre Novo Mundo e Guarantã do Norte. Dois grandes motores movidos a diesel que funcionavam até 22 horas, com um aviso de sirenes para o desligamento. Hoje o lugar é utilizado como garagem da prefeitura. A cidade emancipou em 1995, antes pertencendo à Guarantã do Norte. Em 1997 teve a primeira eleição para prefeito. A partir dai, começou a ter autonomia. Cidade não planejada, com processo de ocupação do território resultado do garimpo. Ressalta que, a partir de 1979, já tem relatos de garimpeiros na região.

Fonte: Acervo do autor.

Em 1977 houve a divisão do Mato Grosso e começaram propostas do Governo Federal para defender todas as fronteiras, ocupar toda região

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norte que estava “desocupada”, desconsiderando a presença de população indígena, predominantemente pelos Kreen-akarore, que ocupavam a região de Guarantã do Norte, Carlinda, Novo Mundo e Nova Guarita. Repete a história do envio de 80 índios para a região do Xingu.

Foto 28 - Primeira farmácia da cidade

Mostra onde ficava a primeira farmácia da cidade, que mantém a mesma estrutura da época, que atuava com pequenos processos cirúrgicos, como uma espécie de hospital para suprir a carência de estrutura hospitalar da região e para atendimento emergencial dos garimpeiros.

Foto 29 - Primeira ponte no Morro do Urubú.

Nos leva na antiga ponte da cidade, de madeira que caiu definitivamente há um ano atrás, ponto central até meados de 2008, quando a gestão do prefeito Nelson Baumgratz, junto do Governo do Estado, promoveu a ligação asfáltica entre Guarantã do Norte e Novo Mundo, pela MT419, deslocando o centro da cidade. Comenta de um projeto, que ainda está em desenvolvimento, da construção de um lago para região.

Fonte: Acervo do autor.

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VERONILDA

Fotos 30 e 31 - Entrevista Veronilda

“Vim há 30 anos visitar uma amiga e estou aqui até hoje. Quero ficar aqui até o fim da minha vida” Umas das pioneiras da cidade, Veronilda veio há 30 anos para tocar comércio, viu aqui oportunidade para crescer e criar a família. Comenta que quando chegou tudo era de barraca de lona e que na região tudo acontecia em torno do garimpo. Montou uma casinha de madeira com banheiro interno, o que, até então, não existia na região. Veio visitar uma amiga que já estava com comércio montado e decidiu ficar. “Sofremos bastante aqui dentro, viu? Era uma região muito difícil, muito complicada. Malária era todo dia. Não tinha médico, não tinha estrada, só tinha malária mesmo”. Todo dia amanhecia com notícias de morte entre os garimpeiros.

Fonte: Acervo do autor.

Comenta que constituiu toda sua família dentro de Novo Mundo e que seus três filhos moram aqui, o caçula é novo mundense, já com 25 anos. “Pelo que Novo Mundo era, hoje moramos no paraíso (…) Mora-se bem, vivese bem. Temos uma população maravilhosa”.

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As andanças pela cidade, foram atividades diárias a fim de registrar e captar o convívio na cidade. Registrar como se promove a apropriação do espaço e relação dos moradores com as áreas públicas. Permite a investigação urbana por meio da abordagem de experiências relativos à leitura da cidade como fenômeno expressivo das alterações no espaço construído e suas consequências na vida cotidiana. Busca estabelecer relações de proximidade entre as diferentes escalas de percepção do espaço público e as possibilidades de apropriação.

Fotos 32 a 33 – Andanças

O ato de andar pela cidade é capaz de revelar zonas inconscientes e o suprimido da cidade. Capaz de descrever e modificar os espaços que muitas vezes apresentam uma natureza que ainda deve ser compreendida e preenchida de significados. O registro de fachadas7, traz todo levantamento feito, através de fotografias, para análise da tipologia das construções e da morfologia urbana. Serve como registro histórico das construções, permitindo analisar a identidade e processos de transformação.

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A partir do levantamento, foram selecionados dez registros para sintetizar a imagem da cidade. A seleção escontra-se em anexo a este caderno. Fonte: Acervo do autor.

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Fotos 34 a 37 – Andanças

Fonte: Acervo do autor.

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“[...] onde que que exista uma perfeita experiência espacial a viver, nenhuma representação é suficiente, procisamos nós mesmos ir, ser incluídos, tornarmonos e sentirmo-nos parte e medida do conjunto arquitetônico, devemos nós mesmos nos mover. Todo o resto é didaticamente útil, praticamente necessário, intelectualmente fecundo; mas é mera alusão e função preparatória dessa hora em que, todos nós, seres físicos, espirituais e sobretudo humanos, vivemos os espaços com uma adesão integral e orgânica. Será esta a hora da arquitetura.” (Bruno Zevi em Saber ver a Arquitetura, 1996)

ARGUMENTO DO DOCUMENTÁRIO

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A representação do espaço, seja construído ou ainda em concepção, constitui uma porção significativa das tarefas dos arquitetos e, considerando que a própria formação do arquiteto acontece por intermédio de representações, fica clara a importância de seu conhecimento, seus limites e seus recursos para a arquitetura. Dispomos de variados meios para representar o espaço e, embora esses instrumentos sejam incapazes de representar completamente o espaço arquitetônico, nossa missão é estudar a técnica de que dispomos e torná-la mais eficiente.

registradas situações cotidianas, pessoas e espaços construídos. A fotografia, embora realista, ainda não é capaz de proporcionar ao observador a experiência espacial da arquitetura, pois é o movimento que possibilita a experiência com o espaço. Entrar nos ambientes e estabelecer relações entre eles através do contato direto. Com isso, outro instrumento de representação, a cinematografia, com seu percurso de câmera como extensão do olho humano, parece possibilitar a melhor apreensão do objeto arquitetônico.

O desenho, como signo, estabelece a mediação entre a obra, seu objeto e o efeito construtivo que a leitura do desenho provocará. Esse efeito, essa decodificação, é um outro signo que é determinado pelo objeto, a obra de arquitetura, por meio da mediação sígnica do desenho do projeto. A representação concretiza o diálogo. Portanto, inferimos que o projeto é, na verdade, a própria concepção arquitetônica, que encontra no desenho um meio material de diálogo.

A cinematografia proporciona a introdução de uma outra dimensão à representação do espaço: o tempo. Sendo assim, torna-se evidente a importância deste instrumento de representação do espaço, já que é no espaço e no tempo que a arquitetura existe. As quatro dimensões reunidas na tentativa de transmitir a experiência de vivenciar um ambiente com o corpo.

Porem, se são representações, estão relacionadas à imaginação, portanto podem ser subjetivas e complexas. As imagens também convergem A fotografia possibilitou um enorme avanço o real e as emoções a partir do resultado da em termos de representação em arquitetura experimentação do real através da emoção, ou pelo realismo com a qual passaram a ser seja, ela está relacionada diretamente com a

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responsável pelas representações do mundo histórico. Toda essa lógica sustenta o argumento do documentário e suas particularidades.

subjetividade, a representação. Reúne o real, o imaginário, o simbólico e o ideológico, e nos quais, iniciam-se a busca pelos significados. No entanto, as imagens não são naturais e nem se pode dizer que têm uma relação com a realidade. A tendência é vê-las como natural ou real e atribuí-la semelhança à realidade ou até mesmo se confundindo com ela e em contrapartida um olhar para a imagem como cópia da realidade.

Desta forma, é preciso levar em consideração a imagem e o som e sua importância no documentário. IMAGEM

Tratando-se da documentação do processo de As potencialidades audiovisual estão contidas na ocupação de um território, o tratamento da sua própria linguagem. A adoção do audiovisual imagem proverá uma ilusão à transformação assume atualmente uma posição bastante favorável à do território marcando a paisagem da cidade. disseminação da arquitetura. O produto audiovisual tem outro aspecto de leitura, uma outra experiência, A lembrança, poesia e imaginação vividos permitem aciona outros mecanismos de entendimento. o devaneio a imagens poéticas com composição de videoarte e fotomontagens a partir dos registros Relevando a potencialidade representativa das fachadas e das andanças por Novo Mundo, audiovisual, este trabalho assume como instrumento adicionando movimento a imagens estáticas. representativo o documentário e seu tratamento criativo da realidade. O documentário faz uso A edição da imagem construiu-se através da da voz de narrador, entrevistas, gravação de som mescla de imagens captadas do cotidiano direto, cortes para introduzir imagens que ilustrem dos usuários da cidade com a representação, ou compliquem a situação mostrada numa cena e por meio de fotomontagens animadas, uso de atores sociais e de pessoas em suas atividades da transformação da paisagem da cidade. cotidianas. Além de uma lógica informativa

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Foto 38 - Rascunho da animação 1

Fonte: Acervo do autor.

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SOM Na linguagem audiovisual, o som modifica a percepção totalizante do receptor e ambos, imagem e som, se complementam de maneira coerente na produção de informação. Som como suporte a imagem. A partir dos relatos documentados, a edição conta com a estruturação e organização temporal do processo de apropriação do território. Na documentação dos relatos buscou-se o cotidiano, o desconhecido e, acima de tudo, a percepção dos usuários da cidade ajudando a construir a imagem da cidade através da subjetividade. A construção do histórico da região conta com relatos em diferentes posições no tempo e espaço. O conceito da montagem de edição do áudio leva em consideração que a imagem marcará onde, no tempo e espaço, o relato pertence.

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Popular, 2009. SANTOS, Milton. Espaço do Cidadão. 7ª edição. São Paulo: Editora da USP, 2007.

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